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FILOSOFIA, POLÍTICA E CULTURA EM HANNAH ARENDT

Lizandra Andrade Nascimento*


Cláudio Boeira Garcia*

1. Indagar sobre as possibilidades da política depois do aparecimento dos


regimes totalitários é o que orienta os percursos das reflexões de Arendt
sobre as experiências e noções filosóficas e políticas da tradição. No que
respeita especificamente ao modo com que os filósofos lidaram com a
política, seus cuidados são redobrados. Isso porque, desde Platão, é
possível descrever elementos que caracterizam o conflito entre os modos
de vida dos filósofos e dos cidadãos. 1

A atividade do filósofo, pelo menos a de estilo platônico, segundo a


autora, se ocupa com as idéias a partir das quais pretende derivar
princípios que estabilizem os assuntos humanos, por sua vez, a atividade
do cidadão imersa no fluxo constante dos assuntos humanos se
caracteriza pela flexibilidade das opiniões acerca dos mesmos. Para tal
filósofo, o contrário da verdade é a ilusão ou a mera opinião. Essa
degradação da opinião, exposta sob a ótica da política, confere pungência
ao conflito entre a verdade filosófica e o âmbito da política, pois, no
campo da política, enfatiza Arendt, é a opinião, e não a verdade, que
pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo o poder. É
nesse horizonte de consideração que a frase de Madison “todo governo
assenta-se na opinião” é estendida por Arendt na afirmação de que: nem
mesmo o mais autocrático tirano ou governante pode alçar-se ao poder e
conservá-lo sem o apoio daqueles que têm opiniões análogas. Frase
arrematada com a idéia de que toda a pretensão a uma verdade absoluta
na esfera dos assuntos humanos, cuja validade não requeira apoio da

