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na presenÇa do inimigo

elizabeth george
2ª edição

planeta editora

título original: in the presence of the enemy

© 1996, by susan elizabeth george

publicado com o acordo da bantam books, uma filial da bantam doubleday dell
publishing group, inc.

reservados todos os direitos desta obra para publicação em portugal de acordo com
a legislação em vigor por:
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87 56 fax: (01) 395 10 26 apartado 2657 1117 lisboa codex portugal

tradução: ana faria

revisão: frederico serqueira

capa: estúdios planeta. foto da capa de simon marsden e da contracapa de greg


figge composição, impressão e acabamento: grafitexto, lisboa

depósito legal n.° 112822/97 isbn 972-731-046-x

proibida a reprodução no todo, ou em parte, por qualquer meio, sem prévia


autorização do editor

digitalização e arranjo:
fátima chaves

esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.

com afeto, em memória de freddie la chapelle


1948-1994

concedo-te a imortalidade de uma forma simples, a única que está ao meu alcance.

fica com deus, querido freddie

pois nem homem nem anjo logram discernir a hipocrisia, o único demônio invisível,
exceto aos olhos de deus. john milton, paradise lost
primeira parte

charlotte bowen julgava que estava morta. abriu os olhos e foi recebida pelo frio e
pela escuridão. sentia o frio debaixo de si. era uma sensação idêntica à que lhe
provocava a terra que enchia o canteiro de flores da mãe, onde o gotejar
interminável da torneira exterior formava uma mancha de umidade, verde e
malcheirosa. a escuridão envolvia tudo. a obscuridade fazia pressão sobre ela como
um cobertor pesado que os seus olhos se esforçavam por penetrar, tentando extrair
do vazio interminável uma forma que lhe confirmasse que não se encontrava dentro
de uma sepultura. de início permaneceu imóvel. não esticou nem os dedos das
mãos nem os dos pés, porque não queria sentir as paredes do caixão, porque não
queria ficar a saber que a morte era isto, quando imaginara que haveria santos, luz
do sol e anjos sentados em balanços tangendo harpas.

charlotte apurou os ouvidos, mas tudo estava silencioso. cheirou, mas o único odor
que chegava até ela era o da umidade envolvente, um cheiro idêntico àquele que se
liberta das pedras velhas depois de cobertas de bolor. engoliu em seco e saboreou a
recordação vaga do paladar de um sumo de maçã. esse sabor foi o suficiente para
avivar-lhe a memória.

ele tinha-lhe dado sumo de maçã, não tinha? entregara-lhe uma garrafa salpicada
de gotículas brilhantes, depois de ter desenroscado a tampa. sorrira e apertara-lhe o
ombro.

- não te preocupes, lottie. não é isso que a tua mamãe quer. - dissera.

a mamãe. era por causa dela que tudo isto estava a acontecer. onde estava a
mamãe? que se teria passado com ela? e com lottie? que se teria passado com
lottie?

- houve um acidente - dissera ele. - tenho de levar-te até junto da tua mãe.

- onde? - perguntara ela. - onde está a mamãe? - e insistira, elevando o tom de voz,
pois de repente sentira o estômago derreter-se e não estava a gostar do modo como
ele a olhava. - diga-me, onde está a minha mãe! diga-me! já!

- está tudo bem - retorquira ele rapidamente, olhando em volta. o barulho que ela
fazia incomodava-o, tal como acontecia com a mamãe.

- calma, lottie. ela está em segurança, numa casa do governo. sabes o que isso
significa?

charlotte dissera que não com a cabeça. afinal, tinha apenas dez anos de idade e
quase tudo o que se relacionava com o funcionamento do governo era um mistério
para ela. a única certeza que tinha era que fazer parte do governo significava que a
mamãe saía de casa antes das sete da manhã e habitualmente só regressava
quando ela já estava a dormir. a mamãe ia para o escritório, que ficava na
parllament square, assistia a reuniões no ministério do interior e ia até à casa dos
comuns. Às sextas-feiras à tarde recebia os seus constituintes de marylebone,
enquanto lottie, resguardada de olhares indiscretos, fazia os deveres escolares na
sala pintada de amarelo onde reunia o comitê executivo do círculo eleitoral.

- porta-te bem - advertia a mãe quando charlotte chegava da escola às sextas-feiras


à tarde. inclinando significativamente a cabeça na direção da sala pintada de
amarelo acrescentava: - nem um pio até serem horas de irmos embora. percebeste?

- sim, mamãe.

nessa altura, a mamãe sorria.

- agora dá cá um beijo - pedia ela. - e um abraço, também quero um abraço. -


interrompia então a conversa com o pároco, ou com o merceeiro paquistanês de
edgware road ou com o professor local ou com quaisquer outros candidatos a dez
preciosos minutos do tempo da deputada do seu círculo eleitoral, e envolvia lottie
num abraço rígido e doloroso. depois, dava-lhe uma palmada no traseiro e dizia: -
agora vai - e, voltando-se para o visitante, acrescentava com um sorriso, - crianças...

as sextas-feiras eram os melhores dias. terminadas as entrevistas da mamãe, ela e


lottie voltavam juntas para casa de carro, e lottie contava-lhe o que fizera durante a
semana. a mãe escutava-a. acenava com a cabeça em sinal de assentimento e por
vezes acariciava-lhe o joelho ao de leve, mas nunca desviava os olhos da estrada
que se prolongava para além da cabeça do motorista.

- mamãe - suspirava lottie, com uma expressão sofredora, tentando em vão fazer
com que a mãe concentrasse a sua atenção nela e não em marylebone high street.
afinal, a mamãe não precisava de estar a olhar para a rua. nem sequer era ela que
ia a conduzir o carro. - estou a falar contigo. estás à procura de quê?

- de complicações, charlotte. estou à procura de complicações. deverias fazer o


mesmo.

pelos vistos, eles tinham aparecido. mas uma casa do governo, é segura? o que era
isso exatamente? um esconderijo, caso alguém lançasse uma bomba?

- vamos para a tal casa segura? - lottie engolira o sumo de maçã à pressa. tinha um
sabor algo peculiar, não era suficientemente doce mas ela bebeu tudo,
ajuizadamente, porque sabia que não era correto demonstrar ingratidão para com
um adulto.

- É isso mesmo - dissera ele. - vamos para a casa segura. a tua mãe está lá, à
nossa espera.

era tudo o que conseguia recordar com nitidez. depois disso ficara tudo muito
confuso. À medida que percorriam as ruas de londres foi sentindo as pálpebras cada
vez mais pesadas, e em poucos minutos, ao que parecia, deixara de poder manter a
cabeça direita. o som de uma voz ternurenta parecia ecoar no mais fundo dela
mesma: «linda menina. vais fazer uma boa soneca, não é?» enquanto uma mão lhe
tirava gentilmente os óculos.

este último pensamento fez com que lottie levasse as mãos ao rosto no escuro,
mantendo-as o mais próximo possível do corpo para não ter de sentir as paredes do
caixão dentro do qual estava deitada. os dedos tocaram o queixo e, lentamente,
subiram até às maçãs do rosto. tateou a cana do nariz. os óculos haviam
desaparecido.

É claro que ali no escuro isso não tinha qualquer importância, mas e se as luzes se
acendessem... simplesmente, como poderiam as luzes acender-se dentro de um
caixão?

lottie inspirou ao de leve uma vez... depois outra... e outra... que quantidade de ar?
tentou imaginar. quanto tempo até que... e porquê? porquê?

sentiu a garganta cada vez mais apertada e o peito quente. os olhos ardiam-lhe.
pensou «não deves chorar, nunca deves chorar. nunca deves deixar que ninguém
veja... » só que não havia nada para ver, pois não? nada, a não ser uma escuridão
interminável. que lhe apertava a garganta, que lhe aquecia o peito, que a fazia sentir
os olhos a arder de novo. «não deves», pensou lottie. «não deves chorar. não, não.
»

rodney aronson apoiou o traseiro arredondado no peitoril da janela do gabinete do


editor e ouviu o ruído que produziam as velhas persianas ao roçarem nas costas do
seu casaco de caqui. procurou num dos bolsos do casaco o que restava de uma
tablete de chocolate e avelãs cadbury e desembrulhou a folha de papel de prata que
o envolvia com a mesma dedicação com que um paleontologista removeria a terra
que cobrisse o esqueleto de um homem pré-histórico.

no outro extremo da sala, na mesa de reuniões, dennis luxford parecia totalmente


descontraído, sentado naquilo que rodney designava por cadeira da autoridade. com
uma expressão marota no rosto iluminado por um sorriso triangular, o editor
escutava o relatório final do dia sobre o caso da semana anterior, conhecido na fleet
street como a rumba do rapaz de aluguel. o relatório era-lhe apresentado com
grande vivacidade pelo melhor jornalista de investigação do the source. mitchell
corsico tinha vinte e três anos de idade e era um jovem com uma predileção algo
imbecil por roupa de cowboy, o instinto de um cão de caça e a sensibilidade nervosa
de uma barracuda. era exatamente aquilo de que eles precisavam para acompanhar
o momento presente, fértil em pecadilhos parlamentares, escândalos públicos e
deslizes sexuais.

- de acordo com as declarações desta tarde, - explicava corsico - o nosso estimado


deputado por east norfolk declarou que contava com o apoio firme do seu círculo
eleitoral. está inocente até prova em contrário etc., etc... o presidente do partido leal
assevera que todos estes rumores são da responsabilidade dos pasquins que,
segundo ele, mais uma vez estão a tentar fragilizar o governo. - corsico percorreu as
suas notas, aparentemente em busca da citação adequada. ao encontrá-la,
empurrou para trás o seu precioso stetson, assumiu uma pose heróica e declamou: -
não é segredo para ninguém que a comunicação social está empenhada em
derrubar o governo. este caso do rapaz de aluguel é apenas mais uma tentativa de
fleet street para determinar a orientação dos debates parlamentares. mas se o
desejo da comunicação social é destruir o governo, então a comunicação social terá
de enfrentar mais do que um adversário digno desse nome, de downing street ao
palácio de westminster, passando por whitehall. - corsico fechou o bloco de notas e
enfiou-o no bolso traseiro dos jeans coçados.

- sentimentos elevados, estes, não acham?

luxford inclinou a cadeira para trás e cruzou as mãos sobre um estômago


extremamente plano. quarenta e seis anos de idade, um físico de adolescente e uma
farta cabeleira de um louro ferrugem.

«eutanásia era do que ele precisava», pensava rodney sombriamente. seria uma
bênção para os colegas em geral e para rodney, em particular, se não tivessem de
se arrastar atrás da sua sombra elegante.

- não precisamos de derrubar o governo - disse luxford. - podemos ficar sentados e


observá-los destruírem-se a eles próprios. - passeou os dedos ociosos ao longo dos
suspensórios de caxemira. - o sr. larnsey continua fiel à versão inicial do caso?

- de pedra e cal - respondeu corsico. - o nosso ilustre deputado por east norfolk
reiterou as suas declarações iniciais sobre, como ele próprio afirmou: «este infeliz
mal-entendido desencadeado pela minha presença dentro de um automóvel
estacionado nas traseiras da estação de paddington, na última quinta-feira à noite. »
continua a sustentar que estava apenas a reunir informações destinadas à comissão
especial de inquérito sobre abuso de drogas e prostituição.

- existe alguma comissão especial de inquérito sobre abuso de drogas e


prostituição? - perguntou luxford.

- se não existe pode ter a certeza de que o governo nomeará uma de imediato.

luxford apoiou a nuca nas duas mãos e inclinou ainda mais a cadeira para trás. não
podia estar mais satisfeito com o correr dos acontecimentos. num momento em que
os conservadores detinham ainda o controle das rédeas do governo, os tablóides
nacionais desmascaravam deputados com amantes, deputados com filhos
ilegítimos, deputados com prostitutas, deputados envolvidos em situações de auto-
erotismo, deputados implicados em negócios imobiliários pouco claros e deputados
com ligações questionáveis ao setor industrial. este caso, porém, era inédito: um
deputado conservador apanhado em flagrante delito nos braços de um prostituto de
dezesseis anos de idade, nas traseiras da estação de paddington. este era o tipo de
matéria que tornava as tiragens de sonho uma realidade, e rodney podia imaginar
luxford contabilizando mentalmente o próximo aumento de ordenado com que
provavelmente o agraciariam, depois de fechados os livros e calculados os lucros.
os acontecimentos do momento davam-lhe boas perspectivas de cumprir a
promessa de transformar o the source no jornal de maior tiragem. era um sacana
com sorte, raios o partissem. todavia, na opinião de rodney, não era o único
jornalista de londres capaz de agarrar com unhas e dentes uma oportunidade
inesperada e tirar daí uma história, como um cão de caça que persegue uma lebre.
não era o único guerreiro de fleet street.

- não dou mais de três dias para que o primeiro-ministro lhe retire todo o seu apoio -
vaticinou luxford e olhou na direção de rodney. - qual é a tua previsão?
- eu diria que três dias é muito tempo, - den rodney sorriu para dentro ao contemplar
a expressão facial de luxford. o editor odiava versões abreviadas do seu nome.

luxford considerou a resposta de rodney semi-cerrando os olhos. «não é tolo, o


nosso luxford», pensou rodney. não tinha chegado onde chegara fazendo tábua rasa
de possíveis conspirações que estivessem a ser urdidas nas suas costas. luxford
voltou a concentrar a sua atenção no repórter.

- que mais tens aí?

corsico enumerou os assuntos com os dedos.

- ontem, a mulher do deputado larnsey jurou que o marido podia contar com todo o
seu apoio, mas as minhas fontes disseram-me que ela se prepara para sair de casa
hoje à noite. vou precisar de um fotógrafo para isso.

- rod trata disso - disse luxford sem olhar para rodney. - que mais?

- a associação dos conservadores de east norfolk reúne esta noite para discutir a
«viabilidade política» do seu deputado. recebi um telefonema de um membro da
associação que afirma que larnsey será convidado a afastar-se.

- mais alguma coisa?

- aguardamos as declarações do primeiro-ministro sobre o caso. ah, sim... mais uma


coisa. um telefonema anônimo garantindo que larnsey sempre gostou de
rapazinhos, mesmo na escola. a mulher foi apenas uma forma de manter as
aparências desde o dia do casamento.

- e o rapaz de aluguel?

- está escondido neste momento. na casa dos pais, em south lambeth.

- e falará? e os pais?

- continuo a trabalhar nisso.

luxford endireitou a cadeira. - muito bem - disse, e pontuando o seu sorriso triangular
com um trejeito malicioso acrescentou: - continua o bom trabalho, mitch.

corsico tocou ao de leve no seu stetson, em jeito de saudação jocosa, e abandonou


o gabinete. ia a chegar à porta quando esta se abriu para deixar entrar a secretária
de luxford, uma senhora de sessenta anos de idade. trazia dois montes de
correspondência, que depositou sobre a mesa de reuniões em frente do editor do
the source. o monte número um estava aberto, pelo que foi colocado à esquerda de
luxford; o monte número dois estava por abrir, classificado como pessoal,
confidencial ou exclusivamente para o editor, e foi colocado à direita de luxford. em
seguida, foi buscar o abridor de cartas que estava na secretária do editor e pô-lo na
mesa de reuniões, exatamente a cinco centímetros dos envelopes por abrir. trouxe
igualmente o cesto dos papéis, deixando-o ficar próximo da cadeira de luxford.

- mais alguma coisa, sr. luxford? - perguntou, como fazia todas as tardes antes de
sair, e com a mesma deferência.

- uma mamada, miss wallace - respondeu rodney, em silêncio. - de joelhos, mulher. e


geme enquanto a fazes. - não conseguiu conter um sorriso ao imaginar miss wallace
aperaltada como sempre com os seus twin set, os seus fatos de tweed e as suas
pérolas ajoelhada entre as coxas de luxford. numa tentativa de esconder o seu ar
divertido baixou rapidamente a cabeça para perscrutar o que restava do chocolate
cadbury.

luxford começara a percorrer as cartas fechadas.

- ligue para a minha mulher antes de sair - disse à secretária. - não devo chegar a
casa depois das oito horas.

miss wallace abanou a cabeça em sinal de assentimento e desapareceu


silenciosamente, caminhando sobre a carpete cinzenta nos seus sapatos de solas
judiciosamente forradas a crepe. a sós com o editor do the source pela primeira vez
nesse dia, rodney fez deslizar as nádegas do peitoril da janela enquanto luxford
agarrava no abridor de cartas e se concentrava nos envelopes empilhados à sua
direita. rodney nunca conseguira compreender a predileção de luxford por abrir ele
próprio o correio pessoal. considerando as tendências políticas do jornal o mais à
esquerda possível do centro sem ser apelidado de vermelho, comuna, esquerdista
ou qualquer outra alcunha menos salutar uma carta com a designação pessoal podia
muito bem ser uma bomba. era por isso preferível que fosse a miss wallace a
arriscar-se a perder os dedos, as mãos ou um dos olhos do que o editor-chefe do
jornal colocar-se a si próprio como alvo potencial de um ato tresloucado. luxford,
evidentemente, não via as coisas dessa maneira. não que o fato de expor miss
wallace a um perigo semelhante fosse uma fonte de preocupação para ele, mas
antes porque, como ele próprio se apressaria a assinalar, fazia parte das funções do
editor avaliar a extensão das reações do público ao seu jornal. “um jornal como o the
source, - declararia ele, - nunca alcançaria a tão cobiçada liderança na guerra das
tiragens se o seu editor-chefe resolvesse comandar as tropas atrás das linhas de
batalha. nenhum editor digno desse nome perdia o contato com o seu público.”

rodney observava luxford enquanto este examinava a primeira carta. resmungou


qualquer coisa, amarfanhou o papel até formar uma bola e atirou-o para o cesto dos
papéis. abriu a segunda e deu-lhe uma rápida vista de olhos. riu-se e mandou-a
fazer companhia à anterior. leu a terceira, a quarta, a quinta e quando abria a sexta
carta disse num tom de voz ausente, que rodney reconheceu como deliberado:

- sim, rod? estás a pensar em alguma coisa?

os pensamentos de rodney tinham a ver com o fato de ter sido preterido


relativamente à posição que luxford agora ocupava: senhor do universo, imprimatur,
chefe, número um, ou seja, respeitável editor do the source. uns escassos seis
meses antes, tinha sido excluído de uma promoção mais do que merecida em favor
de luxford. o presidente do conselho de administração, que tinha cara de suíno,
dissera-lhe na sua voz aristocrática que ele «não tinha os instintos necessários»
para levar a cabo o tipo de mudanças necessário para revolucionar o the source.

- que tipo de instintos eram esses? - inquirira ele, educadamente, quando o


presidente lhe comunicara as notícias.

- instintos assassinos - respondera ele. - luxford tem-nos de sobra. veja só o que ele
fez com o the globe.

o que ele fizera com o the globe fora pegar num tablóide moribundo, em grande
parte especializado em mexericos relacionados com estrelas de cinema e em
histórias untuosas sobre a família real e transformá-lo no jornal mais vendido do
país. todavia, não o conseguira elevando a qualidade. estava demasiado
sincronizado com os tempos atuais para tal. em vez disso, apelara aos instintos mais
básicos dos leitores de tablóides, presenteando-os com uma ementa diária
composta por escândalos, escapadelas sexuais de figuras políticas, tartufices no
seio da igreja da inglaterra e pela pretensa e altamente ocasional generosidade do
homem comum. o resultado fora um verdadeiro deleite para os leitores de luxford
que, aos milhões, deixavam cair nas bancas todas as manhãs os seus trinta e cinco
pence, como se o segredo da sua felicidade estivesse apenas nas mãos do editor do
the source e não na equipe que com ele trabalhava, ou em rodney, que era tão
inteligente como luxford e possuía mais cinco anos de experiência do que ele. e
enquanto aquele velhaco se vangloriava do seu sucesso crescente, os outros
tablóides de londres batalhavam para acompanhar o ritmo. todos eles se uniam
numa atitude insolente e exclamavam «vão-se lixar, então», sempre que o governo
ameaçava impor-lhes algumas formas básicas de controle. a vox populi, porém, não
tinha qualquer peso em westminster, sobretudo quando a imprensa não hesitava em
zurzir o primeiro-ministro cada vez que um deputado conservador dava o seu
contributo para acentuar aquilo que cada vez mais aparecia como a intrínseca
hipocrisia do partido conservador.

o fato de testemunhar o afundar da nave conservadora não constituía de modo


algum um espetáculo doloroso para rodney aronson. sempre votara nos trabalhistas
ou, na pior das hipóteses, nos democratas liberais desde o primeiro ato eleitoral em
que participara. a idéia de que os trabalhistas poderiam vir a colher benefícios do
atual estado de instabilidade política era extremamente gratificante para ele. em
circunstâncias diversas, rodney ter-se-ia deliciado com o espetáculo diário das
conferências de imprensa, telefonemas ofendidos, pedidos de eleições especiais e
sinistras previsões sobre os resultados das eleições locais, a realizar no espaço de
algumas semanas. no momento presente, porém, isso irritava-o, com a perspectiva
de luxford ficar ao leme indefinidamente, travando a sua ascensão ao topo. disse
para si mesmo que a sensação de desconforto que sentia crescer dentro de si
resultava do fato de ele ser o melhor jornalista dos dois. contudo, a verdade nua e
crua era que sentia inveja.

trabalhava no the source desde os dezesseis anos e começara como faz-tudo


ascendendo gradualmente à posição de editor adjunto, que ocupava no presente o
número dois, imaginem, a poder de força de vontade, de caráter e de talento.
merecia o lugar de topo e todos sabiam disso. incluindo luxford, razão pela qual o
editor o observava nesse momento, lendo-lhe os pensamentos como uma raposa e
aguardando a resposta dele. não tem instintos assassinos, haviam-lhe dito. está
certo. pois em breve todos descobrirão a verdade.

- estás a pensar em alguma coisa, rod? - repetiu luxford, antes de voltar a fixar o
olhar na sua correspondência.

- no teu trabalho, - pensou rodney. no entanto, em voz alta, disse: - neste caso do
rapaz de aluguel. acho que chegou a altura de recuar.

- porquê?

- está a perder atualidade. estamos a trabalhar a história desde sexta-feira. ontem e


hoje foi a versão requentada dos desenvolvimentos de domingo e de segunda-feira.
sei que o mitch corsico está na pista de dados novos, mas até chegar lá penso que
devíamos fazer um interregno.

luxford afastou a carta número seis para o lado e cofiou as patilhas demasiado
longas a sua marca registrada num gesto que, como rodney bem sabia, era uma
demonstração fingida da atitude do editor-considerando-a-opinião-do-subordinado.
pegou no envelope número sete e fez deslizar o abridor de cartas ao longo da
abertura. manteve a pose enquanto retorquia.

- o governo colocou-se a si mesmo nesta posição. o primeiro-ministro incluiu o seu


projeto de lei para os valores britânicos fundamentais no manifesto do partido, não
foi? há apenas dois anos atrás, não é? apenas nos limitamos a explorar o que é que
o projeto de lei para os valores britânicos fundamentais realmente significa para os
conservadores. a mãe e o pai merceeiros juntamente com o tio sapateiro e o avô
pensionista pensaram que isso significava o regresso da decência e do «god save
the queen» no fim das sessões de cinema. os nossos deputados conservadores
parecem ter uma opinião diferente.

- de acordo - assentiu rodney, - mas será que o nosso objetivo é dar a impressão de
que estamos a tentar derrubar o governo através de um relatório infindável sobre o
modo como um deputado com pouco juízo faz uso do seu pênis nas horas vagas?
que diabo, o que não nos falta é material para usar contra os conservadores. então,
porque é que não...

- estás a ter um ataque de consciência moral de última hora? - luxford arqueou uma
das sobrancelhas, sardonicamente, e voltando a concentrar a sua atenção na carta
abriu o envelope e retirou do seu interior uma folha dobrada. - nunca imaginei que
isso te pudesse acontecer a ti, rod.

rod sentiu o rosto enrubescer.

- só estou a tentar dizer que se vamos colocar o governo debaixo de fogo cruzado,
talvez seja preferível começar a pensar em escolher como alvo preferencial algo de
mais substancial do que as escapadelas sexuais fora de horas dos nossos
parlamentares. há anos que os jornais se ocupam disso e quais têm sido os
ganhos? os imbecis continuam a deter o poder.
- É indiscutível que os nossos leitores pensam que estamos a defender os seus
interesses. quais são os valores de tiragens mais recentes? - luxford recorria ao seu
estratagema habitual. nunca fazia perguntas deste tipo sem saber previamente qual
seria a resposta e, como que para enfatizar ainda mais o peso das suas palavras,
voltou à carta que segurava entre as mãos.

- não estou a dizer que devemos ignorar as aventuras extraconjugais que estão em
curso. sei que elas são o nosso ganha-pão. mas se pudéssemos apresentar a
história de maneira que o governo pareça... - rodney percebeu que luxford não
estava a ouvi-lo. em vez disso olhava para a carta franzindo o sobrolho. passou os
dedos pelas patilhas, mas desta vez o gesto e a preocupação que o acompanhavam
eram genuínos. rodney não tinha dúvidas quanto a isso. - passa-se alguma coisa,
den? - perguntou, cuidando para que o seu tom de voz não traísse as esperanças
que acalentava.

amarfanhou a carta na palma da mão que a segurava. - disparates - respondeu


luxford, e atirou-a para o cesto de papéis onde já se encontravam as outras. abriu a
seguinte. - uma perfeita idiotice acrescentou. sua excelência, a populaça acéfala
fala. - leu a carta seguinte e dirigindo-se a rodney disse: - É aí que nós dois
divergimos. para ti, rod, os nossos leitores são aparentemente susceptíveis de
serem educados, enquanto eu os vejo tal como eles são: a ilustre populaça iletrada
da nossa nação, cujas opiniões devem ser-lhes dadas na boca, à colher, como se
fossem flocos de aveia mornos. - luxford afastou a cadeira da mesa de reuniões. -
mais alguma coisa, hoje? porque se não há, tenho uma data de telefonemas para
retribuir e uma família em casa, à minha espera.

- há o teu emprego, - rodney repetiu para si mesmo. - há aquilo que me devem por
vinte e dois anos de lealdade para com este pedaço de papel miserável. - no
entanto, a sua resposta foi: - não, den. não há mais nada. pelo menos por agora. -
atirou o papel que envolvia o pedaço de cadbury para junto das cartas despachadas
pelo editor e encaminhou-se para a porta.

luxford chamou-o no momento em que a abria: - rod, tens a barba suja de chocolate
- disse-lhe depois de rodney se ter virado para o encarar.

luxford sorria quando rodney o deixou.

todavia, o sorriso morreu-lhe nos lábios mal o outro abandonou a sala. dennis
luxford rodou a cadeira na direção do cesto de papéis e voltou a tirar uma das
cartas. desembrulhou-a sobre o tampo da mesa de reuniões e tornou a lê-la.
continha uma palavra de saudação acompanhada de uma única frase e nada tinha
que ver com rapazes de aluguel, automóveis ou com o deputado sinclair larnsey:

“luxford

reconhece o teu primogênito na primeira página e charlotte será libertada.”

luxford tinha os olhos fixos na mensagem e sentia o coração ecoar-lhe nos ouvidos,
em batidas leves e rápidas. rapidamente estabeleceu uma lista dos possíveis
remetentes, mas as hipóteses eram de tal modo remotas que uma única conclusão
se lhe impôs: a carta só podia ser uma artimanha. ainda assim teve o cuidado de
remexer o resto do lixo sem alterar a ordem por que havia despachado o correio
daquele dia. recuperou o envelope que acompanhava a carta e examinou-o. era
possível distinguir três quartos de um carimbo postal em forma de lua junto do selo
de correio. apesar do seu tom desmaiado ainda era suficientemente legível e luxford
pôde confirmar que a carta fora registrada em londres.

recostou-se na cadeira e releu as nove palavras iniciais. usa a primeira página para
reconhecer o teu primogênito. charlotte, pensou.

ao longo dos últimos dez anos apenas se permitira refletir sobre charlotte uma vez
por mês, uma admissão de paternidade com a duração de um quarto de hora que
ele lograra esconder de todos, inclusivamente da mãe de charlotte. durante o tempo
que restava obrigava-se a esquecer que a criança existia. nunca falara sobre ela
com ninguém e, em certos dias, conseguia esquecer por completo que era pai de
mais de uma criança.

pegou na carta e no envelope e aproximou-se da janela, de onde podia ver


farrington street e escutar o ruído abafado do trânsito.

sabia que alguém, alguém muito próximo, alguém de fleet street ou de wapping,
talvez, ou tão distante quanto aquela gigantesca torre de vidro na isle of dogs,
aguardava que ele fizesse um movimento em falso. alguém que sabia muito bem
como uma história totalmente desligada dos fatos do momento podia ser imposta
pela imprensa escrita e estimular o apetite da opinião pública por uma conspícua
queda em desgraça esperava que ele se denunciasse, reagindo a esta carta, e ao
fazê-lo, fabricasse uma ligação entre ele próprio e a mãe de charlotte. mal isso
sucedesse, a imprensa abater-se-ia sobre o caso com a fúria de uma ave de rapina.
um dos jornais divulgaria a história, os outros seguiriam o seu exemplo e, tanto ele
como a mãe de charlotte, pagariam pelo erro cometido. o castigo dela consistiria na
exposição à irrisão pública seguida de um rápido afastamento do poder político. no
caso dele tratar-se-ia, antes, de uma perda de caráter pessoal.

apercebeu-se, com um ar divertido e sardônico, que o feitiço se virava contra ele


próprio. se o governo não se expusesse a prejuízos certos, caso a verdade acerca
de charlotte fosse revelada, luxford sentir-se-ia tentado a concluir que a carta fora
enviada a partir do n.° 10 de downing street, num gesto de qual-é-a-sensação-de-
estar-na-mó-de-baixo-por-uma-vez. o governo, porém, estava tão interessado em
ocultar a verdade acerca de charlotte como o próprio luxford. e, uma vez que o
executivo não estava implicado no envio da carta e na ameaça indireta que ela
continha, não restavam dúvidas de que se tratava de um inimigo de outro gênero.

e havia uma multidão deles. um por cada passo que dera na vida. Ávidos.
expectantes. À espera que ele se traísse.

dennis luxford jogava o jogo do investigador solitário há já demasiado tempo para


correr o risco de dar um passo em falso. não lograra inverter a tendência
descendente das tiragens do the source ignorando os métodos utilizados pelos
jornalistas para descobrir a verdade. decidiu por isso que iria desfazer-se da carta,
esquecê-la, e deixar os seus inimigos a braços com um problema inexistente. se
voltasse a receber outra carta semelhante dar-lhe-ia o mesmo destino que a esta.

tornou a amarfanhar a folha de papel e afastou-se da janela decidido a deitá-la fora.


ao fazê-lo, porém, avistou a correspondência já aberta e separada pela sua
secretária. considerou a possibilidade de existência de uma outra carta que não
estivesse assinalada como pessoal e pudesse por isso ser aberta por qualquer outra
pessoa, ou enviada ao cuidado de mitch corsico ou para algum dos outros
repórteres que estivesse a trabalhar sobre os casos de corrupção sexual. essa carta
não teria uma redação tão enigmática como a outra. seriam mencionados nomes,
datas e lugares fabricados e algo que começara por ser uma artimanha de onze
palavras tornar-se-ia uma vozearia explícita e estridente em favor da verdade.

ele podia impedir que isso acontecesse. um simples telefonema bastaria para ficar a
conhecer a resposta para as únicas perguntas possíveis naquele momento: -
contaste a alguém, eve? alguém de todo? em alguma ocasião? nestes últimos dez
anos? sobre nós? contaste?

se a resposta fosse negativa, aquela carta não passaria de uma tentativa para o
assustar, sendo por isso fácil de rejeitar. caso contrário, era forçoso que ela
soubesse que ambos estavam prestes a ser alvo de um autêntico cerco.

depois de ter preparado o seu auditório, deborah st. james alinhou três grandes
fotografias a preto e branco sobre uma das mesas de trabalho que se encontravam
no laboratório do marido. ajustou as lâmpadas fluorescentes e recuou, esperando o
vaticínio do marido e de lady helen clyde, colega de trabalho dele. esta nova série de
fotografias era o resultado das experiências que realizara ao longo dos últimos
quatro meses, e embora os resultados a deixassem razoavelmente satisfeita não
deixava de se sentir cada vez mais obrigada a dar um contributo financeiro efetivo
para o orçamento familiar. queria que esse contributo tivesse um caráter regular e
não se restringisse aos trabalhos esporádicos que conseguira obter até agora,
depois de calcorrear agências de publicidade e de talentos, revistas, agências
noticiosas e editoras. desde que terminara o estágio alguns anos antes, deborah
começara a sentir que a maior parte dos seus dias era passada arrastando o
portfolio de um extremo ao outro de londres, quando o seu único desejo era ter
sucesso com as suas fotografias, que encarava como puras obras de arte. - muitos
outros o haviam feito, de stieglitz a mapplethorpe. porque não ela?

deborah pressionou as palmas das mãos uma de encontro à outra e esperou que o
marido e helen clyde se pronunciassem. estavam ambos embrenhados na análise
da transcrição de um depoimento médico-legal que simon prestara duas semanas
antes sobre um determinado tipo de explosivos. tencionavam tomá-lo como ponto de
partida para a análise das marcas de ferramentas presentes na cobertura metálica
da maçaneta de uma porta e reunir os argumentos em favor da defesa num
processo-crime iminente. no entanto, não se importaram de fazer uma interrupção.
tinham trabalhado consecutivamente desde as nove horas da manhã, fazendo uma
pausa para o almoço e outra para o jantar, e como deborah podia confirmar nesse
momento, às nove e meia da noite, helen pelo menos estava pronta para dar por
concluído aquele dia de trabalho.

simon debruçava-se sobre a fotografia de um skinhead da frente nacional, enquanto


helen estudava outra onde aparecia uma rapariga indiana com uma bandeira do
reino unido ondulante, presa entre as mãos.
tanto o skinhead como a rapariga indiana tinham atrás de si um cenário portátil,
concebido por deborah, a partir de enormes triângulos de tela, integralmente
pintados.

vendo que simon e helen continuavam em silêncio, helen disse:

- quero que as fotografias reproduzam a especificidade da personalidade retratada,


percebem? não quero objectivar o tema à minha velha maneira. controle o fundo que
é a tela em que estive a trabalhar no jardim, em fevereiro, lembras-te, simon? mas a
personalidade é própria de cada fotografia. o sujeito não pode esconder-se. ele, ou
ela, claro, não podem falsificar-se a si mesmos, porque a velocidade do filme é
demasiado lenta e o sujeito não é capaz de sustentar o artifício durante o tempo
necessário para obter a exposição adequada. então, o que é que acham?

disse para si mesma que aquilo que cada um deles pensava não tinha importância.
esta nova abordagem permitia-lhe seguir numa direção específica, que não fazia
tenção de abandonar. seria útil, no entanto, ter uma opinião imparcial que
confirmasse que o trabalho era tão bom quanto ela julgava ser, ainda que essa
opinião proviesse do seu próprio marido, a pessoa menos susceptível de descobrir
falhas nos seus esforços.

ele afastou-se um pouco do skinhead, contornou helen, que examinava ainda a


porta-bandeira indiana, e aproximou-se de uma terceira fotografia onde surgia um
indivíduo rastafari envolto num imponente xale feito de contas, que lhe cobria a t-
shirt cheia de buracos.

- onde é que as tiraste, deborah? - perguntou.

- em covent garden - respondeu ela. - próximo do museu do teatro. a seguir gostava


de fazer uma série em st. botolph’s church. com os sem-abrigo, sabem? - viu helen
aproximar-se de outra fotografia e conteve-se para não morder a unha do polegar
enquanto esperava pelas reações.

finalmente, helen ergueu os olhos.

- acho que são maravilhosas.

- achas? achas mesmo? quero dizer, pensas... como vês, elas são bastante
diferentes, não são? o que eu queria... isto é... estou a usar uma polaroid de vinte
por vinte e quatro polegadas e deixei ficar as marcas dentadas e dos produtos
químicos nos negativos, porque quero que eles como que anunciem que se trata de
fotografias. elas são a realidade artificial, enquanto os sujeitos em si mesmos são a
verdade. pelo menos... bem, é isso que eu gostaria que fossem... - deborah levou as
mãos ao cabelo e afastou as madeixas de cabelo acobreado que caíam sobre o
rosto. as palavras confundiam-na, como sempre. - É isso que estou a tentar... -
acrescentou num suspiro.

o marido envolveu-lhe os ombros num abraço e depositou um beijo sonoro num dos
lados da cabeça.

- excelente trabalho - disse. - quantas tiraste?

- dezenas, centenas. bom, centenas talvez não, mas um número considerável.


comecei mesmo agora a fazer estas ampliações. aquilo que de fato desejo é que
elas sejam suficientemente boas para expor... numa galeria. como obras de arte,
porque, bem, elas são-no no fundo e... a sua voz sumiu-se quando o seu olhar
captou um movimento nos limites do seu campo de visão. virou-se na direção da
porta do laboratório e viu que o pai, um membro de longa data de qualquer uma das
residências dos st. james, se aproximara silenciosamente da entrada da casa de
cheyne row.

- sr. st. james - disse joseph cotter, fiel ao seu costume de nunca se referir a simon
pelo nome de batismo. não obstante a durabilidade do casamento deles, nunca se
habituara por completo ao fato de a filha ter casado com o jovem patrão do pai. -
visitas para si. levei-os para o escritório.

- visitas? - perguntou deborah. - não ouvi... tocaram à campainha, pai?

- visitas destas não precisam de campainha - retorquiu cotter. entrou no laboratório e


lançou um olhar duvidoso às fotografias de deborah. - tipo desagradável, este -
comentou, referindo-se ao rufião da frente nacional. virando-se para o marido de
deborah acrescentou: - É o david, com um colega todo aperaltado, suspensórios
finos e sapatos lustrosos.

- david? - tornou a perguntar deborah. - david st. james? aqui? em londres?

- cá em casa - especificou cotter. - e com as mesmas vestimentas horríveis de


sempre. nunca hei-de conseguir perceber onde é que aquele tipo compra a roupa.
oxfam, julgo eu. vocês querem café? eles dois têm ar de quem precisa de uma boa
chávena dele.

deborah começara já a descer as escadas chamando por david, enquanto o marido


respondia.

- queremos café, sim. e se bem conheço o meu irmão será melhor trazer o que resta
do bolo de chocolate. - dirigindo-se depois a helen, sugeriu: - vamos deixar isto em
suspenso até amanhã. vais já embora, então?

- deixa-me cumprimentar david, primeiro. - helen desligou as luzes fluorescentes e


seguiu st. james até às escadas, que ele desceu com a precaução e lentidão
exigidas pela prótese da sua perna esquerda. cotter seguiu-os.

a porta do escritório estava aberta. no seu interior soava a voz de deborah, que
inquiria: - que fazes aqui, david? porque é que não telefonaste? está tudo bem com
sylvie e os miúdos, espero?

david beijava rapidamente o rosto da cunhada dizendo: - Ótimos, estão ótimos, deb.
estão todos bem. vim cá para assistir a uma conferência sobre comércio europeu.
dennis entrou em contato comigo. ah, aqui está simon. dennis luxford, o meu irmão
simon. a minha cunhada. e helen clyde. como estás? há anos que não nos víamos,
não é?

- desde a primeira oitava, no natal do ano passado - respondeu helen. - em casa dos
teus pais, mas havia tanta gente que estás perdoado por não te lembrares.

- de certeza que passei a maior parte da tarde rondando a mesa do bufet e


depenicando. - david passou as mãos pelo estômago dilatado, a única característica
que o distinguia do irmão mais novo. fora isso, ele e st. james eram, como todos os
outros irmãos, de resto, incrivelmente parecidos, partilhando o mesmo cabelo negro
encaracolado, a mesma estatura, as mesmas formas angulosas e a mesma cor de
olhos, um tom indefinido, entre o cinzento e o azul. a sua indumentária era, de fato,
tal como cotter descrevera: esquisita. começando nas sandálias birkenstock e nas
peúgas escocesas e acabando no casaco de tweed e na camisa pólo, david era a
personificação do ecletismo, o desespero da família em matéria de elegância
vestimentar. era genial nos negócios, tendo quadruplicado os lucros da companhia
de navegação da família desde que o pai de ambos se reformara, mas a julgar pela
sua aparência ninguém o adivinharia.

- preciso da tua ajuda. - david dirigiu-se para uma das duas poltronas de couro junto
à lareira. com a segurança de um homem habituado a comandar uma legião de
funcionários fez sinal aos outros para que se sentassem também. - para ser mais
exato, dennis precisa da tua ajuda. foi por isso que viemos.

- que tipo de ajuda? - st. james observou o homem que estava com o irmão.
permanecia de pé, um pouco afastado da luz, junto da parede na qual deborah
pendurava habitualmente uma seleção variável das suas fotografias. luxford,
concluiu st. james, tinha uma aparência extremamente forte e saudável, um homem
de meia-idade de estatura relativamente modesta. vestia um blazer azul impecável,
gravata de seda e calças castanho-claras que lhe davam um ar de galanteador, mas
o seu rosto arvorava uma expressão de desconfiança moderada que, nesse
momento, parecia fundir-se com alguma incredulidade. st. james conhecia a origem
desta última, embora ao reconhecê-la nunca fosse capaz de evitar uma sensação
momentânea de desapontamento. dennis luxford queria ajuda por alguma razão,
mas não esperava encontrá-la num indivíduo que era, obviamente, aleijado. st.
james queria dizer, «É só a perna, sr. luxford. as minhas capacidades intelectuais
são as mesmas de sempre.» em vez disso, esperou que o outro falasse, enquanto
helen e deborah se acomodavam no sofá e numa otomana, respectivamente.

luxford não parecia satisfeito com o fato de as duas mulheres se prepararem,


aparentemente, para presenciar toda a conversa.

- este é um assunto pessoal, extremamente confidencial. não estou disposto...

david st. james interrompeu-o.

- estas são as três únicas pessoas deste país com menos probabilidades de vender
a tua história à comunicação social, dennis. aposto até em como nem sequer sabem
quem tu és. - depois, voltando-se para os outros, perguntou: - sabem? não
interessa. vejo pelas vossas caras que não.

passou então a explicar. ele e luxford haviam sido colegas na universidade de


lancaster, adversários na discussão de idéias e companheiros de farra depois dos
exames. acabados os estudos tinham mantido o contato ao longo dos anos,
acompanhando os sucessos profissionais um do outro.

