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A APROXIMAÇÃO ENTRE ARTE CONTEMPORÂNEA E FILOSOFIA: de

como os objetos artísticos se relacionam com a realidade1

Marceli Andresa Becker*


andresa1109@yahoo.com.br

A arte, se não o mais espinhoso assunto de que tratam os filósofos, é


certamente uma das pautas que figuram no topo de uma enorme lista de
temas que se prestam ao trato filosófico. Responder por que esse fenômeno
ocorre, segundo Arthur Danto2 em A Transfiguração do Lugar-Comum, texto
em que nos embasamos para construir este trabalho, pode nos mostrar tanto
aspectos que dizem respeito à filosofia quanto à arte.
Uma vez que a idéia de uma arte contemporânea encontra-se
profundamente vinculada à capacidade de o objeto artístico nos colocar
perguntas sobre os limites de sua própria definição, postura tipicamente
filosófica, não podemos mais entender arte dissociada de filosofia. O bônus é
que, nesse caso, temos uma arte que pensa sobre si mesma e em cujo cerne
encontram-se deflagradas questões que ela própria levanta a respeito de sua
natureza. O ônus é que, segundo Danto, esse raciocínio nos leva a pensar
que as fronteiras entre arte e filosofia por fim terminaram na
1
Texto elaborado para o VII Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia:
Filosofia e Sociedade. Esse trabalho é fruto das discussões sobre filosofia da arte
desenvolvidas pelas acadêmicas Aline Bouvié, do curso de Música da Universidade
de Passo Fundo, Marceli Andresa Becker e Marciana Zambillo, dos quinto e terceiro
níveis do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo, respectivamente, e
pelo professor orientador Dr. Gerson Luís Trombetta através do projeto de pesquisa
intitulado As Interconexões entre Conteúdo e Método: conseqüências para o ensino
de filosofia.
*

*
Acadêmica do quinto nível do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo e
bolsista do grupo de pesquisa sobre filosofia da arte orientado pelo professor Dr.
Gerson Luís Trombetta.

2
Arthur Danto é professor emérito de Filosofia na Universidade de Columbia,
escreveu vários livros sobre temas filosóficos, dentre os quais estão traduzidos para
o português A Transfiguração do Lugar-Comum e Após o Fim da Arte, e desde 1984
escreve crítica de arte para o jornal The Nation.
contemporaneidade. À arte cabe, nessa perspectiva, existir enquanto e
somente enquanto uma espécie de filosofia da arte. Mas, antes de
verificarmos se o argumento tem procedência - e se de fato não existem
mais os limites que até então separavam essas duas instâncias -, vejamos
por quais processos ou movimentos internos a arte passou até estruturar-se
como tal no cenário contemporâneo.
Nosso trabalho divide-se em três grandes tópicos. Na primeira parte do
artigo procuramos analisar por que e em que sentido podemos entender a
arte clássica e a arte contemporânea como dois fenômenos que derivam de
uma mesma raiz. Em seguida, do longa-metragem Blow-Up3 extraímos
subsídios que corroboram nossa hipótese inicial sobre a relação de
proximidade entre arte contemporânea e filosofia. E, por último, nas
considerações finais, discutimos o caráter auto-reflexivo da arte.

Da arte mimética à arte contemporânea

Não falamos novidade quando afirmamos que o problema responsável por


tirar o sono de muitos artistas e teóricos da arte contemporâneos se refere a
uma provável ausência de critérios para compor ou analisar tal arte. Dizemos
provável porque, se por um lado não podemos, pelo menos por enquanto,
garantir que realmente não existem mais critérios suficientemente fortes
para excluir do mundo da arte um objeto pertencente à realidade apenas
porque pertence à realidade, por outro, a cena contemporânea nos leva a
intuir que o trânsito da realidade para a arte encontra-se de tal forma livre e
acessível que passamos a nos perguntar se essas duas instâncias já não
convivem num mesmo espaço. A importância dessa colocação, entretanto,
começa a fazer sentido única e somente se considerarmos a relação de
oposição que existe entre arte e realidade.