*
Mestranda em Educação nas Ciências e integrante do Projeto de Pesquisa
Educação e Política alocado no Programa de Pós - Graduação em Educação nas
Ciências, Mestrado, da UNIJUÍ.
*
Professor Orientador
1
Ver sobre o tema: GARCIA, Claudio Boeira. Sobre o Conflito entre verdade e
Política. P. 175-191. IN: Linguagem , escrita e mundo 2 , Série Educação nas
Ciências, Ijui: Editora UNIJUI, 2001.
opinião atinge, na raiz, toda a política e todos os governos (Arendt,1972,
289-90).
Arendt (1972, 289-93) lê, no Górgias, de Platão, uma elaboração desse
tipo de conflito enquanto antagonismo entre a comunicação, sob a forma
do diálogo, adequada à verdade filosófica, e a retórica, através da qual o
demagogo persuade a multidão. Conflito atualizado – entende Arendt – no
início da época Moderna, quando Hobbes no final do Leviatã apresenta a
oposição entre o raciocínio sólido, fundado em princípios de verdade, e a
eloqüência, fundada nas mutáveis e diferentes opiniões, paixões e
interesses dos homens. Arendt observa que Spinoza, por sua vez,
sustentava ser o homem, por direito natural e inalienável o senhor de
seus próprios pensamentos, os quais são tão diversos como o são as
preferências de cada um. Desse enunciado Spinoza infere ser melhor
assegurar o que não se pode abolir, já que leis proibitivas estimulam os
homens a não dizerem o que pensam, assim como fomentam a corrupção
da boa-fé e a perfídia. Spinoza, entretanto, observa Arendt, não se
pronuncia sobre a liberdade de expressão, nem argumenta sobre a
necessidade da comunicação entre homens racionais. Mais: inclui, entre
as fraquezas humanas não recomendáveis aos filósofos, a incapacidade de
manter-se em silêncio e de ocultar pensamentos. O que se ausenta nestas
noções – ajuíza Arendt – é a sábia convicção romana de que os discursos
eram mais importantes e significativos para o âmbito dos assuntos
humanos, do que jamais poderia sê-lo qualquer verdade localizada acima
desse âmbito.
Contra esses, Arendt destaca o argumento kantiano de que qualquer
poder externo que prive o homem de comunicar publicamente seu
pensamento, priva-o, também, de sua liberdade de pensar e de uma
garantia para a exatidão da atividade do pensamento. Ou seja: é por ser
falível que a razão só pode funcionar quando exercida publicamente. Para
Arendt, a noção da fragilidade e das limitações da razão humana,
presente na Crítica da razão pura, de Kant, é compartilhada por Madison
na afirmação de que “a razão é como o próprio homem, tímida e cautelosa
quando a sós, e firme e confiante em proporção ao número dos que se lhe
associam” (In: Arendt, 1972. P. 291). A questão do número é importante,
observa Arendt, no sentido em que desloca uma compreensão de
“verdade” racional referida do homem no singular para uma noção de
“verdade” referida à pluralidade das opiniões que constituem a esfera
pública. Ou seja: indica a passagem de uma esfera, na qual conta o
raciocínio sólido de um espírito isolado, para outra, na qual a força da
opinião é determinada pela confiança do indivíduo no “número dos que ele
supõe nutram as mesmas opiniões”. (Arendt, 1972, p.292).
A proposição de Sócrates – que está no início do pensamento ético
ocidental – de que “é melhor sofrer o mal do que praticá-lo” embora
decisiva para a integridade do homem singular enquanto ser pensante,
não o é para o cidadão ativo, preocupado com o mundo e a felicidade
pública. Aristóteles, por exemplo, considerava que, em nenhuma hipótese,
se devia dar a palavra ao filósofo em questões políticas. Ou seja: a
homens que devem ser indiferentes “ao que é bom para si mesmos” não
se pode confiar aquilo que é bom para os outros e, muito menos, o “bem
comum”, os interesses da comunidade. Maquiavel, da mesma forma,
apontou as conseqüências desastrosas para o âmbito público quando os
homens seguem preceitos éticos cuja validade repousa no homem no
singular e recomendou que se protegesse o âmbito político dos princípios
puros da fé cristã. Afirmar que, em um sentido rigoroso, as verdades
concernentes ao homem singular não são políticas não evita aos que estão
em posse dessas verdades sejam tentados a que suas verdades
predominem sobre as opiniões do vulgo. Nem que tentem erigir uma
daquelas tiranias da verdade, conhecidas pelas várias utopias políticas, e
que são, imaginariamente, tão tirânicas em termos políticos como as
formas de despotismo históricas. (Arendt, 1972, 302-323).
2. Com raras exceções, observa Aguiar (2001), as abordagens dominantes
da filosofia, têm se preocupado em investigar critérios objetivos,
independentes da ação e discursos humanos. Têm como propósito
conhecer a representação verdadeira e perfeita dos objetos; se interessa
pelo que é comum a todas as coisas e pergunta pela sua essencialidade.
Nessa linha, a linguagem é tida como uma forma e condição prévia de
dizer o objeto. Em especial, para o pensamento moderno, o absoluto deve
ser cientificamente demonstrado, provado, exige a legitimação das
próprias evidências primeiras. A metafísica subjetiva dos modernos visa,
antes de mais nada, a uma maneira de construir uma representação pura
dos objetos, livre de entraves das ilusões da imaginação e dos enganos
dos sentidos. Esse é o motivo pelo qual toda filosofia moderna ficou
conhecida como filosofia da representação. O pensamento, na
modernidade, é encarado principalmente na sua função de representação
das coisas, agora objetos sensíveis, reais e não de idéias, como a
entendiam os antigos (Aguiar, 2001, p. 20).
Para Arendt, a perda do mundo na filosofia moderna é diferente da antiga
suspeita dos filósofos em relação ao mundo e aos outros seres; agora o
filósofo recolhe dentro de si mesmo voltando suas costas tanto a um
mundo enganoso e perecível quanto ao da verdade eterna. Ao se
direcionar para a história, a filosofia manteve a postura contemplativa,
mas sem recorrer aos padrões transcendentes. A partir da inversão entre
contemplação e ação na modernidade, a história passou a ser cultivada
pelos filósofos como a única instância capaz de manter intacta a
perspectiva fundamentadora da filosofia. A história passou, assim, a ser o
fundamento último a partir do qual tudo era julgado, denominador comum
a que deveriam ser submetidas todas as atividades humanas (Aguiar,
2001, p. 59).
A época moderna transportou “sua ênfase de uma teoria política –
aparentemente mais apropriada à sua crença na superioridade da ação
sobre a contemplação – para uma filosofia da história, essencialmente
contemplativa” (Arendt, 1972, p. 118-119). A partir da postura tradicional
que concebeu a política engendrada por uma instância externa que a
transformou em dominação, o público foi concebido como universal, a
ação como fabricação e os homens como instrumentos.
Na via contrária, Arendt retoma a noção de espaço público como lugar de
aparição dos cidadãos. Lembra que as experiências e a noção de coisa
política afloram pela primeira vez na história na polis grega. Ali a ação é
idêntica à liberdade. É nesse espaço de ação e de debate que se organiza
e regula o convívio daqueles que ao mesmo tempo são iguais e ao mesmo
tempo consideram o mundo e os interesses comuns sob perspectivas
diferentes. Ali, ser livre significava, pois, conviver em um espaço de
discussão e de empreendimentos em comum. Um traço notável do
pensamento grego é que, desde Homero, não mais ocorre uma separação
entre o falar e o agir. Aí, o autor de grandes feitos também deve ser um
orador de grandes palavras que acompanham os grandes feitos não
apenas porque os preservam do esquecimento do esquecimento, mas
porque, o próprio falar, era entendido como uma espécie de agir (Arendt,
1999, p. 52-56).
Contrariando a idéia amplamente difundida de que o político é inerente ao
ser humano, Sontheimer (In: Arendt, 2004, p. 08) acentua que a política
surge não no homem, mas sim entre os homens, que a liberdade e a
espontaneidade dos diferentes homens são pressupostos necessários à
constituição de um espaço no qual a vida política pode acontecer. O
sentido da política é a liberdade: “O milagre da liberdade está contido
nesse poder começar que, em si um novo começo, já que através do
nascimento veio ao mundo que existia antes dele e continuará existindo
depois dele” (Sontheimer, apud Arendt, 2004, p. 09).
Ao refletir sobre a “coisa do pensar”, Arendt desloca a tarefa de
fundamentar para a de compreender, atividade que demanda o juízo do
espectador; que não submete as aparências a uma essência, ou critério
externo; que sob uma perspectiva crítica, procura encontrar o sentido ou
a insensatez presente nas próprias aparências. (Aguiar, 2001, p. 14-5).