- dennis é escritor - informou david. - o melhor escritor que já conheci, juro. -


segundo david, o outro viera para londres para singrar no campo da literatura, mas
deixara-se seduzir pelo jornalismo e decidira enveredar por aí. começara como
correspondente político do guardian e atualmente era editor.

- do guardian? - perguntou st. james.

- the source - corrigiu luxford, - desafiando com o olhar aquele que entre eles
resolvesse comentar o fato. começar uma carreira no guardian e acabar por ir parar
ao the source não podia ser considerado como o exemplo perfeito de uma ascensão
celeste no destino pessoal de um indivíduo, mas luxford parecia não estar disposto a
admitir qualquer tipo de juízo a seu respeito.

david ignorou, aparentemente, o olhar lançado pelo amigo e acrescentou com um


gesto de cabeça na direção de luxford:

- ele tomou conta do the source há seis meses atrás, simon, depois de ter levado o
globe ao primeiro lugar de vendas. era o editor mais jovem da história de fleet street,
no tempo em que dirigia o globe, e o mais bem sucedido também. o que ainda é. até
o sunday times reconheceu isso. dedicaram-lhe um número considerável de páginas
na edição da revista. quando é que isso foi, dennis?

luxford ignorou a questão, parecendo incomodado com os comentários elogiosos de


david. depois de refletir durante alguns momentos, disse:

- não disse para david. isto não vai resultar. há demasiadas coisas em risco. eu não
devia ter vindo.

deborah mexeu-se.

- nós saímos - disse. - vamos, helen?

st. james, no entanto, estudava o editor e algo nele, uma habilidade natural para
manipular a situação, talvez levou-o a dizer:

- helen trabalha comigo, sr. luxford. se precisar da minha ajuda acabará por
necessitar igualmente da ajuda dela, ainda que neste preciso momento essa
situação pareça improvável. e, na realidade, partilho a maior parte do meu trabalho
com a minha mulher.

- está tudo dito, então - disse luxford, fazendo menção de partir.

david st. james chamou-o de volta. - vais ter de confiar em alguém - disse, voltando-
se para o irmão. - a questão é que está em jogo a carreira de um conservador.
julgava que isso deveria ser do seu agrado st. james - disse para luxford. - o the
source nunca escondeu as suas tendências políticas. trata-se da carreira de um
conservador muito especial - disse david para st james - conta-lhe, dennis. ele pode
ajudar-te. É ele ou um estranho que poderá não partilhar dos mesmos princípios
éticos do simon. ou então escolhe a polícia, mas sabes onde isso te levará.

enquanto dennis luxford considerava as opções que lhe restavam, cotter entrou
trazendo o café e o bolo de chocolate. pousou o enorme tabuleiro sobre a mesa do
café, em frente de helen, e voltou a olhar na direção da porta, onde uma pequena
cadela dachshund, de pêlo longo, observava a cena.

- tu - disse cotter peach, - não te disse para ficares na cozinha? - a cadela abanou a
cauda e ladrou. - gosta de chocolate... sabem - explicou cotter.

- gosta de tudo - corrigiu deborah, passando as chávenas que helen ia enchendo


com café. cotter pegou no cão e encaminhou-se para as traseiras da casa. pouco
depois ouviram-no subindo as escadas. - leite e açúcar, sr. luxford? - perguntou
deborah em tom amigável, como se o outro não tivesse questionado a sua
integridade, momentos antes. - não quer um pouco de bolo? foi o meu pai que o fez.
ele é um cozinheiro extraordinário.

a atitude de luxford demonstrava que sabia que a decisão de dividir com eles as
suas outras preocupações e o bolo, na situação presente significaria transpor uma
linha que ele preferiria não pisar. no entanto, aceitou. encaminhou-se para o sofá e
sentou-se na beira, pensativo, enquanto deborah e helen continuavam a servir o
bolo e o café. por fim, disse:

- está bem. pelo que vejo, não me restam muitas alternativas. - levou uma das mãos
ao bolso interior do casaco, exibindo os suspensórios de caxemira, que tanto tinham
impressionado cotter. tirou um envelope e entregou-o a st. james, explicando que o
mesmo viera juntamente com o correio da tarde.

st. james examinou o envelope antes de retirar o que ele continha. leu a curta
mensagem. dirigiu-se de imediato à sua secretária e remexeu na gaveta lateral por
momentos, encontrando um saco de plástico dentro do qual enfiou o pequeno
pedaço de papel.

- mais alguém lhe mexeu? - perguntou.

- apenas nós dois.

- Ótimo. st. james - entregou o saco de plástico a helen. - charlotte. quem é ela? e
quem é o seu primogênito? - perguntou a luxford.

- É ela, charlotte. foi raptada.

- não participou às autoridades?

- não podemos envolver a polícia nisto, se é a isso que se refere. não podemos
arriscar-nos a atrair nenhum tipo de publicidade.

- não haverá publicidade - esclareceu st. james. - os regulamentos exigem que os


raptos sejam mantidos sob sigilo. está ciente disso, não está? parto do princípio que
um jornalista...

- estou ciente de que, em casos de rapto, a polícia fornece informações atualizadas,


enviando relatórios diários aos jornais luxford - retorquiu em tom zangado. - as
partes envolvidas concordam em que nada seja publicado até que a vítima tenha
sido devolvida à família.

- qual é, então, o problema, sr. luxford?

- a identidade da vítima.

- a sua filha.

- sim, minha e de eve bowen.

o olhar de helen cruzou-se com o de st. james no momento em que lhe devolveu o
bilhete do raptor. ele viu-a erguer as sobrancelhas. deborah dizia:

- eve bowen? não me é muito familiar... simon? sabes...?

- eve bowen, - informou david, - era a subsecretária de estado para o ministério do


interior e um dos mais populares jovens ministros do governo conservador. era uma
mulher em ascensão que, com incrível rapidez, galgava os degraus da escadaria de
sucesso que a transformaria na próxima margaret thatcher do país. era deputada por
marylebone, de onde a filha aparentemente desaparecera.

- quando recebi isto pelo correio - luxford apontou para a carta telefonei
imediatamente a eve. para ser honesto pensei que se tratava de uma artimanha.
julguei que alguém, de alguma maneira, ligara os nossos dois nomes, pensei que
alguém estava a tentar provocar uma reação da minha parte que me levasse a pôr
em evidência a nossa relação passada, supus que alguém necessitava de uma
espécie de comprovativo que entre mim e eve existe um elo de ligação que é
charlotte, e que essa prova seria a encenação, e a minha reação a essa encenação,
do rapto de charlotte.

- por que razão alguém quereria obter provas da sua ligação com eve bowen? -
perguntou helen.

- para vender a história para a comunicação social. não é difícil imaginar a atuação
da imprensa caso fosse tornado público que eu, logo eu, sou o pai da única filha de
eve bowen. em especial depois da forma como ela... - procurava, aparentemente,
um eufemismo que lhe escapava.

st. james concluiu a idéia sem recorrer a formulações agradáveis.

- À forma como ela, no passado, usou o estatuto ilegítimo da filha em seu proveito
próprio?

- ela fez disso o seu manifesto - admitiu luxford. - podem imaginar o festim que a
imprensa organizaria à custa dela, a partir do momento em que fosse divulgado que
o grande crime passional cometido por eve bowen envolvia alguém como eu.

st. james não tinha dificuldade em visualizar a cena. a deputada pelo círculo de
marylebone projatava desde há muito a imagem da mulher caída em desgraça que
se regenerara, que renunciara voluntariamente ao aborto, uma solução que
espelhava a erosão dos valores sociais, que tomara a atitude certa em relação à sua
filha ilegítima. a ilegitimidade da filha bem como o fato de eve bowen,
corajosamente, nunca ter revelado a identidade do progenitor constituía, só por si,
parte das razões que explicavam a sua eleição para o parlamento. publicamente
revelava-se fiel à moral, à religião, aos valores fundamentais, à solidariedade
familiar, à monarca e ao país. representava tudo aquilo que era objeto de escárnio
por parte do the source, relativamente aos políticos conservadores.

- a história trouxe-lhe muitas vantagens - disse st. james. - uma figura política que
reconhece em público as suas imperfeições. o eleitorado dificilmente resiste a isso.
já para não falar do primeiro-ministro, desejoso de reforçar o governo nomeando
mulheres. será que ele sabe que a criança foi raptada?

- nenhum dos membros do governo está ao corrente.

- e tem a certeza de que ela foi raptada? - st. james apontou a carta pousada sobre
o seu joelho. - isto está escrito em letra de imprensa. poderia perfeitamente ter sido
feito por uma criança. haverá alguma hipótese de que a própria charlotte esteja por
detrás disto? ela tem conhecimento da sua existência? será que isto é um esforço
para pressionar a mãe de alguma maneira?

- claro que não. ela só tem dez anos de idade, santo deus. eve nunca lhe contou
nada.

- tem a certeza disso?

- É óbvio que não posso ter certezas, apenas sei o que me disse.

- e você não contou a ninguém? É casado? contou o caso à sua mulher?

- não disse nada a ninguém - disse firmemente, ignorando as outras duas perguntas.
- eve diz que também não contou, mas deve ter deixado escapar alguma coisa, em
dado momento, uma referência, uma observação casual. deve ter dito alguma coisa
a alguém que tem qualquer ressentimento contra ela.

- e contra si, ninguém guarda ressentimentos? - os olhos escuros de helen


revelavam honestidade e uma expressão cândida que traduziam o seu completo
desconhecimento da principal filosofia do the source: desenterrar os podres
rapidamente e publicá-los em primeiro lugar.

- metade do país, atrevo-me a dizer - admitiu luxford. - todavia, a notícia de que eu


sou o pai da filha ilegítima de eve bowen poucos estragos fará na minha carreira
profissional. serei alvo de ridículo durante algum tempo, tendo em conta as minhas
opções políticas, mas nada mais do que isso. É eve, e não eu, quem se encontra
numa posição vulnerável.

- então porque é que lhe enviaram a carta a si? - perguntou st. james.

- ambos recebemos uma carta. a minha veio pelo correio, a dela esperava-a em
casa, tendo sido entregue em mão durante o dia, segundo informações da
governanta.

st. james voltou a examinar o envelope onde fora enviada a carta endereçada a
luxford. o carimbo dos correios indicava a data de dois dias antes.

- quando é que charlotte desapareceu?

- esta tarde, algures entre blandford street e devonshire place mews.

- houve algum pedido de dinheiro?

- só o reconhecimento público da paternidade de charlotte.

- que você não está disposto a fazer?

- estou, sim. preferia não o fazer, pois isso causar-me-á algumas dificuldades, mas
estou disposto a fazê-lo. É eve quem nem quer ouvir falar disso.

- esteve com ela?

- falei com ela. depois telefonei a david. lembrei-me que ele tinha um irmão... sabia
que você estava ligado a investigações criminais, ou que pelo menos tinha estado.
pensei que poderia ajudar-me.

st. james abanou a cabeça e devolveu a luxford a carta e o envelope.

- não me compete a mim tratar de casos como este. pode ser tratado com discrição
pel...

- ouça o que lhe digo. - luxford não tocara nem no bolo nem no café, mas segurava
agora a chávena de café. bebeu um gole e voltou a colocar a chávena no pires. um
pouco do café transbordou, molhando-lhe os dedos, mas ele não esboçou qualquer
movimento para limpá-los. - você não conhece a verdadeira forma de atuar dos
jornais. a polícia começará por ir a casa de eve, sem que ninguém fique a sabê-lo, é
certo. no entanto, os investigadores precisarão de conversar com ela mais do que
uma vez e não estarão dispostos a esperar uma hora até que ela se retire para
marylebone. irão avistar-se com ela ao ministério do interior, que é bastante próximo
da scotland yard, e é quase certo que este rapto em particular será entregue à
scotland yard a menos que façamos alguma coisa para afastar essa possibilidade
agora.
- a scotland yard e o ministério estão dependentes um do outro - assinalou st. james.
- sabe disso. ainda que tal fosse desnecessário, os investigadores nunca iriam
visitá-la de uniforme.

- acha mesmo que eles precisam de uniforme? - perguntou luxford. não há um único
jornalista que não consiga distinguir um polícia. um polícia aparece, então, no
ministério do interior e pergunta pela subsecretária de estado. o correspondente de
um dos jornais vê-o. alguém no ministério do interior está disposto a farejar: uma
secretária, um funcionário do arquivo, um porteiro, um funcionário público de quinta
linha atolado em dívidas e com uma atração excessiva por dinheiro. seja de que
maneira for acaba sempre por acontecer. alguém fala com o correspondente e as
atenções do seu jornal passam a estar concentradas em eve bowen. quem será esta
mulher, começa a inquirir o jornal. o que se passará para que a polícia tenha vindo
visitá-la? quem é o pai da filha dela, afinal? É só uma questão de tempo até que
estabeleçam a ligação entre charlotte e eu próprio.

- se não falou disso a ninguém, é pouco provável - disse st. james.

- o que eu disse ou não disse não tem importância - volveu luxford. - a questão é
que eve disse. ela afirma que não, mas deve tê-lo feito. alguém sabe. alguém
aguarda. o envolvimento da polícia, que é o que o raptor espera que façamos, é a
via perfeita para levar a história ao conhecimento da imprensa. se isso acontecer
será o fim de eve. terá de demitir-se do cargo governamental e estou quase certo de
que perderá também o mandato parlamentar. se não for agora, em consequência
deste caso, será nas próximas eleições.

- a menos que ela conquiste a solidariedade da opinião pública e, nesse caso, tudo
isto seria altamente vantajoso para os interesses dela.

- esse - disse luxford, - é um comentário particularmente maldoso. o que é que está


a sugerir? ela é a mãe de charlotte, por amor de deus.

deborah voltou-se para o marido. permanecera sentada de frente para ele, mas
nesse momento levantou-se, tocando ao de leve na perna sã dele.

- podes chegar aqui, simon? - perguntou.

st. james viu que ela estava ruborizada e desde logo lamentou tê-la deixado
participar na conversa. mal se apercebera de que o assunto incluía uma criança
devia ter-lhe pedido que saísse da sala inventando um pretexto qualquer. as
crianças, a impossibilidade de as gerar eram a sua maior vulnerabilidade.

seguiu-a até à sala de jantar. encostada à mesa, com as mãos atrás das costas,
apoiadas na madeira polida, disse:

- sei o que estás a pensar, mas não se trata disso. não precisas de proteger-me.

- não quero envolver-me nisto, deborah. o risco é demasiado elevado. se alguma


coisa suceder com a miúda, não quero que isso me pese na consciência.
- mas isto não se parece com um caso típico de rapto, pois não? ninguém pediu
dinheiro, apenas publicidade. e não houve ameaças de morte. se não os ajudares
sabes perfeitamente que eles recorrerão a outra pessoa qualquer.

- ou irão à polícia, a quem deveriam ter-se dirigido desde início.

- mas tu já fizeste este tipo de trabalho antes. tal como helen. não recentemente, é
certo, mas fizeste-o no passado. e bem.

st. james continuou em silêncio. sabia o que devia fazer: aquilo que já fizera.
comunicar a luxford que não queria envolver-se no caso. contudo, deborah
observava-o, o rosto espelhando a fé inabalável que sempre depositara nele. para
agir da forma correta, ser sensato quando isso era necessário.

- podes impor um limite de tempo - disse ela, com prudência. - podes... e se lhe
disseres que lhe dedicas... quanto tempo, um dia? dois? para encontrar indícios,
para falar com as pessoas que a conheciam, para... não sei. para fazer alguma
coisa. porque se fizeres isso, pelo menos saberás que a investigação está a ser
desenvolvida da forma correta. e é isso que queres, não é? ter a certeza de que tudo
está a ter o tratamento correto?

st. james tocou-lhe na face. a pele estava quente. os olhos pareciam demasiado
grandes. ela própria tinha uma aparência quase infantil, apesar dos seus vinte e
cinco anos. não devia ter permitido que ela escutasse a história de luxford, pensou
novamente. devia tê-la mandado embora, pedindo-lhe que fosse trabalhar nas
fotografias. devia ter insistido. devia... st. james recobrou a razão abruptamente.
deborah tinha razão. queria sempre protegê-la. tinha uma verdadeira paixão por
isso. era esse o principal escolho do casamento deles, a maior das desvantagens de
ser onze anos mais velho do que ela e de a conhecer desde o berço.

- eles precisam de ti - disse ela. - acho que deverias ajudá-los, pelo menos falar com
a mãe, ouvir o que ela tem para dizer. poderias fazê-lo esta noite. tu e helen podem
ir vê-la. - já. procurou a mão dele, que ainda lhe acariciava a face.

- não posso prometer dois dias - disse ele.

- isso não terá importância, desde que estejas envolvido. farás isso, então? sei que
não te arrependerás.

já estou arrependido, pensou st. james, mas assentiu com a cabeça.

dennis luxford dispunha de muito tempo para arrumar as idéias antes de regressar a
casa. vivia em highgate, que ficava para norte, a uma distância considerável da casa
dos st. james, próximo do rio, em chelsea. enquanto conduzia o seu porsche através
do trânsito pôs ordem nos seus pensamentos e compôs um semblante que,
esperava ele, a mulher não seria capaz de penetrar.

telefonara-lhe depois de ter falado com eve. a hora de chegada prevista mudara,
explicara-lhe. desculpa, querida. surgiu um imprevisto, tenho um fotógrafo em south
lambeth à espera que o rapaz de aluguel de larnsey saia de casa dos pais; tenho um
repórter a postos para recolher as declarações do rapaz, vamos manter as
impressoras em suspenso tanto quanto pudermos para incluí-las na edição da
manhã. tenho de manter-me por aqui. estou a perturbar os teus planos para esta
noite?

fiona respondeu que não. estava a ler uma história a leo quando o telefone tocara,
ou melhor estivera a ler com leo, já que ninguém lia para leo quando ele próprio
queria ler. escolhera giotto, confessara fiona com um suspiro. de novo. tenho sérias
esperanças de que ele possa vir a interessar-se por um outro período da história da
arte. ler sobre pintura religiosa faz-me realmente sono.

- É bom para a alma, - dissera luxford numa inflexão que ele pretendia fosse
divertida, embora os seus verdadeiros pensamentos fossem: na idade dele, não
deveria estar a ler livros sobre dinossauros? constelações? caçadores de caça
grossa? cobras e sapos? porque diabo é que uma criança de oito anos lia sobre um
pintor do século catorze? e por que razão é que a mãe dele encorajava esse tipo de
leituras?

eram demasiado próximos, pensou luxford não pela primeira vez. leo e a mãe
partilhavam a mesma alma. far-lhe-ia um bem enorme partir finalmente para
baverstock school, onde permaneceria ao longo do trimestre de outono. a idéia não
era do agrado de leo, e de fiona ainda menos, mas luxford sabia que seria vantajoso
para ambos. baverstock fora bom para ele próprio, não fora? fizera dele um homem?
orientara-o? não fora o fato de ter freqüentado uma escola privada como aluno
interno que o fizera chegar onde chegara?

interrompeu os pensamentos sobre a posição que ocupava hoje, esta noite, neste
exato minuto. tinha de obliterar da memória a recordação da carta e de tudo o que
se lhe seguira. era a única forma de manter as aparências.

todavia, as idéias embatiam como pequenas ondas de encontro às barreiras que ele
construíra para bloqueá-las, e no centro desses pensamentos estava a conversa
que mantivera com eve.

nunca mais lhe falara desde que ela lhe comunicara que estava grávida, havia
muitos anos, cinco meses depois do último dia da conferência do partido
conservador, onde se tinham conhecido. conhecido não era o termo exato, porque
ele já a conhecia desde os tempos da universidade, de passagem, do pessoal do
jornal, e achava-a atraente mesmo que considerasse as opções políticas dela
abjetas. quando a vira em blackpool, no meio dos corretores do poder do partido
conservador, cinzentos desde os fatos que usavam aos rostos que ostentavam, sem
esquecer os cabelos grisalhos, a atração e a aversão haviam permanecido
inalteradas. nessa época, porém, eram ambos jornalistas ele no seu segundo ano
como diretor do globe e ela como correspondente política do daily telegraph e
tiveram oportunidade, jantando e bebendo no meio dos outros colegas, de discutir o
aparente controle das rédeas do poder por parte dos conservadores. o debate
intelectual levou ao debate entre os corpos. mas isso não sucedera apenas uma
vez; para um ato isolado, sempre era possível arranjar uma desculpa, atribuí-lo ao
excesso de álcool e a um desejo sexual ainda mais excessivo e esquecer tudo logo
de seguida. em vez disso, porém, o caso continuara com a mesma intensidade
durante todo o tempo que durara a conferência. o resultado fora charlotte.

onde teria ele a cabeça? luxford perguntou a si próprio. conhecia fiona havia um
ano, à época da conferência, sabia que tencionava casar com ela, empenhara-se
em conquistar a sua confiança e o seu coração, já para não falar no seu corpo
voluptuoso, e na primeira oportunidade que se lhe apresentava estragava tudo. não
totalmente, porém, porque não só eve não quisera casar com ele como nem quisera
ouvir falar em casamento quando ele o propusera, apressadamente, depois de saber
que ela estava grávida. estava empenhada em construir uma carreira política e o
casamento com dennis luxford não encaixava no plano de concretização dessa
carreira.

- meu deus - exclamara, - julgavas que eu iria prender-me ao rei da podridão só para
ter o nome de um homem na certidão de nascimento do meu bebé? deves ser mais
doido do que as tuas opções políticas deixam entrever.

assim se tinham despedido e, ao longo dos anos que se seguiram, à medida que ela
ia subindo os degraus do poder, dizia por vezes para si próprio que eve lograra fazer
com sucesso aquilo que ele não conseguira: operara um corte cirúrgico na memória
e amputara o apêndice solto do seu passado.

assim não acontecera, porém, como ele tivera ocasião de descobrir quando lhe
telefonara. a existência de charlotte não o permitia.

- o que é que pretendes? - perguntara-lhe ela quando conseguira finalmente


localizá-la, no gabinete do líder parlamentar na casa dos comuns. - porque estás a
telefonar-me? - falara num tom de voz baixo e seco, e como ruído de fundo ouviam-
se outras vozes.

- preciso de falar contigo - dissera-lhe.

- para ser sincera, não partilho desse desejo.

- É sobre charlotte.

ouviu-a libertar um suspiro zangado, mas o tom de voz manteve-se inalterado.

- ela nada tem que ver contigo e tu sabe-lo.

- evelyn - disse, com urgência, - sei que o meu telefonema é inesperado.

- extraordinariamente oportuno.

- desculpa-me, consigo perceber que não estás sozinha. podes mudar para uma
linha privada?

- não faço qualquer tenção...

- recebi uma carta. acusatória.


- isso nada tem de surpreendente. julgava que uma carta contendo uma acusação
contra ti era um acontecimento habitual na tua vida.

- alguém sabe.

- o quê?

- sobre nós. sobre charlotte.

estas palavras pareceram enervá-la, ainda que por breves instantes. ficou calada, a
princípio. ele julgou ouvir o tamborilar de um dedo no auscultador. depois disse,
abruptamente:

- isso é um disparate.

- ouve, limita-te a ouvir. - leu a curta mensagem. depois de a escutar ela nada disse.
algures no gabinete onde se encontrava soou uma gargalhada masculina. - filho
primogênito, é o que aqui diz - disse luxford. - alguém sabe. fizeste confidências a
alguém?

- libertada? - disse ela. - charlotte será libertada? - seguiu-se outro silêncio em que
luxford quase conseguia ouvi-la avaliar mentalmente a dimensão dos potenciais
prejuízos para a sua credibilidade e calcular a extensão da sua irradiação política. -
dá-me o teu número pediu, por fim. voltarei a ligar-te.

e fizera-o, mas dessa vez era uma eve diferente que estava ao telefone.

- dennis, raios te partam. o que é que fizeste?

não houve choros, nem terror, nem histeria maternal, nem sentimentos de culpa ou
de raiva. apenas estas nove palavras, e, para ele, o fim da esperança de que
alguém estivesse a tentar enganá-lo. aparentemente, ninguém estava a fazê-lo.
charlotte tinha desaparecido. alguém a levara, alguém ou alguém a soldo de outro
alguém que sabia a verdade.

tinha de ocultar essa verdade de fiona. ao longo dos dez anos de casamento deles,
ela encarara o fato de não lhe ocultar nada como uma missão sagrada. nem queria
pensar no que aconteceria ao sentimento de confiança que existia entre ambos se
ela viesse a descobrir o único segredo que calara. já era suficientemente mau ser o
pai de uma criança que nunca vira. fiona poderia aprender a perdoar-lhe isso. mas
ter gerado essa criança durante o período em que a cortejava, enquanto estabelecia
laços íntimos com ela... passaria a encarar tudo o que se passara entre eles a partir
desse momento como uma qualquer variante da deslealdade. e esta, ela nunca
perdoaria.

luxford virou para highgate road. contornou a curva de millfield lane, ao longo de
hampstead heath, onde as pequenas luzes que oscilavam ao longo da margem dos
lagos indicavam que, apesar da hora e da escuridão, alguns ciclistas ainda se
deliciavam com o bom tempo dos últimos dias do mês de maio. abrandou quando o
muro de tijolos da sua propriedade emergiu por entre a sebe de aliena e azevinho.
atravessou as colunas da entrada e venceu a inclinação da alameda de acesso à
vivenda onde moravam há oito anos.

fiona estava no jardim. À distância, luxford viu o ondular do vestido branco de


musselina que se destacava num fundo de fetos verde-esmeralda e foi ao seu
encontro. seguiu a disposição casual das pedras que compunham o pavimento, as
solas dos sapatos roçando flores já tocadas pela umidade da noite. se a mulher
tinha ouvido o ruído do carro não dera sinais disso. caminhava na direção da maior
árvore do jardim, uma bétula em forma de chapéu-de-sol, sob a qual se encontrava
um banco de madeira num dos extremos do lago do jardim.

estava enroscada no banco quando ele chegou junto dela, as longas pernas de
manequim e os pés bem feitos escondidos sob as pregas do vestido. prendera o
cabelo afastando-o do rosto e a primeira coisa que fez, quando se sentou ao lado
dela e depois de a ter beijado com ternura, foi soltá-lo para que ele caísse sobre os
seios dela. sentiu o mesmo frémito de sempre, um misto de respeito, desejo e
espanto pelo fato de esta criatura gloriosa ser de fato sua mulher.

sentia-se grato pela escuridão, que tornava este primeiro encontro entre ambos mais
fácil. estava igualmente grato pelo fato de ela ter decidido sair de casa, pois o jardim,
a proeza mais perfeita da sua vida doméstica, como ela gostava de dizer fornecia-
lhe meios para a distrair.

- não tens frio? perguntou. - queres o meu casaco?

- está uma noite maravilhosa - respondeu ela. - não conseguia ficar dentro de casa.
achas que vamos ter um verão horrível, com o tempo magnífico que estamos a ter
neste mês de maio?

- regra geral é isso que acontece.

um peixe agitou a superfície do lago, à frente deles, tocando com a barbatana


caudal num arranjo de lírios.

- não é justo disse - fiona. - a primavera deveria ser uma promessa a ser cumprida
pelo verão. - indicou com um gesto um grupo de jovens vidoeiros, numa clareira a
cerca de dois metros de distância do local onde estavam sentados. - os rouxinóis
voltaram este ano, e esta tarde leo e eu vimos uma família de tange-asnos,
enquanto dávamos de comer aos esquilos. querido, temos de ensinar leo a não dar
de comer aos esquilos com a mão. já lhe falei sobre isso vezes sem conta. ele
responde que em inglaterra não há raiva e recusa-se a reconhecer o risco a que
está a submeter o animal ao permitir-lhe que se habitue demasiado ao contato
humano. falas com ele, amanhã?

se falasse com leo acerca de qualquer coisa, pensou luxford, não seria sobre
esquilos. a curiosidade em relação aos animais era uma característica comum a
todos os rapazes em fase de crescimento, graças a deus.

fiona prosseguiu. luxford apercebeu-se de que ela falava com cuidado, o que lhe
provocou algum desconforto até perceber claramente o tema de conversa que ela
escolhera.

- ele voltou a mencionar baverstock, querido. parece tão relutante, não reparaste?
estou cansada de lhe explicar que foi a escola que freqüentaste e de lhe perguntar
se ele não gostaria realmente de ser um verdadeiro baverniano como o pai. ele diz
que não, que a idéia não o atrai particularmente, e adianta que isso não fará
diferença alguma quando nem o avô nem o tio jack são antigos alunos de
baverstock, e nenhum deles se deu nada mal por causa disso.

- já falamos sobre isto, fiona.

- claro que sim, querido. inúmeras vezes. apenas quero dizer-te aquilo que leo disse,
para que estejas prevenido amanhã de manhã. disse-me que iria falar contigo
acerca disto ao pequeno-almoço, de homem para homem, disse ele, desde que tu já
estejas acordado quando ele sair para a escola. eu disse-lhe que virias tarde, hoje.
ouve, querido. É o rouxinol. como é encantador. sempre conseguiste a história,
afinal? - por pouco luxford não cometeu um deslize. a voz dela soara tão suave.
deleitava-se com o toque macio do cabelo dela na palma da mão, tentando
identificar o perfume que ela usava. pensara na última vez que tinham feito amor
fora de portas. por isso quase não percebera a delicada transição, o desvio do tema
de conversa de uma forma suave e feminina.

- não - disse, e prosseguiu com a verdade, satisfeito por poder dizer-lhe algo que
não era mentira. - o rapaz de aluguel continua escondido. imprimimos sem ele.

- imagino que seja horrível ter de desperdiçar uma noite para nada.

- um terço do meu trabalho consiste em esperar em vão, outro terço é decidir o que
aparecerá, em vez de nada, na primeira página da edição de amanhã. rodney
sugere que suspendamos a história. tivemos uma reunião para discutir isso, esta
tarde.

- ele ligou-te esta noite. talvez fosse por causa disso. disse-lhe que ainda estavas no
escritório. disse-me que tinha telefonado para lá, mas que não conseguira apanhar-
te, que a tua linha privada não respondia. cerca das oito e meia. suponho que
tenhas saído para ir comer qualquer coisa, não foi?

- julgo que sim. oito e meia?

- foi o que ele disse.

- comi o meu sanduíche por volta dessa hora, julgo eu. - luxford mexeu-se no banco,
sentindo-se pegajoso e desconfortável. nunca mentira à mulher, pelo menos nunca
lhe dissera uma única mentira sobre o tédio infinito que sentira durante aquela fatal
conferência do partido conservador, em blackpool. e fiona não estava casada com
ele nessa época, pelo que isso pouco pesava no departamento da verdade e da
fidelidade, não era? suspirou e apanhou a lasca de uma pedra, atirando-a para o
lago com o polegar. observou o súbito surto de interesse que agitava a superfície da
água, à medida que os peixes se precipitavam para o local na esperança de capturar
um inseto.
- devíamos tirar umas férias - disse. - no sul de frança. alugar um carro e atravessar
a provença de carro. arrendar uma casa durante um mês. que dizes? este verão?

ela riu suavemente. ele sentiu a mão fresca na nuca, os dedos dela que se
enterravam no seu cabelo.

- quando é que alguma vez ficarás um mês afastado do jornal? enlouquecerias de


tédio no espaço de uma semana. já para não falar do tormento que te invadiria
quando pensasses em rodney aronson autopromovendo-se, atarefadíssimo, junto de
toda a gente, desde o presidente do conselho de administração aos empregados de
limpeza. ele quer o teu lugar, sabes.

sim, pensou luxford, é exatamente isso que rodney aronson pretende. controlava
todos os movimentos e decisões de luxford desde que este chegara ao the source, à
espera que ele cometesse o único erro que ele poderia submeter à atenção do
diretor e assegurar assim o seu futuro. se a existência de charlotte bowen pudesse
ser designada como esse único erro... todavia, não havia qualquer possibilidade de
rodney saber da existência de charlotte. não havia qualquer possibilidade. nenhuma.

- estás tão calado - comentou fiona. - estás exausto?

- estou só a pensar.

- sobre?

- a última vez que fizemos amor no jardim. não consigo recordar-me de quando foi,
só me lembro de que choveu.

- em setembro passado. - olhou-a por cima do ombro.

- lembras-te?

- além junto dos vidoeiros, onde a relva é mais alta. bebemos vinho e comemos
queijo. havia música no interior da casa e tínhamos aquela velha manta que está na
mala do teu carro.

- tínhamos?

- tínhamos

ela estava maravilhosa, à luz do luar. parecia a obra de arte que na realidade é.
lábios carnudos convidativos, a curvatura do pescoço que convida a um beijo, o
corpo escultural uma tentação sem palavras.

- essa manta - assinalou luxford - ainda está na mala.

os lábios carnudos mexeram-se. - vai buscá-la - pediu ela.

eve bowen, subsecretária de estado para o ministério do interior e deputada pelo


círculo de marylebone desde há seis anos, vivia em devonshire place mews, uma
correnteza em forma de gancho, com pavimento calcetado e ladeada por uma fileira
de estábulos e de garagens antigas há muito convertidos em prédios de habitação. a
casa dela situava-se no extremo nordeste do arruamento, num edifício com a largura
de dois composto por três pisos de ardósia, madeira branca e tijolo cobertos por um
telhado em forma de terraço de onde pendiam ramos de hera.

st. james falara com a ministra antes de sair de chelsea. fora luxford quem fizera a
ligação.

- encontrei uma pessoa, evelyn. tens de falar com ela - informou-a, passando o
telefone a st. james sem esperar pela resposta.

a conversa entre st. james e a deputada fora breve: ele iria vê-la imediatamente,
acompanhado de uma colega, haveria alguma coisa que a ministra gostaria que ele
soubesse antes do encontro entre ambos?

a sua reação inicial consistira numa interrogação brusca.

- de onde é que conhece luxford?

- através do meu irmão.

- quem é ele?

- um empresário que está na cidade para participar numa conferência. veio de


southampton.

- ele tem algum interesse especial neste caso?

- em relação ao governo? ao ministério do interior? tenho sérias dúvidas quanto a


isso.

- está bem. - deu-lhe a morada e concluiu com um aviso. - mantenha luxford fora
disto. se lhe parecer que a casa está sob vigilância não pare e adiaremos a
conversa para mais tarde. fui clara?

fora, de fato. um consciencioso quarto de hora depois de luxford ter saído, st. james
e helen clyde iniciaram o percurso que os conduziria a marylebone. pouco passava
das onze horas quando abandonaram a rua principal e viraram para devonshire
place mews. depois de percorrerem o arruamento de um extremo ao outro,
assegurando-se de que não havia espiões nas proximidades, st. james estacionou o
seu velho mg em frente à casa de eve bowen, puxando suavemente o travão de
mão. uma luz suspensa no pórtico iluminava a porta principal. no interior, outra luz
projatava fios de luz irregulares nos cortinados corridos das janelas do andar térreo.
ao tocarem à campainha ouviram de imediato o som de passos rápidos sobre um
pavimento de mármore ou de ladrilhos. alguém desprendeu uma tranqueta bem
oleada e a porta abriu-se.

- sr. st. james? - perguntou eve bowen. deu um passo atrás assim que a luz incidiu
sobre ela e depois de st. james e de helen terem entrado voltou a trancar a porta. -
por aqui - disse, encaminhando-se para a direita, através de um pavimento coberto
de ladrilhos de terracota, até uma sala de estar. sobre uma mesinha junto de uma
cadeira havia uma pasta diplomática aberta, de onde jorravam pastas de arquivo
forradas a papel pardo, páginas datilografadas, recortes de jornais, mensagens
telefônicas, documentos e panfletos. eve bowen fechou-a sem se deter para arrumar
o conteúdo. pegou num copo de vinho em vidro grosso de cor verde, esvaziou-o e
serviu-se de outra dose que tirou de uma garrafa de vinho branco colocada num
balde com gelo pousado no solo.

- gostaria de saber quanto é que ele vos está a pagar por esta charada - disse ela.

- perdão? - st. james sentiu-se confuso.

- luxford está por detrás disto, é claro. vejo, no entanto, pela sua reação que ele
ainda não o informou disso. muito sensato da parte dele. - instalou-se no mesmo
sítio onde aparentemente estivera sentada antes de eles chegarem e indicou-lhes
um conjunto de sofá e cadeiras que se assemelhavam a enormes almofadas cozidas
umas às outras. pousou o copo no colo, segurando-o com as duas mãos sobre a
saia aprumada e simples que fazia conjunto com um casaco escuro, riscado. ao vê-
lo, st. james lembrou-se de ter lido uma entrevista com a ministra pouco depois de
ela ter sido nomeada pelo governo para desempenhar as suas atuais funções como
subsecretária de estado do ministério do interior. ninguém a acusaria de usar os
mesmos estratagemas que as suas colegas dos comuns para atrair as atenções
sobre si, asseverara. não via necessidade de cobrir-se de cores berrantes para
afirmar a sua diferença em relação aos homens. a sua inteligência encarregar-se-ia
de o fazer.

- dennis luxford é um homem sem consciência - disse, abruptamente. as palavras


dela soaram ríspidas e foram ditas num tom cortante. - É um maestro que dirige a
sua orquestra particular. não de forma direta, é claro. atrevo-me a dizer que raptar
crianças de dez anos ultrapassa provavelmente a sua inclinação para recorrer a
processos ínvios. uma coisa é certa, porém, ele está a levá-los à certa e está a
tentar fazer o mesmo comigo. não o admitirei.

- o que a leva a pensar que ele possa estar envolvido? - st. james sentou-se no sofá
surpreendido com a comodidade do mesmo, não obstante a sua natureza amorfa.
colocou a perna deficiente numa posição mais confortável. helen permaneceu onde
estava, de pé junto à lareira perto de uma coleção de trofeus dispostos num nicho.
dali podia observar melhor bowen sem ser notada.

- porque existem apenas duas pessoas à face da terra que conhecem a identidade
do pai da minha filha. eu sou uma delas, dennis luxford é a outra.

- e a sua filha, sabe-o?

- É evidente que não. nunca o soube e é impossível que o tenha descoberto por ela
própria.

- os seus pais? a sua família?


- ninguém, sr. st. james, exceto dennis e eu própria. - lentamente bebeu um gole de
vinho. - o tablóide onde ele trabalha está apostado em derrubar o governo e, neste
momento, ele dispõe das circunstâncias ideais para esmagar o partido conservador
de uma vez por todas. É o que está a tentar fazer.

- não consigo acompanhar o seu raciocínio.

- É tudo muito oportuno, não acha? o desaparecimento da minha filha. um hipotético


bilhete do raptor na posse de luxford. a exigência de publicidade contida nesse
bilhete. e tudo isso no seguimento imediato dos imbróglios sexuais de sinclair
larnsey com um menor, em paddington.

- não me pareceu que o comportamento do sr. luxford fosse o de um homem


empenhado em arquitetar um rapto destinado a ser explorado pelos tablóides - fez
notar st. james.

- para os tablóides no plural, não - replicou ela. - para o tablóide, o mais singular
possível. ele dificilmente permitirá que a concorrência lhe roube a sua melhor
história.

- ele pareceu-me igualmente interessado em lidar com isto discretamente.

- sr. st. james, não me diga que além dos seus outros talentos, o senhor é também
um estudioso do comportamento humano?

- penso que é uma atitude sensata da minha parte proceder a uma avaliação das
pessoas que solicitam a minha ajuda, antes de concordar em ajudá-las.

- muito perspicaz. quando dispusermos de mais tempo, talvez o interrogue acerca da


avaliação que fez da minha pessoa. - pousou o copo ao lado da pasta, tirou os
óculos redondos de aros de tartaruga e limpou as lentes no braço da cadeira como
se estivesse a poli-los e, ao mesmo tempo, a estudar st. james. a cor da armação
em tartaruga era quase igual ao tom do irrepreensível cabelo de eve bowen, cortado
à pagem. quando voltou a colocar os óculos no nariz estes roçaram as pontas da
franja comprida que descia até às sobrancelhas, ocultando-as. - deixe-me perguntar-
lhe o seguinte. não acha estranho que o sr. luxford tenha recebido o aviso de rapto
por correio?

- É evidente que sim disse - st. james. - foi registado ontem e possivelmente enviado
anteontem.

- quando a minha filha estava em casa, em perfeita segurança. se examinarmos os


fatos concordaremos que estamos perante um raptor razoavelmente convencido do
sucesso final do rapto, no momento em que envia o bilhete por correio.

- ou - disse st. james - estamos perante um raptor que sabe que o fato de fracassar
não terá qualquer importância, porque se fracassar o bilhete não surtirá qualquer
efeito junto do destinatário. caso o raptor e o destinatário sejam a mesma pessoa, ou
caso o raptor tenha sido contratado pelo destinatário do bilhete.
- como vê...

- o selo de correio não me passou despercebido, miss bowen. e não costumo aceitar
textualmente aquilo que me é dito. estou disposto a concordar que dennis luxford
pode de algum modo estar por detrás disto, tal como estou disposto a suspeitar que
a senhora poderá estar envolvida.

os lábios dela arquearam-se por breves instantes. acenou bruscamente com a


cabeça.

- ora, muito bem disse. não está tão subordinado a luxford como ele imagina, não é
verdade? acho que está à altura da missão a desempenhar.

levantou-se e dirigiu-se a uma escultura de bronze em forma de trapézio suspensa


num pedestal, entre duas janelas amplas. inclinou a escultura e retirou debaixo dela
um envelope que entregou a st. james antes de voltar a sentar-se.

- isto foi entregue durante o dia, possivelmente entre a uma e as três da tarde de
hoje. a minha governanta, a sra. maguire, que já saiu, encontrou-o quando
regressava da sua visita semanal ao receptador de apostas. juntou-o ao outro
correio, como pode ver está endereçada a mim, e nunca mais se lembrou dele até
eu lhe ter telefonado às sete horas da tarde a perguntar por charlotte, depois de ter
falado com dennis luxford ao telefone.

st. james examinou o envelope que eve bowen lhe entregara. era branco, barato, o
gênero de envelope que podia ser adquirido em qualquer sítio, desde a papelaria
mais especializada à tabacaria de bairro. enfiou as mãos numas luvas de látex e
retirou o conteúdo do envelope. desdobrou a única folha de papel existente e
colocou-a dentro de outro saco de plástico, que trouxera de casa. retirou as luvas e
leu a mensagem curta.

“eve bowen

se quer saber o que aconteceu a lottie telefone ao pai dela.”

- lottie - observou st. james.

- É assim que ela se chama a si própria.

- como é que luxford a trata?

eve bowen não vacilou na sua convicção sobre o envolvimento de luxford.

