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A FILOSOFIA ENQUANTO PRÁTICA DE CRIAÇÃO DE SI

Adelaide Bersch Boff∗


adeboff@yahoo.com.br

Introdução

Levando-se em conta a crítica feita aos filósofos modernos (Locke,


Hobbes, Descartes, entre outros), Michel Foucault afirma a historicidade
do sujeito, bem como a historicidade da formação de subjetividade.
Contra a teoria de que o ser humano é livre por natureza, não podendo
sofrer sujeição a qualquer poder senão por sua vontade1, Foucault afirma
a não existência de uma essência fixa, de uma natureza humana que o
determine a ser livre ou a qualquer tipo de atitude. Sendo assim, Foucault
defende o fato de que o sujeito é um processo e não uma substância
passiva de essências, uma construção histórica e social onde ele mesmo
cria sua própria subjetividade.
Em suas primeiras obras, Foucault observa uma produção (e não
criação) de subjetividade. Contemporaneamente vive-se aquilo que ele
chamou de sociedade de controle2, onde a própria vontade, outrora
levantada por Locke como a condição da liberdade (realizar sempre sua
vontade) e também levantada por Kant como a realização da vontade
segundo a reta razão, é moldada e produzida pelo sistema vigente. Por
meio da relação entre discurso, verdade e poder na constituição da
subjetividade, partindo da constatação do sujeito como ser histórico,
criado por diversos discursos enunciados ao longo da história, fundado
sobre verdades instituídas como valorativas e imbuídas em relações de
poder, percebe-se que a subjetividade na sociedade contemporânea é
produzida por esses discursos enunciadores de verdades que nem sempre


Mestranda em filosofia na Unisinos/RS.
1
Noção levantada por Locke na obra Segundo tratado sobre o governo civil.
2
FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol. 1. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1997.
são as nossas, isto é, há uma constante produção de modos de ser que
nem sempre é desejado.
Partindo desse pressuposto da formação de subjetividade pelas
práticas discursivas que geram uma verdade e efeitos de poder, pretende-
se fazer uma reflexão em torno da noção de sujeito levantada por
Foucault, constatando a subjetividade como um processo (portanto
passível de criação e re-criação) e não como algo estanque, fixo, já dado
e estável.

A arqueologia do sujeito

“Sei quem sou – respondeu Dom Quixote – e sei que posso


ser não somente os que disse, mas todos os doze Pares de
França e, ainda, todos os nove da Fama, já que minhas
façanhas ultrapassarão as de todos eles juntos e as de cada
um de per si.”3
(Dom Quixote de la Mancha)

Na obra As Palavras e as Coisas, Foucault aborda, de modo geral, a


arqueologia das ciências humanas. Dessa forma, ele analisa a história
através de três grandes rupturas (Renascença, Idade Clássica e
Modernidade) utilizando-se para isso a análise da biologia, da filologia e
da economia, a fim de analisar o surgimento do homem como sujeito e
como objeto de seus estudos. Não nos interessa aqui os detalhes dessas
três análises; o que nos interessa no momento é explicitar o que (ou
quem) é o sujeito, como ele se forma e como ele nasce.
Foucault nos coloca que no Renascimento (século XV - XVI) aplica-
se a epistemologia do semelhante, isto é, a compreensão do homem e do
mundo se estuda através da semelhança. Até o final do século XVI o
mundo enrolava-se sobre si mesmo: o saber era construído a partir da
semelhança. A pintura imitava o espaço, a representação teatral era

