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“Um dos primeiros problemas que se vê obrigado a abordar o estudioso do
pensamento filosófico na Hispano-América é, logicamente, o problema da existência
ou não de uma filosofia hispano-americana, quer dizer, de uma filosofia ou modo de
filosofar peculiar, próprio e original da América espanhola. Esse problema
certamente não é novo. Sem forçar muito os termos, bem pode-se dizer que sua
origem remonta às primeiras décadas do século XIX, ou seja, à época na qual os
intelectuais americanos compreendem propõem expressamente a urgente
necessidade de complementar e fortalecer a independência política com uma
emancipação mental conquistada a força de ser original.” (FORNET-BETANCOURT,
1993, p.9)
nossa vocação é prática e não teórica, e que nossos interesses se voltam
mais para a ética do que para a lógica.4
Com a entrada do Brasil no movimento desenvolvimentista, a inserção do
país nas problemáticas contemporâneas de outros países aumenta, fazendo
com que os temas e questões filosóficas da Europa voltem a se tornar
objetos de discussão. Além das disputas e influências entre as diferentes
correntes – neokantismo, hegelianismo, marxismo, existencialismo,
pragmatismo, neotomismo, etc. – a problemática aponta para uma
superação da forte influência tomista e cristã. Esse momento é importante
para a tomada de consciência da sociedade para o papel da filosofia, seja
enquanto reflexão sobre a existência e a realidade social, seja enquanto
orientação e guia para as ações.
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Junto dessas afirmações, há diversas outras que circulam, algumas mais ácidas,
como é o caso de Salazar Bondy, ao julgar que “nossa cultura é inautêntica, porque
é a cultura de países subdesenvolvidos. [...] que a cultura hispano-americana é
uma cultura alienada e alienante, enquanto desfigura e impede, inclusive, a
manifestação do próprio.” (Apud FORNET-BETANCOURT, 1993, p.38) No entanto,
nesta mesma obra, o autor apresenta uma gama de autores que pensam e
escrevem defendendo tanto a autenticidade de nossa produção filosófica como a
especificidade da filosofia aqui produzida.
Discutiu-se, e continua ainda a ser discutida, a posição da
Filosofia no currículo secundário. Há quem hoje queira eliminá-
la deste currículo como ontem também houve quem assim
pensasse. Já o velho Rosenkranz julgava que os jovens não
possuem capacidade para a compreensão dos problemas de
ordem especulativa.5 [...] Afirmar, como se afirma que, na
nossa época, devemos cuidar principalmente da formação de
homens práticos, é bitolar o destino das novas gerações; é
julgar que, na base de uma concepção da própria prática, não
cabe lugar à teoria, à reflexão. É, por outras palavras,
deliberadamente atrofiar capacidades, que tôdas são
igualmente úteis (já que se fala tanto em utilidade) à cultura
de um país. Em suma: pugnar por uma escola formadora
apenas de mentalidades práticas é o mesmo, diz com razão
Sant’Ana Dionísio em seu livro: A Filosofia Como Objeto de
Pedagogia, “que querer obter um tipo de pomicultura que
conseguisse educar as plantas a dar frutos sem a necessidade
de florescer. [...] Proponho, desde logo, aproveitando a
oportunidade deste Encontro, uma declaração, firme e decidida
a favor da manutenção do ensino de Filosofia no currículo do
ensino secundário, hoje ameaçado por uma nova reforma que,
parece, pretende eliminá-lo.” (1960, p.112).
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Principalmente com a Lei n. 7.044/82, que, revogando o Artigo 23 da Lei n.
5.692/71, que trata da profissionalização obrigatória do Ensino de 2º Grau, permite
uma reorganização curricular, fazendo com que as disciplinas da Área das Ciências
Humanas possam novamente ser incluídas. (GIOTTO, 2006) No entanto, como
sabemos, somente no artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
Lei n. 9.394/96 é que teremos expressamente a citação da disciplina de Filosofia,
ao determinar que, “ao final do ensino médio, todo estudante deverá ‘dominar os
conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania’.”