3
Longa-metragem dirigido por Michelangelo Antonioni, em 1966, baseado no conto
As Babas do Diabo, do escritor argentino Julio Cortazar.
A objeção de Platão em torno da arte relaciona-se à possibilidade de sermos
enganados pela falsa realidade que criam os objetos artísticos. Não é
improvável que ele tenha expulsado os artistas da cidade ideal, na República,
em protesto também aos sofistas, que engendram ilusões a partir de seus
discursos. (Cf. X, 598d–608b). Mas por ora não nos interessam os embates
entre Platão e sofistas. Aqui queremos deixar claro que a preocupação do
filósofo em relação à possibilidade de sermos enganados pela arte
necessariamente implica a idéia de que a arte se opõe à realidade. Ora, mais
do que peça solta de um quebra-cabeça filosófico vigente em um passado
distante, esse é o pressuposto sobre o qual repousam ainda a nossa e as
mais diferentes concepções a respeito da arte. Ficamos sujeitos ao engano
somente quando já está formada a noção de realidade e, conseqüentemente,
daquilo que dela se diferencia. Apenas por esse viés é que podemos entender
por que Platão precisa expulsar os artistas da cidade ideal. Um segundo
passo do filósofo nesse sentido - e que repercutiu muito sobre todo o
pensamento ocidental - é estruturar uma hierarquia segundo a qual as
Formas são, respectivamente, mais reais e portanto melhores que o mundo
sensível e as imagens.
É claro que os problemas relacionados à arte tratados por Platão vinculam-se
também a outros fatores. Precisamos ter em mente que, se é correto que ele
rejeita a arte embasado na certeza de que nada nos impede de tomá-la
como realidade, então também precisa ser correto pensarmos que ele se
refere a objetos cujas propriedades se mesclem à realidade a ponto de nos
fazerem perder de vista os critérios que distinguem arte de realidade. E os
únicos objetos que se enquadram nessa categoria, em última instância, são
as obras de arte miméticas. Uma análise do teatro trágico feita por Nietzsche
pode nos ajudar a entender melhor esse problema deflagrado pelo diálogo
platônico.
Para Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, a arte do período de Platão
integra um contexto em que a mimética, pelo menos no teatro trágico, já
havia passado por dois momentos de drástica transformação.
Dionísio, o efetivo herói cênico e ponto central da visão, não está, segundo
esse conhecimento e segundo a tradição, verdadeiramente presente, a
princípio, no período mais antigo da tragédia, mas é apenas representado
como estando presente: quer dizer, originalmente a tragédia é só “coro” e
não “drama”. Mais tarde se faz a tentativa de mostrar como real e de
apresentar em cena [darstellen], como visível aos olhos de cada um, a figura
da visão junto com a moldura transfiguradora: com isso começa o “drama”
no sentido mais estrito. Agora o coro ditirâmbico recebe a incumbência de
excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o
herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem
mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles
próprios. (NIEZTSCHE, 1992, p. 62).
Talvez o espectador contemporâneo tenha dificuldades
de calcular o impacto que representou, nos primórdios
da tragédia, a simples possibilidade de um público
considerar a interpretação de um ator no papel de um
deus tão legítima quanto a interpretação do deus em
seu próprio papel. Não por menos. Somos coerentes
quando pensamos que, por melhor que seja sua atuação, um ator não pode
ser confundido com a personagem que interpreta em determinada ocasião.
Apesar disso, ainda não sabemos que barreira nos impede de pensar que a
imitação de um objeto não pode ser considerada o objeto que imita se com
ele se parece em todos os aspectos. Recaímos, na verdade, no problema que
perturbou Arthur Danto durante alguns anos: por que a caixa de sabão de
Andy Warhol é considerada arte se um exemplar idêntico a ela, a caixa de
sabão na prateleira do supermercado, não é?
E não foi apenas Danto quem se debruçou sobre essas questões. No contexto
dos gregos, por exemplo, a diferenciação entre o objeto e sua representação
– imitação – parece ter sido garantida pela teoria platônica das Formas, que
estabeleceu uma dicotomia entre mundo sensível e mundo inteligível. Assim,
a partir de um critério de verdade determinado através da teoria das Formas,
Platão resolveu o problema da distinção entre mundo artístico e mundo real,
que hoje, sob outro viés, é resgatado pela arte contemporânea. Ora, se
levarmos em conta apenas os aspectos perceptíveis dos objetos para
designá-los arte ou não, então, como conseqüência absurda, temos de
admitir que todas as cópias idênticas das obras de arte são também arte.
Nessa perspectiva, por exemplo, somos impelidos - quase obrigados - a
considerar as caixas de sabão expostas no supermercado tão obras de arte
quanto possivelmente considerarmos as caixas de Andy Warhol.
O herói trágico, para tecer um último comentário a respeito da passagem
selecionada, era responsável por personificar através de seus atos
desmedidos e de seus sofrimentos a desmedida e o sofrimento de Dionísio.
