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três quadros

virgínia wolf

primeiro
É impossível não encontrar quadros por toda a parte, pois o simples fato de meu pai
haver sido ferreiro, por exemplo, e o vosso, par do reino, leva-nos uns para com os
outros, a assumir o aspecto de personagens de quadro, o que possivelmente não
poderíamos evitar se saíssemos da moldura que as circunstâncias criaram para nós, por
mais que procuremos expressar-nos com toda naturalidade.
ao lembrarem-se de mim, certamente me imaginarão à porta da forja, com uma
ferradura na mão, e hão de comentar: “que coisa mais pitoresca!”. de minha parte, não
posso evitar as fantasias que me assaltam de ver-nos comodamente reclinados num
luxuoso carro, cumprimentando o povo, e tal visão a meus olhos, é o símbolo da
inglaterra aristocrata. certamente, nem uma, nem outra destas duas imagens
corresponderá à realidade, mas, que posso fazer?
ora, acontece que, há pouco, numa curva da estrada, divisei um desses quadros que
poderia intitular-se “o regresso do marinheiro”, ou coisa parecida. tratava-se de um
marinheiro jovem, simpático, transportando um saco na mão e de uma moça agarrada ao
seu braço; em volta dele, alguns vizinhos e, ao fundo, uma pequena casa rodeada de um
jardim florido.
ao passar, via-se que aquele marinheiro acabava de chegar da china e que, no interior da
casa, a sala fora cuidadosamente preparada para recebê-lo. adivinhava-se também que,
no saco que ele transportava, trazia um presente para a jovem esposa, e que esta ia dar-
lhe o primeiro filho. tudo estava certo, tudo parecia perfeito nesse quadro, e contemplar
tamanha felicidade tornava a vida mais suave e agradável de viver.
pensando assim, segui adiante, completando o quadro, de memória, o mais que pude,
com pormenores que conseguia observar, a cor do vestido dela, a expressão dos olhos
deles, o gato amarelo enroscado à porta da casa.
durante certo tempo o quadro fixou-me nos olhos, tornando tudo em volta mais
brilhante, mais quente e mais simples do que é habitual, e fazendo com que certas coisas
se me apresentassem como loucuras, outras como tolices e outras ainda exatas,
perfeitas, e com muito mais sentido do que sempre imaginara. naquele dia e no dia
seguinte, nos momentos mais singulares, o quadro voltou-me à memória, pensando com
inveja, mas também com ternura, no marinheiro e na esposa, perguntava-me o que
estariam fazendo e dizendo, naquele instante.
a minha imaginação, aos poucos, foi acrescentando ao primeiro, outros quadros que, por
assim dizer, o completavam. via o marinheiro rachando lenha, tirando água do poço do
jardim; ouvia-o conversar com a esposa sobre o que vira na china, imaginava ela
colocando cuidadosamente o presente que o marido trouxera sobre a lareira da sala,
depois imaginava a moça costurando roupinhas de crianças enquanto todas as portas e
janelas se encontravam abertas para o jardim, onde pássaros cantavam e abelhas
zumbiam. rogers – era o nome dele – não encontrava palavras para expressar o prazer
que tudo lhe causava, depois de ter percorrido os mares da china, e detinha-se a fumar
cachimbo, fora da porta, admirando o jardim.

segundo
no meio da noite, um grito dilacerante rompeu o silêncio; depois, ouviu-se como que um
vozear, a seguir um silêncio de morte dominou tudo. o que pude divisar, da minha
janela, foi uma haste do lilás do jardim, pendendo imóvel sobre a estrada. era ainda
noite escura. não havia luar. o grito emprestara às coisas um aspecto singular. quem
gritara? por que gritara ela? tratava-se de uma voz de mulher, quase inexpressiva, quase
assexuada, pela violência da emoção.
dir-se-ia a natureza humana gritando contra qualquer inexplicável iniquidade, contra
qualquer indescritível horror. seguiu-se ao grito um silêncio de morte. as estrelas
cintilavam nítidas, serenas, os campos dormiam tranqüilos e as árvores continuavam
imóveis; no entanto, por toda a parte se espalhara um sentimento de culpa, todas as
coisas se sentiam responsáveis por não sei que tremendo crime. tinha-se a sensação de
que era imprescindível tentar qualquer coisa. devia, forçosamente, aparecer alguma luz
agitando-se, movendo-se, inquieta, numa e noutra direção. alguém devia aparecer
correndo pela estrada. as janelas da casinha curva do caminho iluminar-se-iam e então
talvez um outro grito se fizesse ouvir menos desesperado, no entanto, já não
inarticulado e repleto de tão indescritível horror.
contudo, nenhuma luz apareceu, nenhum rumor de passo se ouviu, e não houve segundo
grito. o primeiro extinguira-se, desapareceram dele os derradeiros ecos, e seguiu-se-lhe
um silêncio mortal.
deitada no escuro do quarto, inutilmente eu escutava. fora uma voz apenas. uma voz
sem sentido. não era possível imaginar qualquer quadro que com esse grito tivesse
relação e que pudesse ajudar a interpretá-la ou a torná-lo inteligível. a manhã começava
a romper quando avistei uma forma humana, meio diluída em treva, indefinida, informe,
erguendo em vão um braço gigantesco contra qualquer intransponível iniquidade.

