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REPENSANDO PARADIGMAS
RIO DE JANEIRO
2003
ALINE VALADÃO VIEIRA GUALDA PEREIRA
e Estudos da Indumentária.
UNVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
2003
Monografia submetida ao corpo docente da Universidade Estácio de Sá, como
Prof.
Prof.
Prof.
Prof.
Prof.
FICHA CATALOGRÁFICA
Ao meu marido, meus pais e irmã, por todo o incentivo e ajuda nos momentos de
trajetória. Aos meus pais, Luci e Aristeu, e minha irmã, Elen, pela ajuda
emocional e material, nos momentos mais difíceis. À Aninha, que com sua
doçura e seu carinho de menina faz com que, a cada dia, eu me torne uma
pela lapidação de tantas das minhas idéias em estado bruto e para a professora
Regina Moura, que me fez atentar para a população de rua e seu código visual
realizado.
“A identidade é uma entidade abstrata sem existência real, muito embora seja
(Lévi – Strauss)
LISTA DE FIGURAS
Fig.23 Gualda, Luiz Francisco. Homem procurando coisas nas lixeiras, até
até 30 que encontra um maço de cigarros. Rua do
Carmo.................................................................................................... 36
mendigo, por se tratar de um código diverso, não abarcado por nenhum estudo da
wearing or dressing.
study about the usages and apearence of these people who have their own style
and way of life. It’s a new conception of researsh that there ins’t any other kind of
lançar um olhar mais criterioso, cheguei não raramente a massificar o que via
cubro o meu corpo, comecei por relacionar a questão dos princípios morais que
me obrigam a não andar nua. Posteriormente, pensei na adequação desta
“cobertura” às intempéries, para que meu corpo receba as doses de calor e frio
morador de rua dos meus interesses ao fazer uso da roupa. A seguir seria preciso
significativos de comunicação:
O ponto que nos interessa ressaltar é que existem códigos
de vestuário. (...) o problema deveria interessar quem quer
que decida viver em sociedade, ouvindo-a falar por todas as
formas que ela é capaz. Porque a sociedade, seja de que
forma se constituir, ao constituir-se “fala”. Fala porque se
constitui e constitui-se porque começa a falar. Quem não
sabe ouvi-la falar onde quer que ela fale, ainda que sem
usar palavras, passa por essa sociedade às cegas: não a
conhece: portanto, não pode modificá-la.1
fazem-se presentes unicamente como referências que devem ser analisadas por
maior clareza.
Janeiro.
que a zona sul do Rio, por exemplo, graças ao seu potencial turístico, também é
capaz de atrair o indivíduo carente, mas por outro lado, fornece a ele a
vitais do morador de rua. O Centro, por sua vez não possui potencial residencial,
o que faz com que o indivíduo carente busque agrupar-se sob suas marquises,
utilizando os elementos de caráter público das ruas e praças como seus
às igrejas locais, onde também poderão inclusive guardar alguns pertences que
6 e 70 anos. Porém o grupo dos adolescentes das ruas foi alvo de observação
terão os nomes reais dos entrevistados resguardados pelo uso de nomes fictícios.
SUMÁRIO
Abstract ................................................................................................................. IV
Objetivo .................................................................................................................. V
Justificativa............................................................................................................ VI
Metodologia........................................................................................................... IX
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1
CAPÍTULO 3 - O corpo-casa................................................................................ 17
4.2 - Os homens:............................................................................................ 24
4.3 - Os doentes:............................................................................................ 27
4.5 - O self:..................................................................................................... 32
CONCLUSÃO.........................................................................................................39
pelo menos alguma curiosidade inerente ao fato da moda ser abordada como um
fenômeno restrito às altas classes, sendo feita pela e para a elite, assim como as
assumiria um caráter estritamente protetor, já que para ter acesso à moda far-se-
estes indivíduos.
busca de outras definições que não reduzam a moda praticada pela cultura alheia
moda viria a resolver tais questões - uma vez que, numa análise da indumentária
impostas pela vida nas ruas até os critérios usados para estabelecer as
rua preocupa-se com o ato do vestir, com a aparência e que necessita dela como
discutível a idéia da “ação mecânica das forças naturais sobre uma humanidade
sobrevivência como único fim para as atitudes dos indivíduos. Não se ignora que
esta questão coexista intrínseca aos seus demais motivos, mas toma-se como
marco na diferenciação entre o ser humano e os animais restantes o exercício da
âmbito da existência cultural: “uma das classes dominantes e outra das classes
moda foi destinada às pessoas que possam pagar por ela e para isso manipula
outras necessidades.