Visando a encontrar um sentido da política, Arendt se


confrontou com a filosofia e ergueu para si uma tarefa
nunca sistematicamente realizada: construir uma filosofia
política que não se opusesse à política, a partir de um
critério ou padrão abstrato (eidos), mas que fosse capaz de
encontrar significação nas coisas humanas mesmas (Aguiar,
2001, p. 13).

3. Arendt ao abordar a cultura, o faz, na perspectiva do narrador que


pensa e ajuíza sobre seus significados em uma sociedade de massas a
qual “indica um novo estado de coisas, em que a massa foi liberada do
fardo de trabalho fisicamente extenuante e passou a dispor de lazer de
sobra para a ‘cultura’” (Arendt, 1972, p. 250).
Na sociedade de massas, a cultura passou a ser uma das armas para
progredir socialmente e para “educar-se”. A fuga da realidade por meio da
arte e da cultura conferiu a fisionomia do filisteísmo educado ou cultivado
suas feições mais características e foi o fator decisivo na rebelião do
artista contra seus novos protetores. Era um elogio dúbio: o
reconhecimento de uma sociedade que se tornara tão “polida”.
Mais do que o estado psicológico do artista está em jogo o status objetivo
do mundo cultural, que contém coisas tangíveis (livros, estátuas, etc.) e,
por isso, compreende e testemunha o passado registrado de países,
nações, da humanidade. Os objetos culturais somente podem ser julgados
de forma autêntica pelo critério da permanência relativa e por sua
eventual imortalidade. Ocorre, porém, que quando as obras imortais do
passado se tornam objeto de refinamento social e individual e do status
correspondente, “perdem sua qualidade mais importante e elementar,
qual seja, a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o por
séculos” (Arendt, 1972, p. 255).
Na visão da autora, a palavra cultura de tornou suspeita por indicar a
busca de perfeição. As grandes obras de arte são mal utilizadas ao
servirem para fins de auto-aperfeiçoamento (...). O que irritava no filisteu
educado não era que lesse os clássicos, mas que ele o fizesse movido pelo
desejo dissimulado de auto-aprimoramento, continuando completamente
alheio ao que Shakespeare e Platão pudessem ter a dizer-lhes.
Hoje, observa Arendt, não sabemos o que é mais difícil: descobrir os
grandes autores do passado sem auxílio de nenhuma tradição ou resgatá-
los do entulho do filisteísmo educado.

