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Introdução
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Mestranda em filosofia na Unisinos/RS.
1
Noção levantada por Locke na obra Segundo tratado sobre o governo civil.
2
FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol. 1. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1997.
são as nossas, isto é, há uma constante produção de modos de ser que
nem sempre é desejado.
Partindo desse pressuposto da formação de subjetividade pelas
práticas discursivas que geram uma verdade e efeitos de poder, pretende-
se fazer uma reflexão em torno da noção de sujeito levantada por
Foucault, constatando a subjetividade como um processo (portanto
passível de criação e re-criação) e não como algo estanque, fixo, já dado
e estável.
A arqueologia do sujeito
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CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: J. Olympio, 1954. Vol.
I. p. 177
repetição da vida, a terra repetia o céu, o microcosmos imitava o
macrocosmos, etc. Foi a semelhança que organizou o jogo dos símbolos,
ela era o título de toda a linguagem, sua maneira de anunciar-se e de
formular seu direito de falar. O saber do século XVI, portanto, procede
através do acúmulo infinito de semelhanças, estando o mundo condenado
a conhecer apenas sempre a mesma coisa: a semelhança que aparece
como um reflexo no espelho. As coisas aparecem espelhadas, e é o seu
reflexo que enuncia sua verdade.
Não há espaço, portanto, para uma reflexão sobre o ser humano. O
homem é apenas o decifrador dos signos que a natureza apresenta; é
apenas o decifrador de seus próprios signos, sem saber-se produtor e
constituidor/constituído dos mesmos.
Da passagem do Renascimento para a Idade Clássica (século XVII –
XVIII), há uma ruptura epistemológica: passa-se do conhecimento pela
semelhança para o conhecimento pela representação. A linguagem na
Idade Clássica representa o real. Há uma descrição do mundo, e aquilo
que é possível descrever é o real. Nesse sentido, existe uma dobra, onde
a palavra é a representação da coisa. Tal descrição do mundo está ligada
ao poder de dizer a verdade do mundo. O homem nasce como aquele que
tem o poder de enunciar a verdade, enunciar o mundo; é ele quem pinta o
mundo, é ele quem tem o poder da palavra, o poder de dizer, de
descrever o mundo. Sua existência, portanto, é evidente, no entanto,
ainda não há um questionamento do homem por si só. O homem é apenas
aquele que tem o poder de dizer a reapresentação do mundo. O homem,
portanto, é a figura de Dom Quixote de la Mancha. Aquilo que Dom
Quixote lê e pode descrever é aquilo que é o real. Ele vive aquilo que
representa; sua vida é uma dobra, uma representação do real. Os
moinhos de vento são gigantes: aquilo que O Cavaleiro da Triste Figura
diz, descreve ou vê é o real, é a verdade. Indiscutivelmente Dom Quixote
peleia com os gigantes e não com moinhos de vento.
Abre-se, conforme Foucault, um espaço de saber onde a questão
não é mais das similitudes, mas da identidade e diferença. A aliança entre
similitude e signos é rompida no momento em que as similitudes
decepcionam por causarem alucinações e delírios. As coisas não são mais
do que aquilo que são, e as palavras vem ao acaso para preenchê-las. A
magia não serve mais para explicar as coisas, isto é, não há mais um
deciframento dos signos das coisas. O homem, agora, se desdobra sobre
si mesmo tornando-se objeto de si próprio.
No início do século XVII o pensamento cessa de se mover no
elemento da semelhança. Bacon surge e critica o saber das similitudes: a
natureza é plena de diferenças e desordens. No entanto, o espírito
humano é levado a ver nas coisas mais semelhança e ordem do que
possuem. As semelhanças, portanto, nos trazem ilusões e ídolos.
Descartes também expõe sua crítica: o saber não se dá por
semelhança, mas por comparação que se universaliza, ou seja, por
dedução que liga entre si duas evidências. Sendo assim, há duas formas
de comparação: de medida e de ordem. Uma analisa em unidades para
estabelecer relações de igualdades e desigualdades, e a outra estabelece
elementos, os mais simples possíveis, e dispõe as diferenças segundo os
graus mais fracos possíveis. E esse é o “Método” de Descartes: reduzir
toda a medida em uma colocação em série e, partindo da análise do mais
simples, chega-se aos mais complexos.
Eis a nova configuração do saber:
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Entrevista cedida a Claire Parnet. Abecedário – Deleuze.
não mais uma entidade una, identificável e determinada. Levanta-se a
hipótese de um sujeito da ação, um sujeito que cria a si mesmo como
uma obra de arte, seja essa criação através da práxis das virtudes e/ou da
multiplicidade de agenciamentos e de desejos que constitui o ser humano.
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Termo utilizado por Deleuze ao longo de sua obra: DELEUZE,G. GUATTARI, F. Mil
platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: editora 34, 1995.
Bibliografia