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Hoje, no entanto, a pedagogia tornou-se num fim em si mesmo. Como conjunto de técnicas
e métodos de acção e intervenção sobre o comportamento humano, revela-se, cada vez
mais, uma disciplina com um objecto científico e um objecto de observação autónoma e
específica. Esta evolução leva a que os pedagogos e especialistas afins transformem a
pedagogia num objecto de compra e venda, com conceitos e metodologias próprias.
Embora mantenha laços de indissolubilidade com o ser humano e a sociedade, tende a
funcionar como um mero instrumento de adaptação racional dos seres humanos aos
desígnios das instituições escolares, do Estado e do mercado.
Tratava-se, desde de então, de deixar o ensino escolástico e livresco sem articulações com a
razão, a ciência, a tecnologia e o mundo do trabalho. Os processos de aprendizagem dos
múltiplos saberes passaram a ser determinados progressivamente pelos ditames da
racionalidade empresarial e estatal . O mundo da produção, consumo e distribuição de
mercadorias exigia um tipo de conhecimentos que não se adequava mais a um saber
contemplativo da ordem divina.
Rousseau ao escrever a seu livro Emílio (3) enunciava já algumas das premissas que a
educação e a pedagogia devia assumir no sentido de uma adaptação da actividade espiritual
e intelectual dos seres humanos às experiências da vida e aos diferentes ofícios.
Por esses motivos, as relações polares entre pais/filhos na família, teólogos/leigos na Igreja
e mestres/aprendizes nas corporações, que serviam de suporte a todo o sistema educacional
e pedagógico tradicional, vão ser objecto de uma desintegração progressiva.
Esta pedagogia passa a estar articulada com uma educação que obedece a uma lógica de
estratificação e de mobilidade social confinada aos ditames do Estado e do mercado. No
quadro da sociedade capitalista, o rendimento, a propriedade, o "status", o poder, etc., não
são usufruidos e apropriados de igual modo pelos diferentes grupos e classes sociais que
constituem essa sociedade. Pela dominação e hierarquização que essa realidade encerra, os
diferentes grupos sociais e classes sociais passam a dispôr de capacidades e possibilidades
pedagógicas e educacionais reguladas pela competividade e concorrência do mercado, pela
legitimidade institucional imposta pelo Estado e o constrangimento das relações sociais de
produção capitalistas.
No âmbito das teorias autoritárias há, no entanto, uma outra perspectiva que tende a
analisar os indivíduos como função de racionalidade a optimizar no mercado (7). Nesta
assunção, os constrangimentos estruturais e institucionais do Estado e do mercado
capitalista nunca poderão inviabilizar, em absoluto, as expectativas racionais dos indivíduos
no campo educacional e pedagógico.
Integrados numa lógica de acção social pautada pela percepção da análise de custo-
benefício, os indivíduos são capazes, por si só, de desenvolver o seu potencial físico e
cognitivo de forma a melhorarem as suas "perfomances" no quadro da mobilidade e da
estratificação social . A ideologia burguesa da plena cidadania e a função positiva da
democracia representativa optimizam-se plenamente, já que, nesta perspectiva, pode-se
passar de burguês a operário, de ministro a sacerdote, etc., e "vice-versa", bastando somente
que os indivíduos maximizem as suas expectativas racionais nos sistemas educacional e
pedagógico vigentes.
Essas experiências e teorias, embora tenham uma abrangência geográfica e social muito
reduzidas, demonstram, no entanto, um conjunto de virtualidades potenciadoras de uma
educação e de uma pedagogia que pretende ser, em princípio, a negação do modelo
precedentemente analisado. Importa, pois, compreender e explicitar a pedagogia e a
educação de caraccterísticas libertárias enquadradas em práticas sociais e humanas
presididas pelos valores da solidariedadade, da liberdade, da autogestão, da espontaneidade
e da criatividade integradas num todo social harmónico. Estes são os denominadores
comuns das experiências e teorias mais representativas que se enquadram na educação e
pedagogia libertária.