A tarefa de preservar o passado sem auxílio da tradição e


contra os modelos e interpretações tradicionais é a mesma
para toda a civilização ocidental (...). O fio da tradição está
rompido e temos que descobrir o passado por nós mesmos
– isto é, ler seus autores como se ninguém os houvesse
jamais lido antes (Arendt, 1972, p. 256/257).

A sociedade, devido a seus enormes apetites e ao desaparecimento dos


produtos de consumo, exige da indústria de entretenimentos a rápida
produção de novas mercadorias. Por isso, os produtores dos meios de
comunicação de massa procuram na cultura passada e presente material
aproveitável, que não pode ser fornecido tal qual é; deve ser alterado
para se tornar entretenimento, deve ser preparado para consumo fácil.
Para Arendt (1972, p. 260), o grande problema reside no fato de que a
cultura é destruída para produzir entretenimento, resultando num
processo de empobrecimento, em que um tipo de intelectuais, lidos e
informados, organiza, dissemina e modifica objetos culturais. As
deturpações resultantes das versões para entretenimento são mais fatais
para as grandes obras do que o olvido ou desconsideração.
A autora lembra que a cultura é ameaçada quando objetos e coisas
seculares, produzidos pelo presente ou passado, são tratados como meras
funções para o processo vital, como se aí estivessem para satisfazer uma
necessidade. A beleza de uma obra transcende necessidades e funções. A
beleza da arte religiosa seculariza o que antes existia exteriormente ao
mundo.
Segundo Arendt (1972, p. 262), diferentemente dos objetos / bens de
consumo, cuja durabilidade no mundo mal excede o seu tempo de
preparo; e dos produtos da ação, como eventos, feitos e palavras, os
quais são em si mesmos transitórios, pouco duráveis, as obras de arte,
por sua durabilidade, são o que existe de mais mundano, não são
fabricadas para o homem, mas para o mundo que está destinado a
sobreviver ao ir e vir das gerações. Para que possa existir cultura, em
sentido específico, estas obras são removidas do processo de consumo e
da esfera das necessidades da vida humana.
Os arranjos, que o homem faz para se abrigar e sobreviver, implicam
engendrar um mundo, para não falar de uma cultura.

Esse lar terreno somente se torna um mundo no sentido


próprio da palavra quando a totalidade das coisas fabricadas
é organizada de modo a poder resistir ao processo vital
consumidor das pessoas que o habitam, sobrevivendo assim
a elas (...). Somente quando essa sobrevivência é
assegurada falamos de cultura, e somente quando nos
confrontamos com coisas que existem independentemente
de todas as referências utilitárias e funcionais e cuja
qualidade continua sempre a mesma, falamos de obra de
arte (Arendt, 1972, p. 263).

Um referencial para discutir cultura, encontra-se no fenômeno da arte.