- não seria impossível descobrir o nome, sr. st. james. É óbvio que alguém o fez -
disse.

- ou já o conhecia. - st. james mostrou a carta a helen, que a leu antes de falar. -
disse que telefonou à sra. maguire às sete horas de hoje, miss bowen. a essa altura
já a sua filha tinha desaparecido há algumas horas. a sra. maguire não se
apercebeu disso?

- apercebeu-se, sim.

- mas não a alertou?

a ministra mudou ligeiramente de posição na cadeira. a sua respiração pareceu soar


como um suspiro.

- charlotte portou-se mal por diversas vezes ao longo do ano passado, desde que
estou no ministério do interior. a sra. maguire sabe que eu espero que ela lide
sozinha com as travessuras de charlotte sem que isso interfira com o meu trabalho.
deve ter julgado que se tratava de um caso de desobediência.

- porquê?

- porque quarta-feira à tarde é o dia da lição de música de charlotte, uma atividade


que não lhe agrada particularmente. cumpre-a com dificuldade, semana após
semana, e na maioria das vezes ameaça atirar-se a ela própria ou à flauta pelo
esgoto abaixo. quando não apareceu logo depois da lição de hoje, a sra. maguire
atribuiu o fato a uma das suas pirraças habituais. só por volta das seis horas
começou a telefonar para vários sítios na tentativa de descobrir se charlotte teria ido
para casa de alguma colega de escola em vez de assistir à lição.

- ela vai para a lição de música sozinha, nesse caso?

a deputada pareceu dar-se conta da outra questão, inevitável apesar de não


verbalizada, implícita nas palavras de helen: seria verdade que uma miudita de dez
anos de idade vagueava pelas ruas de londres sem vigilância?

- as crianças deslocam-se aos magotes nos dias que correm, caso não tenham
reparado. charlotte raramente anda sozinha e quando isso acontece, a sra. maguire
esforça-se por acompanhá-la disse.

- esforça-se? - o termo não passou despercebido a helen.

- charlotte não gosta particularmente de ser conduzida por uma irlandesa obesa,
com uma predileção especial por calças de malha largas e uma camisola puída.
além disso, o que é que está aqui em jogo: o modo como eu entendo que se deve
lidar com os comportamentos infantis ou o paradeiro da minha filha?

st. james sentiu, mais do que viu, a reação de helen às palavras da deputada. a
atmosfera pareceu ganhar em tensão, sob o peso da irritação de uma, misturado
com a incredulidade da outra. todavia, nenhuma dessas emoções os ajudaria a
localizar a criança com mais facilidade. mudou de tática.

- nem quando descobriu que charlotte não fora para casa de uma colega de escola a
sra. maguire entrou em contato consigo?

- fui muito explícita acerca das responsabilidades que ela tinha para com a minha
filha na sequência de um incidente ocorrido o mês passado.

- que tipo de incidente?

- uma demonstração típica de teimosia. - a deputada bebeu outro gole de vinho.


charlotte escondera-se na sala da caldeira em st. bernadette, a escola que ela
frequenta, em blandford street, porque não queria ir à sessão habitual com o
psicoterapeuta. são sessões semanais às quais ela sabe que tem de comparecer,
mas todos os meses numa ou noutra ocasião insiste em não cooperar. essa foi uma
dessas ocasiões. a sra. maguire telefonou-me, em pânico, quando charlotte não
apareceu a horas, para ir a uma das sessões. fui obrigada a deixar o gabinete para ir
à sua procura. depois disso tive uma conversa com a sra. maguire em que lhe
expliquei claramente quais eram as suas responsabilidades para com a minha filha,
e quais as horas em que deveria exercer essas mesmas responsabilidades.

helen estava cada vez mais perplexa com a forma como a ministra entendia que
uma criança devia ser educada e parecia predisposta a aprofundar o interrogatório.
st. james impediu-a de continuar. não havia necessidade de colocar a ministra ainda
mais na defensiva, pelo menos de momento.

- onde decorre exatamente a lição de música?

ela disse-lhe que as lições eram ministradas nas proximidades da escola st.
bernadette, num bairro chamado cross keys close perto de marylebone high street.
charlotte fazia o percurso a pé até lá todas as quartas-feiras, depois das aulas. o
professor chamava-se damien chambers.

- a sua filha assistiu à lição de hoje?

a resposta foi afirmativa. a sra. maguire começara por telefonar ao sr. chambers
quando iniciara as buscas a charlotte, às seis horas da tarde. segundo ele, a criança
estivera presente na lição de música e saíra à hora habitual.

- teremos de falar com este indivíduo - explicou st. james. - e é provável que ele
queira saber a razão do nosso interrogatório. já pensou nisso e nas consequências?

eve bowen parecia ter aceito o fato de que até uma investigação particular do
desaparecimento da sua filha implicava inevitavelmente um interrogatório aos que a
tinham visto pela última vez. e estes não poderiam impedir-se de perguntar o que
levaria um aleijado e a colega deste a investigar e a seguir de perto os movimentos
de uma criança. era inevitável. a curiosidade dos inquiridos poderia induzi-los a
insinuar um elemento intrigante para um dos tablóides. esse, porém, era um risco
que a mãe de charlotte estava, aparentemente, disposta a correr.

- no ponto em que nos encontramos, a história não passa de especulação - disse


ela. - as coisas só ganham um caráter definitivo quando a polícia é envolvida.

- a especulação pode converter-se numa tempestade - observou st. james. - a


polícia tem de ser posta ao corrente, miss bowen. se não for a polícia local terá de
ser a scotland yard. presumo que terá poderes para o fazer, estando no ministério do
interior.

- tenho poderes para isso. e não quero a intervenção da polícia. está fora de
questão.

a expressão do rosto dela era inflexível. ele e helen podiam continuar a discutir o
assunto por mais um quarto de hora, mas st. james percebia que tal não passaria de
um esforço vão. encontrar a criança encontrá-la rapidamente era a questão central.
pediu uma descrição do modo como a criança estava vestida nessa manhã e uma
fotografia. eve bowen disse-lhes que não tinha visto a filha naquela manhã, nunca
via charlotte de manhã porque quando a filha acordava ela já saíra de casa há
muito. no entanto, ela estaria vestida com o uniforme da escola, naturalmente.
algures, no andar de cima, havia uma fotografia da filha vestida com ele. saiu da
sala para ir procurar a fotografia. ouviram os passos dela enquanto subia as
escadas.

- tudo isto é mais do que estranho, simon - comentou helen em voz baixa quando
ficaram a sós. - pelo comportamento dela quase poderíamos dizer - hesitou,
envolvendo o corpo com os braços... - não achas que a reação dela ao que se
passou com charlotte é muito pouco natural?

st. james ergueu-se e aproximou-se dos troféus para examiná-los de perto. neles
aparecia o nome de eve bowen e tinham sido ganhos em concursos de equitação.
não era de surpreender que ela tivesse conquistado doze ou mais primeiros lugares
numa atividade daquele tipo. perguntou a si próprio se a equipe política que ela
comandava responderia às suas ordens da mesma forma que o cavalo
aparentemente correspondera.

- ela julga que luxford está por detrás de tudo isto, - helen disse. - as intenções dele
não seriam magoar a criança, mas apenas intimidar a mãe, ao que ela parece não
estar disposta.

- ainda assim, seria de esperar que descobríssemos uma cissura ou duas em


privado.

- ela é uma figura política. não vai descobrir o jogo.

- mas é da filha dela que se trata. por que razão é que ela anda pelas ruas sozinha?
e o que é que a mãe andou a fazer desde as sete horas até agora? - helen fez um
gesto na direção da mesa, da pasta, dos documentos meio-saídos. - nunca me
ocorreria que a mãe de uma criança raptada, independentemente de quem a terá
raptado, fosse capaz de se concentrar no trabalho. não é natural, pois não? nada
disto é.

- concordo inteiramente, mas ela está plenamente consciente do efeito que isso
poderá ter sobre nós. não chegou onde chegou num espaço de tempo tão curto sem
saber antecipadamente o efeito que as coisas causam. - st. james examinou a
galeria de fotografias distribuída de forma irregular entre três plantas de interior,
sobre uma estreita mesa de vidro cromada. havia uma fotografia de eve bowen com
o primeiro-ministro, outra dela com o secretário de estado do interior e uma terceira
onde eve bowen aparecia ao lado da princesa real, que parecia distribuir saudações
a um grupo bastante reduzido de agentes policiais pertencentes a grupos sociais
minoritários.

- as coisas - disse helen, ironizando delicadamente com a palavra escolhida por st.
james - parecem-me consideravelmente desconexas.

o som de uma chave destravando a tranqueta da porta principal chegou até eles
enquanto helen proferia estas palavras. a porta abriu e voltou a fechar-se. o som da
tranqueta ressoou de novo. ouviu-se o som de passos no pavimento e um homem
surgiu à entrada da sala: quase um metro e oitenta de altura, ombros estreitos e
delgados. fixou os olhos escuros em st. james e helen, alternadamente, mas
manteve-se silencioso. tinha um ar fatigado, e o cabelo castanho-escuro estava
desalinhado de um modo juvenil, como se ele o tivesse revolvido com os dedos para
aumentar o afluxo de sangue ao cérebro.

- olá. onde está eve? - perguntou, finalmente.

- no andar de cima - respondeu st. james. foi procurar uma fotografia.

- uma fotografia? - olhou para helen e depois tornou a pousar o olhar em st. james.
pareceu ter lido algo nas expressões de ambos, porque o tom da sua voz perdeu a
indiferença afável para trair uma súbita desconfiança. - o que é que se passa? -
inquiriu. fez a pergunta com uma ponta de agressividade na voz, sugerindo que era
um homem habituado a que lhe respondessem de imediato e com deferência. nem
os membros do governo recebiam convidados perto da meia-noite, sem uma razão
de peso. - eve? - chamou com rispidez na direção das escadas e, virando-se para st.
james: - aconteceu alguma coisa a alguém? a eve está bem? o primeiro-ministro...

- alex - a voz de eve bowen soou para lá da linha de visão de st. james. ouviu-a
descer as escadas rapidamente.

- o que é que se passa? - perguntou-lhe alex.

ela contornou a questão passando a apresentar helen e st. james.

- o meu marido, alexander stone.

st. james não se recordava de ter alguma vez lido que a ministra era casada, mas
quando eve bowen apresentou o marido percebeu que isso deveria ter acontecido e
que ele provavelmente arquivara essa informação num recanto poeirento da
memória, já que era muito pouco provável que se tivesse esquecido por completo
que alexander stone era o marido da jovem ministra. stone era um dos reputados
empresários do país. os seus interesses concentravam-se principalmente no setor
da restauração e possuía meia dúzia de estabelecimentos de luxo desde
hammersmith a holburn. ele próprio era um mestre cozinheiro, natural de newcastle,
que lograra desembaraçar-se do sotaque típico do nordeste de inglaterra durante a
sua admirável ascensão, desde que fora pasteleiro no hotel brown’s até se
transformar no restaurador próspero que era hoje. stone era, de fato, a
personificação do ideal do partido conservador: desprovido de vantagens sociais ou
educacionais e, certamente, sem contar com apoios governamentais lograra ser
bem sucedido. era a encarnação do possível e o exemplo ímpar da propriedade
privada. era, em suma, o marido perfeito para uma deputada conservadora.

- aconteceu uma coisa - explicou eve bowen, pousando gentilmente a mão no braço
dele. - alex, temo que seja algo um pouco desagradável.

stone voltou a alternar o olhar entre st. james e helen. st. james tentava digerir a
informação de que eve bowen ainda não pusera o marido ao corrente do
desaparecimento da filha e via que helen tentava fazer o mesmo. os rostos de
ambos constituíam um vasto campo de estudo e alexander stone estudou-os
durante alguns momentos enquanto ele próprio empalidecia.

- o meu pai - disse. - morreu? foi o coração?

- não se trata do teu pai. charlotte desapareceu, alex. - fixou os olhos na mulher.

- charlotte - repetiu, incrédulo. - charlotte, charlie. o quê?

- foi raptada. - pareceu confuso.

- o quê? quando? o que é que...

- esta tarde, depois da lição de música.

passou os dedos da mão direita pelos cabelos em desalinho, descompondo-os ainda


mais.

- raios, eve. que diabo? porque é que não me telefonaste? estive no couscous a
partir das duas, como sabes. porque é que não me telefonaste?

- só fiquei a saber às sete horas e as coisas aconteceram demasiado rapidamente.

- você é da polícia? - dirigiu-se a st. james.

- não, não é - informou a mulher. virou-se para encará-la.

- perdeste a cabeça? que diabo...

- alex - a deputada falava num tom de voz baixo e insistente. - importas-te de


esperar na cozinha. fazes o jantar para nós? irei ter contigo dentro de instantes e
explicar-te-ei tudo.

- explicar o quê? - perguntou ele. - que diabo se está a passar? quem são estas
pessoas? quero uma resposta, eve.

- e vais tê-la - voltou a agarrar-lhe o braço. - por favor, deixa-me concluir este
assunto. por favor.

- não me dispenses como se eu fosse um dos teus subordinados.


- alex, acredita em mim. não estou a fazê-lo. deixa-me concluir isto. - stone afastou-
se dela.

- raios - resmungou. atravessou a sala de estar e a sala de jantar, entrando por uma
porta que dava aparentemente para a cozinha.

eve bowen contemplou o percurso que ele acabara de fazer. do outro lado da porta,
ouvia-se o som de armários que se abriam e fechavam, de tachos que eram
pousados ruidosamente nas bancadas de madeira, da água a correr. ela entregou a
fotografia a st. james.

- esta é charlotte.

- preciso de saber o horário semanal dela e de uma lista com o nome dos amigos, as
moradas dos sítios que ela frequenta.

assentiu, embora fosse evidente que o seu espírito estava na cozinha, com o
marido.

- claro - disse. retomou o lugar na cadeira que ocupara antes e pegou num lápis e
num caderno de notas, deixando o cabelo cair para a frente para esconder o rosto.

foi helen quem fez a pergunta.

- por que razão não telefonou ao seu marido, miss bowen, isto é, quando soube que
charlotte tinha desaparecido porque é que não lhe telefonou?

eve bowen ergueu a cabeça. aparentava grande compostura, como se tivesse


aproveitado os momentos em que atravessara a sala para controlar qualquer
emoção que pudesse traí-la.

- não quero que ele seja uma vítima de dennis luxford - disse. - parece-me que as
que existem já são suficientes.

alexander stone agia consumido pela fúria. com movimentos rápidos juntou um
pouco de vinho tinto à mistura de azeite, de tomates cortados aos bocados, cebolas,
salsa e alho. baixou o lume que aquecia o tacho e afastou-se do seu precioso fogão
último modelo para se aproximar da tábua onde golpeou as cabeças de uma dúzia
de cogumelos com uma faca brilhante. colocou-os dentro de uma taça e voltou para
junto do fogão, onde a água que enchia uma grande cafeteira começava a ferver.
nuvens de vapor elevavam-se, translúcidas, na direção do teto trazendo-lhe à
memória a imagem de charlie, indefesa. penas de pássaros-fantasma, diria ela,
arrastando o banco até junto do fogão e tagarelando enquanto ele cozinhava.

meu deus, pensou. cerrou um dos punhos e socou a coxa com força. sentiu os olhos
a arder e concluiu para si mesmo que era a reação das lentes de contato ao calor
libertado pelo fogão e ao odor penetrante das cebolas e do alho que coziam em
lume brando. em seguida, repetiu para si mesmo que era um mentiroso cobarde e,
interrompendo o que estava a fazer, baixou a cabeça. respirou como um corredor de
fundo e tentou acalmar-se. enfrentou a verdade: ainda não conhecia os fatos e até
os conhecer estava a desperdiçar uma energia preciosa em forma de cólera, o que
não o ajudaria em nada. que não ajudaria charlie em nada. muito bem, pensou.
exato. Ótimo. concentremo-nos no que estamos a fazer. vamos esperar e ver o que
acontece.

afastou-se do fogão. tirou um pacote de fettuccine do frigorífico. já os tinha


desembrulhado e preparava-se para deitá-los na água a ferver quando se apercebeu
de que não conseguia sentir o frio na palma da mão. a consciência disso fez com
que largasse a pasta para dentro da panela com tal rapidez que uma bolha saltou
para fora do tacho e atingiu-o. isso podia ele sentir, e saltou instintivamente para
trás como um aprendiz de cozinheiro.

- raios partam isto - murmurou. - foda-se. raios partam isto.

dirigiu-se até ao calendário, pendurado na parede ao lado do telefone. queria


certificar-se. havia sempre a possibilidade de, por uma vez, não ter escrito o seu
horário semanal, ou não ter deixado o nome do restaurante onde se encontraria
nesse dia para supervisionar os chefes e empregados, de não se ter certificado de
que podia ser localizado pela sra. maguire, por charlie, pela mulher, de não ter
previsto a emergência inesperada em que a sua presença fosse desesperadamente
necessária... no entanto, lá estava, no quadrado correspondente a quarta-feira.
couscous. tal como spectre, assinalado no dia anterior e demoiselle para o dia
seguinte. isso significava que não havia qualquer desculpa. isso significava que ele
conhecia os fatos. isso significava que ele podia dar vazão à cólera que o invadia,
enterrar os punhos nos armários, atirar copos e pratos ao chão, arremessar os
talheres contra as paredes, esvaziar o frigorífico, esmagar o seu conteúdo com os
pés...

- já foram embora.

ele virou-se. eve tinha entrado na cozinha. tirou os óculos e limpou-os com gestos
fatigados no debruado de seda preta do casaco.

- não era necessário que cozinhasses outro prato - disse, apontando para o fogão. -
a sra. maguire deve ter deixado qualquer coisa feita. devia tê-lo feito, pelo menos.
faz sempre para... - deteve-se, voltando a colocar os óculos sobre o nariz. para
charlotte. não pronunciava estas duas palavras, porque se recusava a proferir o
nome da filha. se o fizesse estaria a conceder-lhe uma oportunidade de avançar sem
que ela estivesse preparada. e ela, política como era, sabia muito bem como ficar
em vantagem.

dirigiu-se ao frigorífico, como se ali ninguém estivesse em vias de preparar uma


refeição. alex viu-a tirar os dois pratos cobertos que ele já havia inspecionado,
colocá-los na bancada e destapá-los. a sugestão da sra. maguire para as noites de
quarta-feira consistia em macarrão com queijo, legumes variados e batatas novas
cozidas cobertas com paprika à discrição.

- meu deus - disse, ao ver os bocados de cheddar que esburacavam as doses de


macarrão.
- todos os dias deixo alguma coisa feita para a charlie. ela só tem de o aquecer, mas
não faz nada disso. «nomes finos para paparoca» é como lhes chama. - disse ele.

- e isto não é paparoca? - eve esvaziou os pratos na pia. carregou no botão e viu-os
desaparecer pelo cano abaixo. a água corria indefinidamente enquanto alex a
observava sabendo que ela estava a usar esses minutos para preparar-se para a
conversa que se previa. tinha a cabeça baixa e os ombros descaídos. a nuca estava
exposta, alva e vulnerável, suplicando-lhe que tivesse piedade dela. ele, no entanto,
não estava comovido.

foi até junto dela, desligou o triturador e fechou a torneira da água. pegou-lhe no
braço para a virar de frente para ele e sentiu a rigidez do corpo dela. deixou cair a
mão.

- o que é que se passou? - perguntou.

- apenas o que te disse. ela desapareceu quando voltava para casa, depois da lição
de música.

- a maguire não estava com ela.

- aparentemente não.

- que diabo, eve. não é a primeira vez que isto acontece. se ela não é de confiança...

- ela pensou que charlotte estava em casa de amigos.

- pensou. ela pensou. - sentiu de novo uma necessidade de agredir. se a governanta


estivesse presente ter-se-ia atirado ao pescoço dela. - porquê? - perguntou
asperamente. - diz-me só porquê.

ela não fingiu que não compreendia o sentido das palavras dele. virou-se. agarrou
os cotovelos com as duas mãos. era uma posição que a afastava mais dele do que
se tivesse caminhado para o outro extremo da cozinha.

- alex, eu tinha de pensar no que havia de fazer.

sentiu-se agradecido pelo fato de ela, pelo menos, não ter tentado explorar a mentira
que dissera anteriormente, que as coisas tinham acontecido demasiado depressa,
que não tivera tempo. tratava-se, porém, de um tênue sentimento de gratidão, como
uma semente caída em solo estéril.

- o que é que há exatamente para pensar? - perguntou com uma calma deliberada,
educada. - parece-me que se trata de um simples problema de quatro fases. - usou
o polegar e três dedos para assinalar cada uma delas. - charlie foi raptada. tu
telefonas-me para o restaurante. eu vou buscar-te ao escritório. nós vamos à polícia.

- não é tão simples quanto isso.


- pareces ter ficado bloqueada algures na primeira fase. tenho ou não razão? - o
rosto dela permaneceu inalterado, conservando a expressão de sangue-frio, vital
para a atividade profissional dela, uma tranquilidade que rapidamente obliterava a
dele. - raios. tenho razão ou não, eve?

- queres que te explique?

- quero que me digas quem diabo eram as pessoas que estavam na sala. quero que
me digas porque raio é que não contactaste a polícia. quero que me expliques e em
dez palavras, ou menos, eve porque é que consideraste que não era importante
avisar-me de que a minha própria filha...

- enteada, alex.

- santo deus. isso quer dizer que se eu fosse o pai dela que tu obviamente
designarias por doador de um estúpido esperma teria merecido receber um
telefonema avisando-me de que a minha filha tinha desaparecido. certo?

- nem por isso. o pai de charlotte já está ao corrente. foi ele quem me telefonou a
avisar-me do rapto. acredito que tenha sido ele mesmo quem planejou o
desaparecimento dela.

a água em que cozia a pasta decidiu começar a transbordar nesse momento,


escorrendo em ondas de espuma pelos lados da panela em direção ao queimador
debaixo dela. sentindo-se como se caminhasse sobre papas de aveia, enterrado
nelas até às ancas, alex dirigiu-se ao fogão e maquinalmente mexeu, baixou o lume,
levantou o tacho e encaixou uma grelha, enquanto ouvia repercutirem-se em toda a
divisão as palavras o pai de charlotte, o pai de charlotte, o pai de charlotte. voltou a
colocar, cuidadosamente, o garfo com que mexera a pasta no respectivo suporte
antes de se virar de novo para a mulher. o tom de pele dela era naturalmente claro,
mas à luz da cozinha parecia mortalmente pálida.

- o pai de charlie - disse ele.

- afirma que recebeu uma nota do raptor. eu também recebi uma. - alex reparou que
os dedos dela apertavam mais os cotovelos. o gesto pareceu-lhe ser uma
preparação da disposição mental e emocional. o pior, compreendeu, ainda estava
para vir.

- continua - pediu, em tom inexpressivo.

- não queres cuidar da tua pasta?

- não tenho muita fome. tu tens?

abanou a cabeça, negativamente. no entanto, deixou-o a sós por momentos


voltando para a sala de estar. durante esse tempo ele continuou a mexer
automaticamente o molho e a pasta, perguntando a si próprio quando voltaria a
sentir vontade de comer. ela regressou trazendo uma garrafa de vinho aberta e dois
copos. encheu-os no balcão que se prolongava a partir do fogão, fazendo deslizar
um dos copos na direção dele.

ele apercebeu-se de que ela nada diria a não ser que fosse obrigada a fazê-lo.
contar-lhe-ia tudo o que parecia ter acontecido com charlie, a que hora do dia, a
forma exata como fora informada e as palavras utilizadas para isso, mas não
revelaria o nome, a não ser que ele insistisse. nos sete anos em que a conhecera, e
ao longo dos seis anos que durava o casamento deles, a identidade do pai de
charlotte era o único segredo que ela não havia revelado. e alex julgara que não
seria justo pressioná-la. o pai de charlotte, fosse ele quem fosse, fazia parte do
passado de eve. alex queria apenas fazer parte do presente e do futuro dela.

- porque é que ele a raptou?

respondeu sem emoção, recitando as conclusões a que ela própria já chegara.

- porque quer que o público saiba quem é o pai dela. porque quer embaraçar ainda
mais os conservadores. porque, se o governo continuar a ser atingido por
escândalos sexuais que corroem a confiança pública nos seus representantes
eleitos, o primeiro-ministro ver-se-á forçado a decretar eleições gerais e os
conservadores serão derrotados. que é o que ele pretende.

alex procurou isolar as palavras que mais o surpreendiam e que lhe revelavam mais
coisas sobre o que ela escondera durante tantos anos.

- escândalos sexuais?

os lábios dela arquearam-se numa expressão séria.

- escândalos sexuais.

- quem é ele, eve?

- dennis luxford.

aquele nome não significava nada para ele. anos de temor, anos de dúvida, anos de
especulação, anos de cálculos e agora o raio do nome não tinha um pingo de
significado para ele. apercebeu-se de que ela se dava conta que ele não estava a
reconhecer o nome.

com uma pequena gargalhada sardônica e dirigida a ela mesma caminhou até à
pequena mesa de cozinha situada junto à janela saliente que dava para o jardim.
junto das cadeiras estava um suporte para revistas onde a sra. maguire guardava as
leituras simplórias que a entretinham nos momentos mortos dos seus dias de
trabalho. eve retirou um tablóide do suporte de revistas, trouxe-o até à bancada e
desdobrou-o perante o olhar de alex.

no cabeçalho vermelho-vivo lia-se a designação the source, em letras amarelas e


brilhantes. sob o cabeçalho, um título de sete centímetros e meio proclamava
deputado adúltero. a acompanhar o título surgiam duas fotografias a cores. uma
delas mostrava sinclair larnsey, deputado pelo círculo de east norfolk, uma
expressão sombria estampada no rosto, saindo de um edifício na companhia de um
cavalheiro mais velho apoiado numa bengala que, a julgar pela aparência, era
indubitavelmente o presidente da associação dos constituintes. na outra, aparecia
um citroen magenta com a seguinte legenda: «o ninho de amor móvel de sinclair
larnsey.» o resto da primeira página era dedicado a como ganhar umas férias de
sonho (página 11), tome o pequeno-almoço com a sua estrela favorita (página 8) e
processo-crime no campo de críquete para breve (página 29).

observou o tablóide com um olhar reprovador. era sensacionalista e injurioso, o que


era sem dúvida intencional. clamava por atenção e era fácil imaginar os milhares de
exemplares em circulação, satisfazendo assim os desejos dos habitantes dos
subúrbios que pretendiam algo divertido para ler durante o trajeto para o trabalho.
esta mesma ausência de respeitabilidade, porém, era uma prova inequívoca das
repercussões que o jornal poderia ter junto da opinião pública. junto de todos os que
lessem estes disparates pelo menos, para além das pessoas como a sra. maguire
que não constituíam propriamente uma força intelectual de peso dentro do país.

eve voltou a aproximar-se do suporte de revistas, de onde tirou outros três


exemplares do mesmo tablóide, que dispôs cuidadosamente sobre o balcão. o
Último segredo do deputado: alto funcionário apanhado! ocupava toda a primeira
página. amante de deputado conservador! preenchia outra. royal flush: quem
aquece as noites da princesa? constituía o destaque da terceira.

- não percebo - disse alex. - o teu caso é diferente de todos estes. por que razão é
que os jornais irão crucificar-te? cometeste um erro. engravidaste. tiveste uma filha,
educaste-a, cuidaste dela e continuaste com a tua vida. É uma não-história.

- não estás a compreender.

- o que é que há para compreender?

- dennis luxford. este é o jornal dele, alex. o pai de charlotte é o editor deste jornal,
tal como era editor de outro igualmente nojento quando tivemos a nossa pequena... -
pestanejou rapidamente e por momentos ele julgou que ela iria perder de fato a
compostura. - era isso que ele fazia era editor de um tablóide, desenterrava as
histórias mais picantes que era capaz de descobrir, manchando o nome de todos
aqueles que pretendia humilhar na época da nossa pequena aventura em blackpool.

desviou o olhar dela e voltou a pousá-lo nos jornais. disse para consigo que se não
tivesse entendido corretamente as suas palavras não seria obrigado a acreditar
nelas. ela esboçou um movimento e, olhando-a, viu que ela erguera o copo de vinho
simulando um brinde que não fez. em vez disso, proferiu:

- era uma vez eve bowen, futura deputada conservadora, futura jovem ministra,
futura primeira-ministra, a repórterzinha ultraconservadora, temente a deus,
moralmente íntegra enrolada com o rei da podridão. meu deus, os jornais terão um
dia cheio com esta história. e esta será apenas o início de muitas outras.

alex tentou lembrar-se de algo para dizer, o que era difícil, já que nesse momento
apenas conseguia sentir o anel de gelo que se formava rapidamente em redor do
seu coração. até as suas palavras lhe soavam esmorecidas.

- não eras deputada, nessa época.

- um excelente elemento, que a opinião pública estará mais do que disposta a


ignorar, garanto-te. o público retirará um prazer enorme imaginando-nos a ambos
escapulindo-nos para o hotel em blackpool, a fim de definir as nossas escaldantes
tarefas, eu de pernas abertas sobre uma cama de quarto de hotel, aguardando,
arquejante, que luxford preencha as minhas entranhas como o seu poderoso órgão.
e, na manhã seguinte, recomposta, pronta a exibir perante os meus colegas a
imagem de menina-que-não-parte-um-prato, vivendo com este segredo ao longo de
todos estes anos, agindo como se considerasse moralmente repreensivo tudo o que
este homem representa.

alex fitou-a. observou os mesmos traços que vinha observando nos últimos sete
anos: o cabelo irrepreensível, os olhos de avelã cristalinos, a linha demasiado
angulosa do queixo, o lábio superior excessivamente fino. «esta é a minha mulher»,
pensou. «esta é a mulher que eu amo. a pessoa que sou quando estou junto dela
não se parece de modo nenhum com aquele que sou quando estou com todas as
outras pessoas. será que a conheço, sequer?»

- e não é isso que sentes? que sentias? - perguntou, num tom inexpressivo.

o olhar dela pareceu escurecer. quando reagiu, a voz soava estranhamente distante.

- como é que podes sequer perguntar-me isso, alex?

- porque quero saber. tenho o direito de saber.

- de saber o quê?

- quem diabo és tu.

ela não respondeu. ao invés, os seus olhares cruzaram-se longamente antes de ela
decidir tirar o tacho do fogão e levá-lo até à pia, onde escorreu os fettuccine para
dentro de um recipiente furado. com um garfo prendeu um fio de massa.

- deixaste a pasta cozer demais, alex. não esperava que cometesses um erro destes
- disse, calmamente.

- responde-me - disse ele.

- acho que acabei de fazê-lo.

- o erro foi a gravidez - ele insistiu - não a escolha de parceiro. sabias o que ele era
quando dormiste com ele. tinhas de saber.

- sim, sabia. queres que te diga que isso não teve a menor importância?

- quero que me digas a verdade.


- está bem. não teve a menor importância. eu queria ir para a cama com ele.

- porquê?

- ele seduziu o meu intelecto, algo que a maior parte dos homens nem se dá ao
trabalho de tentar fazer quando tenta seduzir uma mulher.

alex agarrou-se à palavra, porque precisava de o fazer.

- ele seduziu-te.

- da primeira vez. depois disso, não. passou a ser um interesse mútuo.

- então, fodeste-o mais do que uma vez.

ela não se esquivou à palavra, como ele teria desejado.

- fodi-o durante todo o tempo que durou a conferência. todas as noites. e quase
todas as manhãs, também.

- brilhante, - ele juntou os tablóides, tornando a pô-los no suporte de revistas. foi até
o fogão e pegou no tacho com o molho, vertendo-o para dentro da pia e vendo-o
desaparecer, borbulhante. ela permanecia de pé, junto do escorredor. podia sentir a
proximidade dela, mas não era capaz de a encarar. o seu espírito parecia ter sido
atingido por uma espécie de ferida mortal.

- então foi ele, foi luxford quem raptou charlie - era tudo o que conseguia dizer.

- planejou tudo. e se ele reconhecer publicamente que é pai dela na primeira página
do jornal ela será devolvida.

- porque é que não telefonamos para a polícia?

- porque tenciono desmascará-lo.

- À custa de charlie?

- À custa de charlotte? que queres dizer com isso? - finalmente podia sentir alguma
coisa e deixou-se invadir pela sensação.

- onde é que ele a escondeu, eve? ela saberá o que está a acontecer? terá fome?
frio? estará aterrorizada? foi raptada em plena rua por um completo estranho.
estarás preocupada com outra coisa que não seja proteger a tua reputação e ganhar
o jogo e desmascarar esse patife que é o luxford?

- não transformes isto num referendo sobre a maternidade - disse ela, em voz baixa.
- cometi um erro na minha vida e paguei por ele. ainda estou a pagar e pagá-lo-ei
até morrer.
- estamos a falar de uma criança, não de um erro de juízo. de uma criança de dez
anos de idade.

- cujo paradeiro faço tenções de descobrir. mas fá-lo-ei à minha maneira. antes arder
no inferno do que fazê-lo à maneira dele. basta olhares para o jornal que ele edita,
se não és capaz de descodificar o que ele pretende de mim, alex. e antes de me
condenares pelo meu grande egoísmo, tenta refletir sobre os efeitos que um bom
escândalo sexual teriam para charlotte.

conhecia-os, obviamente. um dos maiores pesadelos da vida política consistia na


súbita revelação de um segredo que se julgava morto e enterrado. uma vez
sacudida a poeira do tempo que o cobria e passando a ser do domínio público
lançava a suspeita sobre todas as ações, observações e intenções do sujeito visado.
a sua presença ainda que apenas aflorasse a vida presente de quem detinha o
segredo suplicava pelo exame minucioso das motivações, pela análise microscópica
de qualquer comentário, pelo controle de todos os movimentos, escrutínio do
correio, dissecação de discursos e pela decifração total de tudo o resto em busca de
qualquer vestígio de hipocrisia. a indagação, porém, não se ficava apenas pelo
detentor do segredo. maculava todos os membros da família, cujos nomes e vidas
eram igualmente arrastados pela lama, em nome do direito divino de manter
informada a opinião pública. parnell passara por isso. profumo também. yeo e ashby
sentiram ambos o peso da investigação do que consideravam ser as suas vidas
privadas. uma vez que nenhum dos seus predecessores no parlamento, nem a
própria monarquia eram incólumes aos perigos da exposição pública e do ridículo,
eve sabia que não seria exceção, muito menos aos olhos de um homem como
luxford, movido pelos demônios dos valores das tiragens e pelo seu ódio pessoal ao
partido conservador.

alex sentiu o peso de vários fardos sobre os ombros. o seu corpo exigia ação, o
espírito clamava por compreensão e o coração queria escapar-se. estava preso
entre a aversão e a compaixão, e sentiu-se dilacerado pela batalha entre ambas que
se travava dentro de si. lutou contra a compaixão, pelo menos momentaneamente.

- quem eram eles, então? aquele homem e aquela mulher? - perguntou, inclinando o
queixo na direção da sala de estar.

a expressão do rosto dela dizia-lhe que ela estava certa de ter conseguido impor a
sua vontade.

- ele trabalhou em tempos para a scotland yard. ela é... não sei. É uma espécie de
assistente - disse ela.

- confias neles, para tratarem deste assunto?

- sim.

- porquê?

- porque me pediu que esquematizasse as atividades de charlotte duas vezes. uma


vez com a minha caligrafia habitual, outra em letra de imprensa.
- não estou a perceber.

- ele tem os dois bilhetes do raptor, alex. o que eu recebi e o que dennis recebeu.
quer analisar a minha caligrafia, compará-la com a dos bilhetes. acha que posso
estar envolvida. não confia em ninguém, o que significa, julgo eu, que podemos
confiar nele.

- por volta das cinco e cinco - disse damien chambers. falava prolongando as vogais,
com a pronúncia inconfundível dos naturais de belfast. - Às vezes demora-se mais
um pouco, depois da aula. ela sabe que só tenho a outra lição às sete, por isso às
vezes não se vai logo embora. gosta que eu toque o apito enquanto ela toca as
colheres. mas hoje quis ir embora logo de seguida, e foi. por volta das cinco e cinco.
- três dos seus longos dedos empurraram algumas mechas finas de cabelo cor de
damasco, juntando-as no comprido rabo de cavalo que apanhara na base da nuca.
ficou à espera que st. james fizesse outra pergunta.

tinham tirado o professor de música de charlotte da cama, mas a intrusão não


provocara nenhum queixume da parte dele.

- desapareceu? lottie bowen desapareceu? diabo! - limitara-se a dizer. pediu licença


por alguns instantes e correu escadas acima. ouviu-se o som de água enchendo
energicamente uma banheira. uma porta abriu e depois fechou-se. passou um
minuto. a porta abriu e voltou a fechar-se. a água foi desligada. desceu
ruidosamente as escadas e voltou a juntar-se-lhes. trazia vestido um roupão
comprido em turco vermelho, sem nada por baixo. os tornozelos estavam
descobertos e, tal como todo o corpo dele, eram tão alvos como ossos lavados com
lixívia. calçava uns chinelos em pele, já muito gastos.

damien chambers vivia numa das casas minúsculas que abundavam em cross keys
close, um autêntico labirinto de passagens calcetadas iluminadas por candeeiros de
rua antigos e impregnada de uma atmosfera duvidosa, que convidava a um olhar
desconfiado por cima do ombro e a estugar o passo. st. james e helen não tinham
podido guiar até lá o mg não cabia na zona, e mesmo que tivesse conseguido
passar, não teria espaço para inverter o sentido de marcha optando por deixar o
carro em bulstrode place, próximo da rua principal, e percorrer a pé o labirinto de
ruelas até encontrarem o n.° 12, onde vivia o professor de música de charlotte.

estavam sentados na sala de estar da casa dele, uma divisão pouco maior do que o
compartimento de um comboio ou do que uma carruagem ferroviária das antigas.
uma espineta partilhava o espaço exíguo com um teclado eletrônico, um violoncelo,
dois violinos, uma harpa, um trombone, um bandolim, um xilofone, dois suportes
para pautas descaídos e meia dúzia de rolos de poeira quase do tamanho de
ratazanas de esgoto. st. james e helen sentaram-se no banco do piano, enquanto
damien chambers se equilibrava na beira de uma cadeira de metal. escondeu as
duas mãos debaixo das axilas, uma posição que fazia com que parecesse mais
baixo do que um metro e sessenta e cinco que realmente media.

- ela queria aprender a tocar tuba - disse. - gostava do formato do instrumento. dizia
que as tubas faziam lembrar orelhas de elefante douradas. eram de latão, claro, e
não douradas, mas lottie não liga muito a pormenores. eu podia tê-la ensinado a
tocar tuba, posso ensinar a tocar quase todos os instrumentos, mas a mãe dela não
queria. primeiro disse que seria violino, que tentamos durante seis semanas, até que
lottie ia levando os pais à loucura com o arranhar das cordas. depois passamos para
o piano, mas ela não tinha espaço suficiente em casa para um piano e lottie
recusava-se a praticar no piano da escola. foi então que mudamos para a flauta.
pequena, portátil e pouco barulhenta. andamos a estudar flauta há já perto de um
ano, ela não é muito boa porque não pratica. além disso, a melhor amiga dela, uma
rapariguinha chamada bretã, odeia ouvi-la e está sempre desejosa de brincar. com
ela, quero eu dizer, não brincar com a flauta.

st. james tirou do bolso a lista que eve bowen lhe fizera. percorreu-a com o olhar.

- bretã - disse. o nome não constava da lista. esta, aliás, reparou com alguma
surpresa, continha apenas os nomes dos adultos que charlotte conhecia, ordenados
consoante a respectiva profissão: professor de dança, psicoterapeuta, diretor do
coro, professor de música. o fato deixou-o confuso.

- exatamente, bretã. não sei qual é o apelido dela, mas segundo lottie conta é um
autêntico diabrete, por isso não será difícil encontrá-la, se quiserem falar com ela.
ela e lottie andam sempre a tramar alguma coisa, seja furtar doces, arreliar os
reformados, esgueirar-se para a loja de apostas, onde não deviam entrar, entrar no
cinema sem bilhete. não conhecem a bretã? miss bowen não vos falou nela?

enterrou ainda mais as mãos debaixo das axilas, o que o obrigou a encurvar os
ombros. damien chambers devia ter pelo menos trinta anos de idade, mas na
posição em que se encontrava assemelhava-se mais a um contemporâneo de
charlotte do que a um homem tecnicamente capaz de ser pai dela.

- o que é que ela trazia vestido quando saiu daqui esta tarde? - perguntou st. james.

- vestido? as roupas dela. que outra coisa poderia ser senão isso? não despiu uma
única peça de roupa enquanto cá esteve. nem o casaco. e porque o faria?

st. james teve consciência do olhar embaraçado de helen. mostrou a chambers a


fotografia de charlotte que lhe fora fornecida por eve bowen.

- sim, estas são as roupas que ela costumava usar. É o uniforme da escola. uma cor
feia, este verde, não acham? parece cor de bolor. ela não gostava muito dela. tem o
cabelo mais curto, agora, do que na fotografia. cortou-o no sábado passado, uma
espécie de corte à beatles, percebe o que quero dizer, parecia um rapazinho
holandês, sabe? ainda esta tarde se queixava dele, dizia que a fazia parecer um
rapaz. disse-me que queria usar batom e brincos, agora que lhe tinham cortado o
cabelo, para que as pessoas soubessem que era uma rapariga. disse-me que cito,
era assim que ela se referia ao padrasto, como já devem saber, não é?, vem de
papucito... ela andava a estudar espanhol. contou-me que cito lhe tinha dito que o
batom e os brincos já não eram os principais indicadores da sexualidade de quem os
usava, mas acho que ela não sabia muito bem o que é que ele queria dizer com
isso. a semana passada roubou um dos batons da mãe. tinha pintado os lábios
quando veio para a lição, parecia um palhacinho porque aplicou-o sem espelho e
estava um pouco borrado. obriguei-a a ir à casa de banho lá em cima para que se
olhasse ao espelho e visse o estado em que ficara. - tossiu, tapando a boca com o
punho, voltou a enterrá-lo na axila e começou a abanar o pé. - essa foi a única vez
que ela foi até ao andar de cima, é claro.

À medida que helen, sentada no banco do piano a seu lado, ia ficando cada vez
mais tensa, st. james observava o professor de música e ponderava nas potenciais
explicações para a sua agitação sem descurar o que, ou quem, o fizera subir as
escadas à pressa no momento em que eles tinham chegado.

- essa outra criança bretã acompanhava charlotte à lição de música?