Nesse sentido, embora o deus e o herói não fossem uma só figura, podemos
dizer que a história trágica, na medida em que era capaz de torná-los
cúmplices, também era capaz de transformá-los em um só. A substituição do
deus físico por uma personagem incumbida de representá-lo equivale - para
direcionarmos as observações de Nietzsche ao que nos interessa - à
substituição de uma realidade (Dionísio, o deus) por um objeto (herói
trágico, o objeto artístico) encarregado de representá-la. Além disso, a
menos que pensemos que Dionísio de fato existe, nesse caso específico a
substituição de objetos significa antes uma substituição de crenças. O
espectador da tragédia sujeita-se a abrir mão da crença de que Dionísio
precisa aparecer ao público para abrir-se à possibilidade de aceitar como
também real e legítima a aparição de alguém que, embora diferente do deus,
atue como se fosse o deus. Para trazer o caso aos nossos dias, de forma
análoga, podemos nos perguntar sobre o que afinal há nas caixas de sabão
de Warhol que nos impede de confundi-las às caixas de sabão das prateleiras
do supermercado senão o fato de sabermos - ou acreditarmos - que aquelas
são obras de arte enquanto essas não passam de meros produtos do
comércio. Aqui, como podemos perceber, o critério de distinção entre arte e
realidade depende da cognição: encontra-se antes no conhecimento que
temos do objeto do que propriamente nos aspectos formal e material desse
objeto. E, se pensarmos que muitos objetos artísticos contemporâneos são
idênticos a objetos reais não porque são produzidos para imitar a realidade,
mas sobretudo porque são extraídos da própria realidade como tais para que
passem a representá-la artisticamente – como é o caso das caixas de sabão
artísticas, que não são mais do que ex-caixas de sabão comerciais -, parece-
nos que levar em conta esse critério da cognição para atribuir credibilidade à
realidade do mundo que uma imitação instaura é imprescindível quando
estamos diante de obras de arte.
As mudanças que ocorreram desde os objetos artísticos miméticos até as
obras contemporâneas são parte da evolução interna da arte e podem nos
ajudar a esclarecer alguns pontos que levantamos nesse texto sobre o tema.
Basta pensarmos que o problema diagnosticado por Platão em relação aos
equívocos que podemos cometer diante de uma possível ausência de
fronteiras entre arte e realidade, ainda hoje, sob outro paradigma e num
contexto já em muito diferenciado, preocupa filósofos da arte e artistas:
como impedir, por exemplo, que da premissa segundo a qual parece não
haver mais critérios suficientemente fortes para evitar que todas as coisas se
tornem arte não entendamos que todas as coisas devam ser
necessariamente obras de arte? (DANTO, 2005, 113).
A esta altura novamente observamos que a dificuldade que se estabelece
quando nos debruçamos sobre o fenômeno da arte e suas variáveis, mais
cedo ou mais tarde, atravessa o tema da distinção entre arte e realidade.
Assim, embora a crítica platônica acerca da arte esteja fundada em um
sistema já superado - a teoria das Formas, pela qual a realidade é
discriminada segundo uma hierarquia ascendente que vai do falso para o
verdadeiro e na qual as imagens (arte mimética, reflexos, miragens)
encontram-se no mais baixo degrau da escala -, a preocupação quanto ao
problema de não identificarmos mais os limites que separam arte de
realidade é comum tanto a obras de arte miméticas quanto a obras de arte
contemporâneas. Comum àquelas porque, se arte é cópia (mimese) de uma
realidade, então é falsa em relação a essa realidade e pode nos levar a um
conhecimento equivocado sobre ela; comum a essas porque, se na arte
mimética os limites entre mundo real e mundo da arte já eram estreitos uma
vez que o objeto mimético copiava - e portanto denotava - a realidade, na
arte contemporânea a situação torna-se um pouco mais complexa: os
objetos começam inclusive a incorporar elementos próprios da realidade.
Mas por que objetos tão distintos como os que pertencem à arte
contemporânea em relação aos que caracterizam a arte mimética são
igualmente considerados arte? O que queremos dizer quando afirmamos que
todos são dotados de propriedades artísticas? Que tipo de abertura está
implícita no conceito de arte que nos permite posicionar tanto A Fonte, de
Marcel Duchamp, quanto As Meninas, de Velásquez, no centro de um mesmo
universo? A que espécie de progresso, se é que podemos entender assim,
essas considerações prévias apontam a respeito do movimento interno da
arte? Que conclusões podemos extrair do fenômeno por que passou a arte ao
deixar de restringir-se a objetos miméticos para passar a constituir-se de
objetos que representam a realidade e que se auto-representam das
maneiras mais complexas possíveis? São inúmeras as inquietações e poucas
as respostas de que por ora dispomos para solucioná-las. Mas, se é verdade
que não há nada melhor do que primeiramente recorrer à arte para depois
tentar entendê-la, talvez o longa-metragem Blow-Up, dirigido por
Michelangelo Antonioni, nos ajude a avançar nessa empreitada.