3
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: J. Olympio, 1954. Vol.
I. p. 177
repetição da vida, a terra repetia o céu, o microcosmos imitava o
macrocosmos, etc. Foi a semelhança que organizou o jogo dos símbolos,
ela era o título de toda a linguagem, sua maneira de anunciar-se e de
formular seu direito de falar. O saber do século XVI, portanto, procede
através do acúmulo infinito de semelhanças, estando o mundo condenado
a conhecer apenas sempre a mesma coisa: a semelhança que aparece
como um reflexo no espelho. As coisas aparecem espelhadas, e é o seu
reflexo que enuncia sua verdade.
Não há espaço, portanto, para uma reflexão sobre o ser humano. O
homem é apenas o decifrador dos signos que a natureza apresenta; é
apenas o decifrador de seus próprios signos, sem saber-se produtor e
constituidor/constituído dos mesmos.
Da passagem do Renascimento para a Idade Clássica (século XVII –
XVIII), há uma ruptura epistemológica: passa-se do conhecimento pela
semelhança para o conhecimento pela representação. A linguagem na
Idade Clássica representa o real. Há uma descrição do mundo, e aquilo
que é possível descrever é o real. Nesse sentido, existe uma dobra, onde
a palavra é a representação da coisa. Tal descrição do mundo está ligada
ao poder de dizer a verdade do mundo. O homem nasce como aquele que
tem o poder de enunciar a verdade, enunciar o mundo; é ele quem pinta o
mundo, é ele quem tem o poder da palavra, o poder de dizer, de
descrever o mundo. Sua existência, portanto, é evidente, no entanto,
ainda não há um questionamento do homem por si só. O homem é apenas
aquele que tem o poder de dizer a reapresentação do mundo. O homem,
portanto, é a figura de Dom Quixote de la Mancha. Aquilo que Dom
Quixote lê e pode descrever é aquilo que é o real. Ele vive aquilo que
representa; sua vida é uma dobra, uma representação do real. Os
moinhos de vento são gigantes: aquilo que O Cavaleiro da Triste Figura
diz, descreve ou vê é o real, é a verdade. Indiscutivelmente Dom Quixote
peleia com os gigantes e não com moinhos de vento.
Abre-se, conforme Foucault, um espaço de saber onde a questão
não é mais das similitudes, mas da identidade e diferença. A aliança entre
similitude e signos é rompida no momento em que as similitudes
decepcionam por causarem alucinações e delírios. As coisas não são mais
do que aquilo que são, e as palavras vem ao acaso para preenchê-las. A
magia não serve mais para explicar as coisas, isto é, não há mais um
deciframento dos signos das coisas. O homem, agora, se desdobra sobre
si mesmo tornando-se objeto de si próprio.
No início do século XVII o pensamento cessa de se mover no
elemento da semelhança. Bacon surge e critica o saber das similitudes: a
natureza é plena de diferenças e desordens. No entanto, o espírito
humano é levado a ver nas coisas mais semelhança e ordem do que
possuem. As semelhanças, portanto, nos trazem ilusões e ídolos.
Descartes também expõe sua crítica: o saber não se dá por
semelhança, mas por comparação que se universaliza, ou seja, por
dedução que liga entre si duas evidências. Sendo assim, há duas formas
de comparação: de medida e de ordem. Uma analisa em unidades para
estabelecer relações de igualdades e desigualdades, e a outra estabelece
elementos, os mais simples possíveis, e dispõe as diferenças segundo os
graus mais fracos possíveis. E esse é o “Método” de Descartes: reduzir
toda a medida em uma colocação em série e, partindo da análise do mais
simples, chega-se aos mais complexos.
Eis a nova configuração do saber:

Podemos, se quisermos, designá-lo pelo nome de


‘racionalismo’; podemos, se não tivermos na cabeça senão
conceitos prontos, dizer que o século XVII marca o
desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou
mágicas e a entrada, enfim, da natureza na ordem científica.
Mas o que cumpre apreender e tentar restituir são as
modificações que alteram o próprio saber, nesse nível
arcaico, que torna possíveis os conhecimentos e o modo de
ser daquilo que se presta ao saber. (FOUCAULT, 2002, p.
75)