- quase sempre.

- e hoje?

- também. pelo menos lottie disse que bretã estava com ela.

- não a viu pessoalmente.

- não permito que ela entre. É um foco de distração. peço-lhe que espere no pub
prince albert. passeia-se pelas mesas que estão cá fora. devem tê-las visto, em
bulstrode place, na esquina.

- era lá que ela se encontrava hoje?

- lottie disse-me que ela estava à espera, por isso é que tinha tanta pressa de se ir
embora. É o único sítio onde se pode estar à espera de alguém. - tinha uma
expressão pensativa e mordeu o lábio. - sabem, não me surpreenderia se de alguma
maneira fosse a bretã quem estivesse por detrás disto, isto é, por detrás da fuga de
charlotte. ela fugiu mesmo, não foi? disseram que ela tinha desaparecido, mas
acham que haverá alguma espécie de, como é que se diz, crime? - sorriu ao proferir
a última palavra e abanou o pé com mais veemência.

helen inclinou-se para a frente. o quarto era de tal modo minúsculo que os joelhos
de todos eles quase se tocavam. aproveitou esta proximidade para tocar
delicadamente no joelho direito de chambers. ele parou de abanar o pé.

- perdão - disse ele. - estou nervoso. como é óbvio.

- claro - reagiu helen. - estou a ver. porquê?

- não é uma situação muito abonatória para mim, não é verdade? toda esta história
com lottie. posso ter sido a última pessoa a tê-la visto, e não me parece que isso
seja muito bom.

- ainda não sabemos quem foi a última pessoa a vê-la - disse st. james.

- e se a história vai parar aos jornais... - chambers apertou o abraço em redor dele
próprio. - ensino música a crianças. o negócio dificilmente beneficiará com a
descoberta de que um dos meus alunos desapareceu depois de ter tido uma lição
comigo. preferia que isso não acontecesse. levo uma vida tranquila e discreta e
gostaria muito que ela se mantivesse assim.

st. james era obrigado a admitir que as palavras dele faziam algum sentido. era o
modo de vida de chambers que estava em jogo, e a presença deles acompanhada
do interrogatório sobre charlotte ilustravam a precariedade do mesmo. no entanto, a
reação dele à visita de ambos parecia extrema.

st. james explicou a chambers que quem tinha raptado charlotte partindo do princípio
de que ela fora raptada e não estava escondida algures com uma amiga tinha de
conhecer o percurso que ela fazia, desde a escola até à lição de música e desta até
casa.

chambers concordou. a escola dela, porém, ficava perto da casa dele e só havia
uma entrada e uma saída daquela zona; o caminho que st. james e helen tinham
percorrido pelo que não teria sido difícil para ninguém ficar a conhecer o trajeto
diário de lottie.

- reparou em alguém novo nas redondezas, nos últimos dias? - perguntou st. james.

chambers parecia querer dizer que sim, nem que fosse no intuito de desviar as
atenções da sua pessoa. no entanto, respondeu que não, não vira ninguém. É claro
que havia polícia na zona, prosseguiu num tom mais esperançoso, era quase
impossível ignorar a sua presença, isto para não falar do ocasional turista perdido,
que virara na rua errada acabando por ir parar a marylebone em vez de regent’s
park. mas para além deles e das presenças habituais como o carteiro, os homens do
lixo e os funcionários que frequentavam o pub prince albert à hora do almoço, não
vira ninguém que pudesse levantar suspeitas. por outro lado, também não saía
muito, pelo que talvez fosse melhor st. james interrogar os habitantes das casas
próximas. alguém tinha de ter visto alguma coisa, não era? como é que uma criança
desaparecia pura e simplesmente sem que ninguém se apercebesse de nenhum
elemento anormal? se é que tinha desaparecido. porque podia estar com bretã. esta
podia ser outra das diabruras de bretã.

- mas há mais alguma coisa, não há sr. chambers? - perguntou helen, numa voz
suave que inspirava confiança. - há mais alguma coisa que gostasse de nos dizer?

o olhar dele oscilou entre ela e st. james.

- há mais alguém consigo, cá em casa, não é verdade? alguém que o obrigou a


subir precipitadamente as escadas para ir falar-lhe, quando nós dois chegámos? -
insistiu st. james.

damien chambers corou violentamente.

- não tem nada que ver com isto. sinceramente.

chamava-se rachel, confessou-lhes em voz baixa. rachel mountbatten. não havia


qualquer relação, é evidente. era violinista na filarmônica. conheceram-se há muitos
meses atrás, tinham ido jantar fora nessa noite, ele convidara-a para tomar uma
bebida em casa dele e ela parecera aceder quando ele a convidara para subir até ao
quarto, no andar superior... era a primeira noite que passavam juntos, dessa
maneira. ele queria que tudo fosse perfeito. fora então que os ouvira bater à porta. e
agora isto.

- rachel... bem, ela não é propriamente livre - explicou. - pensou que fosse o marido.
querem que a chame? eu prefiro não o fazer, espero que as coisas entre nós se
componham. mas se quiserem chamo-a. embora - acrescentou - não pudesse usá-la
como alibi, ou outra coisa do gênero, caso a situação evoluísse nesse sentido. isto
é, se for necessário apresentar um alibi. este não é o procedimento habitual nestes
casos, pois não? no entanto, em atenção a rachel, - prosseguiu, - preferia ter um
papel discreto no caso de lottie, fosse o que fosse que lhe tivesse acontecido. sabia
que o seu comportamento poderia ser interpretado como insensível e não é que o
paradeiro da miudita não o deixasse preocupado, mas a sua relação com rachel era
muito importante para ele... tinha esperança que eles compreendessem.

no caminho de regresso até ao local onde o carro de st. james ficara estacionado,
helen disse:

- isto está cada vez mais curioso, simon. algo de estranho se passa com a mãe. algo
de estranho se passa com o sr. chambers. estaremos a ser usados?

- com que fim?

- não sei. - entrou no mg e aguardou até que ele se lhe juntasse e ligasse a ignição
antes de prosseguir. - ninguém está a ter o comportamento que eu esperava que
tivesse. eve bowen, cuja filha desapareceu em plena rua, não quer a polícia
envolvida no caso, apesar de a posição que ocupa no ministério do interior lhe
garantir a colaboração íntima da nata da scotland yard. dennis luxford, que
logicamente estaria ansioso por aprofundar a história, não quer ter nada que ver
com o assunto. damien chambers, com a amante no andar de cima, e estou quase
certa de que ele não tinha qualquer intenção de nos apresentar a ela, teme ser
relacionado com o desaparecimento de uma miúda de dez anos. se é que estamos
perante um desaparecimento de fato, porque talvez não o seja. talvez todos eles
saibam onde charlotte se encontra. talvez isso explique o fato de eve bowen parecer
tão calma e de damien chambers parecer tão ansioso, quando o contrário seria mais
provável.

st. james seguia na direção de wigmore street, mas virou para hyde park sem uma
palavra.

- não estavas muito inclinado a aceitar este caso, pois não? - continuou helen.

- não sou especialista nesta área, helen. sou formado em medicina legal, não sou
um detetive privado. dêem-me manchas de sangue ou impressões digitais e eu
fornecerei meia dúzia de respostas às questões que me forem colocadas. mas uma
coisa destas está fora do meu ramo.

- então, porque é que...? - fitou-o. ele deu-se conta de que ela lia o rosto dele com a
perspicácia habitual. - deborah - disse ela.

- disse-lhe que falaria com eve bowen, nada mais. disse-lhe que a convenceria a
contactar a polícia.

- e foi o que fizeste - observou helen. desenvencilharam-se do trânsito


congestionado em marble arch e viraram para park lane, passando por uma fileira de
hotéis profusamente iluminados. - o que é que se segue, então?

- temos duas alternativas: ou tomamos conta do caso pessoalmente até que eve
bowen ceda ou pedimos a colaboração da scotland yard sem o seu consentimento. -
desviou os olhos da estrada para observá-la. - não preciso de te dizer que a última
opção é uma solução muito fácil.

- deixa-me pensar nisso - pediu ela, fitando-o.

helen livrou-se dos sapatos depois de passar a porta principal do edifício onde
morava. a doce sensação de libertar os pés da terrível servidão ao deus da moda fê-
la suspirar de alívio:

- graças a deus.

apanhando os sapatos, percorreu pesadamente a entrada de mármore e subiu as


escadas que conduziam ao apartamento, seis divisões no primeiro andar de um
edifício do final do período vitoriano com uma sala de estar que dava para um
retângulo verde chamado south kensington’s onslow square. a luz da sala estava
acesa, como vira antes de entrar no prédio. uma vez que não estava programada
para acender automaticamente a horas certas e dado que não a acendera antes de
sair nessa manhã para ir ter ao laboratório de simon, o fio de luz visível através dos
cortinados finos da porta que dava para a varanda indicou-lhe que tinha visitas. só
podia ser uma pessoa.

hesitou no lado de fora da porta, a chave na mão. refletiu sobre as palavras de


simon. como seria fácil, de fato, contactar a scotland yard sem o conhecimento ou a
aprovação de eve bowen. sobretudo, porque, nesse momento, do outro lado daquela
pesada porta de carvalho, um dos inspetores do departamento de investigação
criminal da yard aguardava a chegada dela.

uma só palavra bastaria para que tommy tomasse conta das operações. ele
encarregar-se-ia de tomar as medidas adequadas: instalar escutas telefônicas onde
a yard julgasse necessário, investigar o passado de todos os que estivessem
remotamente envolvidos com a ministra, com o editor do the source e com a filha de
ambos, fazer uma análise exaustiva às duas cartas recebidas, um sem-número de
agentes seria destacado para calcorrear durante a manhã as ruas de marylebone,
entrevistando potenciais testemunhas do desaparecimento e escrutinando cada
centímetro do bairro em busca de uma pista que pudesse explicar o que acontecera
a charlotte bowen, nesse dia. impressões digitais seriam recolhidas e enviadas ao
centro nacional de impressões digitais, descrições de charlotte seriam inseridas no
computador. o caso beneficiaria de prioridade máxima e para ele seriam destacados
os melhores elementos disponíveis. na realidade, tommy provavelmente nunca seria
envolvido. o caso ficaria, sem sombra de dúvida, entregue a pessoas com mais
poder do que ele dentro da scotland yard. mal comunicasse que a filha de eve
bowen fora raptada, o processo de procura da criança ser-lhe-ia retirado.

isso significava, obviamente, que a yard cumpriria os procedimentos estabelecidos,


isto é, os media seriam evidentemente informados.

helen franziu o sobrolho ao olhar o porta-chaves que segurava numa das mãos. se
ela pudesse contar com tommy e apenas com ele enquanto agente de polícia
envolvido... mas não podia, pois não?

chamou por ele quando abria a porta.

- aqui, helen - respondeu ele. seguiu o som da voz dele até à cozinha, e encontrou-o
observando a torradeira, mangas arregaçadas até aos cotovelos, colarinho
desapertado e sem gravata, acompanhado por um boião de compota destapado
sobre a bancada da cozinha. tinha na mão um maço de papéis, que lia, concentrado.
o cabelo loiro desalinhado brilhava à luz da cozinha. olhou-a por cima dos óculos e
viu-a largar os sapatos no chão.

- longa noite - disse, pousando os papéis sobre a bancada e os óculos por cima
destes. - já quase tinha desistido.

- isto não é o teu jantar, pois não? - deixou cair a mala a tiracolo sobre a mesa, deu
uma olhadela ao correio do dia, escolheu uma carta de íris, a irmã, e aproximou-se
de tommy. ele pôs a mão sob o cabelo dela, como sempre fazia, apoiando a palma
da mão, cálida, na nuca dela, e beijou-a. primeiro na boca, depois na testa e
novamente na boca. manteve-a junto dele enquanto esperava que a torrada
saltasse. - não é, pois não? - insistiu ela, enquanto abria a carta. como ele não
respondesse de imediato, disse: - tommy, diz-me que o teu jantar não é só isto. És
exasperante. porque é que não comes?

ele colou os lábios a um dos lados da cabeça dela.

- o tempo escapa-me. - parecia fatigado. - passei a maior parte do dia e uma grande
parte da noite com os advogados da coroa para o caso fleming. declarações de
ambas as partes para registrar, formalização de acusações, reivindicações de
advogados, pedidos de relatórios, organização de conferências de imprensa.
esqueci-me.

- de comer? como é que isso é possível? não te apercebes de que estás com fome?

- as pessoas esquecem-se, de fato, helen.

- eu, não.

- isso sei eu - a torrada saltou, e ele retirou-a da torradeira com a ajuda de um garfo
barrando-a depois com a compota. encostado à bancada, mastigou durante alguns
momentos e disse, aparentando alguma surpresa: - meu deus, isto é péssimo. nem
sei como fui capaz de comer tantas quantidades disto em oxford.
- as papilas gustativas são diferentes quando se tem vinte anos. se tivesses uma
garrafa de uma zurrapa barata para beber sentir-te-ias transportado para os teus
anos de juventude. - desdobrou a carta.

- que há de novo? - perguntou ele.

leu algumas linhas e recitou-lhe os fatos. - quantos bezerros nasceram este ano no
rancho, até agora, grande júbilo por ter sobrevivido a mais um inverno em montana.
as notas escolares de jonathan não são o que deveriam ser e se eu sou de opinião
de que ele deva ser enviado para um colégio interno, em inglaterra? (decididamente
não.) a visita da mãe só foi um sucesso graças a daphne, que com a sua presença
as impedia de saltarem para o pescoço uma da outra. quando é que vou visitá-los?
posso convidar-te também, aparentemente, agora que o assunto, como ela lhe
chama, é oficial. e quando é que é o casamento, porque ela precisa de fazer dieta
pelo menos durante três meses para que possa ser vista em público. - helen dobrou
a carta e tornou a enfiá-la dentro do envelope. fez uma montagem da extensa
rapsódia que a irmã fizera em torno do noivado de helen com thomas lynley, oitavo
conde de asherton, acompanhada de finalmente, finalmente, finalmente, bastante
sublinhado, de uma dúzia de pontos de exclamação e de uma série de especulações
algo brejeiras sobre como a vida seria no futuro com, nas palavras de íris, um lynley
a comandar as tropas. É tudo.

- estava a referir-me - disse tommy depois de ter comido a torrada - a esta noite.
novidades?

- esta noite? - helen procurou fazer um ar despreocupado, mas apenas logrou algo
que soava aos seus ouvidos como um compromisso embaraçado entre a inanidade
e a culpa. o rosto de tommy modificou-se ligeiramente, e ela tentou convencer-se a
si mesma que ele parecia mais confuso do que desconfiado.

- trabalhaste até muito tarde - comentou, mas os olhos castanhos permaneciam


vigilantes.

numa tentativa para escapar ao seu escrutínio, helen foi buscar a chaleira e dedicou
alguns instantes a enchê-la e a ligá-la. pousou-a distraidamente e limpou a mão,
molhada com a água que entretanto transbordara pela abertura. tirou a lata do chá
do armário e deitou várias colheres para dentro de um bule de porcelana.

- tive um dia péssimo - disse, enquanto deitava o chá para dentro do bule. - marcas
de ferramentas em metal. de tanto trabalhar ao microscópio cheguei a pensar que
ficaria cega. mas tu sabes como é o simon. porquê interromper o trabalho às oito da
noite quando ainda restam mais quatro horas até que um de nós sucumba à
exaustão? pelo menos consegui convencê-lo a comer duas refeições, mas isso só
aconteceu porque deborah estava em casa. no que toca à comida ele é tão mau
como tu. o que há de errado com os homens da minha vida? porque terão eles tanta
aversão à comida?

sentia o olhar de tommy, perscrutando-a, enquanto tapava a lata do chá e tornava a


guardá-la no armário. prendeu duas chávenas em dois dedos, colocou-os sobre os
respectivos pires e tirou duas colheres da gaveta.

- deborah tirou umas fotografias esplêndidas - disse-lhe. - tencionava trazer uma


comigo para mostrar-te, mas esqueci-me. não tem importância, pedir-lhe-ei uma
amanhã.

- também trabalhas, amanhã?

- receio que ainda tenhamos umas boas horas de trabalho pela frente. dias, talvez.
porquê? tinhas planejado alguma coisa?

- pensei que podíamos ir até à cornualha, quando este caso do fleming for
encerrado.

sentiu o coração encher-se de alegria com a perspectiva de uma ida à cornualha,


com o sol, a brisa marítima e a companhia de tommy longe do trabalho que tanto o
absorvia.

- parece maravilhoso, querido.

- tens algum compromisso?

- quando?

- amanhã à noite, ou depois de amanhã, talvez.

helen não vislumbrava qualquer possibilidade de estar disponível. ao mesmo tempo


não sabia como explicar isso a tommy. quando muito, trabalhava esporadicamente
para simon e até nas ocasiões em que os prazos de entrega apertavam ou havia
testemunhas a levar a tribunal, ou no caso de uma conferência para breve ou um de
curso universitário a preparar, simon era o mais cordato dos chefes se é que podia
designá-lo desta forma no que dizia respeito às idas de helen ao laboratório. no
decorrer dos últimos anos tinham adquirido o hábito informal de trabalhar em
conjunto. nunca houvera um acordo formal, pelo que dificilmente ela poderia alegar
perante tommy que simon poderia protestar se ela quisesse ir passar alguns dias à
cornualha. ele nunca o faria em circunstâncias normais e tommy estava bem ciente
disso.

as presentes não eram, evidentemente, circunstâncias normais. porque se fossem


ela não estaria, em pé, na cozinha, ansiosa para que a água na chaleira fervesse
proporcionando-lhe outra distração que a impediria de fabricar uma variante da
verdade que não fosse uma mentira pura e simples. odiava a idéia de ter de mentir a
tommy. sabia que ele perceberia que ela estava a mentir e ficaria intrigado. o
passado dela era quase tão agitado como o dele, e quando os amantes começam a
prevaricar amantes possuidores de histórias passadas complicadas que,
infelizmente, acabam por excluir-se um ao outro é porque uma razão pertencente ao
passado de ambos se infiltra de modo inesperado no presente de cada um deles.
não seria este o caso? e não seria precisamente isso que tommy pensaria?

«santo deus», pensou helen. sentia a cabeça a rodar. «será que a água nunca mais
ferve?»

- vou precisar de meio dia para ver os livros da propriedade mal cheguemos - estava
tommy a dizer, - mas depois disso teremos o tempo todo para nós. e sempre
poderias passar esse meio dia com a minha mãe, não te parece?

- podia, sim. claro que podia. - não via lady asherton desde que como diria íris as
«coisas» com tommy se haviam finalmente oficializado. tinham apenas falado ao
telefone, concordando que havia muito que discutir sobre o futuro. esta era a
oportunidade para o fazer. só que ela não estava disponível. no dia seguinte
certamente que não estaria e, muito provavelmente, no outro também não.

este era o momento certo para contar a verdade a tommy: é que, simon e eu
estamos envolvidos numa pequena investigação. o quê, perguntas tu? nada,
realmente, nada de importante. nada que valha a pena preocupares-te. a sério.

outra mentira. uma mentira sobre outra mentira. uma confusão terrível.

helen olhou, esperançosa, para a chaleira. esta, em resposta às suas súplicas,


começou a apitar, desligando-se automaticamente. precipitou-se para junto da
chaleira.

- ... e aparentemente estão decididos a vir até à cornualha o mais breve possível
para comemorar. julgo que isso seja uma idéia da tia augusta. não perde uma festa
nem por nada. - ia dizendo tommy.

- a tia augusta? de que é que estás a falar, tommy? - perguntou helen, antes de se
aperceber que ele estivera a discorrer sobre o noivado deles enquanto ela
imaginava a melhor maneira de lhe mentir. - desculpa, querido. distraí-me por
instantes. estava a pensar na tua mãe. - verteu a água para o bule do chá, agitou-o
energicamente e encaminhou-se para o frigorífico, à procura do leite.

tommy permaneceu em silêncio enquanto ela reunia o bule de chá e os restantes


apetrechos numa bandeja de madeira.

- vamos descansar para a sala, querido. receio que já não tenho lapsang souchong,
por isso teremos de contentar-nos com earl grey - disse, segurando o tabuleiro nas
mãos.

- o que é que se passa, helen? - ripostou ele.

«diabo», pensou, mas disse: - o que é que se passa como?

- não faças isso - pediu ele. - não sou um idiota. estás a pensar em alguma coisa de
especial?

- são os nervos - suspirou, avançando com uma das variantes da verdade. -


desculpa-me disse, - e pensou «por favor, não faças mais perguntas». - são as
mudanças entre nós, o fato de tudo se ter finalmente resolvido. tentar imaginar se a
vida vai de fato funcionar - disse para evitar que ele continuasse a interrogá-la.
- estás com medo de te casares comigo?

- medo, não - sorriu para ele. - não tenho medo nenhum. os meus pés estão num
estado miserável. não sei onde tinha a cabeça quando comprei estes sapatos,
tommy. verde-floresta, combinam perfeitamente com este fato que trago vestido,
mas são uma agonia completa. por volta das duas da tarde tive uma idéia muito
nítida de como seriam as dores na metade inferior de um corpo crucificado. vens
massajar-me os pés, por favor? e conta-me como foi o teu dia, está bem?

ele não estava convencido. via-o pela forma como ele a observava, inspecionando-a
com um olhar detetivesco, a cujo escrutínio ela não escaparia incólume. escapou-se-
lhe rapidamente e caminhou até à sala de estar, onde passou a servir o chá.

- já encerraste o caso fleming, nesse caso? - perguntou, referindo-se à investigação


que o absorvera quase por completo nas últimas semanas.

ele não veio ter com ela imediatamente e quando o fez, em vez de se encaminhar
para o sofá onde ela acabara de servir o chá, aproximou-se de um candeeiro de pé
e ligou-o. em seguida dirigiu-se a um candeeiro de mesa próximo do sofá e,
finalmente a outro, que se encontrava junto a uma cadeira. só parou depois de ter
eliminado todas as sombras.

aproximou-se dela, mas não se sentou a seu lado. escolheu, antes, uma cadeira que
o colocava de frente para ela, de onde ela sabia-o facilmente podia estudar as suas
reações. foi isso que fez quando ela ergueu a chávena e bebeu um pouco de chá.

sabia que ele não iria desistir de tentar saber a verdade. perguntaria: «o que é que
se passa de fato, helen, e por favor não me mintas mais porque eu consigo perceber
sempre que alguém me está a mentir, já que há anos que lido com mentirosos de
alto gabarito e gostaria de pensar que a mulher com quem estou prestes a casar-me
não faz parte desse grupo, pelo que se não te importas vamos esclarecer tudo
agora, porque eu tenho algumas dúvidas a teu respeito e a respeito de nós dois, e
até que essas dúvidas se tenham dissipado não vejo possibilidade de continuarmos
juntos.»

no entanto, disse algo inteiramente distinto, as mãos distraidamente presas entre os


joelhos, o chá intato, o rosto sério e na voz... seria real a hesitação que lhe notava?

- helen, tenho consciência de que, por vezes, sou demasiado insistente. a única
desculpa que consigo apresentar é que estou sempre apressado quando se trata de
nós. É como se acreditasse que não dispomos de tempo suficiente e que, por isso,
temos de avançar agora. hoje. esta noite. imediatamente. sempre me senti assim em
relação a ti.

- insistente... não estou a perceber - disse, pousando a chávena de chá sobre a


mesa.

- deveria ter telefonado a avisar-te que estaria cá em casa quando chegasses. não
pensei em fazê-lo. - desviou os olhos do olhar dela e concentrou-se nas suas
próprias mãos. parecia querer encontrar um tom mais ligeiro para as suas palavras. -
querida, não tem importância nenhuma se esta noite preferires... - ergueu a cabeça.
soltou um suspiro profundo. - que diabo, - continuou, decidido - helen, preferes ficar
sozinha esta noite?

ela observava-o, sentada no sofá, sentindo que as suas defesas estavam a ser
aniquiladas de inúmeras maneiras diferentes. esta impressão não estava longe da
sensação de estar a ser engolida por areias movediças e, embora a sua natureza a
instigasse a libertar-se delas, o coração dizia-lhe que era impossível fazê-lo. durante
muito tempo oferecera resistência às qualidades de tommy que incitavam as outras
pessoas a qualificá-lo como um inegável bom partido. em geral revelava-se
impermeável aos atrativos físicos dele, a sua riqueza deixava-a indiferente, a sua
natureza apaixonada era, por vezes, insistente, o seu ardor, lisonjeiro. no entanto, o
fato de saber que estas mesmas qualidades haviam sido canalizadas no passado
para outras mulheres levava-a a duvidar da sua autenticidade. ainda que fosse
verdade que a inteligência dele era um atrativo, ela convivia com outros homens tão
sagazes, espertos e capazes quanto tommy. mas isto... helen não tinha armas para
combater isto. encerrada num mundo de petulantes sentia-se derreter na presença
da vulnerabilidade masculina.

ergueu-se do sofá, caminhou até ele e ajoelhou-se junto da cadeira onde ele estava
sentado. fitou o rosto dele.

- sozinha - disse, suavemente, - é exatamente como não quero sentir-me.

desta vez foi acordada por uma luz. charlotte tinha os olhos de tal modo encadeados
que pensou que se tratava da santíssima trindade fazendo descer o espírito santo
sobre ela. lembrou-se da forma como a irmã agnetis explicava a trindade durante as
aulas de religião, na escola st. bernadette: desenhava um triângulo, cada um dos
vértices recebia a designação o pai, o filho e o espírito santo; depois servia-se do giz
amarelo para desenhar enormes raios de sol que saíam dos lados do triângulo. mas,
como explicava a irmã agnetis, estes não eram raios de sol, mas sim o espírito
santo. era necessário que estivéssemos num perfeito estado de graça para que
pudéssemos ir para o céu.

lottie pestanejou sob a incandescência branca. não podia ser outra coisa senão a
santíssima trindade, decidiu, já que flutuava e oscilava no ar exatamente como deus.
e, vinda dessa luz que perpassava a escuridão, uma voz soou, tal como deus falou a
moisés a partir da sarça ardente.

- trago-te aqui qualquer coisa. come.

o feixe de luz baixou, alguém estendeu uma mão. o som metálico de uma tigela de
alumínio ecoou próximo da cabeça de lottie. foi então que a luz propriamente dita
desceu até o nível dela e soltou um ruído sibilante, semelhante ao barulho de um
pneu que se esvazia. a luz tilintou ao tocar o solo. ela recuou perante o brilho,
distanciando-se o suficiente para distinguir que a fonte de luz tinha uma proteção e
estava encaixada num suporte. apercebeu-se de que se tratava de uma lanterna.
não era a trindade, o que devia querer dizer que ela ainda não estava morta.
uma figura moveu-se no interior do círculo luminoso, vestida de negro e distorcida
aos olhos dela, como os reflexos nas salas de espelhos das feiras.

- onde estão os meus óculos. não tenho os meus óculos. tenho de os pôr, não
consigo ver bem sem eles - disse lottie, sentindo a boca muito seca.

- no escuro não precisas deles - reagiu ele.

- não estou no escuro. o senhor trouxe uma luz, por isso dê-me os meus óculos.
quero os meus óculos. se não mos dá, conto tudo. juro que conto.

- terás os teus óculos a seu devido tempo.

ouviu-se um ruído quando ele pousou qualquer coisa no solo. um objeto alto e em
forma de tubo. uma garrafa térmica, pensou lottie. destapou-a e deitou o líquido para
uma tigela. era aromático, quente. o estômago de lottie roncou.

- onde está a minha mãe? - perguntou. - disse que ela estava numa casa, em
segurança, disse que me levaria até ela, disse-o. mas isto não é uma casa segura.
onde é que ela está, então? onde é que ela está?

- calada - ordenou ele.

- grito se me apetecer. mamãe! mamãe! mamãe! - fez menção de se levantar.

uma mão avançou tapando-lhe a boca, enterrando os dedos nas bochechas dela,
como se fossem garras de tigre. a mão empurrou-a para o chão. ela caiu de joelhos
e sentiu a pele rasgar-se ao roçar pelas arestas cortantes de qualquer coisa que
parecia ser uma pedra.

- mamãe! - tornou a gritar quando a mão a libertou. - ma... - a mão silenciou-a e


enfiou-lhe a cabeça na sopa. esta estava quente e queimava. fechou os olhos com
força. tossiu. esperneou, agitando as mãos na tentativa de afastar os braços dele.

- calas-te agora, lottie? - disse-lhe ele ao ouvido.

ela disse que sim com a cabeça e ele puxou-a para trás. a sopa escorria-lhe pela
cara abaixo e pela parte da frente do uniforme escolar. tornou a tossir e limpou a
cara à manga do casaco de malha.

o local para onde a trouxera, fosse ele onde fosse, era frio. o vento penetrava por
alguma abertura, embora ao tentar visualizar o espaço à sua volta não conseguisse
ver o que estava para além do círculo de luz que irradiava da lanterna. dele
conseguia distinguir apenas uma bota, um joelho dobrado e as mãos perante as
quais recuava. as mãos agarraram na garrafa térmica e deitaram mais sopa para
dentro da tigela.

- ninguém te ouvirá se gritares.

- então porque é que me impediu de o fazer?


- porque não gosto dos ruídos que fazem as meninas pequenas - com o dedo
empurrou a tigela na direção dela.

- tenho de ir à casa de banho.

- depois. come isso.

- É veneno?

- exatamente. fazes-me tanta falta morta como uma bala no pé. come.

- não tenho colher disse, olhando em volta.

- há bocado não precisaste de colher, pois não? agora, come. - ele afastou-se da
luz. lottie ouviu um ruído áspero e viu o clarão da chama de um fósforo. ele estava
dobrado sobre o fósforo, e quando se virou ela viu a ponta de um cigarro acesa.

- onde está a minha mãe? - ergueu a tigela enquanto fazia a pergunta. era uma sopa
de legumes, como a que a sra. maguire fazia. não se lembrava de alguma vez ter
sentido tanta fome e por isso bebeu-a até ao fim, servindo-se dos dedos para enfiar
os legumes na boca. - onde está a minha mãe? - perguntou de novo.

- come.

observou-o levantar a tigela. era apenas uma sombra e, sem os óculos, tão-pouco
conseguia distinguir mais do que uma sombra desfocada.

- para onde é que estás a mirar? não podes olhar para outro lado? - baixou os olhos.
de nada servia, no fundo, esforçar-se por vê-lo.

tudo o que lograva distinguir eram os seus contornos: uma cabeça, dois ombros,
dois braços, duas pernas. ele tinha o cuidado de se manter fora do alcance da luz.

ocorreu-lhe que fora raptada. um arrepio percorreu-a de alto abaixo e com tal
intensidade que a fez entornar um pouco da sopa de legumes, que escorreu pela
mão dela até sujar a saia do vestido sem mangas do uniforme. o que será que
acontecia quando as pessoas eram raptadas? tentou imaginar. era tudo por causa
de dinheiro, não era? e era preciso permanecer escondido num sítio qualquer até
que alguém pagasse. só que a mamãe não tinha muito dinheiro. mas o cito tinha.

- quer que o meu pai lhe dê dinheiro? - perguntou.

- aquilo que eu pretendo do teu pai nada tem a ver com dinheiro - rosnou ele.

- mas o senhor raptou-me, não foi? porque eu não acho que esta seja uma casa
segura e não acredito que a mamãe esteja aqui. e se esta não é uma casa segura e
se a mamãe não está aqui, é porque o senhor me raptou por causa do dinheiro. não
foi? que outra... - lembrou-se. a irmã agnetis coxeava de um lado ao outro da sala de
aula, enquanto contava a história de santa maria goretti, que morrera porque quisera
manter-se pura. teria santa maria goretti sido raptada, também? não era assim que
começava aquela história horrível? alguém a levava, alguém ansioso por profanar o
seu precioso templo do espírito santo? com cuidado, lottie pousou a tigela no chão.
sentia as mãos pegajosas no sítio onde entornara sopa e esfregou-as na saia do
vestido. não estava bem certa da forma como o precioso templo do espírito santo
que existia em cada um de nós era profanado, mas se tivesse alguma coisa que ver
com o fato de beber sopa de legumes dada por um estranho, então ela tinha de se
recusar a bebê-la.

- não quero mais disse, - sem se esquecer de acrescentar - muito obrigada.

- come tudo.

- não quero mais.

- disse para comeres. até à última gota, ouves-me? - avançou e esvaziou a garrafa
térmica. pequenas bolhas amarelas pontilhavam o líquido, movendo-se umas na
direção das outras para formar um círculo parecido com o colar de uma fada. -
queres que te ajude a fazê-lo?

lottie não gostava muito da voz dele. percebeu as implicações contidas nas palavras
dele. tornaria a enfiar a cabeça dela na sopa e assim ficaria até que ela se afogasse
ou comesse. a idéia de se afogar não lhe agradava muito, pelo que optou por pegar
na tigela. deus perdoar-lhe-ia o fato de beber a sopa, não perdoaria?
quando terminou colocou a tigela no chão.

- preciso de ir à casa de banho - disse.

- vai - disse ele. - não sabes o que aquilo é?

ela percebeu que ele se referia à tigela e ainda que estava a querer dizer-lhe que o
fizesse na sua presença. pretendia que ela tirasse as cuecas, se baixasse e fizesse
xixi enquanto ele via e escutava. tal como fazia a sra. maguire em casa, quando
ficava do lado oposto da porta, perguntando.

- estás aflita esta manhã, minha querida?

- não posso. na sua frente, não - disse ela.

- então, não faças - disse, levando a tigela. num abrir e fechar de olhos recolheu a
garrafa térmica, a tigela da sopa e a lanterna. a luz desapareceu. lottie ouviu um
ruído surdo, como se alguém tivesse deixado cair qualquer coisa mesmo ao seu
lado. soltou um grito e encolheu-se. uma corrente de ar passou sobre a sua cabeça,
dando-lhe a sensação de que fantasmas saídos de um cemitério esvoaçavam à sua
volta. ouviu depois um ruído metálico seguido pelo som de uma fechadura que se
fechava e teve a certeza de que ficara sozinha.

tateou o chão no sítio de onde viera o ruído, segundos antes. ele atirara-lhe um
cobertor, malcheiroso e áspero. apanhou-o e apertou-o de encontro ao estômago,
esforçando-se por não pensar nas implicações daquele cobertor quanto à sua
permanência naquele lugar escuro.

- mas tenho de ir à casa de banho - gemeu ela, ao mesmo tempo que sentia de novo
um nó formar-se na garganta e um aperto no peito. não, não, pensou. não posso,
não posso. tenho de ir à casa de banho.

deixou-se cair no chão, lábios trêmulos e olhos marejados de lágrimas. com uma
das mãos fez pressão sobre a boca e fechou os olhos com força. engoliu em seco e
tentou empurrar o nó que lhe apertava a garganta de volta para o estômago.

pensa em coisas alegres - diria a mãe.

lembrou-se então de bretã. chegou mesmo a proferir o nome dela, num murmúrio. -
bretã. a minha melhor amiga. bretã.
bretã era o seu pensamento mais alegre. estar na companhia de bretã, contando
histórias, pregando partidas. fez um esforço para imaginar o que faria bretã, caso se
encontrasse aqui com ela. se estivesse aqui, no escuro, que faria bretã?
em primeiro lugar, faria xixi, pensou lottie. bretã faria xixi. diria: tem-me aqui trancada
neste buraco escuro, mas não pode obrigar-me a fazer o que quer que faça. por isso
vou fazer xixi, aqui e agora mesmo. não vou fazer numa tigela, mas no chão.
o chão. ela teria percebido que não se tratava de um caixão, pensou lottie, por causa
do chão, um chão duro como pedra. só que...
lottie tateou o mesmo chão para onde ele a atirara, o mesmo chão onde ferira o
joelho. essa teria sido evidentemente a primeira coisa que bretã teria feito, se tivesse
acordado no escuro. ela teria tentado descobrir o local onde se encontrava, nunca
se teria limitado a ficar deitada no chão, choramingando como um bebé.
soluçante, lottie percorreu o chão à sua volta com os dedos. era ligeiramente rugoso,
o que explicava o ferimento no joelho. a superfície enrugada formava um rectângulo,
depois outro e outro, ainda.

- tijolos - murmurou. bretã teria sentido orgulho nela.

lottie refletiu sobre um chão coberto de tijolos e sobre o que esse fato poderia
revelar-lhe acerca do sítio onde se encontrava. apercebeu-se de que se fizesse
muitos movimentos poderia magoar-se, ou tropeçar, ou até cair. poderia mergulhar
num poço, poderia...
um poço no escuro? teria perguntado bretã. não me parece, lottie.
assim, apoiada nas mãos e nos joelhos, lottie continuou a tatear o chão até que os
seus dedos tocaram finalmente em madeira. era áspera e esfarelava-se, com pregos
minúsculos e frios espetados. sentiu as arestas e as curvas, bem como os lados.
uma grade, concluiu. mais do que uma. um conjunto de grades que ela inspecionou
centímetro a centímetro.
bateu numa superfície de tipo diferente que saía do chão. era macia e curvilínea e
quando a empurrou, inquisidoramente, com os nós dos dedos moveu-se, produzindo
um som desigual e breve. era um som familiar que lhe recordava água salgada e
areia, brincadeiras felizes à beira-mar.

- um balde de plástico - disse ela, orgulhosa. - bretã não poderia tê-lo descoberto tão
depressa.
ouviu o som de um líquido no interior e baixou o rosto para cheirá-lo. era inodoro.
mergulhou os dedos no líquido e aproximou-os da língua.

- Água - disse. - um balde com água.

soube imediatamente o que bretã faria. diria, bom, tenho de fazer xixi, lot, e usaria o
balde para isso.
foi isso que lottie fez. esvaziou o balde, baixou as cuecas e sentou-se sobre ele.
deixou sair um esguicho de urina quente. equilibrou-se no rebordo do balde e
descansou a cabeça sobre os joelhos. um deles latejava no sítio ferido pelos tijolos.
lambeu a ferida e sentiu o sabor a sangue. sentiu-se subitamente cansada e muito
sozinha. todos os pensamentos sobre bretã se desvaneceram como bolhas de
sabão furadas...

- quero a mamãe - murmurou lottie.

e até em relação a isto sabia qual seria a reação de bretã. já te ocorreu que a
mamãe poderá não te querer a ti?

st. james deixou helen e deborah em marylebone high street, em frente a uma loja
chamada pumpkin’s grocery, onde uma velhota acompanhada por um impaciente fox
terrier preso por uma trela se entretinha a escolher uma caixa de morangos.
munidas da fotografia de charlotte bowen, helen e deborah percorreriam a área em
torno da escola st. bernadette, em blandford street, bem como as imediações da
minúscula casa de damien chambers em cross keys close e a zona de devonshire
place mews, perto do topo da rua principal. os seus propósitos eram duplos. tentar
encontrar alguém que pudesse ter visto charlotte na tarde do dia anterior e
determinar qualquer um dos itinerários que ela pudesse ter seguido desde que saíra
da escola até chegar a casa de chambers e desta até sua casa. elas ocupar-se-iam
de charlotte, enquanto st. james se concentraria em bretã, a amiga de charlotte.

muito depois de ter deixado helen em casa, muito depois de deborah se ter deitado,
st. james deambulara pela casa, inquieto. começara por ir ao escritório, onde
escolhera livros ao acaso retirando-os das prateleiras enquanto bebia dois brandies
e fingia ler. daí passara para a cozinha, onde fizera uma chávena de ovaltine que
não bebeu e, em seguida, entretivera-se atirando uma bola de tênis desde a escada
até à porta das traseiras, para gáudio canino de peach. subiu as escadas até ao
quarto e observou a mulher, que dormia. finalmente, dirigiu-se ao laboratório. as
fotografias de deborah continuavam espalhadas sobre a mesa de trabalho, onde ela
as deixara ao princípio da noite. ajudado pela iluminação do candeeiro de teto,
estudou por momentos a fotografia da rapariga indiana que segurava entre as mãos
a bandeira do reino unido. concluiu que ela não deveria ter muito mais do que dez
anos de idade, a mesma idade de charlotte bowen.

st. james levou as fotografias para a câmara escura de deborah e foi buscar os
sacos de plástico onde colocara os bilhetes que tanto eve bowen como dennis
luxford haviam recebido. juntou-lhes a lista feita por eve bowen, em letra de
imprensa. ligou três lâmpadas de grande intensidade e pegou numa lupa para
examinar os dois bilhetes e a lista.
concentrou-se nas características comuns a todos. dado que não partilhavam
palavras iguais, teria de basear-se na semelhança entre caracteres. f, t duplo, o
(isolado que num dos bilhetes começava a palavra queres, e o mais fidedigno de
todos os caracteres para a análise e a descodificação: a letra e.

o traço horizontal da letra no bilhete enviado a luxford, era exatamente igual ao que
aparecia no bilhete de bowen. em ambos os casos, o traço era usado para formar
parte da letra que se seguia. o mesmo estilo fora utilizado no t duplo de charlotte e
de lottie. em ambos os bilhetes, o aparecia totalmente isolado, arredondado no
extremo inferior e sem qualquer ligação com as letras que vinham a seguir. por outro
lado, a curva inferior da letra e surgia sempre ligada à letra que se lhe seguia
enquanto a curvatura inicial aparecia isolada e nunca se juntava ao caracter que a
precedia. o estilo global dos dois bilhetes situava-se entre a letra de imprensa e o
cursivo, assemelhando-se a uma versão intermédia de ambos. até para um olhar
pouco experiente que fizesse um exame rápido tornava-se evidente que os dois
bilhetes tinham sido compostos pela mesma mão.

pegou na lista feita por eve bowen e tentou descobrir o tipo de semelhanças sutis
que mesmo aqueles que tentam disfarçar a caligrafia geralmente não conseguem
dissimular. a formação de uma letra é formada, é um gesto de tal modo inconsciente
que alguém que tente disfarçar a sua caligrafia está sujeito a cometer um erro contra
sua vontade, a não ser que execute com atenção especial cada movimento da
caneta ou do lápis. era um erro deste tipo que ele procurava: a curvatura distinta de
um o ponto inicial de um a ou de um o, a curva de um r e o início da mesma, uma
semelhança no espaço entre as palavras, alguma uniformidade na forma de erguer a
caneta ou o lápis no final da palavra e antes de passar à escrita da seguinte.

st. james examinou à lupa as letras uma por uma. estudou cada palavra, mediu o
espaço entre palavras e a largura e altura de cada um dos caracteres. aplicou o
mesmo procedimento aos dois bilhetes e à lista elaborada por eve bowen. o
resultado foi o mesmo. os bilhetes haviam sido escritos pela mesma mão, mas esta
não pertencia a eve bowen.

st. james reclinou-se no banco onde estava sentado e refletiu sobre a direção lógica
a que este tipo de análise de amostras escritas o conduziria inevitavelmente. se eve
bowen falara verdade, isto é, que dennis luxford era a única pessoa que conhecia a
identidade do verdadeiro pai de charlotte, então o passo seguinte que se lhe
afigurava como o mais razoável seria obter uma amostra da letra de luxford. no
entanto, conduzir este caso através dos labirintos da quirografia parecia-lhe um
desperdício de tempo. porque, se dennis luxford estivesse realmente por detrás do
desaparecimento de charlotte com o seu passado jornalístico e o conhecimento de
que dispunha sobre os procedimentos policiais dificilmente teria incorrido na tolice
de redigir os bilhetes que comunicavam o rapto.

era exatamente isto que st. james considerava inusitado. era isso que o fazia sentir-
se inquieto: o fato de alguém ter escrito os bilhetes. eles não tinham sido
datilografados, nem compostos a partir de letras recortadas em revistas ou jornais.
este fato remetia para duas hipóteses: o raptor não esperava ser apanhado, ou o
raptor não esperava ser punido quando toda a verdade sobre o rapto viesse ao de
cima.
fosse como fosse, quem quer que tivesse levado charlotte bowen consigo teria de
ser, ou alguém bastante familiarizado com os movimentos dela ou alguém que
tivesse dedicado algum tempo a estudá-los antes de a raptar. no primeiro caso, um
dos membros da família teria de estar obrigatoriamente envolvido, nem que fosse de
forma remota. no segundo, tudo apontava para que o raptor tivesse começado por
seguir de perto todos os movimentos da vítima. e alguém que o faz acaba por atrair
as atenções sobre si. aquela que tinha maiores probabilidades de se ter apercebido
de que estava a ser seguida era a própria charlotte, ou bretã, a sua amiga.
pensando nela, st. james dirigiu-se para norte, para devonshire place mews, depois
de ter deixado a mulher e helen clyde em marylebone high street.

as vozes de um coro à capella ecoavam do outro lado da porta fechada da casa de


eve bowen. no momento em que tocou a campainha, st. james conseguiu distinguir
o tipo de cânticos masculinos uniformes que habitualmente se ouvem num mosteiro
ou no interior de uma catedral. em resposta à pressão que o seu polegar exercia
sobre a campainha, os cânticos pararam abruptamente. passados alguns instantes,
a tranqueta deslizou do outro lado da porta e esta abriu-se.

esperava deparar-se com eve bowen ou com o marido desta. no entanto, à sua
frente perfilava-se uma mulher de rosto ruborizado, cuja configuração física fazia
lembrar uma pêra. vestia uma camisola laranja, larga, sobre umas calças de malha
vermelha deformadas na zona dos joelhos.