Max Stirner, embora não tivesse uma visão tão globalista e integrada como Godwin, pensou
a educação e a pedagogia como um hino de criatividade e liberdade circunscritos à
soberania absoluta do indivíduo face a todos os poderes ou autoridades exteriores ao
mesmo (11). Nesta assunção, o indivíduo, ao assumir-se como uma função de soberania
relativamente ao outro ou aos outros instituidos em instituições de diferentes tipos e no
Estado, só assume a criatividade e espontaneidade plena nos planos educacional e
pedagógico, quando usufrui do máximo de liberdade e de individualidade. A figura do
pedagogo, do professor e/ou do funcionário administrativo das instituições escolares
revelam-se, por tais motivos, instrumentos de negação da liberdade e da individualidade
dos seres humanos. A existência de um processo de aprendizagem de conhecimentos de
incidência social , nestes termos, só poderia estruturar-se numa sintese única e indivísível: a
emergência de uma sociedade hipoteticamente anarquista. Só o ser humano, enquanto
entidade ontológica única,poderia evoluir para uma soberania de indivíduos livres que
construiam e desenvolviam pedagogias e educações múltiplas, mas simultaneamente
passíveis de se integrarem numa mesma síntese societária anarquista.
Proudhon foi um dos autores que maior preocupação teve relativamente a esta questão
central. Esse facto deriva, em parte, das suas análises sobre o federalismo, o mutualismo, o
sindicalismo revolucionário e a autogestão. A ordem social e económica que defendia num
sentido de uma sociedade libertária construia-se basicamente a partir do trabalho e dos
trabalhadores livres e emancipados. A educação e a pedagogia inscrevia-se nesta orientação
primacial e funcionavam como o motor de aprendizagem dos conhecimentos necessários a
toda actividade económica, profissões, ofícios e vida cultural e social em geral. Este
carácter integrado da educação passava por um processo de socialização fundamentado na
autogestão. A partir dos múltiplos locais de trabalho, das escolas de diferentes tipos e graus
de ensino, etc., os indivíduos deveriam auto-organizar-se de forma a que o processo de
aprendizagem de conhecimentos estivesse correlacionado com a sua vida quotidiana e
estivesse identificado com os processos de decisão e transmissão de conhecimentos
baseados em relações sociais fraternas e solidárias .
A educação, tal como a pedagogia, inscrevia-se neste quadro típico relacional e interactivo
dos indivíduos, daí que em termos de processo de aculturação sócio-cognitivo e físico dos
indivíduos não pudesse ser objecto de uma aprendizagem de conhecimentos diferente
daquela que ocorria em toda a sociedade libertária.
Kropotkine sempre viu o fenómeno educacional e pedagógico como uma função crucial na
formação dos jovens, como também o conceptualizou no sentido da emancipação dos
trabalhadores (14). O conhecimento da vida, da natureza e da sociedade esteve sempre no
centro das suas preocupações . Esse conhecimento permitiria destruir os factores que
condicionavam a inteligência humana de percepcionar e interpretar científica e
racionalmente os fenómenos que observava, mas também permitiria ao ser humano
construir-se como ser individual e ser social emancipado de poderes e autoridades
exteriores à sua identidade intrínseca.
Assim, tal como era importante formar jovens de forma a torná-los responsáveis e activos
enquanto agentes de transformação radical da sociedade capitalista, para Kropotkine , a
pedagogia e a educação libertária deveria desenvolver-se em sintonia com a assimilação de
um conhecimento compatível com as necessidades de produção, de distribuição e consumo
de bens e serviços inerentes ao funcionamento de uma sociedade libertária. A aprendizagem
desse conhecimento deveria basear-se na realidade experimental dos múltiplos aspectos da
vida quotidiana e do trabalho e fundamentar-se num equilíbrio ecológico de características
identitárias com a natureza e seus elementos constitutivos. Nestes parâmetros, as
comunidades pedagógicas e educacionais de Kropotkine enquadravam-se numa perspectiva
de relações sociais fraternas e solidárias entre professores e alunos, eliminando-se
os fenómenos relacionais interpessoais presididos pela dominação e exploração do homem
pelo homem.