Dentre as modificações, encontramos a substituição da analogia pela


análise. Toda semelhança (entre terra e céu, micro e macrocosmos...)
será submetida à prova da comparação, isto é, só será admitida se for
encontrada, pela medida, a unidade comum (a identidade e a série das
diferenças). Além disso, o jogo das semelhanças era infinito, ou seja,
infinitamente poder-se-ia encontrar semelhanças entre o micro e o
macrocosmos, entre as coisas. Agora, uma enumeração se torna possível
por diversas formas, atingindo uma certeza perfeita. A enumeração
completa e a possibilidade de determinar em cada ponto a passagem
necessária ao seguinte permitem um conhecimento certo das identidades
e diferenças.
Outra modificação está no surgimento do discernimento que
possibilita estabelecer as identidades e depois a passagem para as
diferenças. Sendo assim, o discernimento busca obter pela intuição uma
representação distinta das coisas e apreender claramente essa diferença.
A linguagem, desse modo, não é mais uma das figuras do mundo. A
verdade encontra sua manifestação e seu signo na percepção evidente e
distinta. Compete às palavras traduzir essa percepção se assim o podem.
A linguagem se retira do meio dos seres para entrar na sua era de
transparência e de neutralidade.
O saber da época clássica consiste, portanto, na ordenação das
coisas por meio dos signos e no discernimento entre as identidades e
semelhanças através da análise. O conhecimento resume-se à
classificação uma vez que se conhece aquilo que se representa, e
representar é classificar.
Nova ruptura epistemológica: na passagem para o saber da
Modernidade (século XVIII em diante) questiona-se o “ser” da
representação, questiona-se sua verdade e, assim, percebe-se que a
verdade é apenas linguagem, e a linguagem é uma construção histórica
do homem para o homem. Sendo assim, o homem, que na Idade Clássica
estava nascendo como participante do conhecimento, agora encontra seu
batismo: para conhecer não basta a classificação; é fundamental a
reflexão. O homem passa a refletir sobre si mesmo, aparecendo como
objeto de seus estudos, de seu conhecimento. O homem não apenas faz
parte da vida, mas sabe-se como criado pela vida. Não apenas é um ser
de linguagem, mas sabe-se como criatura da linguagem. Não apenas é
dominado pela economia, mas é fruto das relações econômicas.

(...) o homem aparece com sua posição ambígua de objeto


para um saber e de sujeito que conhece: soberano
submisso, espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do
Rei que, antecipadamente, lhe designavam Las Meninas,
mas donde, durante longo tempo, sua presença real foi
excluída. (FOUCAULT, 2002, p. 430)

Michel Foucault inicia a obra As palavras e as coisas com uma


análise da obra de Velásquez Las Meninas. Com admirável destreza,
coloca-nos dentro da mesma obra, nos incitando a pensar que “nenhum
olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela
perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo
invertem seu papel ao infinito.” (FOUCAULT, 2002, p. 5). No saber da
Modernidade, o homem passa a ser objeto de seu saber ao mesmo tempo
que também é sujeito. Sujeito e objeto confundem-se nessa trama onde
nenhum olhar é estável em função da troca de olhares, do jogo de
verdades que o “ser” da representação nos aponta. Foucault parte, desde
já, tendo em mente as diversas perspectivas e os diversos jogos de
verdade que imbricam nosso saber, que estão inseridos em nosso
conhecimento, mostrando que os “códigos fundamentais de uma cultura”
são históricos e mutáveis. As diversas perspectivas dos olhares mostram a
impossibilidade de determinação de uma única verdade que, na realidade,
nada mais é do que uma perspectiva, uma construção.
O olhar do pintor presente no quadro (que é o próprio Velásquez)
olha para o modelo que está sendo pintado, que não aparece e que pode
nos levar a crer que Velásquez está olhando para nós, espectadores que,
num primeiro momento, seríamos os modelos. Daí a pergunta: “Somos
vistos ou vemos?” Somos nós que conhecemos algo e este algo se faz
objeto para nós ou somos nós que somos objeto de nosso conhecimento?
De que perspectiva falamos? Qual a verdade da representação? Qual é a
verdade?
Foucault remete-se a uma hermenêutica sobre a maneira pela qual
foram possíveis conhecimentos e teorias. Sobre a maneira pela qual
criamos determinadas regras e ordens que passaram a fazer parte de
nosso imaginário social e individual que possibilitaram nosso saber. Ou
seja: sob qual perspectiva olhamos quando estabelecemos uma ou mais
regras, métodos e saberes? Note-se que quando falamos em
hermenêutica não estamos nos referindo àquela hermenêutica que dá um
especial poder à linguagem. Podemos afirmar que Foucault utiliza-se do
termo hermenêutica enquanto interpretação, criação de sentido,
decifração de signos, isto é, enquanto interpretação das diversas
perspectivas de verdade. Dessa forma, a pintura de Velásquez nos faz
refletir:

(...) por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se


aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que
se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o
lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe
definem. (FOUCAULT, 2002, p.12).