- não estou interessada em assinaturas, nem em testemunhas de jeová, nem em


leituras do livro dos mormons, obrigada - disse com rispidez, com um sotaque que
fazia pensar que ela teria abandonado a sua irlanda rural na semana anterior.

apoiando-se na descrição feita pela deputada, st. james concluiu tratar-se da sra.
maguire, a governanta. antes que ela fechasse a porta identificou-se e perguntou por
eve bowen.

o tom de voz da sra. maguire alterou-se de imediato, passando da afirmação


desabrida ao murmúrio intenso.

- É o senhor que está à procura da charlie?

st. james respondeu que sim. a governanta afastou-se rapidamente da porta e


conduziu-o até à sala de estar, onde as notas sombrias do sanctus jorravam em
surdina de um leitor de cassetes, que estava junto a uma mesa pequena sobre a
qual fora montado um altar móvel. duas velas acesas tremeluziam em ambos os
lados de um crucifixo, ladeadas por uma imagem esguia da virgem maria de mãos
rachadas e por um santo barbudo com um xaile verde traçado sobre umas vestes
cor de açafrão. ao deparar-se com o altar, st. james virou-se para encarar a sra.
maguire e reparou que a mão direita dela se fechava sobre as contas de um rosário.

- estou a cumprir todos os mistérios, esta manhã - informou a sra. maguire, em tom
sério, indicando o altar com a cabeça. - rejubilar, chorar e glorificar, todos três. e não
me levantarei antes de ter dado a minha contribuição para fazer com que charlie
volte para casa, mesmo que seja pouca. estou a rezar a são judas e à mãe
santíssima. um deles se encarregará deste assunto.

parecia ter-se esquecido que estava justamente de pé e não de joelhos como


prometera. caminhou até o leitor de cassetes e carregou num botão. os cânticos
cessaram.

- já que não posso estar numa igreja, posso fazer a minha própria igreja. o senhor
compreende. - beijou o crucifixo que pendia no extremo do rosário e depositou-o
ternamente aos pés de são judas. dedicou alguns minutos a compor o rosário por
forma que nenhuma das contas que o formavam tocassem umas nas outras,
deixando o crucifixo cuidadosamente deitado com o corpo virado para cima. - ela
não está aqui disse, dirigindo-se a st. james.

- miss bowen não está em casa?

- nem o sr. alex.

- saíram para procurar charlotte?

a sra. maguire voltou a passar os dedos rudes pelo crucifixo do rosário. parecia
hesitar entre uma dúzia de respostas possíveis, tentando escolher a mais favorável.
aparentemente desistiu de procurar, porque acabou por dizer:

- não.

- então, onde...

- ele foi para um dos restaurantes que possui, ela está na casa dos comuns. ele
queria ficar em casa, mas ela quer que as coisas pareçam tão normais quanto
possível. por isso é que estou aqui e não estou ajoelhada na igreja de são lucas,
como gostaria, dizendo as minhas orações em frente ao santíssimo sacramento. -
parecia pressentir e esperar uma demonstração de surpresa por parte de st. james
perante esta reação normal ao desaparecimento de charlotte, já que continuou
rapidamente: - não é tão mau como parece, jovem. miss eve telefonou-me esta
manhã, à uma e meia. não que eu estivesse a dormir não que ela tivesse sequer
tentado dormir, deus a proteja porque eu não preguei olho toda a noite. ela disse-me
que o senhor tomaria conta desta coisa terrível que aconteceu com charlie e que
enquanto isso, nós, o sr. alex, ela própria e eu, teríamos de nos manter calmos e
ocupados e o mais normais possível. para o bem de charlie. por isso aqui estou. e lá
está ela, deus a ajude, indo para o trabalho e tentando fingir que a sua única
preocupação é aprovar mais uma lei sobre o ira.

a informação atraiu a atenção de st. james.

- miss bowen tem estado envolvida na legislação sobre o ira?

- desde o princípio. há dois anos atrás, mal entrou para o ministério do interior e já
estava até ao pescoço com antiterrorismo, antiapropriação da semtex, esta e aquela
proposta de lei sobre o aumento das penas de prisão para membros do ira. como se
não houvesse uma solução mais simples para o problema sem ser pairar acerca
dele na casa dos comuns.

aqui estava um elemento que dava que pensar, pensou st. james: a legislação sobre
o ira. uma deputada de nomeada não poderia fazer segredo da sua posição política
sobre o conflito e, provavelmente, tão-pouco estaria interessada em fazê-lo. este
elemento, aliado aos irlandeses que faziam parte da sua vida diária e da vida da
filha, ainda que de forma periférica, seria algo a ter em conta na eventualidade de
bretã se revelar incapaz de lhes dar a colaboração de que necessitavam para
descobrir o paradeiro de charlotte.

a sra. maguire gesticulava na direção que seguira alex stone ao sair da sala de estar
na noite anterior.

- se quer conversar, então é melhor que eu faça as minhas tarefas enquanto


falamos. se eu agir normalmente talvez consiga sentir-me como de costume - disse
enquanto o guiava através da sala de jantar até a uma cozinha ultramoderna. sobre
uma das bancadas estava uma caixa de mogno aberta, deixando ver um conjunto de
talheres em prata. junto a ela havia um frasco bojudo de líquido para polir pratas e
uma série de panos escurecidos. - uma quinta-feira normal - disse a sra. maguire.
não consigo imaginar como é que miss eve é capaz de se controlar, mas se ela
consegue, eu também. destapou o frasco de líquido e colocou a tampa sobre a
bancada de granito. arqueou os lábios, humedeceu um dos panos com um pouco do
líquido verde. É apenas um bebé. deus nos ajude. ela é apenas um bebé - disse em
voz baixa.

st. james sentou-se no balcão que se prolongava a partir do fogão. observou a sra.
maguire que aplicava vigorosamente o polidor de pratas numa colher de servir.

- quando é que viu charlotte pela última vez? - perguntou.

- ontem de manhã. acompanhei-a até st. bernadette, como faço sempre.

- todas as manhãs?

- nas manhãs em que o sr. alex não a leva à escola. mas aquilo que faço de manhã
não é exatamente acompanhá-la, é caminhar atrás dela. só para ter certeza de que
ela vai mesmo para a escola e não anda por sítios onde não deve andar.

- ela já fez gazeta alguma vez?

- nos primeiros tempos. ela não gosta de st. bernadette, preferia andar numa escola
pública, mas miss eve não quer.

- miss bowen é católica?

- miss eve sempre honrou nosso senhor, mas não é católica. assiste à missa todos
os domingos, em st. marylebone.

- É estranho que tenha decidido pôr a filha num colégio de freiras.


- ela acha que charlie precisa de ser disciplinada. e se uma criança tem falta de
disciplina, uma escola católica é o sítio ideal para isso.

- o que pensa sobre isso?

- o que penso? - a sra. maguire fitou a colher com os olhos semicerrados e esfregou
a parte côncava com o polegar.

- a charlie precisa de fato de ser disciplinada?

- uma criança que é educada com pulso firme não precisa de disciplina, sr. st. james.
foi assim com os meus cinco filhos e foi assim com os meus irmãos e irmãs. Éramos
dezoito, dormíamos em três quartos em county kerry e nunca foi necessária uma
palmada no traseiro para nos manter no caminho certo. mas os tempos são outros e
não serei eu quem vai levantar um dedo acusador em relação ao papel de mãe de
uma senhora boa e digna que teve um momento de fraqueza na vida. o senhor
perdoa os nossos pecados e há muito que ele perdoou os dela. além disso, há
coisas que são naturais numa mulher, outras não.

- que coisas?

a sra. maguire concentrou a sua atenção na limpeza da colher, fazendo deslizar a


unha partida do dedo polegar ao longo do cabo.

- miss bowen faz o melhor que pode - disse. faz o melhor que sabe e sempre o fez.

- trabalha para ela há muito tempo?

- desde que a charlie tinha seis semanas que estou com ela, e que bebé barulhento
que ela era, como se deus a tivesse mandado à terra para experimentar a paciência
da mãe. nunca se adaptou bem à vida até aprender a falar.

- e a sua paciência?

- cinco filhos para criar sozinha ensinou-me o que era ter paciência. as birras de
charlie não eram nenhuma novidade para mim.

- e o pai de charlotte? - st. james incluiu a pergunta sem esforço. - como é que ele
lidava com ela?

- sr. alex?

- estou a referir-me ao verdadeiro pai de charlotte.

- não conheço o patife. alguma vez mandou dizer qualquer coisa ou um cartão, ou
um telefonema, ou até um sinal de que perfilharia a criança? nenhum. nem uma só
vez. o que, segundo diz miss eve, é exatamente o que ela queria que acontecesse.
mesmo agora. mesmo agora. veja só isto. meu deus, como aquele monstro a
magoou. - a sra. maguire elevou uma manga larga até o rosto, pressionando os dois
olhos com ela. - desculpe-me, sinto-me desamparada, é o que é. aqui sentada,
nesta casa, fazendo as tarefas habituais das quintas-feiras. sei que é para o melhor,
sei que é isso que deve ser feito, para bem de charlie. mas é uma loucura, uma
loucura.

st. james observou-a enquanto ela pegava num garfo, executando a tarefa que lhe
incumbia e cumprindo as ordens de eve bowen. o seu coração, no entanto, parecia
estar algures e os lábios tremiam-lhe à medida que polia as pratas. a comoção da
mulher parecia ser bastante genuína, mas st. james sabia que o seu trabalho como
perito assentava no estudo de provas fatuais e não na avaliação das testemunhas e
de potenciais suspeitos. tornou a abordar os percursos matutinos até à escola,
perguntando-lhe se se recordava de ter visto alguém na rua, alguém que pudesse
estar a vigiar charlotte, alguém que parecesse fora do seu elemento natural.

ela fitou a caixa das pratas por momentos antes de responder. - não me apercebera
de ninguém em particular, - disse por fim. - mas caminhavam ao longo da rua
principal, não era verdade?, que estava sempre cheia de gente. distribuidores de
mercadorias, pessoas a caminho do emprego, lojistas que abriam os
estabelecimentos ao público, corredores e ciclistas, pessoas apressadas que
corriam para apanhar o autocarro ou o metro. não reparara. nem se lembraria de o
fazer. mantinha os olhos fixos em charlie, a fim de se assegurar de que ela tomava o
caminho para a escola. pensava no dia de trabalho que tinha pela frente e planejava
o jantar de charlie e... que deus a perdoasse por não ter reparado em nada, por não
ter estado alerta, por não ter olhado por charlie como era seu dever, como lhe
pagavam para fazer, como esperavam que fizesse, como...

a sra. maguire pousou as pratas e o polidor. tirou um lenço de dentro da manga e


assoou-se ruidosamente.

- meu deus, faz com que não lhe toquem num só cabelo que seja - disse. - esforçar-
nos-emos por ver a tua mão em toda esta história e um dia compreenderemos qual
foi a tua vontade.

st. james perguntou a si próprio que maior significado poderia ter o desaparecimento
da criança, para além do simples horror que caracterizava esse mesmo
desaparecimento. a religião, concluiu, não explicava de forma nenhuma os mistérios,
as crueldades hediondas, ou as inconsistências da vida.

- antes de desaparecer, charlotte estava aparentemente na companhia de outra


criança - disse. - o que é que sabe acerca de uma rapariga chamada bretã?

- muito pouco de bom. É uma criança rebelde nascida num lar desfeito. segundo as
conversas que charlie me fazia, fiquei com a impressão de que a mãe dela estava
mais interessada em discotecas do que em controlar as idas e vindas de bretã. essa
criança não ajudou a charlie em nada.

- porque é que diz que ela é rebelde?

- faz maldades e está sempre a querer que a charlie tome parte nelas. bretã era um
diabrete, - explicou a sra. maguire. - furtava doces aos comerciantes de baker street,
esgueirava-se e esquivava-se aos porteiros no museu madame tussaud. escreveu
as iniciais do nome dela com um marcador, nas paredes do metrô.

- ela é colega de charlotte, na escola?

era, de fato. miss eve e o sr. alex programavam de tal maneira os dias e as noites de
charlie que a única oportunidade para fazer amigos de que ela dispunha era
enquanto estava na escola st. bernadette.

- quando é que ela teria tempo para estar com a amiga, se não fosse lá? - perguntou
a sra. maguire. - eu própria, - prosseguiu em resposta às outras perguntas dele, -
não conhecia o apelido da miúda e nunca a tinha visto, mas quase garantia que
vinha de uma família estrangeira. e vivendo do subsídio de desemprego -
acrescentou. - passam a noite a dançar, o dia a dormir e aproveitam-se da ajuda do
governo sem um pingo de vergonha.

st. james refletiu sobre o caráter estranho e inquietante deste fato novo acerca da
vida ainda jovem de charlotte bowen. a família dele tinha conhecimento dos nomes,
moradas, números de telefone e, provavelmente, dos grupos sanguíneos dos seus
companheiros de infância e respectivos progenitores. quando ele protestara,
incomodado com esse escrutínio aos seus amigos, a mãe informara-o de que uma
investigação e aprovação desse gênero era parte integrante do papel dos pais
enquanto progenitores. como seria, então, que eve bowen e alexander stone
desempenhariam o seu papel como pais na vida de charlotte?

a sra. maguire pareceu adivinhar-lhe os pensamentos.

- charlie está sempre ocupada, sr. st. james - disse ela. - a miss eve assegura-se
disso. ela tem lições de dança depois da escola, à segunda-feira, psicólogo à terça,
lição de música à quarta e jogos extracurriculares à quinta. À sexta-feira vai ter
diretamente com miss bowen ao escritório da constituinte e passa lá a tarde. não
tem tempo livre para amizades a não ser na escola, e isso sob a vigilância das
irmãs, portanto é seguro. ou devia ser.

- então quando é que charlotte brinca com esta outra rapariga?

- sempre que tem um minuto livre. nos dias de jogos na escola, antes dos seus
compromissos. as crianças arranjam sempre tempo para fazer amizades.

- aos fins-de-semana?

- charlie passava os fins-de-semana com os pais, - explicou a sra. maguire. - ou com


os dois, ou com o sr. alex num dos restaurantes dele, ou então com miss eve no
gabinete de parliament square. os fins-de-semana são para a família - disse ela,
num tom de voz que deixava entrever a rigidez deste regulamento. continuou como
se pretendesse concluir os pensamentos de st. james. - são ambos pessoas
ocupadas. deveriam conhecer os amigos de charlie, deviam saber o que ela faz
quando não está com eles. isso nem sempre acontece, e é assim que as coisas são.
deus os perdoe, porque eu não vejo como eles poderão perdoar-se a si mesmos.

a escola st. bernadette ficava em blandford street, muito próximo da zona oeste da
rua principal e talvez a um quarto de milha de devonshire place mews. constituído
por quatro andares em tijolo, com cruzes nas águas furtadas e uma estátua da santa
homônima colocada num nicho sobre o amplo pórtico da entrada, a escola era
dirigida pelas irmãs dos mártires sagrados. as irmãs eram um grupo de mulheres
com uma média de idade que rondava, aparentemente, os setenta anos. usavam
pesados hábitos negros, um comprido rosário de contas de madeira em volta da
cintura e peitilhos brancos que de certo modo faziam lembrar cisnes decapitados.
mantinham a sua escola tão imaculada como um cálice polido. as janelas reluziam,
as paredes imaculadas assemelhavam-se ao interior da alma de um bom cristão, o
chão de oleado cinzento brilhava e o ar cheirava a cera e a desinfetante. se o
ambiente de asseio contava para alguma coisa, o diabo não podia alimentar
quaisquer esperanças de comércio com os habitantes desta escola.

após uma breve troca de palavras com a diretora da escola, uma freira chamada
irmã maria da paixão, que o escutara com as mãos piamente escondidas sob o
hábito fitando-o com os seus penetrantes olhos negros, st. james foi conduzido ao
segundo andar ao longo de um corredor silencioso atrás de cujas portas se dava
seguimento ao sério aprendizado do saber. na segunda porta a partir do fundo do
corredor, a irmã maria da paixão deu uma batida brusca na porta antes de entrar. a
turma, cerca de vinte e cinco jovens sentadas em filas ordenadas ergueu-se com um
arrastar de cadeiras. nas mãos seguravam canetas de tinta permanente e réguas. -
bom dia, irmã! - disseram em coro, ao que a freira respondeu com um breve inclinar
de cabeça. as raparigas voltaram a sentar-se em silêncio e retomaram as suas
tarefas, que pareciam consistir na feitura meticulosa de frases. tinham os dedos e
polegares manchados de tinta devido ao manuseamento das canetas e das réguas à
medida que desenhavam as linhas gramaticais da forma apropriada.

a irmã maria da paixão conversou por breves instantes e em voz baixa com uma
freira, que veio ao seu encontro na parte da frente da sala de aulas, caminhando
com as dificuldades próprias de quem sofrera recentemente uma deslocação da
anca. o rosto tinha a cor de damascos secos e usava óculos grossos, sem armação.
depois de uma conversa breve e seca, a segunda freira assentiu com a cabeça e
aproximou-se de st. james. juntou-se a ele no corredor e fechou a porta atrás de si,
enquanto a irmã maria da paixão cumpria a sua obrigação como professora
substituta.

- eu sou a irmã agnetis - disse-lhe. - a irmã maria da paixão explicou-me que está
aqui por causa de charlotte bowen.

- sim, ela desapareceu.

a freira retesou os lábios, levou os dedos às contas que lhe circundavam a cintura e
caíam até aos joelhos.

- isso não me surpreende.

- porquê, irmã?

- ela quer as atenções todas viradas para ela. durante as aulas, no refeitório, durante
os jogos, nas orações. isso é, sem dúvida, mais um dos seus estratagemas para se
transformar no centro das preocupações de todos nós. não seria a primeira vez.

- está a querer dizer que charlotte já fugiu antes?

- já fez das dela em outras ocasiões. a semana passada foi com os cosméticos da
mãe. trouxe-os para a escola e maquilhou-se no lavatório, durante a hora de almoço.
parecia um palhaço quando entrou na aula, mas esse era o efeito que ela pretendia.
todos os que vão ao circo tendem a ver os palhaços, não é verdade? - a irmã
agnetis fez uma pausa para explorar as profundezas cavernosas do seu bolso. tirou
um lenço amarrotado com o qual limpou os cantos da boca, retirando a saliva que aí
se acumulara enquanto falava. - não consegue ficar quieta na secretária mais do
que vinte minutos seguidos. ou está a folhear distraidamente os livros ou a abanar a
gaiola dos hamsters, ou a agitar as caixas das esmolas...

- caixas das esmolas?

- dinheiro para as missões - informou a irmã agnetis e retomou o fio dos seus
pensamentos. - ela queria ser presidente da forma, mas quando as colegas
escolheram outra pessoa teve um ataque de histeria e teve de ser castigada durante
o resto da tarde. não percebe a necessidade de asseio em relação a ela própria ou
ao trabalho dela, não obedece às regras que lhe desagradam e no que toca aos
estudos religiosos declara que não é católica e que, por isso, não devia ser obrigada
a assistir às aulas. É o que acontece, se me é permitido dizer, quando a escola
admite alunos não-católicos. a decisão não foi minha, evidentemente. estamos aqui
para servir a comunidade.

tornou a colocar o lenço no bolso e, tal como a irmã maria da paixão, adotou a
posição de mãos dobradas sob o hábito. quando st. james fez uma pausa para
assimilar as informações que ela lhe fornecia e determinar o que é que as mesmas
acrescentavam ao que sabia sobre charlotte, ela continuou:

- sem dúvida que pensa que estou a ser severa no juízo que faço da rapariga. mas
estou certa de que a mãe não hesitaria em confirmar a natureza difícil desta criança.
já foi convocada mais do que uma vez para reuniões.

- refere-se a miss bowen?

- ainda na quarta-feira passada conversei com ela acerca do assunto dos


cosméticos e posso assegurar-lhe de que ela castigou a criança com severidade, tal
como ela precisava, por ter saído com os pertences da mãe sem autorização.

- castigou-a de que modo?

as mãos da irmã agnetis deslizaram para fora do peitilho do hábito e fizeram um


gesto que indicava que ela não dispunha desse tipo de informação.

- fosse qual fosse o castigo que ela lhe aplicou, foi o suficiente para acalmar a
criança para o resto da semana. na segunda-feira, é claro, já havia voltado ao
normal.
- difícil?

- tal como disse, de volta ao normal.

- talvez as fases difíceis de charlotte sejam encorajadas pelas colegas de turma -


disse st. james.

a irmã agnetis recebeu estas palavras como uma afronta.

- sou conhecida pela minha disciplina, caro senhor - disse. st. james expressou a
sua confiança nesse fato.

- referia-me a uma das amigas que charlotte tem aqui na escola. há fortes
possibilidades de que ela saiba onde charlotte se encontra. ou, se assim não for, que
possa ter visto alguma coisa quando regressavam juntas a casa depois da escola,
que possa dar-nos uma pista sobre o seu paradeiro. vim cá para falar com ela.
chama-se bretã.

- bretã. - a irmã agnetis juntou o pouco que restava das suas sobrancelhas.
aproximou-se da pequena vidraça na porta da sala de aula e observou o seu interior,
procurando a rapariga. - não há ninguém chamado bretã na minha aula - disse ela.

- poderá ser uma alcunha - sugeriu st. james. voltou a olhar através da vidraça,
examinando a turma.

- sanpaolo, talvez. brittany sanpaolo. - disse.

- posso falar com ela?

a irmã agnetis chamou uma rapariga de rosto sério, com cerca de dez anos de
idade, cujo uniforme assentava com dificuldade sobre um corpo rechonchudo. usava
o cabelo demasiado curto para o seu rosto em forma de lua cheia e quando falava a
boca reluzia devido a um aparelho para os dentes.

os seus sentimentos eram inequívocos.

- lottie bowen? - disse numa voz incrédula. prosseguiu num tom sibilante. - ela não é
minha amiga. nem pensar. mete-me nojo. - lançou um olhar rápido para a irmã
agnetis e acrescentou: - desculpe, irmã.

- bem podes dizê-lo - disse a irmã agnetis. - responde às perguntas que o senhor te
fizer.

brittany pouco tinha para dizer a st. james. e disse-o como se desde o início do
primeiro período escolar tivesse estado à espera de uma oportunidade como esta
para desabafar o que sentia em relação a charlotte.

- lottie bowen ridicularizava as outras alunas, - revelou brittany. - gozava com os


cabelos delas, as caras, as respostas que elas davam nas aulas, o peso delas, as
vozes.
tanto quanto st. james podia perceber, a própria brittany sanpaolo era um dos alvos
prediletos de chacota de charlotte. mentalmente agradeceu, aborrecido, à irmã
agnetis o fato de lhe impor a presença desta criança desagradável, e preparava-se
para interromper a ladainha dos pecados de charlotte bowen:

- lottie estava sempre a gabar-se da mãe, das férias que passava com os pais, dos
presentes que eles lhe davam - quando ela passou a apresentar aquilo que parecia
uma justificação inequívoca dos seus reparos alegando que ninguém gostava de
lottie, ninguém queria almoçar com ela, ninguém queria que ela frequentasse aquela
escola, ninguém a queria como amiga... - à exceção da estúpida da brigitta walters,
e todas sabiam por que motivo esta se dava com lottie.

- brigitta? - inquiriu st. james. já era algum progresso. pelo menos, brigitta era mais
parecido com bretã, que podia muito bem ser a forma como uma criança
pronunciaria erradamente o nome de uma irmã mais velha.

brigitta fazia parte da turma da irmã são vicente de paulo, segundo as informações
de brittany. ela e charlotte integravam o coro da escola.
em apenas cinco minutos ficaram a saber pela irmã são vicente de paulo, oitenta
anos no mínimo e dura de ouvido que brigitta walters não fora à escola nesse dia.
não recebera qualquer recado dos pais sobre a natureza da doença da filha, mas
não seria esse um comportamento cada vez mais frequente dos pais, hoje em dia?
demasiado ocupados para poderem telefonar, demasiado atarefados para se
envolverem na vida dos filhos, demasiado assoberbados para demonstrações de
boa educação, demasiado ocupados para...

st. james agradeceu apressadamente à irmã são vicente de paulo. levando consigo
a morada e o telefone de brigitta walters abandonou a escola.

os progressos pareciam estar à vista.

- que é que temos, então, para amanhã? - dennis luxford apontava na direção de
sarah happleshort, a sua chefe de redação. com a língua, ela empurrou a pastilha
elástica para um dos cantos da boca e pegou nas suas notas.

sentados em torno da mesa de reuniões do gabinete de luxford, os restantes


participantes no conselho de redação aguardavam a conclusão da conferência
diária. nela era definido o conteúdo da edição do dia seguinte do the source, decidia-
se o modo como as histórias seriam trabalhadas e ouvia-se a decisão de luxford
sobre o que surgiria na primeira página. os jornalistas desportivos batiam-se por
uma cobertura mais extensiva da equipe inglesa de críquete, uma sugestão que fora
acolhida por um coro de gracejos apesar da morte recente do melhor batedor inglês.
comparada com a rumba do rapaz de aluguel, a morte por asfixia de um célebre
jogador de críquete era irrelevante, não obstante a identidade de quem fora preso e
acusado de planejar a referida morte por asfixia. além disso, tudo isso eram águas
passadas desprovidas do potencial lúdico que representavam as tentativas dos
conservadores para mitigar os estragos causados por sinclair larnsey, o rapaz de
aluguel na companhia de quem ele fora surpreendido e o citroen de vidros fumados
«o sacana nem sequer consome produtos nacionais», comentara sarah happleshort,
em tom zangado onde o par se encontrava alegadamente «discutindo os perigos do
aliciamento», quando haviam sido abruptamente interrompidos pela polícia local.

sarah apontou com um lápis as alíneas que constavam da sua lista.

- larnsey reuniu com o comitê do seu círculo eleitoral. ainda não há pormenores
sobre o assunto, mas temos uma fonte fidedigna que nos informa que ele será
convidado a demitir-se. o círculo de east norfolk não se importa de abafar
envolvimentos ocasionais, ao que parece. tudo é digno de ser perdoado à luz do
exercício do perdão cristão e que todo aquele que nunca tiver pecado atire a
primeira pedra. no entanto, parece que não pactuam com fraquezas humanas que
impliquem homens casados, adolescentes, automóveis fechados e um intercâmbio
de fluidos corporais em troca de dinheiro. a questão central no seio do comitê parece
ser a de forçar ou não eleições antecipadas, num momento em que a popularidade
do primeiro-ministro está a decrescer. se não o fizerem darão a impressão de que
não dão qualquer importância ao projeto de lei sobre os valores britânicos
fundamentais; se o fizerem estão cientes de que perderão o assento em favor dos
trabalhistas.

- política como de costume - queixou-se o editor de desporto.

- a história está a perder o vigor - acrescentou rodney aronson. luxford ignorou


ambos. o editor de desporto bater-se-ia até ao fim pela história do críquete e quanto
a rodney era movido por interesses pessoais, que nada tinham a ver com o fato de a
história estar a perder interesse. observara luxford durante todo o dia, como um
cientista que estudasse a divisão de uma ameba, e luxford estava cada vez mais
certo de que este escrutínio pouco tinha a ver com o conteúdo da próxima edição do
the source, estando antes amplamente relacionada com especulações acerca dos
motivos por que luxford não comera nada em todo o dia, porque se sobressaltara
mais do que uma vez quando o telefone soara, porque pegara na primeira remessa
de correio desse dia e examinara as cartas com excessiva concentração.

- o rapaz de aluguel despediu-se da opinião pública - prosseguia sarah happleshort -


dentro do carro do pai. declaração: «daffy lamenta imenso o que está a suceder ao
sr. larnsey, que ele considera boa pessoa.»

- daffy? - perguntou o editor de fotografia, incrédulo. - o larnsey anda mesmo a foder


um rapaz de aluguel chamado daffy?

- talvez ele grasne quando se vem - retorquiu o editor de negócios. ouviram-se sons
de apreciação em torno da mesa. sarah continuou.

- no entanto, dispomos de uma declaração proferida pelo rapaz que acho que
poderíamos usar como título. e encarando a seção desportiva, que ganhava alento
para uma vez mais lutar pelo seu jogador de críquete asfixiado, disse: vá lá, will. sê
realista. durante seis dias publicamos a notícia sobre a morte do fleming na página
um. a história está velha. mas isto... imagina isto com uma fotografia. daffy fala à
imprensa. fazemos-lhe perguntas sobre o tipo de vida que tem, qual é a sensação
de o fazer no interior de um carro com homens de meia-idade? e ele responde: «É
uma forma de ganhar a vida, não é?» este será o nosso título. juntamente aparece,
na página seis, um comentário apropriado sobre aquilo a que os conservadores
estão a sujeitar os adolescentes, com a sua péssima gestão governamental e
econômica. o rodney pode escrevê-lo.

- nada me daria maior satisfação noutras circunstâncias - disse rodney cordato. -


mas o texto devia sair com a assinatura de dennis. a sua perícia com a pena é muito
superior à minha e os conservadores merecem ser zurzidos por uma mão de mestre.
que dizes, den? estás disposto a isso? - À medida que falava enfiava na boca um
pedaço de chocolate. ostentou uma expressão preocupada ao acrescentar - pareces
pálido, hoje. não estarás a chocar alguma?

luxford favoreceu rodney com um olhar que durou apenas cinco segundos. aquilo
que rodney pretendia dizer era: «estarás a perder a vantagem, den? tens os tomates
apertados?» mas faltava-lhe a coragem para ser franco a esse ponto. luxford
perguntava a si próprio se seria suficientemente velhaco para despedir aquele
verme, como ele merecia. era pouco provável. rodney era demasiado astuto para tal.

- larnsey vai para a página um, com a fotografia do rapaz de aluguel - decidiu
luxford. - tragam-me uma maqueta da cópia do título com a fotografia antes de a
imprimirem. o críquete volta para a seção de desporto. - e prosseguiu com as
restantes reportagens sem precisar de consultar os seus próprios apontamentos.
negócios, política, internacional, crime. poderia ter consultado os apontamentos sem
que isso implicasse qualquer perda de respeito por parte dos editores, mas queria
que rodney visse e se recordasse de quem ditava as regras no the source.

seguiu-se o burburinho generalizado que caracteriza o final de uma reunião, com os


jornalistas desportivos protestando acerca do «mínimo de decência humana» e a
seção de fotografia inquirindo em voz alta na redação «onde está o dixon? preciso
de uma ampliação do daffy», acompanhada de assobios e grasnidos. sarah
happleshort juntou os seus papéis, trocando observações jocosas com os colegas
das páginas de crime e política. os três caminharam para a porta, onde se afastaram
para deixar passar a secretária de luxford.

- uma chamada para si, sr. luxford - anunciou. - disse-lhe antes que o senhor estava
numa reunião e tentei fazer com que deixasse um número de telefone, mas ele não
quis dar-mo. já é a segunda vez que telefona e tenho-o em linha.

- quem? - perguntou luxford.

- recusa-se a dizer quem é. limita-se a dizer que quer falar consigo sobre... o miúdo.
- suavizou a expressão tensa do rosto agitando com a mão o ar à sua frente como
se estivesse repleto de mosquitos. - foi essa a expressão que ele usou, sr. luxford.
presumo que ele esteja a referir-se ao jovem que... na outra noite... na estação de
comboios... - enrubesceu. não era a primeira vez que dennis luxford refletia,
intrigado, sobre como miss wallace pudera sobreviver no the source durante tanto
tempo. herdara-a do seu predecessor, que muito se divertira à custa da sua
sensibilidade delicada. - disse-lhe que mitch corsico era o repórter destacado para
cobrir esta história, mas ele respondeu que tem a certeza que o senhor não quer
que ele fale com o sr. corsico.
- queres que atenda, den? - perguntou rodney. - não estamos interessados em que
todo o zé-ninguém desate a telefonar sempre que lhe apetece ter uma conversa com
o editor.

luxford, no entanto, sentia os músculos do estômago cada vez mais tensos perante
as implicações subjacentes às palavras quer falar sobre o miúdo.

- eu atendo disse. passe a chamada. - miss wallace regressou até junto da sua
secretária.

- den, estás a estabelecer um precedente com isto - disse rodney. - ler as cartas
deles é uma coisa, mas atender os telefonemas...?

o telefone soou.

- agradeço a tua preocupação, rod - disse luxford, caminhando para o telefone. havia
sempre a possibilidade, admitiu, de que o raciocínio de miss wallace estivesse
correto, de que o autor do telefonema tivesse informações acerca do rapaz de
aluguel, de que o próprio telefonema não passasse de mais uma intromissão num
dia agitado. levantou o auscultador:

- luxford.

uma voz masculina soou do outro lado.

- onde estava a história, luxford? mato-a, se a história não for publicada.

cancelando uma reunião e adiando outra, eve bowen conseguiu chegar ao harrods
às cinco horas. deixara o seu assistente a braços com as tarefas de reformular
horários e de apresentar pedidos de desculpas e justificações pelo telefone, não
sem antes ter de se submeter ao seu olhar avaliador enquanto ela dava ordens para
que o carro fosse disponibilizado de imediato. poderia ter percorrido a pé a distância
que separava parliament square do ministério do interior, e joel woodward sabia-o.
tal como sabia que as indicações tensas que ela dera: «surgiu um problema.
cancele a reunião das 16h 30» nada tinham que ver com assuntos de governo.

joel ficara intrigado, era certo. denunciava uma curiosidade perturbadora quando se
tratava dos assuntos particulares dela, embora não fizesse perguntas às quais ela
se veria obrigada a responder com mentiras rebuscadas. tão-pouco partilharia com
outros qualquer suspeita que pudesse alimentar acerca da natureza do telefonema
que ela de fato recebera. quando ela estivesse de volta poderia eventualmente
inquirir: «a reunião correu bem?» e tentar determinar o nível de veracidade da
resposta que ela lhe desse. poderia de igual modo fazer alguns telefonemas e
controlar todos os movimentos dela, à procura de inconsistências entre eles e os
comentários que ela fizesse sobre os mesmos. todavia, independentemente das
conclusões a que chegasse, joel mantê-las-ia no maior sigilo. era o exemplo
personificado do lema pela rainha e pelo país, sem esquecer pelo patrão, e
apreciava demasiado a importância questionável do trabalho que desempenhava
para pô-lo em risco desafiando a sua reprovação. para joel woodward, era preferível
ter um conhecimento parcial das coisas numa situação em que o silêncio e um
aceno de cabeça expressivos dirigidos ao comum dos mortais bastariam para
traduzir o conhecimento íntimo que detinha dos assuntos relacionados com a
subsecretária do ministério do interior a ser relegado para uma posição em que nada
soubesse, obrigando-o por isso a recorrer apenas ao intelecto e à atuação como
forma de estabelecer a sua posição no interior da hierarquia do escritório.

quanto ao motorista, a sua tarefa consistia em guiar, e estava acostumado a


transportá-la no mesmo dia a sítios tão diversos como bethnal green e a prisão de
holloway. dificilmente questionaria uma ordem dela para que a levasse até ao
harrods.

deixou-a junto à entrada de hans crescent. quando ela lhe disse «vinte minutos,
fred» respondeu com um grunho simiesco. atravessou as portas de bronze, onde os
guardas de segurança se mantinham alerta contra terroristas apostados em
perturbar o curso normal das transações comerciais e encaminhou-se para as
escadas rolantes. apesar da tarde já ir avançada, as escadas pululavam de clientes,
e ela deu consigo ensanduichada entre três mulheres envoltas num telhador que as
cobria da cabeça aos pés e um magote de alemães carregados de sacos de
compras.

no quarto piso teve de serpentear por entre roupas, fatos de banho, raparigas com
chapéus de palha nas cabeças e rastafaris a fim de abrir caminho em direção ao
departamento que definia as tendências em voga, onde por detrás de expositores de
jeans, de camisolas sem costas igualmente, de casacos tipo bolero, coletes e boinas
todos eles de cor preta a cafetaria way in recebia a clientela influente da loja.

viu que dennis luxford já havia chegado. ele conseguira arranjar uma mesa de tampo
cinzento localizada num dos cantos e parcialmente dissimulada por uma enorme
coluna amarela. bebia um líquido servido num copo alto e borbulhante e fingia
estudar a ementa.

eve não o via desde a tarde em que soubera que estava grávida. os caminhos de
ambos poderiam ter-se cruzado nos dez anos que se haviam escoado entretanto em
particular, a partir do momento em que ela se lançara na vida pública, mas tomara
todas as precauções para que tal não acontecesse. ele parecera tão satisfeito
quanto ela com o distanciamento entre ambos e, uma vez que a posição que
ocupava como editor, primeiro no globe e depois no the source não exigia da parte
dele um convívio muito próximo com os políticos, a não ser que assim o quisesse,
nunca mais estivera presente nas conferências do partido conservador ou em
qualquer outro evento onde ambos pudessem coincidir e encontrar-se.

ele mudara muito pouco, apercebeu-se. tinha ainda a mesma cabeleira farta, cor de
areia, vestia as mesmas roupas elegantes, conservava a mesma figura esbelta, as
mesmas patilhas longas. até e isto ela pôde confirmar no momento em que se
aproximou da mesa onde ele se encontrava a mesma cicatriz que lhe abrangia parte
do queixo, uma recordação de um combate de dormitório durante o primeiro mês
que passara na baverstock school for boys. tinham comparado as cicatrizes faciais
um do outro nos intervalos entre os momentos de sexo, no quarto de hotel dela em
blackpool, havia já mais de dez anos. ela quisera saber a razão por que ele não
deixara crescer barba para tapar a cicatriz, ele pretendera conhecer os motivos que
a levavam a usar uma franja demasiado longa para camuflar a dela, uma cicatriz em
forma de estrela que lhe cortava a meio a sobrancelha direita.

dennis cumprimentou, ignorando a mão que ele lhe estendia. mudou o copo dele
para o lado oposto da mesa para que ele, e não ela, ficasse de frente para o interior
da loja. pousou a pasta no chão e ocupou a cadeira onde ele estivera sentado. -
posso conceder-te dez minutos. - afastou a ementa para o lado e pediu quando o
empregado se aproximou: - um café, apenas - e, voltando-se para dennis depois de
aquele se ter afastado: - se tens um fotógrafo à espera algures, preparado para
captar este momento romântico entre nós a tempo de sair na edição de amanhã,
duvido sinceramente de que ele seja capaz de fazer muita coisa com a minha nuca.
e dado que não tenho qualquer intenção de sair daqui na tua companhia, os teus
leitores não terão outra oportunidade de vir a saber que é possível que entre nós
exista uma ligação.

sempre fiel ao seu extraordinário talento para a dissimulação, dennis conseguiu


aparentar uma reação de desconcerto em relação às palavras dela, concluiu para si
própria.

- por amor de deus, evelyn, não foi essa a razão do meu telefonema - disse ele.

- por favor, concede-me ao menos a graça de alguma inteligência. ambos sabemos


para onde pende a tua lealdade política. adorarias derrubar o governo. não achas,
porém, que estás a correr um risco que potencialmente poderá destruir a tua
carreira, caso a tua relação com charlotte seja tornada pública?

- disse, desde o primeiro momento, que admitiria perante o mundo que sou o pai
dela, se com isso...

- não me refiro a essa relação, dennis. as histórias passadas estão muito longe de
ter o interesse que têm os acontecimentos atuais. sabes isso melhor do que
ninguém. não, refiro-me a uma ligação muito mais recente do que o fato de seres o
pai da minha filha. - deu uma ligeira ênfase ao termo procriativo e recostou-se na
cadeira enquanto lhe serviam o café.

o empregado empurrou o êmbolo de metal e esmagou os grãos de café no interior


da cafeteira. perguntou a dennis se ele queria mais uma perrier e, perante a
resposta afirmativa, afastou-se para ir buscá-la. enquanto isso, dennis estudava eve,
fitando-a com perplexidade. todavia, não fez qualquer comentário até que voltassem
a ficar a sós, cerca de dois minutos depois, na companhia das respectivas bebidas.