classes de diferentes níveis. A roupa para a noite do doador, por exemplo, poderá
assumir o papel da roupa cotidiana do morador de rua. Tais deslocamentos de
indivíduos estabelecidos.
meios ilícitos. Esta forma de aquisição sugere uma busca intencional muito
o que virá a possuir, o que não caracteriza em momento algum que a roupa
básicos de sua origem, seu cotidiano e suas expectativas. Assim que pudermos
pontuar as novas relações da roupa e das suas razões de ser. Além da roupa, do
física e mental, a maneira como adquirem seus recursos e há quanto tempo estão
nas ruas. Dentro destas variações será levantada a possibilidade ou não de haver
tipos humanos, que fazem das calçadas e marquises seu abrigo temporário ou
de vida.
manterem seus poucos bens. Existem outras que, por problemas com familiares
optam por saírem de suas casas ou são expulsos delas, cortando os vínculos com
permanência nelas.
Acredito haver uma existência pequena, porém merecedora de
aquisição de recursos.
qual ele constrói seus traços de identidade, com a possibilidade de exercer seus
anteriores.
Figura 1
constante.
Façamos um paralelo com um trecho de Bachelard:
Figura 2
estes indivíduos. A justificativa para seus trajes é muito mais interna ao grupo e
abrange o objeto e todas as ações humanas que lhe dão suporte enquanto signo
de rua dos nossos padrões estéticos formais, mas o aprisiona a construir-se sobre
tal diferenciação não é imposta pela peça de roupa feminina ou masculina, mas
a cor do ambiente impregna corpo e vestes com uma uniformidade escura, talvez
tais indivíduos, que os impede de ter acesso aos mesmos recursos dos outros.
caracteriza as faixas etárias dos pólos infância e idade adulta. Talvez porque aqui,
criança vestida com a “armadura” do adulto esteja assim mais fortalecida (figuras
Figuras 7 e 8
A origem de um morador de rua normalmente vem expressa na sua
simples costume de usar roupas sempre limpas ou sempre sujas poderá, para
Figura 9
citadas anteriormente, o corpo exerce uma função vital: atrelados ao corpo, vão-
recursos mínimos de subsistência faz com que o morador das ruas carregue
sobre o corpo todo o peso físico e emocional dos objetos que contam a sua
história.
moradia, pois é sobre ele que se dispõem as aquisições, é ele o espaço privado
Figura 10
este corpo que permite a existência deste fator diferenciador – a cultura – quando
individual.
casa para o corpo. Assim poderíamos relacionar o corpo ao eu que habita: o ato
de habitar. Poderíamos associar a casa concreta e abstrata, impregnada de
sendo o seu corpo o universo público de atuação das diferenças sociais externas.
CAPÍTULO 4 - A CASA DE CADA UM
4.1. As mulheres:
casa-concha rígida para proteger seu corpo fisicamente mais frágil. Seria o caso
da casa “construída pelo corpo, para o corpo, assumindo sua forma pelo interior,
como uma concha, numa intimidade que trabalha fisicamente”15. Além do mais, o
calcária, ao mesmo tempo que protege afugenta o predador, por criar uma
ser que sai da sua concha sempre será assustador. Este invólucro rígido será
tentar se defender sozinha. Neste caso, a vida em colônia forma uma concha
Figura 12
intencionalidade sexual, que pode ser acentuada pelo uso de peças íntimas
aparentes. Não é raro o uso do corpo como moeda de troca nas negociações
conveniente pagar por um lugar seguro para pernoitar. Nesse sentido, ela
empresta o próprio corpo como forma de pagamento (e, pela maneira maliciosa
inconsciente ao status conferido pelo uso dos chapéus ou perucas de outrora. Ela
também recupera lentamente o uso das saias e vestidos como formas tipicamente
novas peças.
inutilizadas em gorros e boinas, que comercializa entre eles. É ela quem faz
de rua. A partir de então, há uma reunião para decidirem quem vai ficar com o
sobra, quando não é beneficiado, é usado como moeda de troca com outros
comércio convencional (no nosso caso específico, nas lojas do SAARA), mas
no caso de eventualidades.