Apenas as obras de arte são feitas para o fim único do aparecimento.
Quanto mais importante é a pura aparência de algo, mais distância ele
exige para sua apreciação adequada (Arendt, 1972, p. 263). Tal atitude
de distanciamento desinteressado que deixa o algo ser como o é, em sua
aparência, só pode ser vivida quando, liberados das necessidades, de
vida, os homens estão livres para o mundo.
Na sociedade de massas, em seus estágios iniciais, a liberação das
necessidades da vida, não implicava liberação das preocupações com
status e posição social. O problema dessas sociedades é que, as horas de
lazer não são mais empregadas para o próprio aprimoramento ou para a
aquisição de maior status social, porém para consumir e para entreter
cada vez mais. Como não há suficientes bens de consumo para satisfazer
os apetites crescentes, em que energia vital precisa ser gasta pelo
consumo, a própria vida se esgota valendo-se de coisas que jamais foram
a elas destinadas.
Disso resulta que a cultura de massas dá lugar ao entretenimento de
massas, alimentando-se dos objetos culturais do mundo.
Crer que tal sociedade há de se tornar mais “cultivada” com
o correr do tempo e com a obra da educação constitui,
penso eu, um fatal engano. O fato é que uma sociedade de
consumo não pode, absolutamente, saber como cuidar de
um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo
ao espaço das aparências mundanas, visto que uma atitude
central ante todos os objetos, a atitude do consumo,
condena à ruína tudo em que toca (Arendt, 1972, p. 264).

A distinção entre arte a cultura é relevante para compreendermos a


relação entre cultura e o âmbito da política, sendo a cultura, tanto a
palavra como o conceito, significando cultivar, habitar, tomar conta, criar
e preservar relaciona-se com o trato do homem com a natureza, no
sentido de adequá-la à habitação humana.
Cícero fala do cultivo das questões do espírito e da alma. “Ele fala de
excolere animum, cultivar o espírito, e de cultura animi no mesmo sentido
em que falamos ainda hoje de um espírito cultivado, só que não mais
estamos cônscios do pleno conteúdo metafórico de tal emprego” (Arendt,
1972, p. 265). No significado romano, o ponto essencial era sempre a
conexão da cultura com a natureza; a agricultura como superior às artes
poéticas e de fabrico. Para os romanos a arte deveria surgir tão
naturalmente quanto o campo, tendendo à natureza, fonte de toda poesia.
Porém não é daí nem da mentalidade dos lavradores que surge a grande
arte.
A arte e poesia romana apareceram sob o impacto da herança grega que
os romanos souberam cuidar e manter. Entre os gregos, prevaleceram as
artes de fabricação, da qual a agricultura é parte integrante, onde o
homem doma e regra a natureza, enquanto entre os romanos a tendência
era ver na arte uma espécie de agricultura, de cultivo da natureza. Os
gregos não sabiam o que é cultura porque não cultivavam a natureza,
mas arrancavam da terra os frutos. Devemos à reverencia romana ao
testemunho do passado, a preservação do legado grego e a continuidade
da nossa tradição. “Conjuntamente, cultura no sentido de tornar a
natureza um lugar habitável para as pessoas e cultura no sentido de
cuidar dos monumentos do passado ainda hoje determinam o conteúdo e
o significado que temos em mente ao falarmos de cultura” (Arendt, 1972,
p. 266).
De acordo com Arendt (1972, p. 267), compreendemos por cultura o
modo de relacionamento prescrito pelas civilizações com respeito às
menos úteis e mais mundanas das coisas, as obras de artistas, poetas,
músicos, filósofos e daí por diante. Sendo assim, podemos compreender a
cultura grega (distinta da arte grega) a partir de um dito atribuído a
Péricles, que diz: “amamos a beleza dentro dos limites do juízo político e
filosofamos sem o vício bárbaro da efeminação”.
É a polis que determina os limites ao amor à sabedoria e à beleza. E como
os gregos pensavam ser a polis (e de modo algum realizações artísticas
superiores) o que os distinguia dos bárbaros, devemos concluir que tal
diferença era também “cultural”, uma diferença do seu modo de
relacionamento com coisas “culturais”, atitude diversa ante a beleza e a
sabedoria, as quais só poderiam ser amadas dentro dos limites impostos
pela distinção da polis.