- não existe nenhuma relação mais recente entre mim e charlotte - disse.

ela mexeu o café pensativamente e fixou os olhos nele em resposta ao olhar


perscrutador dele. a linha do couro cabeludo dele parecia marcada por um fio de
transpiração. perguntou a si própria o que poderia estar na sua origem: o esforço
para dissimular ou a apreensão expectante relativamente a um desenlace favorável
do presente encontro entre ambos antes que a edição do dia seguinte do jornal
infame que dirigia entrasse em impressão.
- temo que haja uma ligação mais recente - disse ela. - e gostaria que soubesses
que o teu plano não surtirá os efeitos que imaginaste. podes manter charlotte
sequestrada pelo tempo que quiseres como tentativa para me manipulares, dennis,
mas isso não alterará em nada o eventual desfecho desta situação. ver-te-ás
forçado a libertá-la e eu própria farei com que sejas acusado de rapto, o que,
permite-me que te lembre, poucos benefícios trará à tua carreira ou à tua reputação.
no entanto, sou forçada a admiti-lo, aumentará em muito as tiragens do jornal de que
já não serás editor.

ele mantinha os olhos fixos nela, e ela apercebeu-se de que as pupilas deles se
dilatavam rapidamente. tentava, sem sombra de dúvidas, avaliar a artimanha contida
nas palavras dela.

- endoideceste? - disse. - eu não tenho charlotte, ela não está comigo. não a
sequestrei. que diabo, nem sequer sei...

foi interrompido por gargalhadas vindas da mesa ao lado. três clientes da loja
deixavam-se cair nas cadeiras, discutindo sonoramente os méritos das tartes de
frutos em relação ao bolo de limão enquanto fonte de energia adequada depois do
desgaste físico provocado por uma tarde passada no harrods.

dennis inclinou-se para a frente e disse secamente:

- raios, evelyn, é melhor que me escutes. isto é real. real. eu não tenho charlotte
comigo. não faço idéia de onde ela possa estar, mas alguém sabe e esse alguém
telefonou-me há cerca de noventa minutos atrás.

- foi o que disseste - disse ela.

- foi o que aconteceu - declarou ele. - por amor de deus, que motivos teria eu para
inventar tudo isto? - pegou no guardanapo e amachucou-o entre os dedos. depois
continuou em tom de voz mais baixo. - peço-te apenas que me escutes, está bem? -
olhou de relance para a mesa do lado, cujas ocupantes optavam pelo bolo de limão,
uma escolha unânime e audível. voltou a encarar eve. dissimulava as palavras e o
rosto da zona do restaurante e dos seus ocupantes, causando-lhe a ela a impressão
momentânea, feito com grande eficácia, pensou ela felicitando-o mentalmente, de
que para ele, tal como para ela, era crucial que ninguém ficasse a saber do encontro
entre ambos. contou a conversa que supostamente mantivera com o raptor.

- ele diz que quer que a história saia na edição de amanhã - disse dennis. - as
palavras dele foram: «quero os fatos acerca do seu primogênito publicados no
jornal, luxford. quero-os na primeira página. quero que seja você a contar a história
toda, na íntegra e sem omissões. sobretudo o nome dela. quero ler o nome dela.
quero a maldita história na íntegra.» disse-lhe que isso poderia não ser viável, disse-
lhe que tinha de falar contigo primeiro, disse-lhe que eu não era a única pessoa
envolvida, que era necessário pensar nos sentimentos da mãe.

- quanta bondade a tua. sempre prestaste muita atenção aos sentimentos dos
outros, de fato. - eve serviu-se de mais uma dose de café, que adoçou com açúcar.
- ele não se deixou convencer - ripostou dennis, ignorando o sarcasmo dela. -
perguntou desde quando é que eu me preocupava com os sentimentos da mãe.

- grande capacidade de antecipação que ele demonstra.

- escuta o que te digo, raios. o que ele disse foi: «desde quando é que se preocupa
com a mãe, luxford? quando fez o que fez? quando disse “vamos conversar.”
conversar. pois. deixa-me rir, seu imbecil.» e isto fez-me pensar... evelyn, tem de ser
alguém que tenha estado presente na conferência, em blackpool. nós dois
conversamos lá. foi assim que tudo começou.

- eu sei como tudo começou - afirmou ela, em tom cortante.

- julgamos que estávamos a agir com discrição, mas a dada altura devemos ter
cometido qualquer deslize. e desde então há alguém que tem esperado
pacientemente pela oportunidade certa, pelo momento oportuno.

- para?

- para te derrubar. repara... - dennis virou a cadeira onde estava sentado na direção
dela, que conseguiu conter o impulso de afastar a sua própria cadeira. - apesar do
que possas pensar acerca das minhas intenções, o rapto de charlotte não tem como
objetivo derrubar o governo por inteiro.

- como podes sequer pôr isso em questão, tendo em conta a forma como o teu jornal
tem feito do caso sinclair larnsey o alvo de toda a sua ira?

- porque nem por sombras estamos perante uma situação do tipo profumo. É certo,
o caso larnsey projeta uma imagem idiótica do governo, relativamente ao projeto de
lei sobre os valores britânicos fundamentais, mas é muito pouco provável que seja
derrubado. isso não sucederá por causa de larnsey ou por tua causa. estamos a
falar de pecadilhos sexuais, não de um deputado que mente perante o parlamento.
não há espiões russos envolvidos, portanto isto não é uma trama. este é um assunto
pessoal e é-o no que diz respeito à tua pessoa e à tua carreira. não podes ignorar
isso.

À medida que falava inclinara-se impulsivamente sobre a mesa, apertando o braço


dela com os dedos. ela podia sentir o calor libertado pelos dedos dele, penetrando
nas suas veias rapidamente causando-lhe um ardor na garganta. fitando o olhar
para além dele, pediu:

- tira as mãos de cima de mim, por favor.

depois, conquanto ele não afastasse a mão de imediato, voltou a pousar os olhos
nele.

- dennis, eu disse...

- eu ouvi o que disseste - continuou imóvel. - porque é que me odeias tanto?


- não sejas ridículo. para que pudesse odiar-te teria de arranjar tempo para pensar
em ti, e tempo é coisa que não tenho.

- estás a mentir.

- e tu estás a iludir-te. tira a mão do meu braço antes que eu verta café para cima
dela.

- propus-te casamento, evelyn. recusaste.

- não desfies a minha história. conheço-a muito bem.

- portanto, os motivos não se prendem com o fato de não termos casado. então deve
ser por saberes que não te amava. será que esse fato feriu os teus princípios
puritanos? será que ainda fere? o fato de saberes que foste o meu pecadilho
sexual? de teres dormido com um homem que, no fundo, queria apenas foder-te? ou
será que o ato em si não foi um pecado tão grave quanto o prazer que ele te
proporcionou? o teu prazer, por sinal. o meu está implícito na existência de charlotte.

ela sentiu o impulso de lhe bater percorrer-lhe o braço. se não se encontrassem num
local tão público tê-lo-ia feito. a palma da sua mão ansiava por um contato doloroso
com o rosto dele.

- És desprezível - disse ela. ele afastou a mão.

- por qual das ofensas? ter-te tocado naquela época? ou por tocar-te agora?

- tu não me tocas - disse. - nunca pudeste fazê-lo.

- estou a iludir-me, eve. não foi este o termo que escolheste?

- como te atreves...

- a quê? a falar verdade? o que fizemos, feito está, e o prazer sentido foi mútuo. não
reescrevas a história, só porque preferes não a encarar. e não me culpes por te ter
dado a viver os únicos bons momentos que provavelmente terás tido na vida.

ela empurrou a chávena de café para o centro da mesa. ele antecipou-se às


intenções dela erguendo-se da cadeira. deixou uma nota de dez libras junto do copo
de água perrier e falou.

- este tipo quer a história publicada amanhã e quere-a na primeira página. a história
toda, do princípio ao fim. estou disposto a escrevê-la. posso atrasar as impressoras
até às nove da noite. se te decidires a encarar tudo isto seriamente, sabes onde
podes encontrar-me.

- o tamanho do teu ego sempre foi o menos atraente dos teus atributos pessoais,
dennis.

- e o teu sempre foi a necessidade desesperada de ter a última palavra. todavia, não
podes sair vencedora desta situação e o melhor que tens a fazer é tomar
consciência disso, antes que seja demasiado tarde. afinal, há outra vida em jogo.
para além da tua.

rodou nos calcanhares e deixou-a.

descobriu que os músculos do pescoço e dos ombros estavam contraídos e


pressionou-os com os dedos tentando descontrair. tudo, tudo, o que ela desprezava
nos homens era personificado por dennis luxford, e este encontro entre ambos só
viera reforçar essa sua convicção. todavia, não fora através da submissão às
tentativas de dominação masculinas que ela desbravara o caminho que a conduzira
à posição que hoje detinha. não seria agora que iria capitular. ele poderia tentar
manipulá-la com bilhetes apócrifos, telefonemas fictícios, com manifestações
perfeitamente aparentes de uma preocupação paternal ainda mais aparente. poderia
muito bem tentar apelar para o seu instinto maternal, que ele julgava ser intrínseco à
constituição feminina. podia representar o papel do ultrajado, transformar-se no
paladino da sinceridade e da perspicácia política. nada disso, porém, poderia servir
de paliativo para o simples fato de, ao longo dos seis meses sob a égide de dennis
luxford, o the source ter esgotado todos os recursos do poder indigno que detinha
para humilhar o governo, promover a causa da oposição. tanto ela como qualquer
outra pessoa que soubesse ler estava ciente disto. e se luxford pensava
simplesmente, porque lograra envolver a filha dela, que eve bowen iria submeter-se
ao julgamento da opinião pública, confessar os pecados do seu passado, destruir a
sua carreira e transformar-se assim em mais uma acha para a fogueira onde a
imprensa pretendia incinerar o governo... nada no mundo seria mais ridículo.

e, no fundo, tudo isto tinha que ver com o jornal que ele dirigia. tudo isto tinha que
ver com guerras de tiragens, posicionamentos políticos, receitas de publicidade e
reputação editorial. ela tornara-se um mero peão de uma campanha, fosse ela qual
fosse, pela conquista ou manutenção do poder arquitetada por dennis luxford. o
único erro que ele cometera fora partir do princípio que ela não oporia resistência
quando ele tentasse induzi-la a ocupar a posição que muito bem lhe aprouvesse no
tabuleiro de xadrez.

era um porco, sempre fora um porco.

eve levantou-se e pegou na pasta. caminhou para a saída do restaurante. dennis


partira há já algum tempo, pelo que não temia que alguém pudesse relacionar a sua
presença no harrods com ele. que pena para ele, pensou. nem tudo na vida dele iria
resultar como ele tinha planejado.

rodney aronson viu, mas quase não queria acreditar. deambulara, escondido, no
meio das prateleiras de roupas e dos expositores de adereços negros para a cabeça
desde que luxford entrara no restaurante. não dera pela chegada da mulher
evacuado do seu ponto de observação durante trinta segundos por um ajudante
suado que empurrava um expositor de casacos pretos assertoados, com botões
prateados do tamanho de frisbees. e depois, quando tentara obter uma perspectiva
decente dela depois de o sr. suor ter composto a seu gosto, com ar eficiente, dois
expositores de calças apenas conseguira vislumbrar umas costas magras metidas
num casaco de bom corte e uma cabeleira suave com tonalidades outonais.
esforçara-se por ver algo mais, mas falhara. não podia correr o risco de atrair as
atenções de luxford.

uma coisa fora observar o corpo de luxford contrair-se durante a chamada telefônica,
ver a cadeira giratória rodar para ocultar a expressão do rosto dele, ser dispensado
com um breve «trata do editorial sobre o rapaz de aluguel, rodney», esperar como
um gato matreiro até que luxford, o rato, saísse do edifício e apanhasse um táxi em
ludgate circus, segui-lo noutro táxi, tal como um detetive num policial negro de baixo
orçamento. todos eles eram atos justificáveis, que se enquadravam
convenientemente na designação zelar pelos interesses do jornal. agora isto... isto
era perigoso. a intensidade da conversa entre o editor do the source e a cabeleira
cor de outono sugeria que se tratava de algo mais do que um encontro profissional,
que poderia ser interpretado pelo presidente do the source como uma traição às
orientações do jornal. era isso que rodney procurava, evidentemente. uma
oportunidade para destronar luxford e assumir a posição que lhe pertencia por direito
como líder da reunião redatorial diária. todavia, este encontro que agora
testemunhava e maldita fosse a terrível distância que era obrigado a manter exibia
todos os indícios de um compromisso amoroso: cabeças juntas, o inclinar de ombros
para manter um diálogo ofegante, luxford virando a cadeira na direção dela, aquele
breve momento ternurento de contato físico mão sobre o braço, em vez de mão
trepando pela saia acima. e o mais indesmentível dos indícios: tinham chegado e
partido em separado. não restavam quaisquer dúvidas. o velho den andava metido
numas tropelias clandestinas.

o cretino deve ter perdido a cabeça, pensou rodney. seguiu a mulher à distância e
examinou-a. tinha umas belas pernas e um traseiro magnífico, e o restante tão-
pouco seria de desprezar, a julgar pelo corte severo do fato que usava. não
esqueçamos, porém, que, ao contrário de rodney que tinha betsy bola de manteiga à
espera em casa para dar cumprimento às atividades noturnas, dennis luxford tinha
fiona a decorar-lhe o lar. a fabulosa fiona. fiona dos deuses, que fora apelidada o
rosto em homenagem aos ossos faciais mais famosos que alguma vez tinham
honrado com a sua presença a capa de uma revista de moda. com fiona esperando-
o em casa e rodney não podia deixar de imaginar, com excitação, a roupa, o estado
de espírito e a impaciência com que uma feiticeira etérea como fiona receberia o seu
amo e senhor quando este regressava de fleet street todas as noite,s que diabo
andaria luxford a fazer com outra mulher qualquer?

rodney não conseguia compreender os motivos que levariam qualquer homem a


enganar uma mulher como fiona, por que razão é que um homem haveria de querer
enganar uma mulher como fiona. no entanto, uma ligaçãozinha tórrida à margem do
casamento com o rosto explicava de fato as preocupações recentemente reveladas
por luxford, o seu estado de nervos duvidoso e o seu misterioso desaparecimento na
noite anterior. não estava em casa, segundo a sua espetacular esposa. nem no
escritório, de acordo com o telefone celular. na ocasião, rodney concluíra que o mais
provável era luxford ter saído discretamente para jantar. agora, porém, sabia que a
ter havido saída discreta, luxford estivera a fazê-lo com a cabeleira cor de outono.

ela afigurava-se-lhe muito familiar, além do mais, embora rodney se revelasse


incapaz de associar um nome à cara dela. era alguém, no entanto, uma advogada
poderosa ou alguém ligado ao mundo empresarial.
chegou mais perto dela à medida que se aproximavam das escadas rolantes.
vislumbrara o rosto dela uma única vez, quando ela saiu do restaurante. depois
disso, só a nuca. se houvesse maneira de a estudar de perto durante uns bons
quinze segundos conseguiria de certeza desvendar a sua identidade.

era impossível, admitiu. a não ser que a ultrapassasse rapidamente e voltasse a


subir as escadas de frente para ela não havia maneira de conseguir vê-la. teria de
contentar-se em segui-la, na esperança de que algum incidente a denunciasse.

ela desceu diretamente para o andar térreo diluída na multidão de clientes, a maioria
dos quais se dirigiam também para as portas de saída. o conjunto fazia lembrar um
fluxo de lava escorregadio formado por sacos de compras de cor verde, que
pairavam numa dúzia de idiomas diferentes e gesticulavam freneticamente no
intervalo de cada frase. pela segunda vez nesse dia a primeira fora durante o
percurso contrário, no encalço de luxford lembrou-se da razão por que nunca pisava
o limiar da entrada do harrods.

o andar térreo estava apinhado de gente àquela hora, uma massa compacta de
consumidores que se encaminhavam para a saída. quando a cabeleira cor de
outono saiu juntamente com ela, rodney rezou para que, uma vez na rua, ela
tomasse a direção da estação de metrô de knightsbridge. É certo que o modo como
estava vestida fazia pensar em limusinas, táxis ou num transporte próprio, mas havia
sempre lugar para a esperança. se fosse apanhar o metrô, ele seguiria no seu
encalço. bastar-lhe-ia segui-la até casa para que a identidade dela passasse a ser
uma mera formalidade.

viu as suas esperanças saírem frustradas, contudo, quando passou as portas de


saída dez segundos depois dela. procurou a cor familiar do cabelo dela, olhando
esperançosamente por entre a multidão que rumava para a esquina da basil street,
na direção da estação de knightsbridge. descobriu-a no meio dos transeuntes e, a
princípio, acreditou que ela iria colaborar dirigindo-se para o metrô. no entanto,
enquanto caminhava no seu encalço e ao virar para hans crescent viu-a dirigir-se
para um rover preto, de onde se apeava um motorista vestido de escuro. virou-se na
direção de rodney ao entrar para o assento traseiro preto e, de novo, ele pôde
entrever o rosto dela, por breves instantes.

memorizou aquele rosto emoldurado por uma cabeleira lisa, óculos de aros de
tartaruga, lábio superior carnudo, queixo bicudo. vestia roupas caras, levava uma
pasta de tipo diplomático, o seu porte transpirava poder, caminhava com um andar
determinado e poderoso. não se parecia de modo nenhum com o tipo de pessoa
que, segundo ele, induziria um patife como dennis luxford a embarcar num vigoroso
esquema de traição conjugal. por outro lado, porém, não restavam dúvidas quanto à
satisfação primitiva que um combate entre lençóis com uma mulher daquelas podia
proporcionar. no que lhe dizia pessoalmente respeito, não se sentia atraído pelos
tipos dominantes, mas luxford ele próprio um tipo dominante consideraria
provavelmente o desafio de conquistar a amizade dela, em primeiro lugar, de a
seduzir, em segundo, e de vencê-la, em terceiro, como um verdadeiro afrodisíaco.
quem seria ela, afinal?
observou o carro que era engolido na voragem do trânsito de fim de tarde. vinha na
direção dele. quando passou por ele, rodney desviou a sua atenção do passageiro
para o motorista do carro. foi então que viu a chapa de matrícula e, mais importante
do que isso, as últimas três letras da matrícula. os olhos dilataram-se-lhe ao vê-las.
faziam parte de uma série, o que significava que o rover integrava uma frota de
automóveis, e ele frequentara westminster durante tempo suficiente para saber
exatamente de que frota se tratava. sentiu os lábios curvarem-se para cima em sinal
de felicidade e ouviu-se a si próprio exultar de satisfação.

depois de o carro ter desaparecido na curva, a sua imagem permaneceu gravada na


memória de rodney, assim como a interpretação dessa mesma imagem.

as chapas de matrícula pertenciam ao governo, o que queria dizer que o rover


pertencia à frota de carros do governo, o que queria dizer que a cabeleira cor de
outono era um membro do governo, o que queria dizer e ao pensá-lo rodney não
conseguiu, nem se preocupou em fazê-lo, conter um grito de alegria que dennis
luxford, suposto apoiante do partido trabalhista, editor de um jornal trabalhista,
andava a emparelhar com o inimigo.

quando st. james informou o assistente de eve bowen de que aguardaria o regresso
da deputada, recebeu em troca um olhar reprovador.

- como queira - disse o homem. - sente-se ali, então. - a sua expressão, no entanto,
dizia que a presença de st. james era algo parecida com os vapores de um gás
tóxico libertados pelo sistema central de aquecimento do escritório. deu seguimento
às suas incumbências afivelando uma expressão de quem tenta demonstrar o
quanto esta visita imprevista seria um fardo para todos. a correria era intensa: do
telefone para o aparelho do fax, dos arquivadores para um calendário de enormes
dimensões pendurado na parede. enquanto o observava, st. james lembrou-se do
coelho branco em alice no país das maravilhas, embora a sua aparência física
evocasse antes um mastro onde ondulasse uma bandeira bulbosa formada por uma
massa de cabelo da cor da cerveja guinness.

o jovem pôs-se imediatamente de pé quando eve bowen entrou no escritório, cerca


de vinte minutos depois de st. james ter chegado. transpôs a porta, e enquanto se
apressava a segurar a pasta que ela trazia, foi dizendo:

- estava a preparar-me para mandar alguém à sua procura. - transmitiu-lhe uma


série de mensagens telefônicas enquanto prosseguia. - a reunião com o comitê foi
adiada para amanhã. o debate nos comuns começa esta noite, às oito. a delegação
dos serviços alfandegários quer marcar um almoço, não um jantar. a universidade de
lancaster gostaria que fizesse uma alocução perante a associação de mulheres
conservadoras, em junho. e o sr. harvie pergunta se tenciona dar-lhe uma resposta
sobre a questão de salisbury durante a próxima década: será que necessitamos
realmente de outra prisão e se é forçoso que a mesma seja construída no seu
círculo eleitoral?

eve bowen arrancou as mensagens das mãos dele.

- não creio que tenha perdido a capacidade de ler nas últimas duas horas, joel. não
haverá nada de mais produtivo que possas fazer?

a reprimenda fez com que uma expressão de raiva assomasse por instantes ao
rosto do assistente.

- a virginia já saiu, miss bowen - disse num tom formal. - achei que seria preferível,
já que o cavalheiro desejava aguardar o seu regresso, não deixar o escritório sem
ninguém.

nesse momento, eve bowen desviou os olhos dos recados e viu st. james. sem olhar
para joel, disse-lhe:

- faz uma pausa para jantar. não vou precisar de ti até às oito. - e, dirigindo-se a st.
james - por aqui, por favor - indicou, conduzindo-o até ao gabinete dela. uma
secretária de madeira estava colocada de frente para a porta. eve bowen
encaminhou-se para a credência atrás da mesa de trabalho, servindo-se de um
pouco de água num copo de plástico. remexeu na gaveta da secretária, tirou um
tubo de aspirinas e empurrou quatro delas para a palma da mão. depois de ingeri-
los, deixou-se cair na cadeira de cabedal verde atrás da secretária, tirou os óculos e
disse:

- muito bem, que tem para me dizer?

st. james começou por informá-la sobre o que helen e deborah haviam conseguido
descobrir durante o dia que haviam passado em marylebone. encontrara-se com
elas num pub, o rising sun, às cinco da tarde. e elas, tal como ele, mostraram-se
satisfeitas pelo fato de a informação reunida começar a formar um padrão que
poderia vir a constituir o trilho que os levaria até charlotte bowen.

- a rapariguinha fora reconhecida em mais de um estabelecimento comercial, a partir


da fotografia. «uma criança conversadora», ou «uma verdadeira gralha, esta
menina» era o modo como quase todos os interpelados a descreviam. embora
ninguém tivesse sido capaz de recordar como se chamava, aqueles que a tinham
reconhecido eram capazes de dizer, com razoável certeza, quando a tinham visto
pela última vez. além disso, a califórnia pizza, em blandford street, bem como a
chimes music shop, na rua principal, e a golden hind fish and chips, em marylebone
lane, referiram com exatidão a última vez que a tinham visto. no caso da pizzeria e
da loja de música, charlotte aparecera acompanhada de outra aluna de st.
bernadette, uma rapariga com uma alegre predisposição para permitir que charlotte
bowen gastasse uma série de notas de cinco libras com ela: em pizzas e coca-colas,
no primeiro caso, e cd’s no segundo. isto passara-se, respectivamente, na segunda
e na terça-feira anteriores ao desaparecimento de charlotte. na golden hind a loja
mais próxima da casa do professor de música e, por isso, a mais próxima do local
onde provavelmente charlotte fora raptada. descobriram que ela era uma cliente
habitual das quartas-feiras. nesses dias depositava uma quantidade de moedas
pegajosas sobre o balcão de vidro em troca da mesma compra de sempre: um saco
de batatas fritas e uma coca-cola. regava as batatas fritas com vinagre suficiente
para fazer esbugalhar os olhos de qualquer criatura com umas papilas gustativas
mais sensíveis e comia-as no caminho. o dono da loja refletiu demoradamente na
possibilidade de charlotte se fazer acompanhar por outra rapariga quando ia à loja
fazer as suas compras. começou por negar, depois disse que sim, em seguida
talvez, acabando por declarar que não tinha a certeza, porque o seu
estabelecimento era um ponto de paragem habitual para as «pestezinhas» das
redondezas, depois das aulas, e se nos dias que corriam ele já não conseguia
distinguir as raparigas dos rapazes, quanto mais quem estava acompanhado de
quem.
todavia, na pizzeria e na loja de música, helen e deborah tinham conseguido uma
descrição da rapariga que acompanhara charlotte nas tardes anteriores ao dia do
seu desaparecimento. tinha cabelo frisado, gostava de boinas de cor fuchsia ou, em
alternativa, de fitas em néon, era muito sardenta, roía as unhas até ao sabugo. e, tal
como charlotte, usava o uniforme de st. bernadette.

- quem é ela? - perguntou eve bowen. - e por que razão está com charlotte, nas
horas em que charlotte deve estar numa aula de dança ou numa sessão com o
psicólogo?

- era provável, - informou st. james, - que charlotte estivesse com ela antes das
atividades que preenchiam as suas tardes. as duas lojas confirmavam que as
raparigas tinham lá estado no período de meia hora imediatamente posterior ao fim
das aulas. a rapariga em questão chamava-se brigitta walters. eve bowen conhecia-
a?

a deputada respondeu que não, nunca conhecera a rapariga. confessou que ela
própria tinha poucas oportunidades para estar com charlotte, pelo que quando
dispunha de tempo, optava por passá-lo apenas na companhia da filha ou com ela e
com o marido, mas não na companhia das amigas da filha.

- então, o mais certo é que também não conheça bretã - disse st. james.

- bretã?

contou-lhe o que sabia sobre a amiga de charlotte.

- primeiro pensei que bretã e brigitta fossem a mesma pessoa, dado que o sr.
chambers nos disse que bretã acompanha geralmente charlotte às lições de música
das quartas-feiras.

- e não se trata da mesma pessoa?

em resposta à interrogação dela, st. james falou-lhe no seu encontro com brigitta,
que estava em casa, em wimpole street, enfiada na cama com uma forte gripe.
encontrara-se com a rapariga sob o olhar vigilante da avó, uma criatura de cabelo
encaracolado, que permanecera sentada numa cadeira de balonço, num dos cantos
do quarto, como uma matrona desconfiada. mal entrara no quarto da criança,
percebera que se tratava da acompanhante anônima de charlotte, nas idas dela à
califórnia pizza e à chimes music shop. mesmo que o cabelo dela não fosse tão
frisado como o pêlo de uma ovelha, mesmo que a fita de néon verde não a tivesse
denunciado, roía as unhas com a paixão singular de um artista, atividade que
apenas interrompia quando era necessário responder a alguma das perguntas dele.
- a princípio julgara ter chegado ao fim do rasto, que tinha finalmente encontrado
bretã. todavia, ela não era bretã, nem este era a sua alcunha. ela não tinha
alcunhas, informara-o. o seu nome tinha origem numa tia-avó que era sueca e vivia
em estocolmo na companhia do seu quarto marido, de sete perdigueiros e tinha
montes de dinheiro. mais dinheiro do que lottie bowen alguma vez tivera, dissera.
brigitta visitava a tia-avó todos os verões, juntamente com a avó. e lá estava a
fotografia da tia, se ele quisesse confirmar.

st. james perguntara à criança se conhecia bretã.

- conhecia, sim. era uma amiga de lottie que frequentava uma das escolas do estado
que havia em marylebone, - revelara lançando um olhar eloquente na direção da
avó, onde havia professores normais que se vestiam como seres humanos e não
velhas que se babam enquanto falam.

- tem alguma idéia que escola possa ser essa? st. james perguntou a eve bowen.

ela reflectiu sobre a questão.

- pode ser a geoffrey shenkling school - disse-lhe. - ficava em crawford place, não
muito longe de edgware road.

a deputada apontou-a como um dos locais possíveis onde st. james poderia
encontrar bretã, já que charlotte quisera matricular-se na shenkling school. - ela
queria frequentar esta escola, em vez de st. bernadette. ainda quer, aliás. não tenho
dúvidas de que algumas das situações conflituosas em que se envolve têm como
objetivo conseguir a expulsão de st. bernadette e fazer com que eu não tenha outra
alternativa senão pô-la na shenkling.

- a irmã agnetis disse-me, de fato, que charlotte armara uma pequena cena quando
levou os seus cosméticos para a escola.

- ela está sempre a mexer nos meus produtos de maquilhagem. quando não é isso
são as minhas roupas.

- isso é motivo de desavenças entre as duas?

a ministra massajou a pele sobre os olhos com o polegar e o dedo indicador, como
se quisesse apressar o desaparecimento da dor de cabeça. voltou a colocar os
óculos.

- ela não é uma criança fácil de disciplinar. parece que nunca sentiu uma
necessidade particular de agradar ou de se portar de forma correta.

- a irmã agnetis disse-me que charlotte fora castigada por ter mexido nos
cosméticos. usou a expressão «severamente castigada», aliás.

eve bowen fitou-o por momentos antes de responder.

- não deixo passar em claro as ocasiões em que a minha filha me desobedece, sr.
st. james.

- como é que ela costuma reagir ao castigo?

- amua, na maioria das vezes. depois disso empenha-se ainda mais em ser
desobediente.

- ela já fugiu de casa alguma vez? ou ameaçou que o fazia?

- vejo que usa aliança. tem filhos? não? bom, se os tivesse, saberia que a mais
comum das ameaças que um filho faz aos pais quando estes tentam corrigir um
comportamento desafiador é: «vou fugir de casa e depois vais arrepender-te. verás
como te vais arrepender.»

- como é que charlotte poderá ter conhecido esta outra rapariga, esta bretã?

a deputada levantou-se. caminhou, inquieta, até à janela, segurando os cotovelos


com as duas mãos.

- percebo, naturalmente, onde quer chegar. charlotte conta a bretã que a mãe lhe
bate que seria, sem dúvida, a maneira como a minha filha descreveria cinco valentes
palmadas no traseiro, por sinal aplicadas apenas quando já havia tirado o meu
batom pela terceira vez. bretã sugere que ambas preguem um susto, como deve ser,
à mamãe. então escapulem-se e esperam até que a mamãe tenha aprendido a lição.

- É uma hipótese a ter em conta. muitas vezes, as crianças agem sem compreender
exatamente o modo como o seu comportamento irá refletir-se nos pais.

- as crianças não agem dessa maneira muitas vezes. elas agem assim sempre. - os
seus olhos esquadrinharam parliament square, que se estendia a seus pés. ergueu
os olhos e pareceu refletir sobre a arquitetura gótica do palácio de westminster. sem
desviar os olhos da paisagem, disse: - se a outra rapariga frequenta a shenkling
school, é possível que charlotte a tenha conhecido no escritório do meu círculo
eleitoral. ela vai para lá todas as sextas-feiras à tarde. o mais provável é que bretã
tenha vindo às minhas audiências com um dos pais e, enquanto conversávamos, se
tenha entretido a passear pelo recinto. se tivesse espreitado para a sala de reuniões
teria visto charlotte fazendo os trabalhos escolares. - virou-se, ainda junto da janela.
- mas não se trata de bretã, seja ela quem for. charlotte não está com bretã.

- seja como for, preciso de falar com ela. É a melhor hipótese de que dispomos para
conseguir uma descrição de quem quer que esteja a manter charlotte escondida. ela
pode ter visto a pessoa que a levou durante a tarde de ontem. ou antes, caso ele
estivesse a seguir a sua filha.

- não precisa de encontrar bretã para obter uma descrição de quem raptou charlotte.
essa descrição está já em seu poder, uma vez que já conhece a pessoa em questão.
dennis luxford.

sem se afastar da janela, emoldurada por um céu de fim de tarde, contou-lhe o


encontro com luxford. relatou-lhe a história que ele contara acerca do telefonema
feito pelo raptor. falou-lhe na ameaça à vida de charlotte e na exigência de que a
história do seu nascimento incluindo nomes, datas e locais fosse publicada na
primeira página da edição do dia seguinte do the source, escrita pelo próprio dennis
luxford.

todos os alarmes mentais dispararam no interior da cabeça de st. james, no


momento em que tomou conhecimento da ameaça que pendia sobre a vida da
criança.

- isto altera tudo. ela corre perigo. temos de... - disse em tom firme.

- disparates. dennis luxford quer que eu pense que ela corre perigo.

- está enganada, miss bowen. e vamos telefonar para a polícia. já.

ela caminhou na direção da credência. serviu-se de mais um copo de água. bebeu-


o, lançou-lhe um olhar firme e disse com a maior das calmas:

- sr. st. james pense melhor sobre o assunto. gostaria de ressalvar quão fácil seria
para mim impedir uma desnecessária investigação policial a este caso. É tão fácil
como fazer um simples telefonema. e se está a pensar que não posso fazê-lo, ou
que não o farei, em virtude da posição que ocupo no ministério do interior é porque
não está muito bem informado sobre quem manipula o poder e em que sítios o faz.

st. james sentiu a estupefação espalhar-se por todo o seu corpo. não acreditava que
um homem ou uma mulher envolvidos em circunstâncias idênticas fossem capazes
de dar mostras de uma irracionalidade tão obstinada. no entanto, como ela desse
seguimento à linha de pensamento anterior, ele não só reconheceu a situação tal
como ela era como também compreendeu que apenas lhe restava uma alternativa.
censurou-se por se ter envolvido naquela terrível embrulhada.

como se ela fosse uma parte interessada nos processos mentais dele e na
conclusão a que chegara, prosseguiu:

- pode imaginar o que a publicação da história faria pelas tiragens do jornal do sr.
luxford e pelas receitas provenientes da publicidade. o fato de ele próprio estar
intimamente envolvido na história dificilmente terá efeitos adversos na venda dos
jornais. pelo contrário, o envolvimento dele irá com toda a probabilidade estimular as
vendas, como ele muito bem sabe. claro que se sentirá um pouco embaraçado por
ter sido desmascarado, mas a charlotte é afinal a prova viva da virilidade do sr.
luxford, e julgo que concordará comigo quando digo que os homens tendem a sentir-
se puerilmente comprometidos, e isto apenas por momentos, no que toca a
revelações sobre as suas proezas sexuais. na sociedade em que vivemos é a
mulher quem paga o preço mais elevado ao ser publicamente desmascarada como
pecadora.

- mas o estatuto ilegítimo de charlotte não é segredo para ninguém.

- não é, de fato. a paternidade dela, sim. e é a paternidade dela, e aquilo que será
visto como a minha infeliz e hipócrita escolha de amantes, que será considerado
como sendo o meu pecado. porque, apesar do que possa pensar, o cerne de tudo
isto é a política, sr. st. james. não estamos perante um caso de vida ou de morte,
nem sequer de moral. e ainda que não seja tão conhecida enquanto figura política
como o primeiro-ministro ou o secretário do interior, ou o ministro das finanças, a
publicação desta história, na sequência imediata do caso sinclair larnsey e do seu
rapaz de aluguel, custar-me-á a carreira. É claro que permitirão que conserve de
momento a representação de marylebone. tratando-se de um círculo eleitoral onde
comecei por reunir uma maioria de oitocentos votos, é pouco provável que peçam o
meu afastamento forçando assim a convocação de eleições antecipadas. no
entanto, o mais certo é que o meu comitê retire a minha candidatura nas próximas
eleições gerais. mesmo que isso não aconteça, mesmo que o governo consiga
sobreviver a este último golpe, a que nível do poder político poderei eu aspirar uma
vez tornada pública a minha escapadela com denis luxford? não se trata de um caso
em que eu tenha mantido uma relação amorosa duradoura, em que o meu tolo
coração de mulher tenha sofrido por amor de um homem que eu adorava mas que
não podia ter, em que fui seduzida como a maldita tess d’ubervilles. estamos a falar
de sexo, sexo vigoroso e suado, com, de todas as pessoas que há no mundo, o
inimigo público número um do partido conservador. assim sendo, sr. st. james,
acredita honestamente que o primeiro-ministro irá recompensar-me por isso? no
entanto, estou certa de que concordará que é uma história e tanto para a primeira
página de um jornal.

st. james viu que ela vacilava, finalmente. quando soltou os cotovelos durante o
tempo suficiente para ajustar os óculos, tinha as mãos trêmulas. passou os olhos
pelo gabinete e pareceu ver no conjunto de blocos de notas, pastas, relatórios,
cartas, fotografias e louvores emoldurados os limites redefinidos da sua vida política.

- ele é um monstro - disse. - a única razão por que não publicou a história antes é
porque o momento certo ainda não se tinha apresentado. com larnsey e o rapaz de
aluguel essa ocasião chegou por fim.

- houve outras revelações de comportamentos sexuais reprovadores ao longo dos


últimos dez anos - assinalou st. james. - custa-me a acreditar que luxford tivesse
esperado até este momento.

- veja as sondagens, sr. st. james. o índice de popularidade do primeiro-ministro


nunca foi tão baixo. um jornal trabalhista não podia dispor de uma ocasião mais
oportuna para ferir os conservadores, na esperança de conseguir derrubar o
governo de um só golpe. asseguro-lhe que a responsabilidade por um golpe dessa
natureza ser-me-á imputada a mim.

- mas se luxford está por detrás disto - disse st. james, - ele próprio está a arriscar
tudo. arrisca-se a ir parar à prisão por rapto, caso consigamos estabelecer uma
cadeia de provas que conduzam até ele.

- ele é um jornalista - assinalou ela. - eles arriscam tudo por norma, se o que está
em jogo é uma história.

a visão repentina de uma camisa de noite amarela, à entrada do laboratório, atraiu a


atenção de st. james e obrigou-o a levantar a cabeça. perfilada contra o corredor
escuro, deborah observava-o de pé.

- vens deitar-te? - perguntou. - ficaste a pé até muito tarde ontem. estás a pensar
fazer o mesmo hoje?

pousou a lupa sobre o saco de plástico que continha o bilhete que o raptor enviara a
dennis luxford. endireitou-se no banco e encolheu-se ao sentir os músculos doridos
por estarem há muito tempo na mesma posição. deborah franziu o sobrolho ao vê-lo
levar as mãos ao pescoço na tentativa de massajá-lo. aproximou-se dele e afastou
carinhosamente as suas mãos. apartou o cabelo demasiado longo, beijou-lhe a nuca
com ternura e chamou a si a tarefa de o massajar. ele reclinou-se e deixou-a
trabalhar.

- lírios - murmurou à medida que os músculos se distendiam sob a pressão dos


dedos dela.

- o que é que tem?

- o teu perfume. gosto dele.

- ainda bem, especialmente se conseguir atrair-te para a cama a horas decentes.

beijou a palma da mão dela.

- consegue, sim, e a qualquer hora.

- podíamos fazer isto melhor no quarto.

- podíamos fazer muitas outras coisas melhor, no quarto - replicou ele. - queres que
sugira algumas?

ela riu. colou-se mais a ele e deslizou os braços em torno da cintura dele,
aconchegando-o mais de encontro a ela.

- em que é que estás a trabalhar? - perguntou. - estiveste tão calado ao jantar. o pai
perguntou-me se tinhas desenvolvido uma aversão súbita ao seu pato à orange.
disse-lhe que desde que ele continuasse a fazer o seu pato à l’orange com galinha,
isso nunca constituiria um problema. patos e coelhos, sabes, disse-lhe eu. simon
nunca enterrara os dentes num pato ou num coelho. ou num veado. o pai não
consegue compreender isso lá muito bem, mas a verdade é que ele nunca teve a
mesma predileção que tu tens pelo pato donald, pelo thumper e pelo bambi.

- uma dose excessiva de walt disney em criança.

- hum. exatamente. eu própria ainda estou a tentar restabelecer-me da morte de


bambi.

ele soltou uma gargalhada.

- não me faças lembrar isso. tive de te arrancar do cinema, soluçante. nem um


gelado surtiu efeito. se tivesses visto o filme até ao fim terias percebido que tem um
final feliz.

- mas pareceu-me tudo tão familiar, amor. naquele momento.

- claro. percebi isso mais tarde. menos de um ano depois de a tua mãe ter morrido...
onde teria eu a cabeça? mas na altura pensei: «vou levar a pequena deborah a ver
este bonito filme para festejar o aniversário dela. eu próprio o vi quando tinha a
idade dela e gostei muito.» pensei que o teu pai me cortaria a cabeça quando lhe
expliquei os motivos da tua comoção.

- ele já te perdoou. tal como eu. mas sempre tiveste umas idéias muito esquisitas
sobre a forma de celebrar o meu aniversário. ver múmias, câmaras de horrores no
museu madame tussaud, ver a mãe do bambi ser morta a tiro.

- ora aí tens a minha habilidade para lidar com crianças - disse ele. - talvez seja bom
não termos... - interrompeu o que ia a dizer. procurou as mãos dela, e não a deixou
mexer-se, antes que ela pudesse afastar-se. - desculpa - disse. perante a ausência
de uma resposta imediata da parte dela, virou-se para encará-la. ela parecia estar a
remoer mentalmente as palavras dele, saboreando o seu sabor e a sua essência. -
desculpa - repetiu.

- estavas a falar a sério?

- não, estava apenas a divagar. estava a falar sem pensar. baixei as defesas.

- não quero que estejas na defensiva comigo. - afastou-se dele, dando um passo
atrás. as mãos dela que ainda há pouco aqueciam o corpo dele torciam os nós do
cinto da camisa de noite. - quero que sejas aquilo que és. quero que digas o que
pensas. porque é que não paras de tentar proteger-me disso?

ele refletiu sobre a pergunta que ela lhe colocava. por que motivo escondiam as
pessoas os seus pensamentos umas das outras? porque utilizavam uma linguagem
velada? de que tinham medo? da perda, claro. era isso que todas as pessoas
temiam, embora todos tendessem a sobreviver à perda sempre que ela se instalava
nas suas vidas. deborah sabia-o melhor do que ninguém.

aproximou-se dela. sentiu a resistência que ela oferecia.