Quando imitar é questionar a possibilidade de termos acesso à


realidade: Blow-Up e os limites da objetividade
David Hemmings, no papel de Thomas, interpreta um fotógrafo que capta
através de suas lentes a cena de um suposto
assassinato enquanto fotografava um casal
numa praça qualquer de Londres.
Determinado a desvendar o crime, ele amplia
em duas ou três vezes a fotografia da cena
no intuito de tornar o rosto do possível
assassino, que se esconde atrás de um arbusto, cada vez mais nítido. Apesar
do mistério que envolve cada tomada do filme, a cena final, que poderia nos
oferecer uma solução para o enigma do assassinato, mostra-se um tanto
quanto incomum: em vez de nos indicar de quem é o rosto que aparece na
fotografia, ou, para considerar outra hipótese, de nos demonstrar que o caso
foi apenas produto da imaginação de Thomas ao longo dos alternativos anos
de psicodelia, ela nos apresenta um bando de mímicos que finge jogar tênis
perto do local do suposto crime cujas circunstâncias Thomas pretende
investigar. Sem sentido? Melhor analisarmos mais a fundo.
Thomas, que naquele instante averiguava o local do possível assassinato,
pára, começa a observar os mímicos e em determinado momento até junta a
bolinha de tênis de mentira como se juntasse uma bolinha de tênis de
verdade. Na seqüência, ele resolve jogá-la – ou, melhor, resolve fingir que a
joga –, volta ao local em que supõe ter acontecido o assassinato e passa a
refletir sobre qualquer coisa que foge à interpretação de um espectador mais
desatento. A que conclusões, entretanto, pode chegar um espectador atento
diante de um cenário como esse? Será que devemos nos sentir enganados
porque a última parte de Blow-up, em vez
de nos mostrar a quem corresponde o
rosto da fotografia, coloca-nos diante de
um grupo de mímicos que parece
deslocado do restante do enredo?
Diante dessas questões, antes de tudo,
devemos averiguar qual é o tema central de Blow-Up. Sabemos que o
enredo, embora aparentemente narre apenas a história de um fotógrafo
disposto a desvendar um assassinato, apresenta-nos cenas – como a dos
mímicos e a do show de rock - que no mínimo indicam um outro caminho de
interpretação pelo qual temos como nos guiar. Essas cenas são de tal
maneira desconexas daquilo que primeiramente definimos como a temática
principal do filme que, depois de assisti-las, passamos a cogitar a
possibilidade de haver um outro sentido para a obra. Nesse momento é que
nos interrogamos: a que, afinal, Blow-Up se refere? Nossa hipótese, após
termos passado por esse trajeto inicial, é de que o tema do filme – ou, de
acordo com Danto, o sobre-o-quê da obra (aboutness) – associa-se à relação
existente entre arte e realidade, ou seja, ao problema que identificamos
quando nos propomos a investigar por que e em que sentido a arte
contemporânea aproxima-se da filosofia.
Dissemos, portanto, que, apesar de relatar a história de um fotógrafo que
investiga um suposto assassinato, Blow-Up em nenhum aspecto diz respeito
a fotógrafos, a fotografias e/ou a assassinatos. Correto? Somente se
incorrermos no equívoco de pensar que fotografia não é arte e que
assassinatos não são eventos concernentes à realidade. Na verdade, de
maneira indireta, o enredo indica as questões que tanto nos interessam na
medida em que as lentes da fotografia, em tese, apreendem a realidade
objetiva e uma vez que a falsa realidade em que se movimentam os mímicos
pode representar a falsa realidade que a arte por sua vez instaura. A trama
do fotógrafo impelido a estudar as circunstâncias de um suposto assassinato
alude à nossa tentativa de apreender a realidade sob conceitos racionais
muitas vezes sujeitos a falha. Os mímicos, de acordo com esse horizonte de
interpretação, são justamente os responsáveis por colocar em xeque as
certezas de Thomas a respeito da possibilidade de termos acesso à realidade,
tal qual ela se apresenta, assegurados na certeza de que dispomos de um
aparato técnico eficiente para tal tarefa (máquinas fotográficas,
computadores, microscópios e outras tecnologias).
O mundo da arte, instaurado e representado pelos mímicos em Blow-Up, é