(...) a polis era para os gregos, como a res publica para os


romanos, em primeiro lugar, a garantia contra a futilidade
da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade
e reservado à relativa permanência, senão a imortalidade,
dos mortais. (...) Assim, o que importa não é que haja falta
de admiração pública pela poesia e pela filosofia no mundo
moderno, mas sim que essa admiração não constitui um
espaço no qual as coisas são poupadas da destruição pelo
tempo. A admiração pública, consumida diariamente em
doses cada vez maiores, é, ao contrário, tão fútil que a
recompensa monetária, umas das coisas mais fúteis que
existem, pode tornar-se mais “objetiva” e mais real.
(Arendt, 1989, p. 66).

4. Aguiar (2001, p. 228), observa que, contrapondo-se ao modelo de


filosofia ensejado pelo paradigma contemplativo de legitimação política,
pautada numa visão do pensamento como instância de controle e
dominação da realidade, Arendt se questiona sobre o sentido do pensar,
adotando a perspectiva da compreensão, na qual emerge a beleza como o
desejo da filosofia.
A autora questiona se a Filosofia leva à inatividade mais provavelmente
que o amor à beleza, e, que este último sem a capacidade de julgamento,
discernimento e discriminação, ou gosto, permanecesse bárbaro. E, ainda,
questiona se o amor às coisas belas tem a ver com a política, pertencendo
o gosto à classe das faculdades políticas.
Para responder a estes questionamentos é preciso considerar arte e
cultura como elementos distintos, recordando que o louvor ao amor ao
belo e a cultura da mente é paralelo ao descrédito antigo pelos artistas e
artesãos que fabricavam as coisas que seriam logo exibidas e admiradas.
Para os gregos ser um homem de espírito “banáusico”, indicava uma
mentalidade utilitarista, incapaz de julgar algo à parte de sua função ou
utilidade. A distinção entre o louvor ao amor pelo belo e o desprezo pelos
que produziam o belo se justificava pela consideração de que a fabricação
de coisas, incluindo a produção de arte, se opõe ao âmbito das coisas
políticas. A fabricação é por natureza utilitária, implicando meios e fins,
em função de um produto final (Arendt, 1972, p. 269).
Os gregos, segundo Arendt (1972, p. 269) suspeitavam que o filisteísmo
ameaçava o âmbito da política, pois ajuíza a ação com os mesmos
padrões de utilidade válidos para a fabricação e exige que a ação vise a
um fim predeterminado e que lhe seja permitido lançar mão de todos
meios que possam favorecer esse fim. Ameaçava também o âmbito da
cultura, pois desvaloriza as coisas enquanto coisas, pois serão julgadas de
acordo com os padrões de utilidade que guiaram a mente que as criou e,
conseqüentemente, perderão seu valor intrínseco e independente,
passando à categoria de meros meios.
Tendemos a crer que o âmbito da política e a participação nos negócios
públicos impedem o desenvolvimento de um espírito cultivado que
valorize as coisas, sem pensar em sua função ou utilidade. Isso porque a
mentalidade da fabricação invadiu o âmbito político, levando-nos a pensar
que a ação, mais até que a fabricação é determinada por meios e fins.
Com o trabalho, o homo faber, constrói o artifício do mundo, povoando-o
com utensílios e objetos que possuem maior durabilidade e permanência,
seguindo a lógica da utilidade. “O homo faber pensa sempre em termos de
meios e fins, assim como o resultado mesmo da sua atividade é algo a ser
usado, embora os objetos da atividade do trabalho gerem, também, certo
embelezamento do mundo”. (Arendt, 1989, p. 180-187).
As atividades políticas, o agir e o falar demandam a presença dos outros.
A condição para a ação é a pluralidade, enquanto capacidade de
individualização. “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de
sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja
exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a
existir” (Arendt, 1989, p. 16). A ação não é mediada por objetos e sim
pela fala, não estando ligada à vida nem aos artefatos, mas à interlocução
e interação entre os homens. A ação não se situa nem no campo da
necessidade (labor) nem na utilidade (fabricação), mas da liberdade, da
pluralidade.
As atividades políticas e as do artista são distintas, por isso, o artista ao
dirigir sua mente a coisas políticas sente “desconfiança, pelo âmbito
especificamente político e sua publicidade, que a polis experimentava face
à mentalidade e condições da fabricação” (Arendt, 1972, p. 271). Mas o
conflito entre as atividades do político e do artista não se aplica em
relação aos produtos, às coisas que precisam encontrar lugar no mundo.
Tais coisas partilham com os “produtos” políticos, palavras e atos, a
qualidade de requerem um espaço público onde possam aparecer e ser
vistas. Os objetos de arte não atingem sua validez na vida e posse
privadas, precisam aparecer no espaço público.
Em termos gerais, a cultura indica que o domínio público, que é
politicamente assegurado por homens de ação, oferece seu espaço de
aparição àquelas coisas cuja essência é aparecer e ser belas (Arendt,
1972, p. 272). A cultura indica que a arte e a política se inter-relacionam
e até mantém uma relação de interdependência.
Vista contra o pano de fundo das experiências políticas e de
atividades que, entregues a si mesmas, vêm e vão sem
deixar sobre o mundo nenhum vestígio, a beleza é a própria
manifestação da imperecibilidade. A efêmera grandeza da
palavra e do ato pode durar sobre o mundo na medida em
que se lhe confere beleza. Sem a beleza, isto é, a radiante
glória na qual a imortalidade potencial é manifestada no
mundo humano, toda vida humana seria fútil e nenhuma
grandeza poderia perdurar. (Arendt, 1972, p. 272).