- deborah, por favor - pediu. ela veio ter com ele. - eu quero as mesmas coisas que
tu. mas, ao contrário de ti, não as quero mais do que qualquer outra coisa no mundo.
aquilo que mais quero no mundo és tu. de todas as vezes que perdeste um bebé, eu
perdi uma parte de ti. não queria continuar nessa via, porque sabia onde é que ela
iria terminar. e embora eu pudesse lidar com o fato de perder uma parte de ti, sabia
que não suportaria perder-te por inteiro. e esta, meu amor, é a pura verdade. tu
queres filhos a qualquer preço. eu não. para mim há determinados preços que são
demasiado elevados.

os olhos dela encheram-se de lágrimas e ele pensou, desesperado, que iria


precipitar-se pela espiral rápida de mais uma discussão dolorosa com a mulher, uma
discussão que poderia prolongar-se até de madrugada, inconclusiva, que não traria
paz a nenhum dos dois e que a faria mergulhar em mais uma longa depressão. ela
surpreendeu-o, no entanto, como frequentemente acontecia.

- obrigada - disse num sussurro. limpou os olhos na manga da camisa de noite. - És


de fato o melhor dos homens.

- não me sinto particularmente bom esta noite.

- não, já percebi que não. estás obcecado com alguma coisa desde que chegaste a
casa, não é? o que é?

- um sentimento crescente de intranquilidade.

- charlotte bowen?

contou-lhe a conversa que tivera com a mãe da garota. falou-lhe nas ameaças à
vida de charlotte. viu a preocupação apoderar-se dela, quando ela levou uma das
mãos aos lábios.

- estou preso - explicou. - cabe-me a mim encontrar a garota.

- será que deveríamos telefonar ao tommy?

- É inútil. com a posição que ocupa no ministério do interior, eve bowen pode
bloquear eternamente qualquer investigação policial. e garantiu-me que o faria.

- que podemos fazer, então?

- rezar para que bowen esteja certa e seguir em frente.

- mas tu achas que ela não tem razão, não é?

- não sei o que pensar. - deixou descair os ombros.

- oh, simon - disse. - oh, meu deus. fui eu que te coloquei nessa situação, não fui?

st. james não podia negar que se tinha envolvido a pedido dela, mas sabia que havia
pouco a ganhar e muito a perder em apontar um dedo acusador, quer a deborah
quer a ele próprio.

- racionalmente, deveria aceitar que fizemos alguns progressos - disse, por fim. -
conhecemos o percurso que charlotte fazia quando regressava a casa vinda da
escola ou da lição de música. sabemos em que lojas costumava parar. descobrimos
uma das suas amigas e temos pistas consistentes sobre a outra. no entanto, sinto-
me inquieto em relação à direção em que estamos a seguir.

- É por isso que estás a estudar os bilhetes outra vez?

- estou a estudá-los de novo, porque não consigo pensar que mais posso fazer
nesta fase. e isso agrada-me ainda menos do que o sentimento de inquietação
acerca do que andei a fazer durante todo o dia. - inclinou-se e desligou as duas
lâmpadas de alta intensidade que projatavam reflexos brilhantes sobre a mesa do
laboratório, mantendo acesas as luzes do teto que proporcionavam uma iluminação
mais suave.

- deve ser assim que tommy se sente durante todo o tempo em que está a investigar
um caso - observou deborah.

- bom para ele, porque é um detetive. tem a paciência necessária para coligir os
fatos, relacioná-los entre si e deixar que as provas se encaixem nos seus devidos
lugares. eu não tenho essa paciência e duvido que nesta idade seja capaz de a
desenvolver. - st. james juntou os sacos de plástico e a outra amostra de caligrafia e
tornou a guardá-los na prateleira superior de um arquivador, junto à porta. - e se este
é um caso genuíno de rapto e não aquilo que eve bowen está determinada a
acreditar que é, uma artimanha planejada por dennis luxford para prejudicar o
governo e beneficiar o jornal onde trabalha, então é realmente urgente que tudo seja
esclarecido, embora eu seja o único a pensar assim.

- dennis luxford parecia sentir essa urgência.

- mas é tão inflexível quanto ela no que diz respeito ao modo de lidar com o caso. -
voltou para junto da mesa do laboratório, onde ela se encontrava. - É isso que me
preocupa em todo este imbróglio. e eu não gosto desse sentimento. não gosto da
dispersão, torna as águas cada vez mais turvas, algo de que eu não gosto nem um
pouco porque as minhas águas são, geralmente tão cristalinas como o ar suíço.

- porque as balas, cabelos e as impressões digitais não podem discutir contigo -


precisou ela. - não têm ponto de vista que necessite ser expresso.

- estou habituado a lidar com coisas, não com pessoas. as coisas colaboram
conosco permanecendo inertes sob as lentes do microscópio, ou no interior de um
cromatógrafo. as pessoas não são assim.

- mas o caminho a seguir parece óbvio, não é verdade?

- o caminho?

- a seguir. há a shenkling school para investigar. e as casas abandonadas da george


street.

- casas abandonadas? que casas?

- helen e eu falámos-te nelas esta tarde, simon. no pub, não te lembras?

lembrou-se nesse momento. uma correnteza de edifícios abandonados, próximo da


escola st. bernadette e da casa de damien chambers. helen e deborah tinham-se
referido a elas de forma entusiástica à hora do chá. situavam-se nas proximidades
do local onde se dera o rapto, a uma distância conveniente da casa da garota, para
além de terem um aspecto demasiado degradado e repulsivo para suscitar
veleidades exploratórias em qualquer transeunte. todavia, alguém que procurasse
um esconderijo encontraria nelas uma peça perfeita para o puzzle que constituía o
desaparecimento de charlotte. não faziam parte da agenda do dia, pelo que helen e
deborah haviam adiado a incursão para o dia seguinte, quando um par de jeans e
sapatilhas e umas sweatshirts e lanternas facilitariam a exploração do local. st.
james suspirou, penalizado, ao perceber que se tinha esquecido dos edifícios.

- mais uma razão pela qual nunca poderia ter êxito como detetive privado - disse.

- então sempre temos uma direção a seguir.

- isso não me faz sentir melhor.

- confio em ti - disse ela, segurando-lhe na mão.

a voz dela, porém, traía a ansiedade que sentia perante mais um dia em que estaria
em jogo a vida de uma criança.

charlotte despertou de um sono profundo, e sentiu uma sensação idêntica à que se


apoderava dela quando saía da água para trepar para o barco ancorado em fermain
bay durante as férias em guernsey. agora, porém, ao contrário do que acontecia nos
verões passados em guernsey, despertava para a escuridão.

a boca parecia pêlo de gato, e era como se alguém tivesse besuntado os cantos dos
seus olhos com cola. sentia a cabeça mais pesada do que o saco de farinha onde a
sra. maguire mergulhava as mãos quando começava a fazer scones. e as mãos
estavam tão cansadas que mal conseguia agarrar a lã malcheirosa do cobertor e
puxá-lo mais de encontro ao corpo trêmulo de frio. «sinto-me fraca», pensou. quase
conseguia ouvir a avó dizendo para o avô:

- peter, vem ver a bebé. acho que ela está em dificuldades.

primeiro sentira-se estonteada, depois as pernas começaram a tremer. não quisera


sentar-se no chão de tijolo e tentara tatear o caminho até às grades para poder
sentar-se nelas. no entanto, andara às voltas acabando por tropeçar,
desequilibrando-se sobre o cobertor que ele atirara para o chão. tinha-se esquecido
completamente do cobertor. as pontas estavam ensopadas com a água do balde
que ela esvaziara quando decidira usá-lo como sanita.

a recordação da água fê-la engolir em seco. se não o tivesse entornado, agora teria
alguma coisa para beber. não sabia quando voltariam a dar-lhe água, um pouco de
sumo de maçã ou de sopa, até, para eliminar a sensação de pêlo de gato que tinha
na boca.

a culpada de tudo era bretã. o espírito de lottie esforçava-se por se agarrar a esta
idéia em vez de mergulhar de novo na escuridão. era tudo culpa de bretã. entornar a
água era exatamente o tipo de coisa que bretã faria. era uma maldade, uma coisa
imprevista, não planejada.

estava sempre convencida de que sabia tudo, a bretã. nunca parava de dizer:
«queres que eu seja tua amiga, não queres?» assim, quando bretã dizia: «faz isto,
lottie bowen», ou «faz aquilo imediatamente», lottie acabava sempre por lhe
obedecer. porque ser a melhor amiga de alguém era uma coisa especial. ser a
melhor amiga significava um convite para uma festa de aniversário, alguém com
quem brincar ao faz-de-conta, risadinhas noturnas numa noite especial passada em
casa da amiga, postais nas férias e segredos partilhados. lottie desejava ter uma
melhor amiga mais do que tudo no mundo, pelo que fazia sempre tudo o que era
necessário para conquistar uma amizade deste tipo.

contudo, bretã não teria provavelmente entornado a água. talvez tivesse feito xixi na
frente dele, para dentro da boca de polvo que ele colocara no chão, talvez tivesse
feito xixi rindo na cara dele enquanto o fazia. ou talvez tivesse procurado um
recipiente de que pudesse servir-se quando ele se fosse embora. ou talvez não se
tivesse preocupado em usar fosse o que fosse, talvez se tivesse baixado junto das
caixas de madeira que lá havia e tivesse sujado tudo. se lottie tivesse feito qualquer
uma destas coisas, agora teria água para beber. podia ser água suja ou salgada,
mas pelo menos faria desaparecer aquela sensação de ter pêlo de gato na boca.

- frio - murmurou. - sede.

bretã perguntaria por que razão estava sentada no chão, se tinha frio e sede. bretã
diria: «isto não é propriamente campismo, lottie. então porque estás a comportar-te
dessa maneira? porque é que estás a ser tão boazinha?»

lottie sabia o que bretã faria. pôr-se-ia de pé e exploraria a divisão. encontraria a


porta por onde ele entrara e saíra. gritaria. berraria. esmurraria a porta. faria com
que alguém se apercebesse da sua presença.

lottie sentiu os olhos juntarem-se. estavam demasiado fatigados para lutar contra a
escuridão que a envolvia. não conseguia ver nada. ouvira determinados sons que a
informaram que ele a trancara ali dentro. não havia escapatória.

isto era, é claro, algo em que bretã nunca acreditaria. diria: «não há escapatória? És
mesmo parva! ele entrou e saiu. descobre onde está a porta e arromba-a. não fiques
aí parada a lamentar-te, lottie.»

«nada de choros», pensou lottie.

a isto bretã responderia: «És, és e és. que bebé que tu és.»

lottie puxou o cobertor ainda mais para si. as manchas de umidade deixadas pela
água entornada acumulavam-se, peganhentas, sobre as pernas dela. fletiu-as e
enrodilhou-se toda até formar uma bola. cerrou os punhos e escondeu-os sob o
queixo, fazendo pressão sobre a garganta com os punhos cerrados na tentativa de
esquecer a imensa sede que sentia.

- bebé, - podia ouvir as palavras trocistas de bretã.

- eu não sou um bebé.


- ai não? então, prova-o. prova-o, lottie bowen.

prová-lo. era assim que bretã acabava por conseguir sempre aquilo que queria.
prova que não és um bebé, prova que queres ser minha amiga, prova que gostas
mais de mim do que de qualquer outra pessoa, prova que és capaz de guardar um
segredo. prova, prova, prova, prova. deita toda a espuma de banho na banheira e
deixa a água correr para que pareça neve. surripia o melhor batom da tua mãe e
usa-o na escola. atira as cuecas para a sanita, puxa o autoclismo e passa o resto do
dia sem elas. rouba aquele twix para mim... não, rouba dois. porque isso é o tipo de
coisas que as melhores amigas fazem umas pelas outras, isso é que é ser a melhor
amiga de alguém. não queres ser a melhor amiga de alguém?

queria, sim. e como queria. e a bretã tinha amigos, bretã tinha dúzias de amigos.
nesse caso, se lottie quisesse reunir um grupo de amigos semelhante teria de se
parecer mais com bretã. era isso exatamente o que bretã lhe dizia desde o início.

lottie pressionou as mãos de encontro à tijoleira e ficou sentada. foi invadida por
uma tontura como se fosse agitada pela ondulação do mar. levantou os joelhos de
maneira que apenas os pés e o traseiro permanecessem em contato com o
pavimento. quando a tontura desapareceu pôs-se de pé. oscilou um pouco, mas não
caiu.

agora que estava de pé não sabia o que fazer. hesitante, esboçou um passo em
frente no escuro, agitando os dedos como se fossem as antenas de um inseto.
tremia de frio. contou os passos que deu, avançando aos poucos ao longo da
divisão.

que lugar seria este? perguntou para consigo. não era uma cave. era escuro como
uma cave, mas estas não tinham o pavimento em tijoleira, nem tão-pouco uma
porta. que seria então? onde estaria ela?

as suas mãos, esticadas, tocaram uma parede. as formas na superfície da mesma,


bem como a sua textura, eram-lhe familiares, algo que ela já tinha tocado antes.
tijolos, percebeu. deslizou ao longo da parede como uma toupeira cega. as suas
mãos moviam-se sobre a superfície, primeiro para cima depois para baixo.
procurava uma janela geralmente havia janelas nas paredes, não era? uma janela
com portadas de madeira onde houvesse uma fresta por onde pudesse espreitar.

não há nenhuma janela, lottie, teriam sido as palavras de bretã, enquanto lottie
tateava e procurava. se houvesse verias frestas de luz através das tábuas e como
não existem frestas de luz isso quer dizer que não há nenhuma janela, por isso
estás a ser estúpida.

bretã tinha razão. no entanto, lottie encontrou a porta. a madeira era áspera e
cheirava a mofo. tateou-a de cima abaixo procurando a maçaneta, que rodou em
vão. foi então que lhe bateu repetidamente e gritou:

- tirem-me daqui! mamãe! mamãe!

não obteve resposta. encostou o ouvido à madeira mas não conseguiu ouvir nada.
voltou a bater na porta. a avaliar pelo ruído oco que os seus punhos produziam ao
atingir a madeira, a porta era muito grossa, como se fosse a porta de uma igreja.

uma igreja? estaria ela na cripta de uma igreja?

onde enterravam os cadáveres? bretã teria desatado a rir e teria imitado os ruídos
dos fantasmas e rodopiado em volta com um lençol cobrindo-lhe a cabeça.

a idéia de cadáveres e fantasmas fez estremecer lottie. retomou a sua exploração.


pensou: «sair, sair, sair. tenho de sair daqui.» avançou devagar e com cautela ao
longo da parede até bater com o joelho dorido.

vacilou com a dor, mas não se lamentou nem chorou. em vez disso, tateou o objeto
no qual tinha embatido. mais madeira, mas não é áspera como a das grades.
percorreu-a com os dedos, parecia uma tábua com a largura de duas mãos. sobre
ela estava uma outra tábua precisamente com a mesma largura e por baixo uma
terceira. a quarta tábua parecia perfilar-se na diagonal, encostada à parede, fixa aos
tijolos em toda a sua largura...

«escadas», pensou.

subiu-as. eram terrivelmente íngremes e pareciam mais um escadote do que uma


escada. tinha de usar as mãos e os pés. À medida que ia subindo recordava uma
visita de estudo a greenwich e ao cutty sark e de como subira para o navio por uma
escada como aquela. mas não era possível que estivesse no interior de um navio,
pois não? um navio feito de tijolos? afundaria que nem uma pedra, não flutuaria nem
um segundo que fosse. além disso, se estivesse dentro de um navio sentiria a
presença do mar sob os seus pés, não era? o chão balançaria, não? ouviria o ranger
dos mastros de madeira e o cheiro a maresia...

a cabeça bateu no teto, fazendo-a soltar uma exclamação de surpresa. baixou-se.


refletiu sobre as escadas que conduziam a tetos e não a patamares, onde haveria
portas onde bater, sabia que as escadas não conduziam ao teto por mero acaso.
tinha de haver uma porta, não era, um alçapão talvez, como o que havia no celeiro
da casa do avô, onde se subia uma escada que ia dar ao sótão.

com a palma da mão tateou às cegas o teto por cima da sua cabeça. concluiu a
subida com mais cautela. passeou os dedos pelo teto afastando-se da parede e deu
com o que parecia ser a esquina de um alçapão, recortada na madeira. depois outra
esquina. afastou as mãos de ambas, tentando encontrar o centro. foi então que deu
um empurrão, não um empurrão vigoroso já que sentia os braços trémulos e
esquisitos, mas um empurrão, apesar de tudo.

o alçapão cedeu. descansou e fez mais uma tentativa para abri-lo. era uma porta
pesada, como se algo pesado tivesse sido colocado por cima dela para impedi-la de
sair, para a obrigar a ficar no seu lugar, para que não incomodasse ninguém. como
sempre. a idéia impacientou-a.

- mamãe! - chamou. - mamãe, estás aí? mamãe! mamãe!


não houve resposta. deu outro empurrão. foi então que se curvou para servir-se das
costas e dos ombros. empurrou uma vez com quanta força tinha e depois duas
outras vezes, resmungando da mesma forma que ouvira a sra. maguire resmungar
nas vezes em que afastava o frigorífico para limpar o espaço por detrás dele. o
alçapão abriu-se com um rangido.

as tonturas e a fraqueza sumiram-se instantaneamente. conseguira, conseguira,


conseguira sozinha. sem a bretã para lhe dizer o que tinha de fazer.

trepou até à divisão que se abria sobre a sua cabeça. estava tão escura como a que
ficava por baixo, mas aí, ao contrário desta não estava escuro como breu. a uma
distância de cerca de um metro, algo que se assemelhava a um retângulo em ébano
desfocado era circundado por uma espécie de fuligem de um cinzento brilhante.
caminhou na direção deste retângulo e descobriu que se tratava de uma janela
recuada, entaipada com tábuas espessas embora não totalmente, já que um fio de
luz penetrava através das arestas. era esse o cinzento-brilhante que ela vira: a
escuridão da noite lá fora, cortada pelo luar e pelas estrelas, em contraste com a
sólida muralha de escuridão do interior.

envolta nas sombras e auxiliada pela claridade da luz cinzenta, lottie podia distinguir
formas, mesmo sem a ajuda dos óculos. havia um poste no meio do quarto. parecia-
se com um daqueles mastros enfeitados que ela vira certa vez no centro da aldeia
que ficava perto da quinta do avô, só que muito mais grosso. por cima dele, um feixe
de luz atravessava a divisão e mais acima ainda, quase diluída na escuridão, via-se
o que parecia ser uma enorme roda pendurada por um dos lados fazendo lembrar
um disco voador. o mastro elevava-se na direção da roda, tocando-a e passando
para além dela para desaparecer no escuro.

lottie aproximou-se dele e tocou-o. estava frio. parecia ser feito de metal e não de
madeira, um metal rugoso, como se fosse velho e enferrujado. em torno da base
acumulava-se uma matéria pegajosa e espessa. semicerrou os olhos e olhou para
cima, esforçando-se por distinguir a roda. julgou distinguir uns dentes enormes e
recortados, como se fosse um mecanismo gigantesco. um mastro e uma roda
mecânica, pensou. enrolou o braço em torno do mastro e examinou-o.

uma vez vira o interior de um relógio. era um relógio de formas curvas parecidas
com uma onda, que se encontrava sobre a lareira da sala de estar de casa da avó. o
tio jonathon oferecera-o à avó como prenda de aniversário, mas não funcionava
como devia ser, porque era uma antiguidade. por isso, o avô decidira desmontá-lo
sobre a mesa da cozinha. era feito de rodas que encaixavam noutras rodas e que,
juntamente com as primeiras, produziam o tiquetaque. estas pequenas rodas eram
dentadas como esta.

um relógio, decidiu ela. um relógio gigante. apurou os ouvidos à espera do


tiquetaque, mas não ouviu absolutamente nada. nem tique nem taque, nenhum som,
nenhuma engrenagem em movimento. «está estragado», pensou. tal como o relógio
sobre a lareira, em casa da avó. no entanto, ao contrário daquele, este era enorme.
um relógio de igreja, talvez. uma torre sineira, que se erguia orgulhosamente no
centro de uma praça. ou um relógio na torre de um castelo.
a evocação do castelo sugeriu-lhe outras coisas: masmorras com celas, quartos
iluminados por lareiras, repletos de rodas dentadas, engrenagens e espigões, gritos
de prisioneiros e carcereiros com máscaras de cabedal extorquindo-lhes confissões.

tortura, pensou lottie. o mastro grosso a que se agarrava e a roda gigante por cima
dele ganharam um novo significado. deixou cair os braços e afastou-se. as suas
pernas pareciam de borracha. talvez tivesse sido melhor não saber de nada.

subitamente, uma corrente de ar frio brotou do solo e rodopiou em torno dos joelhos
dela. depois, um ruído sonoro pareceu ressoar das paredes da divisão por baixo dos
seus pés. o silêncio substituiu rapidamente o frio, seguido por uma arranhadela
metálica.

lottie reparou que a abertura quadrada por onde trepara até ali estava agora
iluminada por uma luz trêmula. em seguida ouviu um ruge-ruge, alguém caminhava
lá em baixo envolto em roupas pesadas. ouviu então uma voz masculina:

- que diabo... - e as grades de madeira amontoadas no solo embateram umas nas


outras, rangendo.

lottie percebeu que ele pensava que ela tinha fugido. isso queria dizer que havia
uma forma de escapar, e se ela conseguisse impedi-lo de descobrir que dera com as
escadas e subira-as, se ela conseguisse fazer com que ele não soubesse que ela
localizara o alçapão, então no momento em que ele fosse procurá-la poderia
encontrar a saída e escapulir-se de verdade.

atravessou o quarto silenciosamente e baixou o alçapão com cuidado. sentou-se em


cima dele e esperou que o peso do seu corpo o mantivesse fechado, se ele tentasse
abri-lo.

através das frestas do chão via a luz tornar-se mais intensa e ouvia os passos
pesados dele, escada acima. susteve a respiração. o alçapão elevou-se um pouco,
baixou e tornou a elevar-se.

- merda - disse ele. - merda. - a porta do alçapão tornou a baixar e lottie ouviu-o
descer as escadas.

a luz extinguiu-se com um ruído áspero. a porta que dava para a rua abriu-se e
fechou-se. depois tudo ficou em silêncio.

lottie sentiu vontade de bater palmas, sentiu vontade de gritar. esqueceu por
completo o pêlo de gato na garganta e levantou o alçapão. bretã não teria feito
melhor. bretã não teria conseguido enganá-lo tão bem. de fato, bretã ter-lhe-ia
provavelmente atirado o balde à cara e desatado a correr, mas nunca lhe teria
ocorrido enganá-lo, levá-lo a pensar que já se tinha escapulido.

em baixo estava escuro, mas lottie já não sentia medo, porque sabia que tudo
estava prestes a resolver-se. desceu as escadas, tateante, e correu até onde
estavam as grades de madeira. ali estava, sem dúvida, a sua saída. as grades
escondiam uma abertura exatamente à medida de lottie.

lottie encostou o ombro à grade que estava mais próxima dela. bretã ficaria com
certeza surpreendida quando ela lhe contasse a sua aventura. e cito, não ficaria ele
também espantado com o fato de lottie ter saído vitoriosa? e como a mamãe se
sentiria orgulhosa quando soubesse que a sua própria filha tinha...

de súbito soou um ruído metálico.

uma luz atingiu-a como um murro oscilante.

lottie rodou sobre si própria, tapando a boca com as mãos.

- quem te vai tirar daqui para fora é o papá, lottie - disse ele. - não vais conseguir
fazê-lo sozinha.

ela semicerrou os olhos. estava todo vestido de preto. não conseguia vê-lo, apenas
discernia os contornos da sua figura por detrás da luz. deixou cair os punhos
cerrados ao longo do corpo.

- posso sair - disse ela. - espere só até ver se não consigo. e quando sair, a minha
mamãe vai apanhá-lo. ela está no governo. ela põe pessoas na cadeia. fecha-os e
deita fora as chaves, e é isso que vai acontecer consigo. vai ver.

- achas mesmo que é isso que vai acontecer, lottie? não, acho que não. não, se o
papá disser a verdade como é suposto fazer. o papá é um verdadeiro prêmio. É um
homem de primeira qualidade. mas nunca ninguém teve conhecimento disso, e
agora ele tem a oportunidade de mostrar ao mundo o que vale. pode contar a
verdadeira história e salvar o seu rebentozinho.

- que história? - perguntou lottie. - cito não conta histórias, quem conta histórias é a
sra. maguire. ela inventa-as.

- bom, então vais ajudar o papá a inventar uma. anda cá, lottie.

- não vou - disse lottie. - tenho sede e não vou. dê-me de beber.

ele pousou algo no chão e, com o dedo do pé, empurrou o objeto até ao foco de luz.
a grande garrafa térmica vermelha. lottie deu um passo ansioso na direção dela.

- isso mesmo - concordou ele. - mais tarde. depois de dares uma ajudinha ao papá
com a história.

- nunca o ajudarei.

- não? - amarfanhou um saco de papel que se encontrava algures, perdido na


escuridão. - carne picada com purê de batata - disse. - sumo de maçã fresco e carne
picada com puré de batata.

a sensação de pêlo de gato reavivou-se, mais intensa do que nunca, no céu da boca
e pela garganta abaixo. tinha o estômago vazio, algo de que não se apercebera
realmente antes. no entanto, quando ele falara na carne com purê de batata sentira
as entranhas revolverem-se-lhe.

lottie sabia que lhe teria virado as costas e tê-lo-ia mandado embora, se não tivesse
tanta sede, se fosse capaz de engolir sem ser em seco, se o seu estômago não
tivesse começado a roncar, se não tivesse cheirado a comida, estava certa que o
teria feito se não fosse tudo isso. teria rido na cara dele. teria batido o pé. teria
gritado e berrado. mas o sumo de maçã... fresco e doce e depois a comida...

caminhou para a luz, na direção dele. pronto, está bem. ela mostrar-lhe-ia. não tinha
medo.

- o que é que tenho de fazer? - perguntou.

- assim é que é, linda menina. - disse, rindo por entre dentes.

passava das dez da manhã quando alexander stone deslizou até à beira da enorme
cama e espreitou para o relógio despertador digital. observou os números vermelhos
com uma expressão incrédula e soltou uma exclamação de protesto quando o seu
cérebro finalmente descodificou o significado dos dígitos. raios! não acordara
quando o despertador de eve soara na mesa de cabeceira dela, às cinco da manhã
como era costume. a culpa era dos quase dois terços de uma garrafa de vodca
entornada entre as nove e as onze e meia da noite anterior.

sentara-se na cozinha, na pequena mesa quadrada instalada no recanto com vista


para o jardim, e desatara a beber. preparara o primeiro copo de vodca com sumo de
laranja, mas os restantes ingerira-os puros. havia vinte e quatro horas que se via
envolvido naquilo que já designava como a verdade, finalmente e, entre descobrir a
verdade, perguntar a si mesmo se ela estaria de algum modo ligada ao paradeiro de
charlie, como eve tão fervorosamente acreditava, e tentar esquivar-se a uma
reflexão sobre quais as implicações das ações e reações da mulher em relação a
essa verdade sentia-se bastante paralisado. queria agir, mas não fazia a mais pálida
idéia do tipo de ação a tomar. demasiadas perguntas se acotovelavam na sua
cabeça e não havia ninguém em casa que pudesse dar resposta a elas. eve devia
estar na casa dos comuns, embrenhada num debate qualquer até depois da meia-
noite. decidira beber. beber até ficar bêbedo. na altura, essa pareceu-lhe ser a única
forma, a mais acertada, de obliterar as revelações que poderia ter continuado a
ignorar para o resto da vida.

luxford, pensou. dennis maldito luxford. nem sequer sabia quem era o patife antes
da noite de quarta-feira, mas desde esse dia que luxford e a sua intrusão na vida
deles dominava todos os seus pensamentos.

sentou-se com um ar circunspecto. as entranhas revolveram-se-lhe, reagindo,


incomodadas, à mudança de posição. o mobiliário do quarto pareceu ondular com as
náuseas, em parte provocadas pelo vodca que o seu corpo ainda não tinha
absorvido e, em parte, pelo fato de ainda não ter colocado as lentes de contato.

pegou no roupão e levantou-se, engoliu um acesso de náusea e encaminhou-se


para a casa de banho, onde abriu as torneiras. olhou a sua imagem refletida no
espelho. sem as lentes de contato via uma imagem desfocada, embora os
pormenores mais salientes fossem bem visíveis: olhos raiados de sangue, rosto
macilento, pele que parecia ceder aos efeitos de um impulso gravitacional incitado
por um estado de inconsciência, provocado por dez horas passadas a beber.
«pareço merda seca», pensou. salpicou repetidamente a pele do rosto com água fria
e secou-o. pôs as lentes de contato e pegou no estojo de barbear. esforçou-se por
ignorar, quer a sensação de enjoo que o invadia, quer a dor de cabeça,
concentrando-se na tarefa de ensaboar o rosto.

ruídos vagos chegavam até ele, vindos algures do andar inferior um som semelhante
a cânticos monásticos mas profundamente abafados. eve deveria ter dito à sra.
maguire que mantivesse o seu estridor diário num volume mínimo.

o sr. stone não se sentia bem, ontem à noite teria dito antes de sair de casa à hora
habitual, antes do romper do dia. precisa de dormir. não quero que seja incomodado.
a sra. maguire teria obedecido, como todos faziam, sempre que eve bowen dava
uma das suas ordens implícitas.

- não há razão nenhuma para que te encontres com dennis dissera-lhe ela. isto é
algo que tenho de resolver sozinha.

- na qualidade de pai da charlie durante os últimos seis anos, julgo que tenho
alguma coisa a dizer a esse sacana.

- ressuscitar o passado não nos ajudará em nada, alex. - era mais uma das ordens
implícitas dela. - afasta-te de luxford. mantém-te distante dessa fase da minha vida.

alex não era o tipo de homem que se mantivesse distante do que quer que fosse.
não chegara onde chegara no mundo dos negócios mantendo-se na retaguarda e
deixando que outros planeassem as estratégias e travassem as batalhas. depois de
ter passado a noite em que charlie desaparecera deitado na cama, com os olhos
fixos no teto e a mente revendo planos sucessivos que, segundo ele, trariam
charlotte de volta para casa sã e salva, colaborara e fora trabalhar no dia anterior, a
bem da paz de espírito de eve, para manter a aparência de normalidade em que ela
parecia tão empenhada. Às nove da noite, porém, atingiu o seu limite. decidiu que
não passaria outro dia inutilmente, sem pôr em ação pelo menos um dos seus
planos. ligou para o gabinete de eve e insistiu com o melífluo assistente dela para
que lhe fizesse chegar uma mensagem dele, na casa dos comuns.

- faça o que lhe digo, agora - dissera a woodward, quando este começara a desfiar
um rosário de desculpas destinadas a fazê-lo desistir. - rapidamente. emergência.
percebeu?

ela ligara-lhe, finalmente, às dez e meia e, pelo tom de voz, deduziu que ela julgava
que luxford cedera e que charlotte estava de volta.

- não há novidades - dissera-lhe, em resposta à pergunta dela, feita num tom de voz
baixo e intenso alex. o que é que aconteceu?
- então, porque é que estás a telefonar-me? - retorquiu, com uma alteração de voz, o
que, juntamente com a bebida, foi a provocação final.

- porque a nossa filha desapareceu - disse ele, com uma cortesia deliberada. -
porque passei o dia inteiro sustentando a maldita charada dos negócios como de
costume. porque não falo contigo desde esta manhã e gostaria de saber que raio
está a acontecer. tens alguma objeção a levantar, eve?

podia imaginá-la olhando por cima do ombro, já que baixou ainda mais o tom de voz.

- alex, estou a telefonar-te da casa dos comuns. compreendes o que isso significa?

- reserva o teu paternalismo para os teus colegas. não tentes o mesmo comigo.

- acredita no que te digo, não é a altura nem o lugar...

- podias ter-me telefonado pessoalmente, por falar nisso. a uma hora qualquer do
maldito dia de hoje. isso teria resolvido a questão delicada de retribuíres a minha
chamada a partir da maldita casa dos comuns. onde, evidentemente, qualquer um
pode estar à escuta. É isso que te preocupa, não é, eve?

- estiveste a beber?

- onde está a minha filha?

- neste momento não posso falar nisso.

- queres que vá até aí, então? podes sempre dar-me as últimas novidades sobre o
desaparecimento da charlie, na presença de um jornalista influente. seria uma
garantia de boa publicidade, não achas? mas que estupidez, já me esquecia.
publicidade é precisamente aquilo que não queres. certo?

- não me faças isso, alex. sei que estás preocupado, e tens boas razões para...

- muito obrigado.

- ... mas tens de perceber que a única maneira de lidar com isto é...

- À maneira de eve bowen. diz-me, até onde estás disposta a deixares-te pressionar
por luxford?

- tive um encontro com ele. ele sabe qual é a minha posição.

os dedos de alex fecharam-se em torno do fio do telefone. desejou que se tratasse


do pescoço de luxford.

- encontraste-te com ele, então?

- esta tarde.
- e?

- não faz tenções de trazê-la de volta. por agora. mas acabará por ser obrigado a
fazê-lo, já que deixei bem claro que não jogarei o jogo dele. está bem assim, alex? já
te disse o suficiente?

ela queria desligar. era evidente que queria regressar à casa dos comuns. para um
debate, uma votação, ou mais uma oportunidade de provar quão soberbamente era
capaz de reduzir a pó os argumentos do adversário.

- quero falar com esse sacana.

- isso não adiantará nada. mantém-te fora disto, alex. promete-me que não
interferirás. por favor...

- não vou passar outro dia como o de hoje. toda esta treta sobre a rotina habitual.
com a charlie algures por aí... não o farei.

- muito bem, não o faças. mas não te aproximes de luxford.

- porquê? - não conseguia sufocar a pergunta. ela era, afinal, a raiz do problema. -
quere-lo sozinho. todo para ti? como em blackpool, eve?

- esse é um comentário desagradável. a nossa conversa termina aqui. podemos


voltar a conversar quando estiveres sóbrio. de manhã.

e desligara. e ele bebera o vodca. bebera-o até que o chão da cozinha começou a
oscilar. nessa altura cambaleou escadas acima e caiu na cama, na transversal e
completamente vestido. a determinada altura durante a noite, ela devia ter-lhe tirado
as calças, a camisa e os sapatos porque no momento em que se arrastou para fora
da cama tinha apenas um par de boxers vestidas e as peúgas calçadas.

engoliu seis aspirinas e voltou a entrar no quarto. vestiu-se lentamente, esperando


que a aspirina surtisse algum efeito sobre o crânio latejante. perdera a conversa
matinal com eve, mas isso não importava. no estado em que se encontrava, não
estava em condições para defrontá-la. tinha de admitir que ela dera mostras de uma
clemência nada característica deixando que o sono curasse os excessos da
véspera, em vez de o acordar e de o obrigar a manter a conversa em que ele tanto
insistira. tê-lo-ia esmagado, reduzindo a pó, três ou quatro frases sem ter de recorrer
a um quarto da sua capacidade cerebral. perguntou a si mesmo o que é que o fato
de eve ter optado por sair sem uma demonstração de suserania revelaria acerca
dela e acerca do estado do casamento deles. em seguida perguntou a si próprio por
que motivo se estava a interrogar sobre o estado do casamento deles, quando
nunca fizera nada disso antes. conhecia a resposta para essa especulação e,
apesar da sua tentativa para afastar a resposta da mente, deparou com ela sobre a
mesa, quando desceu até à cozinha.

a sra. maguire não estava visível, mas a edição do the source, que ela costumava
comprar, permanecia onde ela a deixara.
- que estranho, - pensou alex.

desde que ele se lembrava que a sra. maguire trazia todos os dias para dentro de
casa deles aquele pedaço de esterco. no entanto, até à noite de quarta-feira, o dia
em que eve deliberadamente chamara a sua atenção para os jornais, nem uma vez
olhara para um deles. olhara de relance para uma ou outra história, era certo,
quando tinha ocasião de embrulhar as borras de café num dos jornais. nessas
ocasiões perguntara a si próprio, com ironia, quantas células cerebrais a sra.
maguire aniquilaria ao lê-lo todos os dias. nada mais do que isso, porém.
agora, o tablóide parecia exercer uma força magnética sobre ele. ignorando o desejo
de café quente que o seu corpo lhe transmitia, dirigiu-se para a mesa e fixou os
olhos no jornal.

“É uma forma de vida, não é?”, a frase emoldurava a primeira página, composta
paralelamente à fotografia de um adolescente vestido com um fato de cabedal
púrpura. o rapaz aparecia caminhando ao longo de uma entrada com pavimento em
tijolo que dava para uma casa pequena, sorrindo dengosamente para a objetiva,
como se tivesse conhecimento prévio do título que acompanharia a fotografia.
identificavam-no como daffy dukane e o tablóide designava-o como sendo o rapaz
de aluguel que fora surpreendido dentro de um automóvel juntamente com sinclair
larnsey, o deputado por east norfolk. a legenda da fotografia sugeria que as
circunstâncias que rodeavam a vida de daffy dukane nível de escolaridade baixo,
desemprego crônico e, em termos estatísticos, um dos indivíduos impossíveis de
empregar, o haviam obrigado a aceitar regularmente os favores que lhe ofereciam
como forma de sobrevivência. o leitor disposto a dirigir-se à página quatro
encontraria um editorial crucificando o governo que ditara uma sorte semelhante a
muitos outros rapazes de dezesseis anos. foi a isto que chegamos era o título do
editorial. todavia, quando alex viu que o mesmo tinha sido escrito por alguém
chamado rodney aronson e não por dennis luxford, ignorou-o. porque era sobre
dennis luxford que ele queria obter informações. por razões que ultrapassavam em
muito as opções políticas de dennis luxford.

quais tinham sido as palavras dela: foderam todas as noites, e todas as manhãs
também. e não porque o patife a tivesse seduzido, mas sim porque ela assim o
desejara, ela desejara-o. entregaram-se como animais, e a pessoa que luxford era,
tal como aquilo que ele representava, não haviam tido qualquer importância para
ela, à luz daquilo que pretendia dele.

alex folheou o tablóide, fitando as páginas. não admitia para ele próprio a natureza
do que procurava, mas não tirava os olhos delas. percorreu o jornal do princípio ao
fim e depois de o ter examinado na íntegra revistou o suporte em junco-da-índia,
retirando todos os outros exemplares do the source trazidos pela sra. maguire.
conseguia visualizar o quarto de hotel. via os cortinados laranja e o mobiliário
institucional, neutro e a imitar madeira. via o tumulto enlouquecedor que eve
provocava sempre, onde quer que fosse: pasta, papelada, revistas, cosméticos,
sapatos espalhados pelo chão, secador de cabelo sobre a cômoda, toalhas úmidas
esquecidas em pilhas encharcadas. podia ver um carrinho de serviço de quartos
com o que restava de uma refeição espalhado ao acaso. graças a um tênue fio de
luz, vindo da casa de banho, via a cama desfeita, os lençóis enxovalhados. podia até
vê-la a ela, pois sabia havia anos que o sabia que os joelhos dela estariam
levantados, as pernas enlaçadas em redor do tronco dele, as mãos enterradas no
cabelo dele ou coladas às suas costas, e ela conheceria as delícias do prazer com
uma rapidez tão assombrosa, dizendo, num grito de prazer, querido, não, pára, é de
mais... e isso era tudo o que podia ver.

incomodado, atirou o monte de tablóides para o chão. É charlie quem está em jogo
aqui, disse para consigo, e esforçou-se por transmitir essa informação até ao
cérebro. não se trata de eve. não se trata de algo que aconteceu há dez anos atrás
antes de a conhecer, numa altura em que desconhecia por completo a existência
dela, quando as suas ações e as suas relações não me diziam respeito, quando,
quem e aquilo que ela era... essa, porém, era a questão central, não era? quem e o
que esta mulher fora outrora, quem e o que ela era agora.

alex serviu-se de café. permaneceu em pé junto do lava-louça e bebeu-o puro e sem


açúcar. era uma forma adequada, ainda que momentânea, de escapar aos
pensamentos que o torturavam. todavia, uma vez engolido o café, que lhe queimou
o céu da boca e a garganta, a sua mente voltou a concentrar-se nela.

será que a conhecia? interrogou-se. será que era possível conhecê-la? ela era,
afinal, uma figura política. estava habituada aos requisitos camaleônicos que a
carreira lhe impunha.

meditou sobre essa carreira e sobre as suas implicações. ela aderira à associação
dos conservadores de marylebone, onde se tinham conhecido. trabalhara para o
partido ao lado dele, dera provas tão completas e tão freqüentes do seu valor que,
quebrando a tradição, o comitê da constituinte lhe pedira que juntasse o seu nome à
lista de candidatos. não se oferecera como voluntária, submetera-se à entrevista de
seleção de candidatos conservadores para o círculo de marylebone. ele ouvira a sua
defesa apaixonada dos ideais do partido. ele próprio comungara dos firmes pontos
de vista dela acerca do valor da família, da importância incalculável das pequenas
empresas, dos aspectos perniciosos da assistência governamental, mas nunca teria
sido capaz de expressar as suas idéias como ela fazia. ela parecia saber quais as
perguntas que o comitê da constituinte lhe colocaria antes mesmo que os seus
membros o decidissem. falava da necessidade de reconquistarem o direito de
passear pelas suas ruas durante a noite, tornando-as seguras. descrevia as linhas
genéricas dos planos que tinha para aumentar a maioria do partido em marylebone.
delineava todas as formas em que se empenhava para apoiar o primeiro-ministro.
tinha algo provocador a dizer acerca dos cuidados a prestar às mulheres vítimas de
maus tratos, acerca da educação sexual nas escolas, acerca do aborto, acerca das
penas de prisão, acerca da assistência aos idosos e aos doentes, acerca dos
impostos e das despesas e da modernização das campanhas. era rápida e esperta e
impressionava o comitê com a forma como dominava os fatos. alex sabia que nada
disso fora difícil de conseguir para ela, razão pela qual perguntava a si próprio:
estaria ela a falar a sério? será que ela era real?
interrogava-se sobre qual dos fatos o incomodava mais: o fato de eve poder não ser
quem afirmava ser ou o fato de poder ter posto de parte a pessoa que era, a fim de
poder foder com alguém que representava tudo aquilo a que se opunha.
essa era, de fato, a verdade acerca de luxford. ele não seria editor do jornal onde
trabalhava se defendesse idéias diferentes. as suas opções políticas eram
indiscutíveis. faltava apenas descobrir a natureza física do indivíduo em si mesmo.
porque conhecer a natureza física era indubitavelmente compreender. e
compreender era essencial se pretendessem alguma vez ir ao fundo...
exatamente. alex esboçou um sorriso sardônico. congratulou-se pelo trabalho de
decomposição exaustiva. em menos de trinta e seis horas lograra metamorfosear-se
de ser humano racional num perfeito estúpido. o que começara por ser um
desespero atormentado para descobrir o paradeiro da filha e para poupá-la de todas
as maneiras possíveis degenerara numa necessidade de tipo neanderthal para
encontrar e eliminar o anterior companheiro da sua parceira sexual. não havia
necessidade de continuar a mentir alegando que o encontro com luxford tinha por
finalidade compreender. alex queria vê-lo para feri-lo na carne. e não por causa de
charlie, não por causa do que ele estava a fazer com charlie, mas sim por causa de
eve.
alex apercebeu-se de que nunca pedira à mulher que identificasse o pai de charlie,
porque na verdade nunca estivera interessado em saber. o conhecimento exigia uma
reação a esse conhecimento, e a reação a esse conhecimento em particular era algo
que ele desde sempre desejara evitar.