de tal natureza que pode questionar os limites de nossa racionalidade diante
da realidade, como ocorreu a Thomas, sem, entretanto, precisar derrubar-se
a si mesmo. Isso porque a arte, sobretudo a arte contemporânea,
diferentemente das outras formas de conhecimento, não se estrutura a partir
de um sistema conceitual preciso e dotado de parâmetros nítidos. O mundo
artístico constitui possivelmente uma das únicas dimensões do conhecimento
que se encontra a todo instante sujeito a uma revolução de base. (DANTO,
2005, p. 109-110, 112). Essa frase, em outras palavras, quer dizer que, se
tentarmos, como acontece nas demais ciências, estabelecer um estatuto
conceitual rígido e estável sobre seus objetos, corremos o sério risco de
deixar à margem muitas de suas características mais fundamentais. O
caráter impreciso da definição de arte é o que, por mais paradoxal que possa
parecer, define a sua natureza.
A arte caracteriza-se como tal por levar a sério - e nesse caso distinguir-se
da realidade - a fantasia que ela própria instaura. O mundo da realidade não
leva a fantasia a sério. Thomas decide ampliar a foto porque supõe tratar-se
de um assassinato real, e portanto em nenhum sentido fantasioso, captado
pelas lentes de sua câmera. O grupo de mímicos, em contraposição ao
mundo da realidade, é que lhe anuncia a possibilidade de haver um ângulo
cujas perspectivas jamais serão objetivadas através das lentes de sua
câmera. Porque quem finge jogar tênis faz mais do que apenas fingir jogar
tênis: instaura um mundo que, por ser fantasioso, opõe-se ao que
imaginamos não ser fantasioso, ou seja, à realidade. Não por outra razão
Danto disse que nos equivocamos ao tentar definir a arte como “todo o
objeto que possui forma significativa”. (DANTO, 2005, p. 112-113). O erro,
nesse sentido, está em pensarmos que a concepção de arte reduz-se apenas
ao que significa o objeto artístico. Ora, se pensamos assim, desconsideramos
uma das características mais peculiares ao objeto artístico, a saber, seu
caráter relacional. Danto apontava justamente para esse horizonte duplo -
constituído por arte de um lado e realidade de outro – quando disse que os
objetos artísticos são predicados relacionais específicos e, como tais,
precisam ser tomados também – embora não apenas - segundo essa
perspectiva. (DANTO, 2005, p. 114).
O estatuto artístico de um objeto está profundamente associado ao quê da
realidade esse objeto se refere (aboutness). Na arte mimética, por exemplo,
em que o termo representação (imitação) era lido como sinônimo de
similitude, essa relação entre arte e realidade acontecia de forma bem mais
nítida. É porque pensava que as representações dos objetos devem ser
semelhantes aos objetos representados que Sócrates recorre a um espelho
para explicar que a arte, em sua natureza, constrói-se enquanto reflexo de
uma realidade sensível. (DANTO, 2005, p. 42). A crítica ao modelo socrático
de se pensar a arte também se encontra em Blow-Up. Não por menos são
mímicos, e não quaisquer outras pessoas ou circunstâncias, que indicam o
erro em que Thomas incorre ao tentar objetivar a realidade através de sua
câmera fotográfica. O grupo de artistas nos mostra que, ao contrário do que
imaginava Sócrates, fingir jogar tênis não é menos verdadeiro do que jogar
tênis de fato. Nessa perspectiva, a menos que atribuamos mais verdade ao
mundo sensível do que às imagens, como fez Platão na teoria das Formas,
da premissa segundo a qual a arte imita a realidade não podemos deduzir
que o universo estruturado pela arte é menos verdadeiro do que o universo
concernente à realidade. A relação, em última análise, não ocorre porque a
arte se encontra submetida à realidade, mas na medida em que a partir da
realidade a arte pode estruturar seu universo próprio e igualmente real.
Antonioni parece estar consciente da capacidade que a arte tem de
estruturar mundos tão legítimos quanto o real. O grupo de mímicos, ao fingir
jogar como se diante de seus olhos houvesse mesmo uma bolinha de tênis,
obriga Thomas a aceitar a hipótese de que nada impede que as lentes de sua