terceiro
o tempo permanecia suave. se não tivesse ouvido aquele grito durante a noite, teria a
impressão de que, finalmente, o mundo aportara a porto seguro, que vida deixara de ser
agitada pelo vendaval, que o mundo alcançara, enfim, uma enseada tranqüila, onde
repousaria quase imóvel. entretanto, nos meus ouvidos, o som persistia. onde quer que
me dirigisse e, mesmo ao dar um passeio pelas colinas, qualquer coisa me parecia existir
sob a superfície serena das coisas, fazendo-me descrer da estabilidade, da segurança,
que à minha volta pareciam existir. pela vertente, um rebanho pastava tranqüilo e o vale,
ao fundo, estendia-se, ondulado como um mar calmo de verão. passei por uma herdade
solitária. no pátio um cachorro brincava e borboletas voltejavam sobre a urze. tudo
parecia gozar uma felicidade serena e pura. contudo, na noite anterior, ouvira-se aquele
grito e toda a beleza, toda a serenidade, que eu tinha ante os olhos, fora cúmplice. sim,
pelo menos consentira, e tudo continuava sereno, belo, embora aquele grito se tivesse
feito ouvir e pudesse voltar a repetir-se. toda a serenidade, toda a segurança eram
aparência falaz...
e então, para alegrar-me, para dominar esta opressiva disposição, recordei a chegada do
marinheiro. tornei a ver o quadro, enriquecendo-o ainda com mais alguns pormenores –
o vestido azul que ela trazia, a sombra que a árvore florida projetava sobre o jardim –
que não notara até ali. tornei a avistá-los junto da porta da casa, ele com seu saco, ela
enfiando-lhe o braço, o gato amarelo enroscado à porta. e desta maneira, rememorando
o quadro em todos os seus pormenores, pude, aos poucos, convencer-me de que
realmente existiam calma e bem-estar para além da superfície das coisas e não nos
esperava sempre qualquer surpresa traiçoeira e sinistra.
o rebanho pastando, espalhado pelo ondulado das colinas, a herdade longínqua,
guardada pelo cão, e as borboletas pousando aqui e ali, eram realmente fatos e nada
havia oculto sob tais aparências. e assim regressei à casa, pensando no marinheiro e na
mulher, desenhando, um após outro, vários quadros de felicidade perene e de alegria, de
modo a silenciar o desassossego que o tremendo grito deixara dentro de mim.
alcancei finalmente a aldeia, atravessando o adro, por onde é forçoso atravessar; e,
como sempre me acontece de cada vez que passo naquele local de paz, atentei na
tranqüilidade das cinzas, repousando dentro do túmulo de pedra, ou em covas onde não
existe sequer um nome a recordar. quando por aqui passo, tenho sempre a impressão de
que a morte é uma coisa alegre.
eis então que um quadro mais se me apareceu.
um homem abrindo uma cova e um bando de crianças merendando ao lado da sepultura.
a mulher do coveiro, gorda e bonita, encostada a um túmulo, estendera o avental na
relva, mesmo ao lado da cova que acabava de ser aberta, fazendo-o de toalha. de vez em
quando, algum torrão caía no meio do serviço de chá. “quem vai ser enterrado”,
perguntei, “morreu finalmente o velho mr. dodson?” “não, não, respondeu-me a mulher.
“É para rogers, o marinheiro. morreu a noite passada de uma febre que apanhou na
viagem. não ouviu a mulher? veio à estrada e gritou...” depois, virando-se para um dos
pequenos, “tem juízo, tommy, estás te sujando de terra!”
que quadro tremendo que não me atrevo sequer a esboçar...

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