A verdade não está mais na representação. Aquilo que é possível


descrever não basta para constituir o que é real. Dom Quixote já não vive
mais. A representação perde sua força para dar lugar à interpretação de
tal representação. E por isso somos limitados e fraturados, pois a verdade
é apenas uma perspectiva, uma interpretação. A linguagem não dá conta
de nosso saber. Ela não dá conta do mundo. Nosso conhecimento,
portanto, não está fundamentado em uma verdade dada, fixa e imutável,
ele apenas se insere dentro de um jogo de verdades nas quais
acreditamos em função da perspectiva que escolhemos olhar. Assim como
o espelho da obra de Velásquez, que reflete a figura do rei e da rainha
que estão para fora da margem, fora da moldura e que servem de modelo
ao pintor, reflete o interior e o exterior do quadro real, também o
conhecimento, o nosso saber reflete o exterior (o fenômeno) e o interior
(nós mesmos, que carregamos nossa carga cultural e psicológica).
Nasce, portanto, o homem ao mesmo tempo como sujeito e como
objeto de um conhecimento. Dessa forma, conhecemos também seu
limite, sua finitude. Ao contrário do que se pensava na época Clássica, o
ser humano, para a modernidade, sabe a sua finitude e os limites do
conhecimento (os limites da biologia, da linguagem e da economia).
Conhecem-se os limites da anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos
de produção ou o sistema da conjugação da linguagem. O ser humano,
portanto, está “preso” aos seus próprios limites; está preso à história, à
sua constituição como ser histórico. Não há mais uma constituição
transcendente, uma verdade dada que, para alcançarmos o bem supremo
basta encontrá-la. O ser humano, sabendo-se como objeto de estudo,
também sabe-se como limitado por sua objetividade, isto é, sabe-se como
uma construção histórica, portanto, limitada.
Eis, pois, a morte do sujeito que se dá no instante de seu batizado.
Sujeito este que, para Foucault, pelo menos nesta “fase” de seu
pensamento, é tido como marcado, construído pela história. São as
condições históricas que dão origem ao homem. O sujeito é, portanto,
produto, reprodução de um conjunto de condições externas, produto de
um saber gerenciado por uma relação de poder e enunciado através de
uma verdade. O sujeito é construído por uma verdade pronunciada por
um discurso detentor de um poder. Foucault constata a morte do sujeito
enquanto natureza humana. Não existe um sujeito pronto, dado,
possuidor de uma essência; existem apenas processos de subjetivação,
apenas o resultado de condições históricas. É com o advento da
Modernidade que se passa a refletir que o sujeito não é uma instância
dada que está no mundo de forma irrefletida. O sujeito, como afirma
Deleuze, é um agenciamento, um elemento difuso cuja identidade é
impossível determinar. O sujeito, assim, é o resultado da relação entre
discurso, verdade e poder.

(...) esses processos de subjetivação são inteiramente


variáveis, conforme as épocas, e se fazem segundo regras
muito diferentes (...). Um processo de subjetivação, isto é,
uma produção de modo de existência, não pode se
confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de
toda interioridade e mesmo de toda identidade. A
subjetivação sequer tem a ver com a ‘pessoa’: é uma
individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um
acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma
vida...). É um modo intensivo, e não um sujeito pessoal.
(DELEUZE, 1992, P. 123).