(KOHAN, 2006, p. 259)
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Foucault (2004) nos faz lembrar que Sócrates já discutira a problemática questão
da idade para o filosofar e, que nos séculos I e II, novamente, as escolas filosóficas
posicionam-se diferentemente sobre isso, com relação aos seus alunos. De certa
forma, a questão da idade e do ensinar/aprender perpassam a história da filosofia e
acabam recebendo uma formatação mais específica com a polarização entre Hegel
e Kant. Hegel defendia a necessidade de se ensinar filosofia a partir e com a
história da filosofia. Já Kant, apontava para a necessidade de se ensinar a aprender
a filosofar. A influência de Rousseau é clara, juntamente com a mudança de
perspectiva com relação a criança. Kant, nesse sentido, é um pensador que
contribuiu muito para a valorização da criança enquanto ser único, que possui
maneiras próprias de pensar, agir e sentir.
produção de reflexões, artigos, livros, cursos e seminários sobre essa
temática. 8
Atualmente, a situação é bastante diferente de décadas atrás. Há grande
euforia e otimismo com a aprovação da obrigatoriedade da implementação
da Filosofia no Ensino Médio. A procura por cursos de Filosofia com Crianças
aumenta consideravelmente e já é significativo o número de escolas
particulares que a implementam em seus currículos. Mesmo fora das
instituições, surgem “movimentos que intentam levar a filosofia às ruas, os
‘cafés filosóficos’, ‘as cervejas filosóficas’, a ‘ciberfilosofia’, a ‘ filosofia
clínica’, a filosofia para a terceira idade.” (KOHAN, 2002, p. 21) Conta-se,
até mesmo, com a presença da filosofia em canal aberto de televisão e em
‘horário nobre’. Alguns já se intitulam jornalistas e filósofos, e os convites
para exposição pública em debates e entrevistas aumentam
consideravelmente.
Isso pode, de certa maneira, indicar o fortalecimento da democracia
brasileira mas, também, pode indicar um estádio de desenvolvimento do
capitalismo atual, em que tudo se torna mercadoria e apto a ser consumido.
Pode significar um possível caminho histórico de desenvolvimento do
pensamento filosófico ou, ainda, uma guinada valorativa com relação às
práticas e atitudes contemporâneas, de maior reflexividade e exigência de
rigor crítico do pensamento. O mercado, a história, a consciência, enfim,
quantas outras explicações não seriam possíveis? O que importa,
fundamentalmente, é que a volta da filosofia, em âmbito educacional, esteja
ocorrendo de forma bastante contextualizada com as discussões
pedagógicas atuais.
Mais ainda, que as propostas filosóficas, principalmente as que envolvem
crianças, tenham uma estreita relação com o pensar e com o agir
pedagógicos, com o relacionar-se emocional e discursivamente com os
outros, com uma atitude com relação ao conhecimento que remonta à
atitude dialógica platônica. Gadotti, além de afirmar que “os pressupostos
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Atualmente, o respeitado site da ANPOF, http://www.anpof.org.br/, Associação
Nacional de Pós-graduação em Filosofia, conta com um Grupo de Estudos
denominado Filosofar e Ensinar a Filosofar, sob a coordenação do Prof. Walter Omar
Kohan, também muito conhecido pelas publicações sobre Filosofia com Crianças, e
o Prof. Sérgio Sardi, entre outros, participa do Núcleo de sustentação.