máquina fotográfica capturem uma cena qualquer que diante de seus olhos
se pareça mesmo com a cena de um crime ou ainda de qualquer outra coisa.
Percebamos que a bolinha de tênis de mentira está para os mímicos do
mesmo modo que o suposto assassino está para Thomas: apesar de
movimentarem suas raquetes, não podemos dizer que os mímicos jogam
tênis; apesar de todas as evidências na fotografia, não podemos afirmar que
um dia houve algum assassino. Nesse sentido, ao simular uma realidade
falsa como se fosse verdadeira, o grupo de mímicos sugere a Thomas que
nada evita que ele faça o mesmo dentro de sua realidade. Afinal, assim como
a performance dos imitadores nos leva a supor a existência de uma bolinha
de tênis – ainda que de mentira -, as circunstâncias, o jogo de luz e de
sombra e o ângulo da máquina fotográfica podem ser fatores que levem
Thomas a supor a existência de um assassino.
Por levantar problemas dessa espécie é que a arte, conforme dissemos no
início desse texto, aproxima-se da filosofia; e, não obstante, por fazê-lo
através de objetos que são também objetos artísticos, e não textos dotados
de bases conceituais, é que ela se distancia da filosofia. Blow-Up, longa-
metragem que questiona os limites entre arte e realidade através de um
objeto artístico, o filme, é exemplo da situação que descrevemos. Talvez aqui
esteja a especificidade da arte em relação a outras áreas do conhecimento:
embora questione os seus próprios limites através de si mesma, a arte é a
única que ao fazê-lo jamais se coloca em risco. Mesmo a filosofia, que adota
o autoquestionamento como uma das posturas peculiares à sua área de
abrangência, se comparada à arte apresenta limites bastante definidos. Não
consideramos mais filosofia, por exemplo, todo aquele tipo de saber
desprovido de uma ordem lógica. Embasados nesse critério diferenciamos,
com maior ou menor dificuldade, textos literários de textos filosóficos. Mas o
que dizer da arte, cujos limites não são necessariamente desenhados pela
linha de uma ordem lógica estruturada? Como caracterizar A Fonte, de
Marcel Duchamp, que, apesar de não responder aos critérios que levamos
em conta quando pretendemos distinguir obras artísticas de outros objetos,
não coloca em risco o próprio mundo da arte? Aliás, bem pelo contrário,
dispõe da capacidade de redirecioná-lo por completo?
De que maneira podemos apreender conceitualmente o termo arte se os
próprios objetos artísticos fazem-se arte enquanto objetos que questionam e
sobretudo revisam os limites desse termo? Blow-Up nos choca por ser um
dentre os objetos artísticos cujo conteúdo questiona os limites do próprio
conceito de arte. Assistimos ao filme no intuito de descobrir o que ele é ou
em que sentido figura na lista dos objetos considerados arte e percebemos
que ele mesmo questiona quem é ou em que sentido figura na lista dos
objetos considerados arte. O mais interessante é que, ao fazê-lo, ele não se
autodestrói. Não ocorre de desligarmos o televisor ao percebermos que os
mímicos de Blow-Up, quando questionam os critérios pelos quais Thomas
diferencia fantasia de realidade, também colocam em xeque o critério em
que nós, espectadores, embasamo-nos para considerar todas as coisas,
sobretudo o filme, fantasia ou realidade. Não ocorre de desligarmos a TV
ainda que não saibamos responder a essa pergunta e ainda que dessa
resposta dependa a classificação que fazemos do próprio filme. Isso acontece
apenas porque o objeto artístico pode exercer um papel duplo e - ao passo
que à primeira vista tomamos as duas partes desse papel como auto-
excludentes - aparentemente paradoxal: constrói-se enquanto arte ao
mesmo tempo em que questiona a natureza da arte.
Qualquer semelhança com a linguagem não é mera coincidência. O problema
assemelha-se à dificuldade dos filósofos da linguagem quando percebem que
o seu objeto de estudo (linguagem) constitui também o meio pelo qual eles
podem estudá-lo. Assim como a linguagem, o objeto artístico, enquanto
veículo semântico, é capaz de colocar perguntas sobre seus limites e sua
natureza através de si mesmo. A obra de arte, tal como a linguagem, é auto-