Vemos no pensamento de Foucault que o sujeito é um processo de


subjetivação que se forma através da relação entre discurso, verdade e
poder. Entendemos que as práticas discursivas são criadoras de verdades,
e tais verdades (através de um efeito de poder) geram um determinado
saber, isto é, uma determinada perspectiva sob a qual olhamos para
identificar nosso conhecimento, nossas verdades e, consequentemente,
nós mesmos enquanto sujeitos. Cada época é formada por um saber
específico que vai moldando a subjetividade através das práticas
discursivas que são perpassadas por relações de poder a fim de criar
verdades. Tais verdades atingem o sujeito de maneira a criar nele modos
de ser que respondam positivamente ao saber vigente (ao sistema
vigente). Foucault afirma, portanto, que o indivíduo moderno é construído
e moldado por essas verdades construídas historicamente. Sendo uma
construção histórica, o sujeito nunca é determinado, está sempre em
processo, em construção efetiva. Não há uma identidade fixa na qual
possamos identificar o sujeito. Há apenas constantes construções,
modificações e descontinuidades. Como afirma Deleuze, “nenhum de nós
é apenas uma pessoa” 4.
É relevante mencionar que, contrapondo a idéia levantada por
inúmeros filósofos de que essa dimensão de sujeito erguida por Foucault
desemboca na morte do sujeito, levanta-se a hipótese de que o sujeito é
uma criação e re-criação constante que se dá por meio de uma práxis, da
realização das virtudes, através de agenciamentos e multiplicidades de
desejos. Não há propriamente a morte do sujeito. Há ênfase na noção de
uma subjetividade criativa e composta por uma confluência de fatores;

4
Entrevista cedida a Claire Parnet. Abecedário – Deleuze.
não mais uma entidade una, identificável e determinada. Levanta-se a
hipótese de um sujeito da ação, um sujeito que cria a si mesmo como
uma obra de arte, seja essa criação através da práxis das virtudes e/ou da
multiplicidade de agenciamentos e de desejos que constitui o ser humano.