No campo das experiências libertárias, aquela que foi realizada por Paul Robin no orfanato
de Cempuis (França), entre 1880 e 1894, foi dinamizada no sentido de dar uma formação
integral às crianças nos domínios psíquico, físico e mental (15). Esta experiência, embora
estivessse enquadrada institucionalmente no sistema escolar público da França,
fundamentou-se numa perspectiva educacional e pedagógica libertária que Paul Robin
protagonizou durante toda sua vida de professor. Os constrangimentos estruturais e
institucionais impostos pelo meio ambiente dessa experiência não impediu que o orfanato
de Cempuis reorientasse a educação e a pedagogia no sentido das crianças viverem o
espaço-tempo da escola num clima de liberdade, de criatividade e de espontaneidade. A
educação física, intelectual e moral constituiam as bases de formação das crianças, desde a
infância até à adolescência. O corpo era sujeito e objecto de uma aprendizagem baseada em
conhecimentos naturais e espontâneos e eram conjugados com jogos lúdicos.
Nestes termos, em 1904, sob auspícios de Sebastien Faure é criada uma escola denominada
A Colmeia, em Rambouillet (França). Em Rambouillet, não só foi dinamizado uma
aprendizagem de conhecimentos manuais e intelectuais numa perspectiva integrada, como,
ainda, todo esse conhecimento estava harmonicamente correlacionado com as necessidades
de produção, de consumo e de educação da cooperativa integral A Colmeia. Na medida em
que persistia uma interligação entre produção, consumo e educação, os aspectos
organizacionais e pedagógicos eram estabelecidos mediante decisões e relações sociais de
características autogestionárias e libertárias.
Francisco Ferrer foi sem dúvida alguma uma figura proeminente no domínio da luta por
uma educação e pedagogia de essência libertária. Através da sua acção persistente criou um
modelo de Escola Moderna que teve grandes repercussões históricas na Espanha e, em
menor grau, noutras partes do mundo: Brasil, Portugal, Suissa, Holanda, etc. Com intenções
explícitas de lutar contra a ignorância e o analfabetismo endémico que perpassava a
Espanha, Francisco Ferrer ao desenvolver a sua perspectiva racionalista e laica de ensino,
depressa encontrou grandes resistências e oposição por parte da Igreja Católica que tinha
uma influência clerical hegemónica sobre o sistema educacional e pedagógico espanhol.
Sem pôr em causa a sua essência libertária, o que singularizava, porém, a força da acção da
Escola Moderna era o seu carácter laico e racional (17). Em uma sociedade, como era o
caso da Espanha de então, modelada espiritual e físicamente pelo poder despótico do ensino
clerical da Igreja Católica, criar e dinamizar um projecto educacional e pedagógico
libertário por todas as regiões de Espanha, revelava-se, no mínimo, um perigo e uma
afronta para todos os poderes instituídos: Estado, burguesia e Igreja. No fundo, era um tipo
de escola que procurava fazer da educação e da pedagogia um instrumento de
desenvolvimento humano das crianças e dos adultos numa perspectiva racionalista e ateia e
simultaneamente criar as bases emancipalistas das classes trabalhadoras e do povo em
geral.
Não obstante saber das diferenças subsitentes entre essas experiências que foram objecto de
análise, todas elas, no entanto, procuraram e procuram extinguir ou superar os factores que
estão na base dos constrangimentos e na negação da emergência de um projecto
educacional e pedagógico fundamentado na liberdade, espontaneidade, criatividade e
responsabilidade dos indivíduos, sem que para tal haja necessidade de amos ou senhores ou
de qualquer poder ou autoridade exteriores a esse projecto.
4. Actualidade da pedagogia autoritária e hipóteses históricas para a pedagogia libertária
Asim quando, hoje, tentamos descortinar o tipo de ensino que é ministrado pelas diferentes
instituições escolares, torna-se, quase impossível, analisá-lo exclusivamente como
expressão genuina dos interesses e necessidades dos indivíduos e grupos que o asssimilam,
nem conseguimos vivê-lo e pensá-lo como algo neutral ou abstracto. Na generalidade dos
casos, o tipo de ensino ministrado reflecte as necessidades de desenvolvimento cultural dos
indivíduos que compõem uma dada sociedade e, por outro lado, serve de padrão de
instrução e de veiculação de saberes múltiplos que se adequam à produção e reprodução da
sociedade em que o mesmo se insere. Em face desta realidade, existe um tipo de educação
que tem por função o desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos e, por outro lado, a
função de aprendizagem sócio-cultural, polí;tica e económica no quadro de uma sociedade
específica.