reflexiva porque pode nos aparecer simultaneamente como objeto formal,
aquele aspecto material a que devemos atribuir ou não o estatuto de arte, e
como objeto semântico, aquela parcela da obra diante da qual deduzimos
que algo no objeto mesmo questiona seus próprios parâmetros.
Simultaneamente porque não existe, como costumamos imaginar, uma
separação entre o que pergunta e o objeto sobre o qual se pergunta no caso
da arte e da linguagem. As duas partes dessa dupla performance do objeto
artístico não são auto-excludentes justamente porque a arte não se reduz à
forma do objeto artístico nem ao seu conteúdo semântico. E é nessa
possibilidade de não reduzir-se a um ou a outro aspecto – nessa abertura do
conceito de arte - que se localiza a garantia de que as duas parcelas do duplo
papel do objeto artístico não se auto-excluem.
Por causa da auto-reflexibilidade da arte Danto afirmou que o objeto artístico
contemporâneo aproxima-se da filosofia. No que diz respeito a essa
aproximação, o longa-metragem Blow-Up, por abordar os limites entre
fantasia e realidade, pode ser considerado, respectivamente, sob três
aspectos: 1) como crítica à maneira pela qual nos relacionamos com a
realidade - e por conseguinte como um tipo de saber que, da mesma
maneira que a filosofia, pressupõe um conceito já formado de realidade -; 2)
como sugestão de que a arte se instaura na medida em que, da mesma
forma que a filosofia, questiona os limites dessa realidade; 3) como o
indicativo de que, por sua auto-reflexibilidade - aspecto semelhante ao da
filosofia, que tem em si mesma um objeto de estudo -, a arte está apta a
colocar questões sobre si mesma e provocar uma revolução de base em seus
critérios sem se autodestruir. Um último ponto a ser destacado a partir da
performance dos mímicos está na crítica à idéia de que representação e
similitude são sinônimos. Vimos que a associação equivocada desses dois
conceitos nasceu entre os gregos, na arte mimética, e levou Platão a
expulsar os artistas da cidade ideal. Assim, embora a arte contemporânea já
nos tenha mostrado que um objeto pode representar outro sem
necessariamente parecer-se com ele4 – que um objeto não precisa parecer-
4
Há obras de arte cujo tema refere-se à associação que costumamos fazer entre
representação e similitude. O quadro La Trahison des Images, no qual um cachimbo
está pintado sobre a inscrição “isto não é um cachimbo”, traduz essa tentativa de
se com aquilo a que se refere (aboutness) -, tendemos ainda a pensar que
similitude é condição para representação.
Apesar de a arte contemporânea ser responsável por inaugurar uma nova
forma de vincular arte e filosofia, a aproximação dessas duas instâncias não
é recente. Nietzsche, também n’O Nascimento da Tragédia, atribui a falência
do espírito trágico na arte grega clássica à intervenção da razão socrática no
texto de Eurípides. Talvez ele tenha antecipado uma crítica que Danto
desenvolve mais tarde em relação à abordagem que os filósofos fazem da
arte quando tentam limitá-la ao que prevêem seus sistemas e parâmetros
conceituais. Mas as vantagens e desvantagens decorrentes da aproximação
entre arte e filosofia já é tema para um outro texto.

Referências bibliográficas

BLOW-UP: depois daquele beijo. Direção: Michelangelo Antonioni. Los


Angeles: Warner, 1966. 1 DVD.

DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São


Paulo: Cosac Naify, 2005.

COELHO, Teixeira. A relação entre produção artística e reflexão teórica.


Disponível em: <
http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.event_pres/simp_sem
/pad-ped0/documentacao-f/conf02/conf02_rel_imersivo>.

GHIRALDELLI, Paulo Jr. Entrevista com Arthur Danto. Disponível em: <
http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News&file=article&sid=50>.

NIEZTSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo.


Tradução de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

desvincular o aspecto formal da obra a (a ilustração do cachimbo) do objeto real


com o qual ele se assemelha (o cachimbo que podemos utilizar para fumar).

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