apontados por Lipman são hoje aceitos pelas pedagogias mais atuais sem
grandes dificuldades”, indica que “o sucesso de propostas como as de
Lipman e Freire – semelhantes em alguns aspectos e divergentes em outros
– deve-se em grande parte ao papel dado à metodologia.” (1999)
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“Na década de 70 falávamos da ‘morte da filosofia’ e lutávamos ao mesmo tempo
pela volta da filosofia no ensino médio.” (GADOTTI, 1999)
Paulo Renato Costa Souza afirme que ‘tende a concordar’ que a falta de
aulas de filosofia produz deficiências de raciocínio e que a ‘excessiva
memorização e a simplificação dos métodos de ensino podem deformar o
raciocínio do estudante’, a Secretaria pretende, primeiro, reintroduzir a
Filosofia no II grau, realizando um concurso público para os professores
especializados. No I grau, porém, prefere continuar incentivando a
implantação do projeto do CBFC e aguardar os resultados ‘que indicarão o
caminho a ser tomado no futuro. (BOTTEON & MORAES apud SILVEIRA,
2001, p26)
Na década de 90, o programa de Lipman se dissemina por vários Estados
brasileiros, fomentando a realização de cursos, palestras, seminários,
oficinas pedagógicas e congressos, inclusive internacionais. Mas o que vem a
ser essa filosofia para crianças? De que tipo de proposta se trata? É filosofia,
metodologia filosófica, educação para o pensar? Quais os seus fundamentos,
postulados e contribuições para o campo da educação? Eis uma questão que
julgamos pertinente investigar, mas que não o faremos dessa vez, dado que
nosso contexto nos encaminha para outras contribuições já implicadas com a
prática educacional.
1.5 Problematizações
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O que é o ente? Heidegger vai nos mostrar como o particípio de einai, óv, é
entendido pelos pensadores orignários no sentido verbal e não substantivado, como
fizeram Platão e Aristóteles, dando início ao esquecimento do ser e ao
desenvolvimento metafísico do pensamento ocidental que culmina hoje com a
predominância da técnica. Para os pensadores, (Parmênides, Heráclito e Demócrito)
a formulação grega tì tò óv significa a pergunta pelo ser dos entes, numa tradução
cuja sonoridade agride nossos ouvidos seria algo como a entidade do ente. Não o
ente, aquilo que se encontra a nossa mão, as coisas, mas aquilo que permite que
sejam. (2002, p. 70-72)
Acreditamos que a contribuição de Heidegger seja fundamental exatamente
por isso, por abrir caminhos para o pensamento acerca daquilo que não
pensamos ou que, facilmente, deixamos de pensar. O modo como as
propostas acima citadas foram construídas, principalmente pela forma como
a discussão filosófica e pedagógica permeou as propostas de filosofia
para/com crianças, faz-nos crer que algumas questões centrais precisam ser
melhor explicitadas. E Heidegger é interessante porque, como pensador,
questiona inclusive o termo filosofia,11 atribuindo-o a um caminho específico
tomado pelo Ocidente, o caminho da metafísica, que se inicia com Platão e
chega aos dias atuais.
Heidegger atribui um outro caráter ao legado dos filósofos tradicionalmente
classificados por pré-socráticos. Chamando-os de pensadores, em
contraposição aos posteriores filósofos, valoriza seu legado mostrando o
quanto essa filosofia estava impregnada pela ação do pensamento originário.
O dizer de Heráclito, que se desvela quanto tocado pela intenção daquele
que se permite pensar, orienta Heidegger a nos mostrar o quanto um pensar
preso a uma lógica demasiado rígida pode nos conduzir pelo caminho do
raciocínio, impedindo-nos de pensar. É por isso que o modo de conduzir e
deixar-se conduzir pelo pensar, a atitude filosófica segundo Sardi, será
considerado de real importância nessa busca por condições de verdade, pela
alétheia, por aquilo que se desvela ao se velar.
Embora a questão o que é a filosofia seja uma questão tão árdua que
Deleuze e Guattari tenham dito que “talvez só possamos colocar a questão
O que é a filosofia? tardiamente, quando chega a velhice, e a hora de falar
concretamente.”12 Achamos que, quer queiramos ou não, ela se encontra no
centro das propostas, mesmo que não tenham sido explicitadas ou
convenientemente abordadas. Também temos presente que, além das
11
Heidegger apresenta uma outra interpretação-explicação para o termo filosofia.
“No modo grego de pensar, significa: amizade pelo que constitui o a-se-pensar.”
(2002, p. 17)
12
E continuam os autores, nessa introdução antológica ao livro O que é a filosofia?