-5-
Arte e política se ligam pelo fato de que são fenômenos do mundo público.
A cultura animi medeia o conflito entre o artista e o homem de ação, pois
a mente educada e culta pode cuidar e preservar um mundo de
aparências baseado no critério da beleza. Cícero imputou tal cultura à
educação filosófica porque, segundo ele, apenas os filósofos, amantes da
sabedoria, se acercam das coisas como espectadores, sem desejar
adquiri-las para si, ou seja, são capazes de assistir a jogos e festivais sem
desejar ganhar uma coroa ou obter ganhos por transações de compra e
venda, sendo atraídos/fascinados pelo espetáculo em si (Arendt, 1972, p.
273).
A faculdade do juízo implica uma atividade política e não meramente
teórica, conforme expressa Kant no “imperativo categórico” – “age
sempre de tal forma que o princípio de tua ação possa se tornar uma lei
universal” -, baseia-se na necessidade de harmonizar o pensamento
racional consigo mesmo. Ele insiste na “mentalidade alargada”, segundo a
qual é preciso ser capaz de “pensar no lugar de todas as demais pessoas”.
O julgamento de algo requer, portanto, a comunicação com outros com
que se deve chegar a um acordo, libertando-se das “condições subjetivas
específicas”.

E esse modo alargado de pensar, que sabe, enquanto juízo,


como transcender suas próprias limitações individuais, não
pode, por outro lado, funcionar em estrito isolamento ou
solidão; ele necessita da presença dos outros “em cujo
lugar” cumpre pensar, cujas perspectivas deve levar em
consideração e sem os quais ele nunca tem oportunidade de
sequer chegar a operar (Arendt, 1972, p. 275).
O juízo é uma das faculdades fundamentais do homem enquanto ser
político à medida que lhe permite se orientar num domínio público, no
mundo comum. Para os gregos essa faculdade (phrónesis), ou
discernimento era a principal virtude do político, em distinção à sabedoria
do filósofo. Enquanto o discernimento que julga se assenta no senso
comum, o pensamento especulativo o transcende. Através do julgamento
se torna possível ajustar as percepções sensórias, pessoais e subjetivas a
um mundo comum e objetivo, permitindo compartilhar o mundo com os
outros.
Aguiar (2001, p. 164) insiste que:

A condição do julgamento é a dignidade humana, a


possibilidade da ação espontânea dos homens no mundo. O
pré-requisito essencial de um pensamento, cujo eixo é a
noção de julgamento, é a tomada de consciência de que a
trama da história é cozida de interrupções, em face do
caráter imprevisível, ontologicamente indeterminado e
descontínuo da ação humana. A compreensão é, assim, a
tentativa arendtiana de, contrapondo-se ao determinismo
histórico e ao cientificismo, repor a discussão do sentido
singular dos acontecimentos, a autonomia do julgamento e
a reconciliação com a realidade como condições de uma
ação e decisão responsáveis a respeito do percurso a ser
dado na trama dos negócios humanos. Conjuga-se, desse
modo, com a sua defesa da cidadania e da opinião, como
instancias de legitimidade do político.