Para desenvolver, portanto, o próprio desejo e criar um modo de ser


autônomo, é necessário aprender a arte da existência; é necessário criar-
se a si mesmo como uma obra de arte. É então que, em suas últimas
obras, Michel Foucault afirma ser a subjetividade uma criação e re-criação
constante. Faz-se mister mencionar que esta noção de criação de si
mesmo através da realização dos próprios desejos apresentada por
Foucault foi o ideal da filosofia antiga (dos filósofos socráticos até os
últimos estóicos). Noção, esta, que foi distorcida na Idade Média em
direção àquilo que Foucault denominou deciframento de si, e não mais
criação de si, onde o indivíduo é obrigado a castrar e coibir seus desejos,
ao invés de criá-lo e direcioná-lo. Deciframento de si a fim de encontrar
qual é a verdade do sujeito. Tem-se, portanto, mais do que um cuidado
de si, um conhecimento de si, isto é, mais do que técnicas reflexivas e
práticas de autonomia, técnicas exegéticas de revelação dos pensamentos
mais íntimos, a fim de constatar, classificar e fixar a verdade do sujeito.
Dessa forma, percebe-se a urgência de retornar a esses conceitos
gregos antigos, não no sentido de apropriar-se deles, mas no sentido de
descobrir qual é o nosso modo de existência hoje, qual é o nosso ethos, a
exemplo do ethos grego. Urgência de resgatar o conceito de cuidado de si
enquanto técnica de construção do eu, de uma arte da existência, onde se
cria a si mesmo como uma obra de arte. É necessário mencionar que essa
criação de si não se coloca em termos românticos, uma vez que ela
pressupõe uma práxis, uma conquista da autonomia, da liberdade que se
dá por meio da prática.
Sabendo-se o sujeito como ser histórico e como um processo de
construção, percebe-se ele mesmo como criador de sua subjetividade,
percebe-se o sujeito como construtor de si mesmo. Sendo assim, Foucault
realizará uma volta aos gregos, buscando conceitos como epimeloû
heautoû (cuidado de si) a fim de afirmar essa criação de si mesmo. Ou
seja, como afirma Nietzsche, é preciso criar-se a si mesmo como uma
obra de arte, daí a justificativa para a expressão estética da existência
que diz respeito a uma “maneira de viver cujo valor moral não está em
conformidade a um código de comportamento” (FOUCAULT, 1994, p.82),
mas está em conformidade à realização dos desejos. Estética da
existência que diz respeito à formação de um modo de ser, à formação de
um ethos.
Essa criação de si é realizada através de inúmeras práticas. Aqui
Foucault menciona a importância da virtude e da liberdade como prática
da constituição da subjetividade. O sujeito só é livre, só conquista sua
liberdade, através da prática das virtudes como enkrateia (autodomínio),
a phronesis (discernimento) e a sophrosune (prudência), ou seja, o sujeito
se constitui a si mesmo somente através da prática sobre si (cuidado de
si). Eis a diferença entre o conceito de liberdade erguida pelos modernos e
mencionada por Foucault: para aqueles, a liberdade é algo natural, inato
ao ser humano. Para este, sofrendo influências de Nietzsche, a liberdade é
uma conquista: um constante exercício de autodomínio e comando de si
mesmo a fim de realizar os próprios desejos. Todas essas virtudes
pressupõem uma constante luta agonística, uma constante tensão para
consigo mesmo, um exercício a fim de constituir-se a si mesmo. Somente
através dessas práticas de autodomínio que o indivíduo é capaz de
discernir aquilo que é seu desejo daquilo que lhe é induzido e formatado
como desejo.
Conforme Gilles Deleuze, o desejo se move e se produz sempre por
rizoma, isto é, como um conjunto de ramificações não pivotentes, sem
uma raiz principal de onde tudo se originaria. Ou seja: como uma crítica à
psicanálise, o desejo não é algo que provém de uma interioridade
primeira, de uma origem única, de uma relação paterna ou materna, mas
sim, algo que se origina de uma confluência de fatores; é um
agenciamento de fatores, uma conexão de diversas instâncias sem
estarem ligadas a uma raiz primeira (una). O desejo faz parte de uma
estrutura de ramificação, de ligação, de conexão de diversas instâncias,
de relações.
Nesse sentido, temos uma grande aproximação entre Deleuze e
Foucault no que diz respeito à noção de rizoma: aquilo que constitui a
subjetividade não são instâncias (ou verdades) únicas, fixas e
substanciais. A subjetividade é constituída por uma confluência de fatores
(discursos), por agenciamentos, por uma estrutura rizomática e não uma
estrutura de raiz pivô. Um sistema rizomático pressupõe a multiplicidade
(processo) e não mais o dualismo (sujeito/objeto, falso/verdadeiro,
bem/mal). Assim sendo, o sujeito, através da prática da autonomia e do
cuidado de si, tem o poder, a potencialidade de mapear-se a si mesmo,
isto é, de realizar uma cartografia do desejo5, de enxergar toda a
construção que ele compõe; não apenas a fotografia estanque que o
prende a uma origem primeira (seja essa origem provinda da psicanálise,
que embasa suas afirmações na relação edipiana, seja essa origem
provinda das verdades sociais instituídas por discursos que geram efeitos
de poder), mas todo seu mapa, seu rizoma, suas relações e delírios do
mundo.
Eis, pois, a fundamental relevância da filosofia na sociedade: a
criação de um ethos que seja próprio nosso, que seja embasado em
nossas escolhas, em nossos desejos, e não mais em um derver-ser
instaurado. Talvez se possa arriscar dizer que, antes de programas de
ação social ou de propostas ideológicas, é necessário, inclusive em sala de
aula, trabalhar a questão da autonomia do sujeito a partir da criação de si
mesmo como uma obra de arte. Esta talvez seja a forma mais eficaz (por
trabalhar filosoficamente com a existência humana) de promover o bem-
estar social.

5
Termo utilizado por Deleuze ao longo de sua obra: DELEUZE,G. GUATTARI, F. Mil
platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: editora 34, 1995.
Bibliografia

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: J.


Olympio, 1954
DELEUZE, G. GUATTARI. F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1-
5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
_________________ História da Sexualidade I. A vontade de Saber. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1997.
________________. História da Sexualidade II. O Uso dos Prazeres. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1994.
_____________. História da Sexualidade III. O cuidado de si. Rio de
Janeiro: Edições Graal,1985.
_________________. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.
_________________. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
_________________. Tecnologias del yo. Barcelona: Ediciones Paidós
Ibérica, 1995.
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber. A trajetória da Arqueologia de
Foucault. Rio de Janeiro, Graal, 1981.

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