Esta identidade racional-instrumental, que existe entre o tipo de ensino ministrado x=saber
do indíduo x=profissão x= lugar na escala da estratificação social x, está, no entanto, a
sofrer uma grande transformação. Nem o tipo de ensino coincide exactamente com as
necessidades funcionais e de regulação do mercado, do Estado e da sociedade em geral,
como inclusivé o que se aprende nas escolas, liceus e universidades não se identifica com a
maioria das expectativas racionais e instrumentais dos indivíduos nos múltiplos domínios
da sua articulação com vida de todos os dias na sociedade. Não funcionando plenamente
este tipo de ensino racional-instrumental, assiste-se ao desenvolvimento de fenómenos que
originam a desintegração social .
As relações sociais entre alunos e funcionários também passam por mecanismos relacionais
de poder. É no poder de decisão burocrático-administrativo que se observa expressivamente
o poder dos funcionários sobre os alunos e, muitas vezes, sobre os próprios professores. As
relações de poder entre professores, alunos e funcionários, na medida em que são
atravessados por fenómenos de dominação, geram um conjunto de conflitos quando os
processos comunicacionais e de decisão relacionados com a aprendizagem de
conhecimentos ocorrem nas instituições escolares. É evidente que o exercício do poder
formal legitima um tipo de autoridade que se manifesta na aplicação de uma pedagogia
autoritária. A codificação e a descodificação das linguagens inerentes aos múltiplos saberes
veiculados pelos professores, e que são objecto de percepção por parte dos alunos, não
permitem que as potencialidades cognitivas e físicas dos alunos se exprimam num clima de
liberdade, criatividade, espontaneidade e responsabilidade. Por outro lado, a emergência de
fenómenos de contestação e de avaliação do conteúdo e formas das mensagens transmitidas
pelo professor dificilmente ocorrerão porque não lhes é permitido reequacionar ou sequer
reformular erros ou distorsões durante o processo de aprendizagem de conhecimentos.
A mediação funcional dos novos meios de comunicação que podem ser objecto de
utilização no acesso à informação e ao conhecimento relacionado com os múltiplos saberes
potenciou e transformou as capacidades e possibilidades relacionais dos indivíduos a todos
níveis: gestão e controlo das mensagens recebidas e emitidas; velocidade e distâncias
espacio-temporais e seus significados simbólicos através das mensagens recebidas e
emitidas; heterogeneidade e sínteses sócio-culturais das mensagens transmitidas; mudanças
no processo de percepção cognitiva e adaptações diferenciadas do corpo e da mente
humana, etc.
Finalmente, o projecto educacional e pedagógico libertário pode ser visto como uma base
de alternativa mais ampla face à realidade de anomia e de desintegração social que subsiste
na articulação das comunidades locais e regionais com os sistemas de representatividade
formal corporizadas na centralização e burocratização do Estado, nos grandes aglomerados
urbanos e na própria sociedade. Enquanto projecto de vida autogestionário e comunitário
integrado, a possibilidade de construir projectos educacionais e pedagógicos numa
perspectiva libertária nos espaços comunidades locais e regionais, seria sem dúvida um
bom antídoto para começar a superar as contradições e antagonismos que persistem no
modelo educacional e pedagógia autoritário capitalista.
(1) PAROZ, Jules, História universal da pedagogia, Porto, Livraria Figueirinhas -Editora,
1908.
(4) DURKHEIM, Emile, Textes - fonctions sociales et institutions, Paris, Minuit, 1975; e
Divisão do trabalho social (2 tomos), Lisboa, Presença, 1989 (3ª edição).
(5) FOUREZ, Gerard, Eduquer - école, éthique, sociétés, Bruxelles, De Boeek Université,
1991.
(7) BOUDON Raymond, L'inégalité des chanches - la mobilité sociale dans les sociétés
industrielles, Paris, Armand Colin, 1973.
(14) KROPOTKINE, Pierre, Champs, usines et ateliers, Paris, Stock, 1910; e À gente nova,
Lisboa, Delfos, 1974.