A dimensão intersubjetiva do juízo aponta para o reconhecimento da


alteridade, a dimensão autônoma para o pensar e a compreensiva para a
significação, constituindo as condições para uma filosofia que se reconcilie
com a política. O gosto, como os demais juízos, apela ao senso comum, se
opondo aos “sentimentos íntimos”. O gosto julga o mundo em sua
aparência e temporalidade; seu interesse pelo mundo é puramente
“desinteressado”, o que significa que nem os interesses vitais do
indivíduo, nem os interesses morais do eu se acham aqui implicados.
“Para os juízos do gosto o mundo é o objeto primeiro; não o homem, sua
vida, ou seu eu”. (Arendt, 1972, p. 276-7).
Os julgamentos de gosto têm em comum com as opiniões políticas o fato
de serem persuasivos. Cultura e política pertencem à mesma categoria
porque estão em jogo o julgamento e a decisão.
Da perspectiva da experiência comum, o gosto decide como deve o
mundo parecer e quem pertence a uma mesma classe de pessoas. Em
termos políticos, vemos no gosto um princípio aristocrático de
organização. Sua importância política é maior e mais profunda. “Por seu
modo de julgar, a pessoa revela também algo de si mesma, que pessoa
ela é, e tal revelação, que pe involuntária, ganha tanto mais em validade
quanto se liberou das idiossincrasias meramente individuais” (Arendt,
1972, p. 278).
O domínio político se opõe ao domínio em que vivem e fazem seu trabalho
o artista e o fabricante, onde o que importa é a qualidade, os talentos do
fabricante e a qualidade das coisas que fabrica. O gosto enquanto
atividade da mente culta “– cultura animi – somente vem à cena quando a
consciência-de-qualidade se acha amplamente difundida, o
verdadeiramente belo sendo facilmente reconhecível; é que o gosto
discrimina e decide entre qualidades” (Arendt, 1972, p. 278).
O gosto em seu julgamento das coisas do mundo impõe limites contra um
amor indiscriminado e imoderado do meramente belo; ele introduz, no
âmbito da fabricação e da qualidade, o fator pessoal, conferindo-lhe uma
significação humana. “O gosto humaniza o mundo do belo ao não ser por
ele engolfado; cuida do belo à sua própria maneira ‘pessoal’ e produz
assim uma ‘cultura’” (Arendt, 1972, p. 279).
O juízo, enquanto atividade do espírito, engajado no processo sem fim do
pensar, é uma atividade do espectador desinteressado. Assim, o
julgamento pode ser explorado como pensamento filosófico não
metafísico, guiado por uma perspectiva compreensiva e não teórica.
Sendo o julgamento e o gosto exercitados pelo humanista. Por fim, Arendt
enfatiza que a humanitas implica o cultivo de atitudes voltadas a
preservar, admirar e cuidar das coisas do mundo; que releva exercitar
livremente nosso gosto, acima das especialidades que aprendemos e
exercemos; que igual aos romanos, podemos considerar culta, aquela
pessoa que sabe escolher suas companhias, coisas e pensamentos.
(Arendt, 1972, p. 279-81)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Odílio Alves. Filosofia e Política no Pensamento de Hannah


Arendt. Fortaleza: EUFC, 2001.

ARENDT, Hannah. A Crise da Cultura. In: ARENDT, Hannah. Entre o


passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

________, A Condição Humana. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1989.

________, O que é política?. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

________. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e


o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

GARCIA, Cláudio Boeira. Sobre o Conflito entre verdade e Política. P. 175-


191. In: Linguagem, escrita e mundo 2, Série Educação nas Ciências, Ijui:
Editora UNIJUI, 2001.

SONTHEIMER, Kurt. Prefácio. In: ARENDT, Hannah. O que é política?.


Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

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