Figura 14
Azaléia* afirma que possui vínculos familiares. Quando se aproxima
alguma data comemorativa, como natal ou aniversário das netas, ela vai ao morro
onde a filha e o genro moram. Para isto, tem que vestir uma roupa melhorzinha,
como diz. Às vezes, para este fim, ela compra alguma coisa no SAARA. Vaidosa,
diz que não abre mão do relógio, dos anéis e brincos de bijuteria que usa. Só não
usa ouro, porque na rua é perigoso tomarem dela, que já está velha. Mas diz ter
4.2. Os homens:
biológico, provendo-o nas suas insuficiências. Desta forma o uso dos símbolos no
dormindo nos bancos das praças. Sua condição adulta e saudável dificulta a
favorável à subsistência. O homem doente não é bem recebido pelo grupo: assim,
15). Por sua vez, a mulher pode ganhar as ruas por fatores mais numerosos –
Figura 15
e exercer alguma atividade que lhe dê sustento, como o caso das negociações de
pedindo uma contribuição para alimentar os filhos. Eu insisto em saber sobre sua
profissão de cobrador de ônibus. Ele diz que está desempregado e só faz uso do
uniforme pras pessoas verem que ele não é “vagabundo”. Carrega uma garrafa
plástica com um líquido vermelho e insiste em dizer que muitos mendigos pedem
dinheiro para beber, mas ele não: ele só toma aquele Ki-suco. É notável o fato de
comprovar sua origem, ele me mostra a foto de duas crianças, dizendo serem
seus filhos. Cedro* nega que more nas ruas. Diz ir para casa assim que conseguir
idosas, têm maior dificuldade para resgatar uma dignidade mínima que lhes
permita resistir com sanidade às agruras da vida nas ruas. Os homens mais
confere uma aparência menos limpa e cuidada do que a das mulheres (figura 16).
passa pelo critério da escolha pelo gosto, tal qual acontece com as mulheres.
4.3. Os doentes:
grupo. A roupa torna-se mais alegórica do que protetiva. Aliás, esta tendência ao
valores já fixados. Tudo pode ser roupa. Ou pode haver nenhuma roupa. A moral
que não os pessoais. Neste caso específico, todo o espaço adquire caráter
se ao que pode ser encontrado nas lixeiras – tanto os alimentos quanto os objetos
Sua vulnerabilidade à violência tem que ser revestida por uma muralha que lhes
estar sob os olhos da mãe para ter que buscar o seu sustento sozinha, sem
supervisão.
(figuras 17, 18, 19 e 20). Ainda que, neste meio, cada um tenha que buscar nas
ruas a sua própria sorte, neste caso, a mãe é uma espécie de provedora, ainda
que o seja somente para mapear o local de trabalho e decidir qual será o ponto
necessariamente forte para que possa garantir-se sem a ajuda do mais velho ou
agressivas, duras, que lhes forneçam a rigidez que sua anatomia ainda não
possui. Desta forma, agregam ao corpo signos que causem repulsa, incômodo,
grupo dos adolescentes é o único que sugere tendências de códigos visuais mais
massa, que por sua vez, já é uma releitura estilizada da cultura das classes mais
altas.
Figura 21
furtos.
status. O que ocorre é uma mudança de referencial. “Status, por definição, é uma
concessão do respeito por parte de outrem”20. Assim, sendo, este status passa a
ser conferido por outros colegas no mesmo grupo, havendo uma rejeição das
4.5. O self:
ressaltado o fato de que pela restrição física, poucos objetos pessoais são
interna a qual pertença, acabam por integrar-se à sua aparência, que lhes confere
acabam por assumir valores de espaço, pois é dentro desta relação de ser com o
que cada um deles pode preencher o sentido de corpo, como uma unidade, ao
definir que cada uma dessas pessoas é una com aquilo o que possui: a totalidade
mudança de valor utilitário dos objetos da população de rua. Este processo pode
possui pequenas tiras e pedaços de barbante amarrados nos dedos e nas mãos:
como que num ritual de posse. Quando os pulsos e dedos já estão cheios, parece
guardados em uma velha mochila de jeans, que carrega nas costas. E a busca se
reinicia.
A justificativa que ele formula para explicar esta busca é primária: diz
que estes barbantes são sempre úteis. Se ele precisar um dia, já terá bastante
guardado.