“[...] Há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude mas, ao contrário,
uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um
momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se
combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras... [...]
Simplesmente chegou a hora, para nós, de perguntar o que é a filosofia. Nunca
havíamos deixado de fazê-lo, e já tínhamos a resposta que não variou: a filosofia é
a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.” (1992, p. 9-10)
questões centrais (o que é filosofia, o que é aprender, o que é ensinar, o que
é pensar) temos uma outra diretamente vinculada a essas questões e às
propostas referidas. Trata-se da questão e da pergunta pela criança,
conceito muito ligeiramente abordado pelas propostas e que requer uma
investigação. ‘Filosofia e Criança, Educação e Pensar’, conceitos chaves que
precisam ser explicitados, fazendo-os emergir dos respectivos contextos
teóricos dentro dos quais foram e são forjados pelas teorias filosóficas.
É por isso que julgamos conveniente que se proceda, enquanto método
investigativo, a uma sistemática escavação dos principais conceitos que
estruturam estas teorias pedagógicas, fazendo emergir seus significados a
partir dos referenciais teóricos nos quais foram criados. Necessitamos
produzir não uma historicização desses conceitos e, nem tanto, tentar
descobrir a sua gênese de produção, mas engendrar esforços teóricos e
analíticos para fazer emergir os alicerces de suas possíveis interconexões.13
A sugestão é a de que, nessa investigação, se possível, possamos guiar-nos
com um pé em Heidegger e outro em Foucault.
A necessidade do uso do referencial teórico dos dois deve-se, em primeiro
lugar, pela importância das análises filosóficas de Heidegger com relação aos
modos de procedimento de análise (fugir do historicismo e de toda
objetificação causal), procurando desvelar o horizonte de compreensão a
partir do qual a teoria se propõe e se dispõe. E isso, no meu entender,
parece que é utilizado e desenvolvido pelo trabalho da genealogia14
foucaultiana, apesar das muitas diferenças com Heidegger.
13
Deleuze, ao comentar sobre a intuição como o método de Bergson, na exposição
de sua primeira regra – em que se aplica a prova do verdadeiro e do falso e se
denuncia os falsos problemas – cita a seguinte afirmação do autor: “A verdade é
que se trata, em filosofia e mesmo alhures, de encontrar o problema e, por
conseguinte, de colocá-lo, mais ainda do que resolvê-lo. [...] Mas colocar o
problema não é simplesmente descobrir, é inventar. A descoberta incide sobre o
que já existe, atualmente ou virtualmente; portanto, cedo ou tarde ela
seguramente vem. [...] os verdadeiros grandes problemas são colocados apenas
quando resolvidos.” (BERGSON apud DELEUZE, 1999, p.9)
14
Essa correlação interpretativa surgiu-me com a leitura semanal dos dois autores,
em diferentes seminários do pós-graduação desta Universidade. Fiquei feliz ao
perceber que Manoel Barros da Motta aponta para algo bastante semelhante em
sua belíssima apresentação do v. II de Ditos & Escritos: “O trabalho da genealogia
vai também se transformar progressivamente nos livros e ensaios seguintes de
Foucault, até tomar a forma de uma ontologia do presente. Genealogia e
Arqueologia se articulam sob o signo das problematizações.” (2005, p. XLVIII)
Acredito que os resultados desse movimento teórico-metodológico poderiam
permitir perceber significados e compreender inter-relações, cujos conceitos
não nos permitem fazê-lo isoladamente. Quem sabe não estaríamos nos
possibilitando ver em profundidade, com um olhar complexo, a superfície
fenomênica dos conceitos que, nos moldes em que se encontram, parecem-
nos, muitas vezes, a complexidade da complexidade. É por isso que julgo
pertinente que se faça um estudo dos movimentos dos conceitos trazidos à
tona a partir da escavação investigativa. E também de, a partir do horizonte
de compreensão heideggeriano, investir sobre esses conceitos para
problematizá-los e inquiri-los a dizer sobre a essencialidade de suas
pretensões de verdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS