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Sobre Igualdade: Perspectivas Bíblico-Teológicas

© Vinoth Ramachandra, 2004


(I COBPEC e AIPESC IV)

Começo com as palavras de um eminente historiador na área de economia,


R.H. Tawney, também um cristão comprometido, sobre as escolas privadas na
Inglaterra (curiosamente denominadas ‘escolas públicas’): ‘elas são, ele disse,
ao mesmo tempo um gigante educacional e um grave infortúnio nacional. Elas
são educacionalmente falhas, visto que mesclar estudantes de origens sociais
diferentes é parte importante da educação de jovens. É também socialmente
desastroso, por que esta, mais do que qualquer outra causa isolada exceto o
próprio capitalismo, perpetua a divisão da nação em classes nas quais um é
praticamente ininteligível para o outro.’1

Por que Teologia?

Para muitos pensadores da tradição intelectual e política ocidental, o conceito de igualdade é um


axioma moral fundamental. Não precisa ser defendido, pois é o ponto inicial e não a conclusão de
uma linha de raciocínio de cunho moral. Eles concordariam com os autores da Declaração de
Independência norte-americana (1776) que afirmaram: ‘Nós acreditamos que essas verdades são
incontestáveis, que todos os homens foram criados iguais...’ (mesmo que provavelmente evitassem
a linguagem –tão importante- da criação). Apesar dos autores da primeira Constituição dos Estados
Unidos não terem incluído mulheres e negros na definição “todos os homens”, a maioria dos
americanos e europeus simplesmente acredita que a igualdade entre homens e mulheres seja um fato
incontestável. No entanto, quando solicitados a explicar o que significa o conceito de igualdade,
suas respostas são vagas. Ronald Dworkin argumenta que igualdade é um princípio fundamental
pois não precisa ser justificado. O princípio de igualdade é ‘tão fundamental, eu penso, para admitir
qualquer defesa básica. Parece improvável que ele possa dar origem a um princípio de moralidade
política mais fundamental e abrangente que seja mais amplamente aceito. Nem pode ser
determinado por meio de um ou outro método de argumentação popular na teoria política, pois estes
já têm como pressuposto algum conceito particular de igualdade.’2 Conseqüentemente, a afirmação
de que os governos têm por dever se preocupar e respeitar a todos igualmente é redundante.

Ao fazermos uma retrospectiva histórica e olharmos para outras culturas, fica evidente o fato de que
o conceito de igualdade entre os seres humanos não foi sempre considerado algo positivo. Na
verdade, essa sempre foi a visão de uma minoria. Considerar a desigualdade como algo inaceitável,
ou mesmo repugnante, que precisa ser remediado, é uma pressuposição cultural que só faz sentido
se lembrarmos da grande influência da tradição bíblica nas sociedades ocidentais ao longo de
muitos séculos. Nietzsche via essa conexão com sua perspicácia usual, denunciando o conceito de
igualdade como imoral e perigosa (a ‘moralidade de massas’) e conectando-o ao ressentimento de
cristãos fracos e ineficientes que aspiravam, mas não alcançavam, o status da classe dominante.

No pensamento hierárquico, os seres humanos são fundamentalmente desiguais. Portanto, alguns


recebem poder e privilégios enquanto outros não. Alguns seres humanos são inerentemente
superiores aos outros, seja por determinação da natureza ou por decreto divino, e, portanto,
designados para governar sobre os outros. Foi assim que Platão e Aristóteles justificaram a
1 R. H. Tawney, Equality, London: Allen & Unwin, 1964, p.151
2 R. Dworkin, ‘In Defense of Equality’ in Richard J. Arneson (ed.) Liberalism, vol.3 (Hants: Edward Elgar, 1992) p.537
2
desigualdade, explicando que algumas pessoas deveriam governar e outras obedecer: porque
algumas pessoas são escravas e outras são livres por natureza. No subcontinente indiano,
argumentos semelhantes foram usados pelos hindus brâmanes para justificar sua superioridade na
sociedade indiana e por muitos estadistas britânicos do século dezenove para justificar seu império.
Em muitas partes da Ásia, sob a contínua influência de fortes tradições religiosas não-cristãs, se
aceita como fato incontestável a desigualdade, e não a igualdade. Sistemas de crenças religiosas
contribuem grandemente para isto ao argumentar (ao contrário de tradições judaico-cristãs) que este
é o desenrolar justo de um vasto processo cósmico. Em contraste, o pensamento ocidental moderno
‘problematizou’ a desigualdade. Esta se tornou, de acordo com Ralf Dahrendorf (um ex-diretor da
Escola de Economia de Londres) o assunto principal da sociologia moderna e a chave para a
história da sociologia.3

No pensamento igualitário, os seres humanos são intrinsecamente iguais, portanto ninguém recebe
status ou privilégios diferenciados. Entretanto, como é necessário que alguns detenham poder e
exerçam autoridade, isto só pode ser justificado se for considerado como uma responsabilidade a ser
exercida no nome e no interesse de todos. ‘O ideal da igualdade,’ ressalta o teólogo social Duncan
Forrester, ‘assombra qualquer cultura que tenha sido modelada ou influenciada pelo cristianismo.’ 4
Ele nos lembra que, se a linguagem teológica da Declaração de Independência norte-americana
fosse removida, a argumentação da Declaração sobre esse ponto crucial iria perder o sentido. Nós
não apenas nascemos iguais, nós fomos criados iguais pelo Deus Criador que nos dotou de direitos.
A linguagem nela utilizada, assim como em muitos documentos iluministas, é universal e teológica:
parasitária do mesmo discurso teológico que quer marginalizar. Como Forrester observa, ‘Tem um
sentido que seus autores originais não reconheceram. Um fantasma teológico que assombra as
engrenagens. E foi para ele, assim como diretamente para a Bíblia, que Martin Luther King
recorreu com êxito dois séculos depois durante o movimento dos direitos civis.’5

É verdade que há muitas coisas na Bíblia que parecem ser contraditórias, e que serviram como
esteio para atitudes e estruturas hierárquicas opressoras ao longo da história ocidental. Entretanto, o
eixo dominante da narrativa bíblica vai numa direção de pensamento igualitária que tem por função
especial a crítica das relações de privilégio. A tendência do pensamento bíblico, argumenta Richard
Bauckham, ‘não é defender e sim questionar as estruturas hierárquicas na sociedade humana, e as
imagens bíblicas do domínio de Deus não tem a função de legitimar a hierarquia humana, e sim
relativizá-la e desconstruí-la.’6

Assim, mesmo quando a Bíblia descreve a Deus usando figuras de autoridade que são masculinas e
hierárquicas – Senhor, Rei, Pai –a maneira como a linguagem é usada é subversiva às hierarquias
humanas. Chamar a Deus de Rei é dizer que todos os seres humanos são igualmente sujeitos a Ele.
Chamá-lo de Pai é dizer que todos os seres humanos são igualmente filhos de Deus.

Bauckham mostra que essa oposição à hierarquia assume duas formas diferentes no Velho e no
Novo Testamento. A primeira é uma rejeição radical e uma desconstrução total das estruturas
hierárquicas e a demanda por estruturas igualitárias e relacionais no lugar da anterior. A segunda é
uma aceitação pragmática e provisória de tais hierarquias, a fim de transformá-las de dentro em
direção ao alvo último de igualdade. Estratégias diferentes unidas por um alvo em comum.

3 Essays in the Theory of Society (London: Routledge, 1968) p.152


4 Duncan B. Forrester, On Human Worth: A Christian Vindication of Equality (London: SCM Press, 2001) p.109
5Ibid.
6Richard Bauckham, “Egalitarianism and Hierarchy in the Bible”, in God and the Crisis of Freedom: Biblical and
Contemporary Perspectives (Louisville: Westminster John Knox Press, 2002) p.118
3

2. Antigo Testamento

O ensino de que os seres humanos ocupam um lugar especial dentre todas as criaturas de Deus por
apenas eles serem a imagem de Deus na terra (Gen. 1:26,27), permeia toda a literatura bíblica
começando pela história inicial da criação. A imagem de pedra ou metal que um rei antigo erigia era
o símbolo físico de sua soberania sobre um território em particular. Esta o representava para os seus
servos. Se qualquer um desfigurasse ou danificasse uma imagem do rei, aquela pessoa estava se
rebelando contra a autoridade daquele rei. Aqui, na narrativa bíblica da criação, homem e mulher
são quem representam a Deus na terra. O que significa que a maneira como tratamos outro ser
humano é um reflexo de nossa atitude para com o Criador. Desprezar o primeiro é insultar o
segundo (cf. Prov. 14:31; Tg. 3:9).

A sociedade babilônica, assim como as civilizações mesopotâmica e egípcia, era estruturada de


maneira hierárquica. No topo da pirâmide social estava o rei que, conforme acreditava-se,
representava o poder do mundo espiritual. Logo abaixo dele vinham os sacerdotes que
compartilhavam a função mediadora do rei, mas em um grau menor. Abaixo destes estavam os
burocratas, os mercadores e os militares. A base da pirâmide era constituída por camponeses e
escravos. A ordem sócio - política era legitimada religiosamente pelos mitos da criação dessas
sociedades; que afirmavam que as classes inferiores de seres humanos foram criadas pelos deuses
para serem seus escravos, para liberá-los do trabalho manual. Já que o rei representava os deuses na
terra, servir ao rei era servir ao deuses. Conseqüentemente, o meta-narrativa revolucionária do livro
de Gênesis solapa a ideologia da realeza que era tão disseminada. ‘Democratiza’ a ordem política.
Todos os homens e mulheres são chamados para representar o reino de Deus na terra.

Além disso, a igualdade entre seres humanos não é uma característica empírica, nem uma conquista
humana e sim uma igualdade relacional. Homens e mulheres foram feitos para serem amados. Ao
amá-los de maneira incondicional, Deus deposita neles um valor infinito e portanto igualitário. A
imago Dei é manifesta em relações de amor, solidariedade e igualdade. Na presença de outro ser
humano eu me encontro na presença de um mistério que inspira reverência e admiração, não
importando o quão destituído,necessitado ou deficiente aquele outro ser humano possa ser. Jó baseia
sua magnífica ética de solidariedade humana no fato da família humana ser criação do Pai:

‘Se neguei justiça aos meus servos e servas,


quando reclamaram contra mim;
que farei quando Deus me confrontar?
Que responderei quando chamado a prestar contas?
Aquele que me fez no ventre materno não os fez também?
Não foi ele que nos formou, a mim e a eles,
No interior de nossas mães?’ (Jó 31:13-15)

No Velho Testamento, o livro de Êxodo narra um evento que incontestavelmente expressa


igualdade, o evento que tornou Israel o povo de Iavé. É a memória da libertação da escravidão e do
genocídio que une e anima as tradições de fé de Israel. O Deus do êxodo emancipou os escravos do
Faraó e, desse modo, se identificou com aqueles situados na base da pirâmide hierárquica da
sociedade egípcia. Iavé era um Deus de escravos libertos, e portanto, Israel recebeu um ideal de
sociedade humana na qual eram irmãos e irmãs uns dos outros (ex., Ex. 23:9; Lev.19: 33-34, 25: 42;
Deut. 24:18). Tal povo não deveria nunca retornar ao tipo de hierarquia social opressiva da qual
4
foram libertos. Sua nova comunidade política deveria se caracterizar pela igualdade de uma família
e deveria assegurar que ninguém fosse excluído desta.

No período pré-monárquico de Israel, isso levou a uma igualdade econômica entre os clãs
familiares. Apesar de estranha para esses tempos modernos, era simplesmente o reconhecimento de
que a igualdade genuína requer uma base econômica, já que poder e privilégio geralmente vêm da
acumulação de riquezas. Na sociedade agrária do início de Israel, a auto-suficiência econômica
individual estava fora de questão. A unidade econômica era o grupo familiar, e era essencial que
cada família tivesse sua própria porção inalienável de terra, porção suficiente para subsistência. A
lei agrária israelita foi elaborada a fim de assegurar que a terra fosse mantida na família que a tinha
recebido por herança. Se as pessoas fossem obrigadas, por causa de dívidas, a vender suas terras,
havia a possibilidade de redenção desta por seus parentes. E no ano do Jubileu, toda terra deveria
voltar à família original.

A sensibilidade ao peso da dívida era, sem dúvida alguma, reflexo da experiência de Israel como
povo no Egito, antes de sua libertação por Iavé. Num tempo de fome extrema, todos os que viviam
no Egito vieram a José dizendo: ‘uma vez que nossa prata acabou...nada mais nos resta para
oferecer, a não ser nossos próprios corpos e as nossas terras...Compra-nos, e compra as nossas
terras, em troca de trigo, e nós, com as nossas terras, seremos escravos do faraó.’ A dívida os tornou
escravos; e a escravidão foi legada às futuras gerações. A desigualdade então se tornou estrutural e
permanente.

O foco no núcleo familiar, entretanto, não significava negligenciar os indivíduos. Mesmo num
sistema de propriedade da terra familiar e inalienável, algumas pessoas não teriam capacidade de se
sustentar e seriam excluídas da estrutura econômica familiar. Na Lei Mosaica, então, estavam
previstas várias maneiras de prover o sustento de tais pessoas. Os grupos paradigmáticos
freqüentemente mencionados na lei são as viúvas, órfãos e estrangeiros. A sociedade, como um
todo, era responsável por eles. No cuidado com eles, Israel manifestava o cuidado especial de Iavé
por pessoas em situação vulnerável (Deut. 10:17-19). Na medida em que seguiam a direção dada
por Iavé, Israel comunicava uma visão singular de Deus para o resto do mundo. Entre os vizinhos
de Israel, e certamente entre as culturas antigas do mundo (incluindo as civilizações indiana,
chinesa, africana e sul-americana), o poder dos deuses era manifesto através do poder de certos
homens. Eram os sacerdotes, os reis e os guerreiros que incorporavam o poder dos deuses. Opor-se
a eles era o mesmo que rebelar-se contra os deuses. Mas aqui, na visão antagônica de Israel, são o
‘órfão, a viúva e o estrangeiro’ com quem Iavé se identifica. Seu poder é exercido na história
visando fortalecê-los. O termômetro da saúde espiritual de Israel como sociedade seria a maneira
como eles tratavam o pobre e o vulnerável presentes em seu meio.

O fato singular de Iavé ser o rei de Israel estava ligado ao fato dEle ser o dono da terra que Israel
recebeu por herança. Entre os vizinhos de Israel, os reis eram comumente considerados os
proprietários de toda a terra sobre a qual eles governavam e, conseqüentemente, tinham o direito de
cobrar impostos daqueles que trabalhavam na terra (Quando Acabe confiscou a terra de Nabote -1
Reis 21- ele estava seguindo um padrão típico de antigas monarquias. Entretanto, por causa de sua
ação ele entrou em conflito direto com Iavé) No caso de Israel, como Deus era o rei que possuía a
terra, parecia não haver lugar para um rei humano. Conseqüentemente, seguiu-se a ausência de
outro estrato social de riqueza e privilégio que a monarquia demandaria.

No relato da origem da monarquia em 1 Samuel 8, quando Israel desejou um rei para ser ‘à
semelhança das outras nações’ (8:5), rejeitando, portanto, seu chamado para ser um povo distinto
sob a direção única de Iavé, Samuel falou tudo o que um reinado humano implicaria: o crescimento
5
de uma elite militar burocrática que ficaria rica às custas do campesinato (8:11-17). No clímax de
seu discurso ele diz: ‘vocês mesmos se tornarão escravos dele’ (8:17), Samuel sugeriu que Israel
estaria, no fim das contas, revertendo o êxodo, voltando para o governo escravizante de outro faraó.
Na passagem acima, nós vemos uma advertência profética do que a sociedade israelita poderia se
tornar: o crescimento de uma classe de ricos proprietários de terras, o escoamento de recursos do
campesinato para sustentar a elite, o empobrecimento de muitos dos camponeses, a desequilíbrio
radical de status e riquezas.

Já que estruturas políticas estáveis que não fossem monárquicas ainda não haviam sido inventadas,
não é surpreendente que a monarquia fosse aceita na maior parte do período do velho testamento.
Mas era aceita com algumas ressalvas. Em outras palavras, a ‘segunda estratégia do igualitarismo
da antiga Israel’ enunciada por Bauckham entra em cena. Enquanto a primeira estratégia se opõe à
monarquia humana como incompatível com o governo único de Iavé, a segunda estratégia tenta
tornar a monarquia em algo que esteja a serviço do povo de Iavé (cf. 1 Reis 12:7). O que envolve a
relativização das pretensões do rei em ter poder absoluto: em Israel, o rei não era como os outros
reis.

Desse modo, o salmo 72, um salmo de coroação, intercala orações pelo rei que deveria cumprir a
justiça de Deus para com o seu povo com orações pela prosperidade do seu reinado e reino. A
prosperidade está condicionada à justiça, e como Deus é justiça, significa justiça para o pobre e
necessitado, libertação do oprimido, suporte para o fraco e vulnerável (Sl. 72:2, 4, 12-14) Tendo o
rei como exemplo israelita da imitação do caráter de Iavé, então a monarquia poderia se tornar um
foco de esperança para que houvesse justiça para o pobre. O ideal do Salmo 72 se tornou o critério
pelo qual os profetas avaliavam os reis de Judá e Israel. Encontrou muitos deles em falta, e
pronunciou o julgamento de Deus sobre eles. Por exemplo, Jeremias elogiou Josias por defender a
causa do pobre e do necessitado, mas condenou seu filho Jeoaquim por este pensar que ser um rei
consistia em fazer grandes projetos arquitetônicos às custas de seu povo (Jer. 22: 13-17). Não é por
acaso que esse ideal monárquico tenha se tornado na esperança messiânica de um rei que faria
justiça para o necessitado (Is.11:4).

3. Novo Testamento

A vertente igualitária do Novo Testamento se baseia, inicialmente, na proclamação e instauração do


Reino de Deus por Jesus que incluiu todos os que eram hostis a Deus e ao próximo, esquecidos e
excluídos pelo pecado humano, na nova comunidade de um Israel renovado. Tem o seu clímax na
convicção de que ‘Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores. (Rom. 5:8), de tal
modo que devo, agora, valorizar o meu próximo por ser alguém por quem Cristo morreu.

Jesus faz uso da tradição igualitária radical do início do povo de Israel, mas redefine o que é
necessário para ser tornar membro da comunidade renovada de seus discípulos. Como filhos de um
Pai celestial, eles não devem mais considerar outro ser humano como seu pai (Mat.23: 9; Mc.3:35;
10:29-30). A paternidade é excluída porque representa a autoridade hierárquica na família; e na
família de Deus, a autoridade patriarcal pertence exclusivamente a Deus.

Quando Jesus ilustra o que significa pertencer ao reino de Deus, ele tomou como exemplo aqueles
que tinham menos status na sociedade em que vivia. Num mundo onde as crianças não tinham
direitos legais, posses econômicas ou importância social, ele as faz de modelo para aqueles que
querem receber o reino de Deus (Mat.18: 1-4; Mc. 10: 13-16). Quando, na tarde da crucificação, ele
lava os pés de seus discípulos como um escravo doméstico, e requer que eles façam o mesmo uns
aos outros (Jo. 13:3-15), ele torna os escravos em paradigmas de liderança no reino de Deus. Ele
6
declara que os pobres são abençoados, pois a eles pertence o reino (Mat.5:3; Lc. 6: 20). Se o reino
de Deus pertence a pessoas como escravos, pobres e criancinhas, então outros podem entrar no
reino apenas ao aceitarem a mesma falta de status.

O evangelho cria uma nova comunidade humana que é parte do Evangelho a ser proclamado. Os
capítulos iniciais da epístola de Paulo aos Efésios são uma exposição da cruz de Cristo como centro
da história, como o meio pelo qual a ação de Deus ao oferecer paz a um mundo caído é
demonstrado. É através da cruz que ambos judeus e gentios são feitos um – com Deus e com seu
próximo. A morte de Cristo destrói a ‘barreira, o muro de inimizade’ (2:14b) assim, uma ‘nova
humanidade’ que é criada em seu lugar pode agora se ‘reconciliar com Deus... em um corpo, por
meio da cruz’ e deste modo ter ‘acesso ao Pai, por um só Espírito’ (2:15ff). A cruz traz todos os
seres humanos, homens e mulheres, ricos e pobres, religiosos e não religiosos de igual modo
perante Deus. É aos pés da cruz que todos, sem exceção, estão expostos como pecadores
merecedores da ira de Deus. Mas é também aos pés da cruz, que todos, sem exceção, são achados
como objetos do amor de Deus, que oferece o perdão e a oportunidade do recomeço. Essa é a
política igualitária da graça.

Essa igualdade foi uma das características de contra-cultura mais marcantes do início do
cristianismo, sucintamente expresso em Gálatas 3:28, que declara que as típicas relações de
desigualdade e privilégio (judeu/grego, escravo/livre, homem/mulher) não tem validade em Cristo
(cf. 1 Cor.12:13; Col.3:11). Tanto o batismo quanto a ceia do Senhor simbolizam a igualdade e
solidariedade de todos aqueles que se colocam à disposição da graça re-criadora do Senhor.
Desmond Tutu, quando era Arcebispo de Johannesburgo, observou: ‘Quando eu me ajoelhei no
altar, durante a missa das 9:30h, com incenso, sinos e tudo o mais, observando uma multidão
multirracial vindo em direção ao altar para receber a comunhão, o pão e o vinho ministrados por
uma equipe composta por clero e leigos e um coral multirracial, nesta África do Sul corroída pelo
apartheid, lágrimas de alegria rolavam, ocasionalmente, pelas minhas bochechas, lágrimas de
alegria por saber que Jesus Cristo de fato destruiu o muro de inimizade, que aqui estavam os
primeiros frutos dessa comunidade escatológica bem diante de meus olhos.’7

Os cristãos são comumente descritos na epístolas paulinas como ‘irmãos e irmãs’ uns dos outros.
Todos os discípulos de Jesus são chamados a imitar a maneira de se relacionar com os outros que o
exemplo de Cristo em sua encarnação nos deu (Filip. 2:3ff.). A imagem do ‘corpo’ que Paulo usa
para retratar a Igreja em 1 Cor.12 deixa claro que diferenças de funções e dons não significam
diferença de status ou valor. Pelo contrário, é o membro mais fraco do corpo que deve ser
valorizado e honrado (22-24), e todos se identificam uns com os outros: ‘Quando um membro
sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram
com ele’ (1 Cor. 12:26). A coleta de Paulo entre as igrejas gentias para socorrer aos cristãos da
igreja em Jerusalém ( 2 Cor. 8 & 9) tinha por propósito expressar a solidariedade entre judeus e
gentios na nova família de Deus e assegurar que houvesse justiça econômica (cf. 2 Cor. 8:13,14).
Uma verdadeira comunhão (koinonia) implica em compartilhar financeiro e em generosidade, de tal
maneira que um não tenha superabundância enquanto o outro passa necessidade.

A igualdade da nova família da fé estava relacionada às estruturas hierárquicas das velhas famílias
greco-romanas, às quais muitos de seus membros ainda pertenciam. Está claro que isso era uma
fonte considerável de tensão na igreja primitiva do período do Novo testamento. As estruturas
hierárquicas na família eram consideradas essenciais à ordem pública e, apesar do evangelho de
Cristo ser subversivo, lidar de maneira satisfatória com as implicações sociais do evangelho dentro
das famílias cristãs, e ainda mais na sociedade geral na qual a igreja estava inserida, considerada
7 Desmond Tutu, Hope and Suffering (London: Fount, 1983) pp.134-5
7
uma seita politicamente e socialmente insignificante, mostrou-se um grande desafio pastoral. Os
cristãos devem ter se sentido muito pressionados a não serem vistos como desordeiros. Eles foram
de fato acusados de destruirem famílias, nos casos em que, por exemplo, a esposa se tornou cristã e
seu marido não ( cf. 1 Cor. 7: 13-14; 1 Pe.3: 1-2). Em tais casos, a fé cristã levou a um ato de
insubordinação: uma esposa rejeitar os deuses de seu marido em obediência a uma fé desaprovada
por seu marido. É compreensível, então, que os cristãos, que não podiam evitar a desaprovação
pública de tais brechas na ordem hierárquica, desejassem reafirmar o quanto fosse possível, a
estrutura hierárquica geral das relações familiares.

Outra estratégia foi elaborada, como no velho testamento, na qual a hierarquia não foi rejeitada
desde o início mas sim relativizada e transformada. A estratégia adotada nos chamados ‘códigos
familiares’ de Colossenses (3:18-41), Efésios (5:21-6:9), e 1 Pedro (2:18-3:7), diz respeito aos três
principais papéis exercidos por cristãos em seus contextos familiares contemporâneos: maridos e
mulheres, pais e filhos, mestres e escravos. Todos os três relacionamentos eram vistos pela
sociedade em geral em termos fortemente hierárquicos: o marido, o progenitor e o senhor de
escravos detinham a autoridade; a esposa, a criança e o escravo eram subordinados a eles.

Nas cartas do novo testamento, os conselhos dados ao parceiro superior de cada relacionamento
hierárquico familiar, relativizam a hierarquia destes ao fazer referência à autoridade de Deus ou de
Cristo. Aos senhores de escravos é dito que não ameacem seus escravos, ‘uma vez que vocês sabem
que o Senhor deles e de vocês está nos céus’ (Ef.6:9; cf. Col.4:1). A autoridade de Cristo relativiza o
senhorio humano. Também é necessário assegurar que os relacionamentos hierárquicos operem
benevolentemente e de maneira benéfica, não de maneira opressiva ou exploradora. Portanto, onde
se diz às esposas para serem submissas a seus maridos, é dito aos maridos para não mandarem em
suas esposas e sim amá-las (Col.3:19; Ef.5:25; 1 Pe.3:7); e no caso, a natureza do amor que se
requer é desenvolvido através de uma comparação elaborada com o amor de Cristo pela igreja
(Ef.5: 25-33). Assim como no velho testamento, o reinado humano pode ser aceito conquanto que
servisse aos propósitos do governo de Deus, a autoridade do marido sobre a esposa, então, precisa
seguir o exemplo de Cristo de amor por seu povo.

É muito interessante a tentativa de transformar relacionamentos de dominação e subordinação em


relacionamentos de mútua submissão. O código familiar em Efésios 5:21-6:9 coloca todos os
relacionamentos hierárquicos sob a exortação introdutória: ‘Sujeitem-se uns aos outros, por temor a
Cristo’ (5: 21). Escravos são instruídos a servir ‘aos seus senhores de boa vontade, como servindo
ao Senhor, e não aos homens (6:7), senhores são chamados a tratar ‘seus escravos da mesma forma’
(6:9). O significado único é: servi-los como escravos assim como eles os servem. Essa é uma
transformação radical da hierarquia, que, se fosse seguida de forma consistente, levaria a segunda
estratégia além e destruiria a própria estrutura hierárquica.

4. Traduzindo Igualdade em Ação

Nós sugerimos que a crença na igualdade humana não é óbvia, nem é derivada de observações
empíricas ou de introspecção, mas é fruto de convicções teológicas fundamentais. Em particular a
de que Deus atribui valor imenso aos seres humanos e os ama assim como um pai ama sua família.
As grandes verdades bíblicas da criação, encarnação e ressurreição capacitam e fortalecem os seres
humanos em face ao sofrimento e opressão. ‘Quando perguntaram a um líder cristão argentino, do
nordeste da Argentina, sobre o que o evangelho tinha feito por seu povo, ele respondeu que o
evangelho os tinha capacitado a olhar uma pessoa branca direto nos olhos.’8
8 J. Andrew Kirk, What is Mission?: Theological Explorations (London: Darton, Longman and Todd, 1999) p.71
8

Quando a sociedade não entende por que os seres humanos possuem um grande valor intrínseco,
então é pouco provável que os tratarão com respeito. E quando uma sociedade em geral não mais
acredita no valor intrínseco do ser humano, então gastar recursos honrando seus membros ‘inúteis’
para assegurar a todos eles certos benefícios –seus ‘direitos humanos naturais’- não fará nenhum
sentido e iss não ocorrerá sem resistência.

Um aspecto importante da missão cristã é apresentar essa visão única de humanidade em meio a
todas as outras definições de humanidade abundantes na mídia de massas, no mundo universitário e
empresarial. É preciso reconhecer que o ser humano tem valor em sua essência, que este não é nem
concedido (ex. pelo estado) nem pode ser levado embora por outros. Pode apenas ser reconhecido.
Não são ‘commodities’ úteis cujo valor depende do que podem ou não valer no mercado de
trabalho.

Essa visão sobre o valor do ser humano não significa em que todos devem ser iguais em poder,
riqueza, inteligência ou saúde física. Nenhuma sociedade funciona sem papéis sociais
diferenciados. Mas o que importa é como tais diferenças são consideradas, e em particular se elas
servem para construir uma hierarquia social na qual se busca que algumas pessoas se sintam
inferiores a outras. Uma sociedade onde há igualdade de respeito é uma sociedade onde ninguém
precisa humilhar-se ou implorar pelas necessidades básicas da vida, onde mulheres podem andar
pelas ruas de nossas cidades tranqüilamente sem o medo de serem molestadas, onde o ponto de
vista dos empregados é bem recebido e ouvido por seus empregadores, onde patroas e empregadas
domésticas podem fazer as refeições juntas na mesma mesa, onde imigrantes e refugiados não são
explorados por senhorios inescrupulosos, onde o deficiente físico e o idoso tem voz ativa nos
assuntos da comunidade, onde o professor universitário lembra o nome do zelador.

Uma afirmação geral de igualdade estipula em termos bem amplos o tipo de sociedade pela qual
devemos lutar, a direção geral que a política social deve tomar. Ainda que algumas desigualdades
possam ser justificáveis ou mesmo necessárias, elas requerem explicação como desvios da norma.
Uma abordagem integrada ao diferente, entrelaçando formas de desigualdade –econômica, política,
cultural, de gênero, e assim por diante – é necessária. Tratar seres humanos igualmente traduz-se
politicamente em democracia e na salvaguarda dos direitos intrínsecos de todos os seres humanos.

(A) Direitos Individuais

Como seria uma agenda de direitos humanos baseada na Bíblia? Seria fundamental o direito à vida
de todos os seres humanos, um direito que necessariamente garante acesso a todos os recursos que
sustentam a vida. Desde a concepção até a morte, nossa vida é um dom de Deus para ser respeitado
e cuidado por outros em nossa comunidade humana. Esse direito é ameaçado pela pressão de se
abortar fetos com defeitos congênitos e para eliminar homens e mulheres sofrendo com doenças
incuráveis

Os escritos bíblicos, como já vimos, são abundantes em referências que defendem os direitos dos
pobres. Por exemplo, ‘Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de
todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos
necessitados.’ (Prov.31:8-9). Declarar que o pobre tem direito ao sustento implica em que o que
devemos a eles não é simplesmente caridade, e sim, justiça.
9
Esse tema tem sido importante na tradição cristã há já um longo tempo. Ouça, por exemplo a
Basílio de Cesaréia (329-379 D.C.): ‘Não será chamado de ladrão o que rouba as vestes de alguém já vestido, e
alguém que não veste o necessitado apesar de poder fazê-lo não merece o mesmo título? O pão que você armazena
pertence ao faminto; aquele casaco que você guarda em seu armário, ao nu; aqueles sapatos que estão se estragando em
seu armário, ao que não os possui; aquele ouro que você enterrou, ao necessitado. Porque todas as vezes que você teve
condições de ajudar outros, e não o fez, todas essas vezes você fez mal a eles.’9

Ou, Tomás de Aquino (1224-1274): ‘Em casos de necessidade, todas as coisas são de propriedade comum,
então parece não haver nenhum pecado em tomar a propriedade do outro, pois a necessidade as tornou bem comum...
Agora, de acordo com a ordem natural estabelecida pela providência divina, coisas inferiores foram feitas com o
propósito de suprir a necessidade dos homens através delas. Porque a divisão e apropriação de coisas baseadas na lei
humana não excluem o fato de que as necessidades dos homens tem de ser supridas justamente através dessas coisas.
Portanto, o que quer que seja que certas pessoas tenham em abundância é devido ao propósito, pela lei natural, de
socorrer o pobre.’10

Dizer que apenas a necessidade se constitui no direito do homem pobre à comida ou ao tratamento
médico tem profundas implicações pessoais e políticas. Se eu tenho comida em minha casa que eu
não preciso para a minha sobrevivência, mas o meu vizinho está morrendo de fome, então a comida
da minha despensa pertence ao meu vizinho e à sua família, não à mim. Eu roubo quando eu me
recuso a dividi-la com eles. O direito à vida é superior ao direito à propriedade particular.

De modo semelhante, se uns poucos fazendeiros possuem toda a terra arável de uma área e a estão
usando para plantações rentáveis para ricos homens de negócios e não para plantar comida para o
faminto, então os pobres rurais famintos tem o direito dado por Deus de se apropriarem dessas
fazendas a fim de plantar o alimento necessário para seu sustento. Na África, onde mais de trinta
milhões de pessoas estão infectadas com o vírus da AIDS, apenas trinta mil podem pagar pelos
remédios vendidos pelas companhias farmacêuticas, os teólogos da igreja primitiva diriam aos
pobres: ‘É seu direito entrar nessas companhias farmacêuticas e obter os medicamentos para vocês.’
(Não há dúvidas de que isso não seria sábio, assim como não seria sustentável; mas esse é um tema
diferente. Simplesmente o fato de reclamar o seu direito a ter cuidado médico à disposição colocaria
uma enorme pressão em companhias e governos para que propusessem um sistema mais justo de
tratamento médico ao alcance de todos, assim como uma mudança no foco da pesquisa médica a
respeito das necessidades da maioria da população mundial).

Juntamente com os direitos à vida e os meios de sustentabilidade, os autores bíblicos reconhecem o


direito de estar livre da opressão. Assim como o antigo livro de Lamentações nos recorda: ‘negar
a alguém os seus direitos, enfrentando o Altíssímo, impedir a alguém o acesso à justiça; não veria o
Senhor tais coisas?’ (Lam. 3:35-6).

Seria anacrônico tentar ler nos escritos bíblicos os direitos de cidadania como são hoje conhecidos
os ‘direitos humanos’ na lei internacional e em muitas constituições. Pode-se, entretanto, facilmente
demonstrar que o cerne do ensino bíblico nos ensina que tortura, escravidão e punição arbitrária são
universalmente erradas, que nenhum ser humano deve ser coagido à crença correta (por que isso
negaria a autenticidade de tal crença), que liberdade para discordarem e para se reunirem em
assembléia deve ser assegurada, e que todas as leis nacionais e costumes estão sujeitos a uma lei
moral universal, superior. De fato, o desenvolvimento da lei internacional no final da idade média
em diante é um legado direto do ideal da cristandade: refrear governos arbitrários, e lembrar a reis e
governantes que eles estão sujeitos a uma autoridade moral objetiva superior a eles.

9 Quoted in C. Avila, Ownership: Early Christian Teaching (Maryknoll, NY: Orbis, 1983) p.50
10 Summa Theologica, Pt II-II, Q66, Art7, tr.by Fathers of the English Dominican Province (New York: Benziger Bros,
1948)
10

(B) Direitos Coletivos

Encarar seriamente a libertação da opressão nos levará além da discussão de direitos individuais.
Porque de acordo com o entendimento bíblico da pessoa humana, refletimos a imagem de Deus ao
nos relacionarmos. Assim como o Deus triúno é relacional, assim também nós somos pessoas
apenas quando nos relacionamos com outras pessoas. Compartilhamos com outros seres humanos
uma natureza comum que é sempre mediada através de uma comunidade cultural específica. Nós
somos formados em nossa humanidade através de relacionamentos que estão imersos culturalmente.
Nossas vidas são tecidas com outras em famílias, vizinhanças, e comunidades étnicas e religiosas.
Portanto, o indivíduo não pode ser conceitualizado de uma maneira abstrata, atomística e eterna
como tem sido feito na maior parte do pensamento político liberal até recentemente.

É difícil dizer que respeitamos uma pessoa se a tratamos com desprezo ou se menosprezamos tudo o
que lhe molda e lhe dá sentido. Porque um indivíduo se torna indefeso e desprotegido se a
comunidade cultural com a qual ele se identifica está sujeita a ser assimilada por outra, vilipendiada
ou estereotipada de maneira perversa. Assim como foi sob as condições coloniais, o discurso de
direitos individuais não tem valor sem primeiro a comunidade política ter o direito de se auto-
governar. Assim, em muitas situações, o direito de uma comunidade se manter e se reproduzir é
uma pré-condição para o exercício dos direitos individuais. Portanto, se as cartilhas de direitos
humanos não forem percebidas como instrumentos de subjugação por parte dos poderosos, mas sim
como instrumentos para fortalecer os membros fracos e vulneráveis da espécie humana (seu
objetivo original), então nós devemos reconhecer que grupos assim como indivíduos possuem
direitos inalienáveis.

Os direitos humanos existem, portanto, em dois níveis: no nível da comunidade cultural e no nível
do indivíduo. Isso afeta profundamente a maneira como nós entendemos o papel do estado
moderno. Este não pode limitar seu papel ao de proteção dos direitos individuais políticos e civis. O
cumprimento de direitos individuais pode, às vezes, levar a graves injustiças contra comunidades
históricas: como, por exemplo, no caso de mobilidade individual (migração/ assentamento de
colônias) para reservas de minorias nacionais ou povos indígenas que tentam preservar um estilo de
vida pré-moderno.

É impossível (e indesejável, em qualquer caso) codificar os direitos de tal grupo numa cartilha
universal. Cada sociedade multi-cultural precisa inventar uma estrutura política própria que se
adeqüe à sua história, tradições e amplo espectro de diversidade. Não é o caso (como muitos liberais
argumentam) de que os direitos individuais possuam prioridade sobre os direitos coletivos. Isto
depende dos direitos particulares em questão, e da história das relações de grupo naquele contexto
particular. É compreensível, por exemplo, que a Alemanha tenha refreado direitos individuais de
livre discurso ao banir propaganda anti-semítica. Todos os direitos podem ser usados de maneira
incorreta. Assim como os direitos coletivos podem ser usados para oprimir indivíduos, os direitos
individuais também podem ser usados para danificar e destruir comunidades. Alguns direitos
coletivos ameaçam os direitos individuais: por exemplo, o direito de um grupo de obrigar seus
membros a cumprirem determinados códigos morais, ou expulsar seus membros ou negar a eles o
direito de deixar o grupo. Alguns direitos coletivos, por outro lado, protegem e fortalecem os
direitos individuais de seus possuidores porque grupos organizados e comunidades são mais
capazes de defender os direitos de seus membros do que estes o podem fazer de maneira individual.
Por exemplo, o direito de uma comunidade à sua língua natal torna mais fácil que seus membros
também usufruam esse direito, o que seria mais difícil de obter como um direito individual.
11
Quer acreditemos que direitos coletivos específicos (direitos de língua, direitos de auto-governo,
direitos de representação, federalismo e assim por diante) precisam ser adicionados à lista
convencional de liberdades individuais políticas e civis que estão sob o termo ‘direitos humanos’;
quer acreditemos que o conceito teológico de direitos humanos inclui direitos individuais e
coletivos que interagem de maneiras complexas em diferentes situações, precisamos manter ambos
juntos.

Em países pobres, restrições econômicas forçam a identificação de prioridades no cumprimento de


direitos humanos. A maneira pela qual tais direitos são cumpridos, e a prioridade que lhes é dada,
depende de contextos sociais e culturais. Constituições e leis são importantes mas elas mesmas não
podem assegurar uma sociedade onde os direitos humanos são respeitados e exercidos. Como um
relatório recente da ONU colocou: ‘Em muitos contextos, estabelecer direitos legais pode ser a
melhor maneira de fazer cumprir os direitos humanos. Todavia, direitos legais não devem ser
confundidos com direitos humanos- nem deve se supor que os direitos legais sejam suficientes para
o cumprimento dos direitos humanos.’11 O desafio à nossa frente é buscar caminhos para a
promoção dos direitos humanos.

Sempre haverá tensão no cumprimento de tais direitos, ambos individuais e coletivos. Os direitos
humanos são objetivos e universais, mas não são absolutos. Regimes internacionais de direitos
humanos reconhecem isso. O artigo 4 da Aliança Internacional das Nações Unidas sobre Direitos
Civis e Políticos permite, explicitamente, restrições temporárias dos direitos ‘num tempo de
emergência pública em que a vida da nação esteja ameaçada’. Há restrições, entretanto: o artigo
afirma que tais ‘medidas de segurança’ não podem envolver discriminação baseada apenas na raça,
sexo, língua, religião ou origem social, e que a os crimes de assassinato, tortura e escravidão, entre
outros, não podem ser cometidos sob essa prerrogativa. Se governos quiserem argumentar que os
direitos individuais precisam ser restringidos por causa de propósitos econômicos ou políticos, eles
devem garantir que esta seja uma medida provisória; e demonstrar publicamente o quanto esta
restrição assegura um direito mais importante ou assegura esse mesmo direito no longo prazo. Tal
vigilância civil, infelizmente, tem estado em falta, e portanto, o que há de mais essencial, em nossas
nações.

(C ) Redirecionando Recursos

Estima-se que quase metade dos cientistas e engenheiros do mundo estejam hoje envolvidos em
pesquisas ligadas a interesses militares. Isso representa um terrível desperdício de talento humano,
além do desperdício de recursos naturais. Temos agora tecnologia de satélite para esquadrinhar cada
metro quadrado de nosso planeta, mas ainda não somos capazes de oferecer a todas as cidades do
mundo energia elétrica confiável e segura ou um sistema de transporte público livre de poluição.

As nações pobres produzem não apenas matéria-prima para o mundo afluente como também
talentos. Quarenta por cento dos cientistas e engenheiros que trabalham na NASA são do
subcontinente indiano. Um terço de todos os médicos dos EUA também são daquela parte do
mundo. A distribuição desigual da riqueza do globo também determina a natureza dos bens que
serão manufaturados. Uma grande proporção do PIB de nações ricas é dedicado ao consumo de
bens e à produção de tecnologia para produzir esses bens de consumo. A desigualdade de renda nas
nações pobres é gritante. Produtos de consumo high-tech (computadores, filmadoras, telefones
celulares, etc) são usufruídos pelas elites de países onde necessidades básicas de nutrição,

11 ‘Human Rights and Human Development’, Ch.2 of United Nations Human Development Report 2000 (Oxford
University Press, 2000) p.25
12
saneamento e moradia ainda não foram supridas para a grande maioria de seus cidadãos. Desse
modo, apenas uma pequena porção dos recursos do mundo são direcionados ao processamento de
bens de consumo básicos, necessários para a sobrevivência da metade da população mundial
(especialmente de crianças).

De acordo com o relatório de Desenvolvimento Humano da Nações Unidas 2001 (‘Fazendo com
que Novas Tecnologias Trabalhem em Favor do Desenvolvimento Humano’): ‘A pesquisa
financiada pelo governo (pesquisa pública), que ainda é a principal fonte de inovação para o que
pode ser chamado tecnologia em favor dos povos necessitados, está diminuindo em relação à
pesquisa privada. A crescente freqüência de descobertas-chaves patenteadas por instituições
privadas e por universidades de países industrializados- se tornou um obstáculo à inovação, algumas
vezes com custos proibitivos.’12

Universidades prestigiadas ao redor do mundo estão começando a se re-inventar como corporações,


e muitos cientistas pesquisadores desfrutam de um novo status como empreendedores. Mais fundos
são necessários para assegurar um corpo docente se alto nível, para construir novas dependências e
para financiar bolsas de estudos. Os administradores universitários sentem que não há escolha: eles
têm que mudar a maneira de educar seus alunos. Não mais uma educação visando formar cidadãos
democráticos e capacitados; e sim, a produção de pessoal que possa contribuir com o mundo
comercial. Empreendimentos comerciais são, na sua natureza, por dinheiro. Se eles não são
lucrativos, estão fora do negócio. Sua idéia sobre a verdade é puramente instrumental. O
conhecimento é agora mais uma mercadoria a ser negociada.

Derek Bok, ex-presidente da universidade de Harvard, descreve os efeitos danosos dessa


comercialização ostensiva da ciência em seu importante relatório na academia, Universidades no
Mercado de Trabalho.13 As preocupações da pesquisa, ele argumenta, têm se tornado tendenciosas
ao responder questões que são preocupação da indústria e não do público. Pesquisadores que
trabalham para publicar os resultados encontrados, de repente se vêem assinando acordos de
confidencialidade que limitam o que eles podem publicar e quando. Bok cita alguns casos de
pesquisadores de peso que foram coagidos por companhias farmacêuticas que não queriam que os
resultados encontrados fossem publicados –eles tiveram sua competência desafiada, seus métodos
de pesquisa impugnados e o que foi pior, a conivência de acadêmicos e administradores que
estavam na folha de pagamento dessas indústrias farmacêuticas. O sigilo tem minado uma
interação produtiva entre cientistas, levando ao desperdício e ineficiência à medida que os
investigadores são forçados a duplicar o trabalho sigiloso dos outros. Mesmo jornais científicos são
propriedade de editoras e sociedades científicas que recebem grandes quantias advindas de
propaganda de indústria farmacêutica e da venda de conteúdo comercialmente valioso. Os editores
sofrem pressões abertas e sigilosas para adotar posições em favor dessas indústrias.

O que deve ser feito pelos cristãos e por outros que estão preocupados com a integridade e
relevância da pesquisa acadêmica e também com a qualidade e acessibilidade do ensino
universitário aos alunos independentemente de sua posição sócio-econômica?

5. Conclusões

12 United Nations Development Program, Human Development Report 2001 (Oxford and New York: Oxford
University Press, 2001) p.98
13 Princeton University Press, 2003
13

A evidência parece mostrar, argumenta Duncan Forrester, ‘que os seres humanos são mais
propensos a florescer e a prosperar, serem saudáveis e contentes, numa sociedade mais igualitária
do que numa sociedade marcada por profundas e extensas divisões sociais e econômicas. Os seres
humanos são feitos para amar e serem amados. E numa sociedade igualitária, justa e boa, o amor é
possibilitado e encorajado, e o apetite é despertado pelo amor mais profundo que será encontrado no
porvir. Governos e nações são julgadas em como elas respondem às necessidades do mundo, e
particularmente à do fraco, pobre e vulnerável. Para tal julgamento elas se encontram no tribunal do
Filho do Homem.’14

O poder dos costumes que prevaleciam nas sociedades Judaica e Greco-Romana impediram a igreja
primitiva de praticar de maneira consistente o seu próprio ensino. A Igreja cristã tem com
freqüência rendido o evangelho e seus valores ao sabor da opinião cultural corrente. Se vamos
testemunhar a dignidade intrínseca de todos os seres humanos, então devemos recuperar a pregação
e ensino bíblicos em nossas igrejas. E ter nossas mentes e estilos de vida conforme o evangelho. A
verdade da dignidade e igualdade humana não tem existência segura longe do evangelho. Que é o
mesmo que dizer que ‘A única maneira pela qual os cristãos podem recomendar (elogiar, louvar)
uma visão verdadeiramente divina de direitos humanos é encarná-las em suas vidas coletivas e
individuais, anunciar as ações e intenções de Deus que constituem o evangelho, e agir de maneira
justa no nome de Deus.’15

14 Forrester, op.cit., p.247


15 Charles R. Taber, ‘In the Image of God: The Gospel and Human Rights’, International Bulletin of Missionary
Research, vol.26.no.3, July 2002 p.102

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