CAPÍTULO 5 – VIABILIZANDO A EXISTÊNCIA
papel dos lares que não têm deve-se à sua necessidade de conformação, de
ajustamento e do mínimo contato com a realidade, para que não sinta tanto o fato
observados, após a análise das entrevistas, registram que estas pessoas referem-
Miguel Couto. Você sabe onde é? Se eu não tiver lá, tô aqui na Uruguaiana, mas
eu moro é lá. Tenho dois meninos. Eles tão sempre lá. Se você chegar e eu não
tiver, não dá pra eles, senão eu nem vejo”, disse, por exemplo, Rosa*, 46 anos,
dizendo, por exemplo, que ele era uma pessoa igual a mim, “que gostava de
ajudar ou outros”. Que, assim como eu, tinha um par de tênis. E também tinha um
aproximação.
que a viabilizam.
pretensiosamente precisa.
como traços culturais ou não. Mas com a simples intenção de relatar o observado,
maioria das vezes, uma das atividades restritas aos indivíduos de maior tempo de
permanência nas ruas e com possíveis problemas mentais. Pode ser também,
30).
ser um dos critérios para obter a permissão para acesso às dependências das
igrejas. Em outros casos, pode naturalmente não haver mesmo distinção entre o
(figuras 31 e 32).
Figuras 31 e 32
O pernoite nas ruas pode ser muito perigoso para estes indivíduos,
outros fazem vigília para tomar conta dos pertences do grupo, que podem ser
do Brasil, embora paguem uma pequena quantia em dinheiro por esse direito.
Eles afirmam que lá é mais seguro e tem uma pequena estrutura para a higiene
matinal.
viadutos e pontes servem de abrigo e estes não fazem uso das calçadas
compartilhadas com outras pessoas, acredita-se até que pela busca de certa
privacidade.
roupas como formas não só de lazer, mas de possível rascunho dos traços
Moderna, 1993.
1992.
letras, s.d.
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira. 12. ed. São
Paulo, Difel, 1984.
SOUZA, Gilda de Melo e. O espírito das roupas – A moda no século dezenove.
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa et alli. População de rua – quem é, como vive,
1999.
1989.
NOTAS DE FIM
1
ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge.
2
Alfred Kroeber (1876-1960), antropólogo americano, em seu artigo “O
superorgânico”, de 1949, mostrou como a cultura atua sobre o homem, ao mesmo
tempo em que se preocupou com a discussão de uma série de pontos
controvertidos, pois suas explicações contrariam uma série de crenças populares.
Iniciou, como o título do seu trabalho indica, com a demonstração de que graças à
cultura a humanidade distanciou-se do mundo animal. Mais do que isto, o homem
passou a ser considerado um ser que está acima das suas limitações orgânicas.
3
SAHLINS, Marshall. In: LARAIA, Roque de Barros. Cultura – um conceito
antropológico. p. 24.
4
BARTHES, Roland. O sistema da moda.
5
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira.
6
Não se pode desconsiderar que a marginalidade seja uma realidade neste meio.
O que gostaríamos de ressaltar, porém, é que há a grande incidência de doação
de roupas, que muitas vezes são captadas pelas paróquias do centro ou outras
entidades filantrópicas e distribuídas à população de rua. Há também os casos
em que voluntários entregam pessoalmente sacolas com roupas a essas
pessoas, o que torna o roubo de roupas um fator desnecessário, cometido
eventualmente pelos grupos mais jovens, por motivos que nos deteremos a
detalhar com destaque em capítulo mais a frente.
7
VILLAÇA, Nízia. Moda e proposta. In: Em nome do corpo.
8
COSTA, Maria Antonieta da. et alli. População de rua – quem é, como vive,
como é vista. p.93.
9
Idem, p.96.
10
Idem, Ibidem.
11
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço.
12
COSTA, Maria Antonieta da. et alli. Op. cit., p.99.
13
BACHELARD, Gaston. Op. Cit.
14
Idem.
15
MICHELET, Jules. In A poética do espaço. Op. Cit.
16
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa et alli. Op. Cit.. p. 99.
17
BRITO, Sulamita de. A sociologia da juventude – a vida coletiva juvenil. p.
133. Sobre o termo “subcultura delinqüente” adotado pela autora em várias
passagens do seu texto, gostaria de esclarecer sua natureza não pejorativa que
justifica-se pela época na qual foi escrito. Hoje certamente haveria um termo mais
ameno para designar o mesmo objeto, devido às elaborações éticas e questões
humanas que vieram florescendo. Gostaria também de salientar que a
“delinqüência” aqui descrita serviria para abarcar desde os aspectos violentos das
classes inferiores até os atuais exemplos de agressividade e violência praticados
pelos jovens das classes altas.
18
Idem, Ibidem.
19
Idem, p.143.
20
Idem, p.145.
21
Idem, pp. 91 e 92.