- merda - sussurrou. inclinou-se sobre o lava-louça, mãos assentes sobre cada um


dos lados dos escorredores. talvez devesse ter ido trabalhar, como a mulher. pelo
menos teria gestos ritualizados a cumprir. aqui nada mais havia para além dos seus
pensamentos, e estes estavam a levá-lo à loucura.

tinha de sair. tinha de fazer alguma coisa.


encheu outra caneca de café e bebeu-a. apercebeu-se que a cabeça deixara de
latejar e que a sensação de náusea começava a desaparecer. tomou consciência
dos cânticos monásticos que ouvira ao despertar e dirigiu-se para o sítio de onde
eles pareciam vir, isto é, da sala de estar.

a sra. maguire estava apoiada nos joelhos gorduchos em frente à mesa de apoio,
onde dispusera uma cruz, algumas estatuetas e velas. tinha os olhos fechados e os
lábios moviam-se em silêncio. de dez em dez segundos, exatamente, fazia deslizar
uma conta do rosário preso entre os dedos e, ao fazê-lo, as lágrimas soltavam-se
das pestanas escuras. escorriam ao longo das faces arredondadas até caírem sobre
a camisola de malha, onde duas manchas húmidas sobre os seios fartos o
informavam de há quanto tempo ela chorava.
os cânticos saíam de um leitor de cassetes, onde solenes vozes masculinas
entoavam as palavras miserere ndbis vezes sem conta. alex não sabia latim, por
isso era incapaz de traduzir. todavia, as palavras pareciam apropriadas e trouxeram-
no de volta à realidade.
não podia ficar sem fazer nada. podia agir e ia fazê-lo. não se tratava de eve, nem
de luxford. não se tratava do que se tinha passado entre ambos e do porquê do
sucedido. era charlie que estava em jogo, e ela não poderia aspirar a compreender a
batalha que transcorria entre os pais. e em relação a charlie ele podia tomar uma
atitude.

dennis luxford aguardou alguns instantes antes de fazer soar a buzina, quando leo
saiu do consultório do dentista. o filho estava parado, imerso numa auréola formada
pela luz brilhante do sol do final da manhã, os cabelos louro-claros esvoaçando,
acariciados pela brisa. olhou para a esquerda e para a direita, franzindo a testa,
perplexo. estava à espera de ver o mercedes de fiona, estacionado três edifícios
abaixo do consultório do sr. wilcot, onde ela o deixara uma hora antes. não esperava
era descobrir que o pai decidira realizar um almoço de homem para homem antes de
levar o filho de volta à escola, em highgate.

- eu vou buscá-lo - luxford dissera a fiona, quando ela se preparava para sair de
casa, a fim de ir buscar o filho e levá-lo à escola. ao ver a dúvida espelhada no rosto
dela, insistira. - disseste que ele queria conversar comigo, querida. sobre
baverstock, lembras-te?

- isso foi ontem de manhã - retorquiu ela. não havia qualquer censura nas palavras
dela. não estava zangada por ele não se ter levantado a tempo de conversar com o
filho durante o pequeno-almoço. tão-pouco estava zangada por ele só ter voltado
para casa muito depois da meia-noite, na noite anterior. nem suspeitava de que ele
esperara em vão até depois das onze horas por uma mensagem de eve bowen,
autorizando-o a publicar a verdade acerca de charlotte na primeira página do jornal.
tanto quanto ela sabia, a noite anterior consistira em mais uma interferência
necessária do emprego dele na vida privada deles. ela sabia que a carreira dele o
obrigava a trabalhar frequentemente até altas horas, pelo que estava apenas a
colocá-lo perante os fatos, como sempre fazia: dois dias antes, leo referira que
queria conversar com o pai; planejara ter essa conversa na manhã do dia anterior;
não tinha a certeza de que ele ainda quisesse conversar com o pai, hoje. tinha boas
razões para pensar desta maneira, leo era tão instável como o clima inglês.

luxford buzinou. leo dirigiu-se para ele. tinha o cabelo puxado para fora as pontas
iluminadas pela luz do sol formando uma espécie de halo e o rosto iluminado por um
sorriso. tinha um sorriso arrebatador, muito semelhante ao da mãe, e sempre que o
via, luxford sentia um aperto no coração precisamente no mesmo instante em que a
sua mente intimava leo a tornar-se mais duro, mais expedito, a caminhar de punhos
cerrados e a pensar como um rufia. naturalmente, luxford não queria que o filho
fosse um rufia no verdadeiro sentido do termo, mas se conseguisse fazer com que
ele pensasse como um nem que fosse um décimo a atitude dele perante a vida não
seria tão preocupante.

leo acenou. colocou a mochila ao ombro, deu um pequeno salto e encaminhou-se,


feliz, para junto do pai. luxford reparou que a camisa branca saía fora das calças,
num dos lados, por baixo da camisola azul-escura do uniforme escolar. gostava do
seu ar de desalinho. o desinteresse pelo aprumo não se coadunava em nada com o
temperamento de leo, mas adequava-se perfeitamente ao comportamento dos
rapazes comuns.

leo entrou no porsche.

- papá! - exclamou, emendando rapidamente. - olá, pai. estava à procura da mamãe.


ela disse que estaria na padaria. ali. - curvou o dedo na direção referida.

luxford aproveitou o ensejo para lançar um olhar dissimulado para as mãos de leo.
estavam impecavelmente limpas, unhas aparadas, sem quaisquer vestígios de
sujidade. luxford catalogou a informação recolhida juntamente com todas as outras
preocupações que alimentava em relação ao filho. sentiu-se impaciente. onde
estava a sujidade? as cicatrizes das feridas? que era feito dos adesivos? raios, o
que via eram as mãos de fiona, com dedos longos e afunilados terminando em
unhas ovais com meias-luas perfeitas junto das cutículas. será que algum do seu
material genético teria entrado na formação do filho? luxford perguntava a si próprio.
por que razão é que as semelhanças de aparência tinham de se traduzir por uma
semelhança em tudo o resto? leo iria herdar, inclusivamente, a estatura esbelta de
fiona e não a estrutura mais compacta que caracterizava luxford. este passara
longas horas meditando na utilização que leo poderia dar ao seu corpo. queria
pensar no filho como um corredor de fundo, ou de barreiras, um saltador em altura, à
vara, em comprimento. não queria pensar no filho da mesma forma que leo se
pensava a si próprio: como um bailarino.

- tommy tune é muito alto - observara fiona quando luxford se recusara liminarmente
a comprar o par de sapatos para sapateado que leo pedira como prenda de
aniversário. - e fred astaire, não era alto também, querido?

- não é isso que está em questão - retorquira luxford entre dentes. - por amor de
deus, leo não vai ser bailarino, nem vai ter nenhum par de sapatos de sapateado.

nessa altura, leo encarregara-se ele próprio de remediar a situação. colou algumas
moedas na biqueira e nos calcanhares do melhor par de sapatos que possuía e
sapateava energicamente sobre o pavimento de tijoleira da cozinha. fiona qualificara
este tipo de comportamento como inventivo, luxford chamou-o destrutivo e
desobediente e, como castigo, proibira-o de sair de casa durante duas semanas.
isso, porém, não causou qualquer transtorno em leo. sentava-se, satisfeito, no
quarto, lendo os seus livros de arte, tratando dos seus tentilhões e reorganizando as
fotografias dos bailarinos que admirava.

- pelo menos é dança moderna - assinalou fiona. - não é que ele queira estudar
ballet.

- está fora de questão e esta é a minha última palavra sobre o assunto - disse
luxford, certificando-se de que a baverstock school for boys não acrescentara a
dança, sapateado ou outra qualquer, aos curricula, desde que ele aí estudara.

- Íamos comer bolinhos quentes com manteiga - dizia leo. - a mamãe e eu. depois
do dentista. tenho a boca toda dormente, no entanto, por isso acho que não os teria
saboreado muito. parece esquisita, pai? a minha boca? tenho uma sensação
esquisita.

- está com um aspecto ótimo - disse luxford. - pensei que poderíamos almoçar
juntos. se é que podes faltar mais uma hora à escola e se a tua boca não estiver a
incomodar-te.

- terrivelmente! - exclamou leo, exibindo um sorriso largo que deixava ver os dentes.
voltou-se no assento e procurou o cinto de segurança. - o sr. potter quer que eu
cante um solo no dia do pai. disse-mo ontem. a mamãe contou-te? É uma aleluia -
acrescentou, virando-se de novo para retomar a posição anterior. não é um
verdadeiro solo, suponho, já que o resto do coro também vai cantar, mas há uma
parte em que eu canto sozinho durante um minuto inteirinho, mais ou menos. É
como se fosse um solo, julgo eu. não achas?
luxford queria perguntar se o filho não poderia fazer qualquer outra coisa para o dia
do pai, como elaborar um projeto científico ou fazer um discurso incitando os
colegas a aderir a um motim político. no entanto, engoliu as palavras e ligou a
ignição, conduzindo por entre o trânsito característico do final da manhã.

- estou desejoso de te ouvir - disse, acrescentando falsamente: - sempre quis fazer


parte do coro em baverstock. tinham um excelente coro, mas eu não era capaz de
entoar uma única nota. tudo o que cantasse soava sempre como o barulho de
pedras chocando umas com as outras dentro de um balde.

- querias mesmo? - leo aceitou a mentira com uma perspicácia desconcertante, que
herdara também da mãe. - engraçado. nunca me passaria pela cabeça que
quisesses fazer parte de um coro, pai.

- porque não? - luxford olhou de relance para o filho. leo pressionava delicadamente
o lábio superior com os dedos, verificando o grau de dormência da boca.

- suponho que podemos esmagar os lábios depois de ir ao dentista sem nos


apercebermos disso - disse o rapaz, pensativamente. - também podíamos mordê-los
sem nos darmos conta. brilhante, não achas? - e, de novo, tal como a mãe fazia,
também ele mudava inesperadamente de tema de conversa como se pretendesse
assaltar o ouvinte de surpresa. - acho que ias pensar que fazer parte do coro era
demasiado maricas. não achavas, pai?

luxford não estava disposto a permitir que o desviassem do tema de conversa que
escolhera. tão-pouco iria permitir que o seu próprio filho transformasse a conversa
entre ambos numa análise ao pai. fiona já o fazia vezes suficientes.

- já te disse que em baverstock existe um clube de canoagem? É uma atividade


nova, que não existia nos meus tempos de aluno. praticam na piscina, são canoas
de um só remador, aliás, e fazem excursões anuais ao loire. - será que detectava um
lampejo de interesse no rosto de leo? luxford decidiu que sim e prosseguiu. - a
canoagem está integrada na federação de canoagem. são eles que constróem as
suas próprias canoas, e durante as férias da páscoa organizam uma semana no
campo para praticar atividades de aventura. montanhismo, pára-quedismo, tiro,
campismo, primeiros socorros. esse tipo de coisas, percebes?

leo baixou a cabeça. o cinto de segurança amarrotara-lhe a camisola, a fivela do


cinto das calças estava exposta e ele tocou-a com os dedos.

- acabarás por gostar daquilo ainda mais do que pensas - disse luxford, esforçando-
se por utilizar um tom de voz que refletisse a sua jovial convicção da total
cooperação de leo. virou no sítio que conduzia a highgate hill, na direção da rua
principal. - onde é que vamos almoçar?

leo encolheu os ombros. luxford podia vê-lo morder os lábios com os dentes.

- não faças isso, leo - disse - pelo menos enquanto está dormente - e leo pareceu
afundar-se ainda mais no assento.
dado que o filho não parecia disposto a fazer qualquer sugestão, luxford escolheu ao
acaso, estacionando o porsche num espaço vago próximo de um café com aspecto
moderno, em pond square. conduziu leo até ao interior, ignorando o fato de a
maneira de andar habitualmente jovial do filho se ter alterado para um caminhar
pesado e sombrio. acompanhou-o até uma das mesas, entregou-lhe uma ementa
laminada de marfim e leu, em voz alta, o quadro iluminado onde apareciam
discriminados os pratos do dia.

- o que é que queres? - perguntou.

leo tornou a encolher os ombros. pousou a ementa, apoiou uma das faces na palma
da mão e começou a dar pancadinhas na perna da cadeira de ferro com o calcanhar
dos sapatos. suspirou e com a mão livre fazia girar o vaso que se encontrava no
centro da mesa, compondo o raminho de flores brancas e a verdura que as
acompanhava de forma que fossem visíveis a partir de qualquer ângulo. fê-lo com
uma inconsciência aparente, como se fosse uma atividade que era natural nele,
irritando o pai e destruindo a sua paciência.

- leo! - a voz de luxford perdera por completo o tom de bonomia paternal.

leo afastou apressadamente os dedos do vaso. pegou na ementa e fingiu


concentrar-se nela.

- estava só a imaginar - disse em voz baixa, o queixo encolhido como que para
ilustrar o fato de que esse ato de imaginar era algo que fazia para ele próprio.

- o quê? perguntou luxford.

- nada. - tornou a bater com o pé na perna da cadeira.

- estou interessado. o quê?

leo ergueu o nariz na direção das flores.

- por que razão a lunária da mamãe tem umas flores mais pequenas do que esta.

luxford pousou a sua ementa com uma diligência meticulosa. o seu olhar transferiu-
se das flores cujo nome teria sido incapaz de pronunciar mesmo sob ameaça de
morte para o seu exasperante filho. baverstoch school for boys era uma solução que
se impunha, quanto a isso não restavam quaisquer dúvidas. e quanto mais cedo
melhor. se não fosse isso, dentro de um ano as excentricidades de leo não teriam
remédio. como é que ele sabia todas as malditas coisas que sabia? fiona falava
sobre elas, é certo, mas luxford sabia que a mulher não o instruía sobre as
maravilhas da botânica, da mesma maneira que não o encorajava a devorar livros
de arte ou a admirar fred astaire.

- dennis, já não consigo controlá-lo - dissera ela mais do que uma vez, noite dentro,
muito depois de leo se ter ido deitar. - ele é uma pessoa independente, e uma
pessoa encantadora. porque queres transformá-lo numa cópia de ti próprio?
luxford, porém, não tentava transformar leo numa versão miniatura dele próprio.
tentava apenas transformar leo numa versão miniatura de leo, o futuro adulto.
recusava-se a admitir que o leo do presente era uma forma larvar do futuro leo. o
rapaz necessitava apenas de orientação, de um pulso firme e de alguns anos de
internato no colégio.

quando a empregada se aproximou deles para que encomendassem as refeições,


luxford escolheu a vitela do dia.

- isso é uma vaca-bebé, pai - disse leo, estremecendo de horror, e escolheu uma
sanduíche de queijo com ananás. - com batatas fritas - acrescentou, informando o
pai numa demonstração típica de honestidade. são à parte.

- está bem - disse luxford. ambos pediram as bebidas e quando a empregada se


afastou fitaram ambos a lunária que leo havia composto.

era cedo para almoçar, faltavam poucos minutos para o meio-dia, pelo que tinham o
restaurante quase só para eles. havia somente outras duas mesas ocupadas,
situadas num dos cantos mais afastados do restaurante, protegidos por arbustos
envasados, privando-os assim de quaisquer motivos de distração. ainda bem
que assim era, decidiu luxford, porque precisavam de ter uma conversa.

fez a primeira incursão.

- leo, eu sei que não te sentes especialmente animado com a perspectiva de ir para
baverstock. a tua mãe disse-mo. mas tens de saber que eu não tomaria uma
decisão destas se não julgasse que estava a fazer o melhor para ti. É a escola que
eu mesmo frequentei, sabes isso. e fez maravilhas comigo. formou-me, deu-me
força, fez-me ganhar confiança em mim mesmo. fará o mesmo por ti.

leo adotou o raciocínio que fiona previra. enquanto falava, o pé batia ritmicamente
na perna da cadeira.

- o avô não estudou lá, o tio jack também não.

- está certo. mas eu quero que tenhas mais do que qualquer um deles.

- o que é que há de mal com a loja? o que é que há de mal com o aeroporto?

era uma pergunta inocente, colocada numa voz tranquila e inocente. luxford, porém,
não estava disposto a discutir a loja de ferramentas do pai ou o posto como
segurança que o irmão tinha no aeroporto de heathrow. isso teria agradado a leo, já
que a atenção seria desviada para outras pessoas, dando provavelmente à conversa
um rumo completamente diferente se gerisse bem o seu jogo. todavia, não era leo
que comandava a situação presente.

- É um privilégio estudar numa escola como baverstock.

- tu dizes sempre que os privilégios são um disparate - assinalou leo.


- não me refiro a esse tipo de privilégios. o que quero dizer é que ter a possibilidade
de frequentar uma escola como baverstock não é algo que se possa recusar de
ânimo leve, dado que qualquer rapaz no seu perfeito juízo se sentiria feliz se
estivesse no teu lugar. - luxford observou o filho que brincava com a faca e o garfo,
equilibrando a lâmina da primeira entre os dentes do segundo. era impossível
ostentar uma atitude menos impressionada em relação ao privilégio que o pai se
esforçava por explicar-lhe. luxford prosseguiu: - o ensino é da melhor qualidade, e
moderno. vais trabalhar com computadores, irás aprender ciência avançada. eles
têm um centro de atividades técnicas onde poderás construir o que quiseres... um
aerodeslizador, até, se quiseres.

- não quero ir.

- farás imensas amizades e passado um ano gostarás tanto de lá estar que nem
sequer quererás vir a casa nas pausas entre trimestres.

- sou demasiado pequeno.

- não digas disparates. tens quase o dobro da altura dos outros rapazes da tua idade
e quando lá entrares, no outono, estarás doze centímetros mais alto do que qualquer
um dos teus colegas de ano. de que é que tens medo? de te envolveres em
escaramuças? É isso?

- sou demasiado pequeno - insistiu leo. afundou-se na cadeira e fixou os olhos na


escultura que fizera com a faca e o garfo.

- leo, já te disse que a tua altura...

- só tenho oito anos - disse ele, em tom inexpressivo. olhou então para o pai com os
olhos azuis. raios o partissem se não era verdade que tinha também os olhos de
fiona, marejados de lágrimas.

- por amor de deus, não chores por causa disto - disse luxford. isso fez,
evidentemente, com que as comportas se abrissem. - leo! - luxford pronunciou o
nome do filho num tom imperioso, maxilares cerrados. - por favor, leo!

o rapaz baixou a cabeça na direção da mesa. os ombros agitavam-se.

- pára com isso - sussurrou luxford. - endireita-te, já. - leo tentou controlar-se, mas
apenas conseguiu soluçar.

- n... n... não consigo. papá, n... não consigo.

a empregada escolheu esse preciso momento para trazer os pratos.

- devo... deseja que... ele... - balbuciou ela, permanecendo hesitante a cerca de três
passos de distância da mesa com um prato em cada uma das mãos e o rosto diluído
numa expressão de solidariedade. - oh, pobre querido - disse num tom de voz que
se usaria para arrulhar um pássaro. - quer que lhe traga uma coisa especial?
um pouco de espinha dorsal, pensou luxford, que duvido que faça parte da ementa.

- ele está bem - disse. - leo, o teu almoço está aqui. senta-te. - leo ergueu a cabeça.
o seu rosto parecia pintalgado, como a pele dos morangos. o nariz começara a
pingar. soltou um suspiro. luxford procurou o seu lenço de bolso e entregou-lho.

- limpa o nariz - disse. - e depois come.

- talvez ele queira um docinho - disse a empregada. - queres, meu querido? - e,


dirigindo-se a luxford, em voz mais baixa. - que lindo rosto que ele tem! parece um
daqueles anjos pintados.

- obrigado - disse luxford, - mas ele tem tudo o que precisa por agora.

e depois? luxford ignorava-o. pegou na faca e no garfo e cortou a vitela. leo


desenhava arabescos desconsolados com o molho castanho sobre as batatas fritas.
pousou o frasco e fitou o prato, com os lábios trêmulos. antevia-se uma nova
torrente de lágrimas.

perante o seu prato de vitela, que para surpresa dele estava suculentamente
cozinhada e verdadeiramente deliciosa, fosse ou não um vitelo inocente, luxford
disse:

- come a tua refeição, leo.

- não tenho fome. tenho uma sensação esquisita na boca.

- leo, já te disse que comesses.

leo deu uma fungadela e escolheu uma só batata frita na qual deu uma dentada
minúscula que mastigou com os dentes da frente. luxford cortou outro pedaço de
vitela e tornou a pousar os olhos no filho. leo deu uma segunda dentada minúscula
na batata frita, seguida de uma terceira, ainda mais diminuta. possuíra sempre um
talento especial para a arte de comunicar um desafio por intermédio de uma atitude
de desobediência ostensiva. luxford sabia que podia forçá-lo a comer
convenientemente, mas queria evitar mais uma sessão pública de lágrimas.

leo disse.

- estou a comer. - leo pegou em metade da sanduíche e segurou-a de maneira que


um terço da porção de queijo e de ananás deslizasse por entre as fatias da pão e
fosse cair no toalhete sobre a mesa. - yuck - disse ele.

- estás a portar-te como uma... - luxford procurou outra palavra, ao ouvir a voz
sensata da mulher que dizia: está a portar-se como uma criança, porque é uma
criança, dennis. por que motivo esperas que ele seja algo que não pode de forma
nenhuma ser, já que tem apenas oito anos de idade? de certeza que ele, por seu
lado, não alimenta expectativas irracionais em relação a ti.
com os dedos, leo juntou o queijo e o ananás e largou-os por cima das batatas fritas.
voltou a pegar no molho castanho e derramou-o sobre a mistura que enchia o prato.
mexeu-a com o dedo indicador. tentava provocar o pai, e luxford estava ciente disso.
não precisava de uma sessão com um dos livros de psicologia de fiona para
perceber isso. também não fazia tenções de ceder à provocação.

-sei que estás assustado com o fato de ires para longe de casa - disse, e quando os
lábios recomeçaram a tremer prosseguiu apressadamente. - isso é normal, leo. mas
baverstock não é assim tão distante quanto isso, estarás apenas a cento e vinte e
nove quilómetros de casa. - no entanto, o rosto do filho dizia-lhe que aqueles apenas
a cento e vinte e nove quilómetros de casa equivaliam à mesma distância que
separava a serra de marte, com a mãe num dos planetas e ele no outro. luxford
sabia que nada do que pudesse dizer mudaria o fato de que quando chegasse o
momento de leo partir para baverstock, fiona partiria juntamente com ele.

- vais ter de confiar em mim, filho. há coisas que são a melhor solução e acredita em
mim quando te digo que esta é uma delas. agora come - disse, num tom conclusivo.

concentrou toda a sua atenção na sua refeição, comunicando através dos seus
gestos que a conversa entre ambos chegara ao fim. contudo, a mesma não correra
como ele planejara e a lágrima solitária, deslizando ao longo de uma das faces de
leo era sinal de que arruinara o encontro. fiona dir-lhe-ia precisamente isso nessa
noite.

suspirou. sentia os ombros doridos, uma manifestação física de tudo aquilo que ele
parecia carregar atrás de si no momento presente. tinha a mente demasiado cheia.
não era capaz de lidar ao mesmo tempo com leo, fiona, a travessura peripatética de
sinclair larnsey, eve, com o que quer que rod aronson estivesse a maquinar no
emprego, com cartas anônimas, telefonemas ameaçadores e, sobretudo, com o que
sucedera a charlotte.

tentara pôr de parte qualquer pensamento relativo à garota e conseguira-o durante a


maior parte da manhã, dizendo para consigo que se alguma coisa viesse a
acontecer a charlotte o pecado da inação pesaria sobre a cabeça de eve. ele não
fazia parte da vida dela conforme os desejos de sua mãe e nada poderia fazer neste
momento para tornar-se parte integrante da vida dela. não era responsável pelo que
sucedera à criança, a não ser pelo fato de o ser. da forma mais simples e profunda
era totalmente responsável por charlotte, e sabia-o.

na noite anterior sentara-se à secretária, o olhar fixo no telefone, enquanto repetia:


vamos, evelyn. telefona-me. vá lá, até já não poder manter as impressoras paradas.
a história estava escrita. os nomes, as datas e os locais estavam todos lá. precisava
apenas de um telefonema dela para que a história saísse na primeira página, tal
como pretendia o raptor, e para que charlotte fosse libertada e voltasse para casa.
no entanto, o telefonema nunca chegara a ser feito. o jornal saíra com a história do
rapaz de aluguel na primeira página. agora, luxford esperava que o céu se
desmoronasse de uma forma ou de outra.

tentou convencer-se de que o raptor muito simplesmente proporia a história a outro


jornal, o globe seria a escolha mais lógica. no entanto, quando estava quase
persuadido de que o raptor apenas pretendia obter publicidade, que poderia provir
de uma fonte qualquer, voltou a ouvir a voz no outro lado do telefone. «mato-a, se a
história não for publicada.» ignorava qual das partes da história teria prioridade no
espírito do raptor: a ameaça de morte, a exigência de publicação da história ou a
condição de que fosse publicada no jornal de luxford.

ao não publicar a história estava a ceder a um bluff a que não tinha qualquer direito
de ceder. o fato de evelyn estar a fazer o mesmo não atenuava em nada a
ansiedade que sentia. ela deixara bem claro, no harrods, que acreditava que era ele
quem estava por detrás do desaparecimento de charlotte e, pensando assim, nunca
deixaria de resistir àquilo que julgava ser uma artimanha planejada por ele, certa de
que ele nunca levantaria um dedo para fazer mal à sua própria filha.

apenas uma solução lhe parecia possível. tinha de alterar as convicções de evelyn,
tinha de combater a forma como ela pensava, tinha de fazer com que ela
compreendesse que ele não era o homem que ela pensava que era.

não fazia a mais pequena idéia de como fazê-lo.

helen clyde não conseguia lembrar-se da ocasião em que ouvira pela primeira vez a
expressão «na mouche». provavelmente faria parte dos diálogos de um dos policiais
americanos que ela costumava ver juntamente com o pai, durante os anos de
crescimento. o pai era um adepto fervoroso das histórias protagonizadas pelos
detetives mais duros e implacáveis. quando não tinha em mãos a concretização de
um qualquer milagre financeiro entretinha-se a ler raymond chandler e dashiell
hammet enquanto a televisão não exibia pela milésima vez mais um filme de
humphrey bogart. se tivesse hipótese de escolher preferia-o a qualquer outro. e nas
ocasiões desesperantes em que sam spade e philip marlowe não estavam ao
serviço da bbc, o pai de helen tinha de contentar-se com as pálidas imitações de
anos mais recentes. essa devia ser a origem de «na mouche», a semente de um
diálogo que ficara gravado na sua memória ao cabo de horas passadas em frente
das imagens móveis produzidas por uma válvula de raios catódicos. essa semente
florescera e transformara-se numa flor perfeita durante os esforços da manhã, nos
arredores de cross keys close, em marylebone. e as palavras que melhor definiam o
resultado triunfante da sua entrevista com o residente do n.° 4 eram precisamente
estas: na mouche.

o trabalho tinha sido dividido entre os três, na casa de st. james, às nove e meia
dessa manhã. st james continuaria no encalço de bretã, explorando a geoffrey
shenkling school. deborah recolheria a impressão digital de luxford, que o eliminaria
como possível autor das notas de rapto. helen entrevistaria os habitantes de cross
keys close, na esperança de descobrir se alguém se apercebera de alguma
movimentação suspeita na área nos dias que haviam precedido o desaparecimento
de charlotte.

- o assunto do luxford é provavelmente desnecessário - dissera-lhes st. james. - não


consigo acreditar que ele próprio escrevesse o bilhete, caso tivesse raptado a
criança. mas temos de eliminá-lo, cumprir uma formalidade, apenas. por isso, meu
amor, se não te importas de ficar com o the source...
deborah corou.

- santo deus, simon. não tenho jeito nenhum para este tipo de coisas, sabes isso.
que é que lhe hei-de dizer?

- basta que digas a verdade - respondeu st. james.

deborah não se mostrou convencida. a experiência que possuía neste tipo de


trabalho até ao momento limitara-se a um único episódio de assalto e arrombamento
na companhia de helen havia já quase quatro anos, e mesmo nessa altura fora
helen quem assumira o comando das operações. deborah limitara-se a segui-la de
perto.

- minha querida - dissera-lhe helen, - basta pensares em miss marple, ou em


tuppence. pensa em tuppence, ou em harriet vane.

deborah acabara por se decidir a levar as máquinas fotográficas consigo como


salvaguarda contra os imprevistos do desconhecido.
- afinal trata-se da sede de um jornal - explicou ansiosamente, com receio de que st.
james e helen a expulsassem da casa de chelsea desguarnecida de quaisquer
armas de defesa. - não me sentirei tão embaraçada se as levar comigo. não
parecerei deslocada. eles têm fotógrafos a trabalhar lá, não têm? imensos
fotógrafos. nos escritórios do jornal? É óbvio que sim. bom, é claro que têm.

- incógnita - clamou helen. - É isso, minha querida. exatamente isso. quem quer que
te veja não saberá os motivos da tua presença lá, e o sr. luxford ficar-te-á de tal
modo agradecido pelo teu cuidado em poupá-lo a olhares indiscretos que colaborará
prontamente. deborah, foste talhada para este tipo de trabalho.

deborah rira com satisfação. a sua característica mais insuspeita era a capacidade
que possuía de libertar-se das suas reticências naturais através do sentido de
humor. pegara nas máquinas fotográficas e saíra. st. james e helen imitaram-na.

desde que ele a deixara na esquina de marylebone high street com marylebone
lane, continuando depois para oeste em direção a edgware road, helen não cessara
de fazer perguntas. começara pelas lojas que ladeavam marylebone lane,
orientando o interrogatório em torno do desaparecimento de uma criança cuja
fotografia mostrava uma vez mais, tendo o cuidado de não mencionar o nome dela.
helen depositava as suas maiores esperanças no proprietário do golden hind fish e
da chips shop. sendo ambos dois dos pontos de paragem habituais de charlotte
todas as quartas-feiras antes da lição de música, não havia local mais perfeito onde
alguém esperasse por ela e seguisse os seus movimentos do que uma das cinco
vacilantes mesas do golden hind. uma delas, mais precisamente, poderia ter servido
de pouso a um observador, dissimulada como estava, num canto por detrás de uma
máquina de fruta de onde se podia ver claramente qualquer transeunte que
circulasse ao longo de marylebone lane.

todavia, o proprietário do estabelecimento, não obstante os sussurros instigadores


de helen: «podia ter sido um homem, como podia ter sido uma mulher, ou então
alguém que nunca tivesse visto até esse dia» abanou a cabeça negativamente e
continuou a verter óleo vegetal para dentro de uma enorme fritadeira. É possível que
algum desconhecido deambulasse pelas redondezas, mas como poderia ele ter-se
apercebido da sua presença? o estabelecimento tinha movimento e graças a deus
nos tempos que corriam e se algum desconhecido entrasse à procura de um pedaço
de bacalhau, o mais certo era ele pensar que se tratava de alguém pertencente a
uma das firmas instaladas nos prédios com ligação a bulstrode place. era aí que ela
deveria investigar, aliás. esses edifícios tinham janelas panorâmicas que davam
para a rua. por mais de uma vez vira uma secretária ou um empregado espreitando
pelas janelas, em vez de estarem a fazer o trabalho que lhes competia. É por isso,
menina, que este país de loucos está a perder-se. não há moral no trabalho,
feriados a mais. anda tudo de mão estendida, à espera que o governo lhes ponha
alguma coisa na palma da mão. enquanto ele recobrava fôlego, antes de dar
continuidade ao tema escolhido, helen aproveitou para agradecer apressadamente e
deixar-lhe o cartão de st. james. se ele por acaso se lembrasse de alguma coisa...

as firmas situadas nos tais edifícios com ligação a bulstrode place tomaram-lhe
várias horas. viu-se obrigada a recorrer a todos os seus talentos para combinar
habilidosamente a persuasão com a prevaricação, a fim de contornar recepcionistas
e agentes de segurança e conseguir acesso a alguém que possuísse um local de
trabalho, um gabinete ou uma secretária próximos das janelas que davam para
bulstrode place e marylebone lane. uma vez mais, porém, não conseguiu obter
nada, para além de uma proposta de trabalho duvidosa para um emprego ainda
mais duvidoso, feita por um executivo mal-intencionado.

não foi muito mais bem sucedida no pub prince albert, onde o empregado de bar
saudou a questão que ela lhe colocou com uma gargalhada incrédula.

- alguém deambulando por aqui? alguém que pareça deslocado? - riu sonoramente.
- querida, estamos em londres, é onde estamos. os quebra-esquinas são a alma do
meu negócio. e nos dias que correm, o que é que parece deslocado? a menos que
alguém cá entrasse pingando sangue como um vampiro, eu nem daria por ele. e
mesmo assim podia nem reparar, da maneira que as coisas estão. a única pergunta
que lhes faço é se têm dinheiro para pagar as bebidas.

depois deste episódio iniciou um périplo meticuloso ao longo de cross keys close. na
realidade, era a primeira vez que penetrava numa zona de londres com tantas
reminiscências dos fantasmas de jack, o estripador. mesmo em plena luz do dia, a
área conseguia pôr-lhe os nervos em franja. edifícios altos ladeavam vielas estreitas,
onde as únicas réstias de luz que penetravam na obscuridade eram um ocasional
raio de sol, que se projatava num telhado ou noutro, e um círculo luminoso, ainda
mais fortuito, que banhava os degraus de uma entrada acidentalmente exposta à
claridade. não se via vivalma nas redondezas, o que certamente fazia prever que a
presença de um estranho tivesse sido notada. todavia, a maioria dos ocupantes das
diminutas residências estava ausente.

evitou a casa de damien chambers, embora tivesse registado a música produzida


por um teclado electrônico que ecoava do outro lado da porta fechada. concentrou a
sua atenção na vizinhança do professor de música e calcorreou os dois lados da rua
estreita e calcetada. os seus únicos companheiros eram dois gatos um ruivo e outro
cinzento com listas pretas, ambos esfomeados, conforme se podia ver pela ossatura
saliente e uma pequena criatura peluda com um focinho pontiagudo. este último
arrastava-se ao longo da frontaria de um edifício, assente nas patas diminutas, e a
sua presença sugeria que a atitude adequada era permanecer na zona o menos
tempo possível.

helen ia mostrando a fotografia de charlotte e explicando o seu desaparecimento.


iludia perguntas naturais como «quem é ela?» e «está a querer dizer que houve um
crime?» uma vez terminados os preliminares ia direita ao assunto: havia fortes
possibilidades de que a criança tivesse sido raptada. alguém fora visto nas
redondezas? alguém com ar suspeito? teriam visto alguém deambulando pela zona?

nos números três e sete, duas mulheres, cujos televisores rugiam em consonância,
libertando os sons do mesmo programa, forneceram-lhe as mesmas informações
que ela e simon tinham obtido junto de damien chambers, na quarta-feira à noite. o
leiteiro, o carteiro, o fornecedor ocasional, essas tinham sido as únicas pessoas cuja
presença fora registrada na área. nos números 6 e 9 foi recebida com olhares vazios
em rostos inexpressivos. em cerca de meia dúzia de portas não obteve qualquer
resposta, já que não havia ninguém em casa. foi então que foi bafejada pela sorte ao
chegar ao número cinco.

pensou que poderia estar em boas mãos quando bateu à porta pela primeira vez.
olhando casualmente para cima da mesma forma que não deixara de olhar em volta,
pouco à vontade, enquanto caminhava pelo labirinto de vielas viu um rosto mirrado
que a observava sub-repticiamente através de uma abertura nos cortinados da única
janela do primeiro andar. ergueu a mão num gesto de saudação e esforçou-se por
aparentar uma atitude tão agradável e inofensiva quanto possível.

- posso falar consigo por uns momentos, por favor? - pediu, vendo os
olhosestreitarem-se. exibiu um sorriso encorajador. o rosto desapareceu. tornou a
bater. transcorreu quase um minuto antes que a porta se entreabrisse, com a
corrente de segurança ainda posta. - muito obrigada. não vou demorar nada - disse
helen, procurando a fotografia de charlotte no interior do saco a tiracolo.

os olhos enterrados no rosto mirrado fitavam-na, desconfiados. helen não conseguia


decidir se pertenciam a uma mulher ou a um homem, uma vez que o dono estava
vestido de uma forma assexuada, com um fato de treino verde e sapatilhas.

- qu’é que quer? - inquiriu rosto-engelhado.

helen exibiu o retrato, explicando o desaparecimento de charlotte. rosto-engelhado


pegou na fotografia com uma mão marcada pelos anos e segurou-a entre uns dedos
que terminavam com unhas pintadas de vermelho. isso, pelo menos, resolvia a
questão do sexo, a não ser que a pobre criatura fosse um velho travesti.

- esta miudita desapareceu - disse helen. - possivelmente em cross keys close.


estamos a tentar determinar se alguém terá andado a rondar por esta zona durante
a semana passada, ou por essa altura.

- foi pewman quem chamou a polícia - disse a mulher e devolveu a fotografia a helen
com modos abruptos. limpou o nariz às costas da mão e com uma inclinação de
cabeça seca e brusca indicou o n.° 4, no outro lado da viela. - pewman - repetiu. -
não fui eu.

- a polícia? quando? - encolheu os ombros.

- havia um vagabundo girando por aí no início da semana passada. conhece o


gênero, não conhece? metem o nariz em todos os caixotes de lixo à procura de
comida. pewman não gostou. para falar verdade, ninguém aqui na rua gosta. mas
quem telefonou para a polícia foi pewman.

helen tentou pôr em ordem os novos dados. falava depressa receando que a mulher
decidisse que já tinha falado demasiado e batesse com a porta.

- está a dizer que viram um mendigo deambulando pela vizinhança, senhora... -


tinha esperanças que a mulher lhe adiantasse um nome a que pudesse agarrar-se,
um sinal de que a cordialidade e a confiança entre ambas aumentava. a engelhada,
porém, não era da mesma opinião. chupava ruidosamente os dentes e contemplava
helen com um olhar muito significativo, onde não estavam de modo nenhum
incluídas as relações de amizade. helen insistiu. - esse mendigo apareceu por aqui
ao longo de vários dias? e pewman... o sr. pewman?... ele telefonou para a polícia?

- o guarda mandou-o embora. - sorriu num esgar. a visão dos dentes da mulher
levou helen a prometer mentalmente a ela própria que passaria a visitar o seu
dentista com mais assiduidade. isso vi eu. o vadio caiu dentro do caixote do lixo,
berrando contra a brutalidade da polícia. mas quem o fez foi pewman, telefonar para
a polícia, quero eu dizer. basta perguntar-lhe.

- É capaz de descrever...

- hummm. acho que sim. bem parecido, não era parvo nenhum. cabelo escuro,
cortado como uma boina. muito agradável, muito limpo. lábio um pouco subido. tinha
ar de ser uma pessoa com autoridade.

- oh, que maçada, peço-lhe imensa desculpa - disse helen, esforçando-se por
manter um tom de voz paciente e afável - referia-me ao mendigo, não ao polícia.

- ah, esse. - a mulher voltou a limpar o nariz. - vestia umas roupas castanhas, como
aquelas coisas do exército.

- caqui?

- inxactamente. tudo amarrotado, como se dormisse com elas. botas pesadas, sem
atacadores. mochila... uma daquelas coisas enormes.

- um saco de campanha?

- inxato. isso mesmo.

a descrição aplicar-se-ia provavelmente aos cerca de dez mil homens que


deambulavam sem destino certo por londres. helen insistiu um pouco mais.

- reparou em mais algum pormenor especial acerca dele? uma característica física.
o cabelo, por exemplo. a cara, o corpo.

fez a pergunta errada. a mulher voltou a esboçar um sorriso rasgado e helen foi de
novo presenteada com uma visão da sua dentadura.

- olhava mais para o chui do que para ele. bonito traseiro tinha aquele chui. gosto de
homens com um traseiro pequeno e rijo, não gosta?

- claro. sou uma vítima incurável das nádegas masculinas - disse helen. - quanto ao
outro homem...

não se lembrava de mais nada a não ser do cabelo.

- quase todo grisalho. caía em madeixas irregulares debaixo de uma boina em


malha. a boina propriamente dita... - enquanto pensava, passeava uma das unhas
ao longo da gengiva e entre dois dentes, em sentido transversal. - era azul-marinho.
pewman chamou a polícia quando ele começou a vasculhar o caixote de lixo dele.
ele pode descrevê-lo melhor do que eu.

pewman podia, de fato, abençoado fosse. e, mais ainda, por estar em casa. era
argumentista de cinema, conforme explicou, e helen apanhara-o a meio de uma
frase, por isso se ela não se importasse...

helen abordou a questão do mendigo, diretamente e sem rodeios.

- sim, sim, lembro-me dele - disse pewman e forneceu a helen uma descrição que a
deixou assombrada com o poder de observação dele. - o homem tinha entre
cinquenta e sessenta e cinco anos de idade, um metro e setenta e cinco de altura,
talvez, rosto moreno e com sulcos profundos provavelmente devido ao excesso de
sol, os lábios estavam de tal modo gretados que a pele morta adquirira uma
tonalidade branca, as mãos eram ásperas, as costas das mãos evidenciavam feridas
mal saradas para segurar as calças usava uma gravata castanho-avermelhada
enfiada nas presilhas destinadas aos cintos. e - concluiu pewman - um dos sapatos
era elevado.

- elevado?

- sabe como é. uma das solas era cerca de dois centímetros e meio mais grossa do
que a outra. poliomielite infantil, talvez. - soltou uma gargalhada juvenil ao
contemplar a expressão de espanto de helen, perante o poder de observação que
ele evidenciava. - sou escritor disse, em jeito de explicação.

- perdão?

- pareceu-me ser uma boa personagem, por isso fiz uma descrição escrita dele,
quando o vi a remexer no lixo. nunca se sabe quando poderá ser-me útil.
- o senhor também telefonou à polícia, segundo me disse a sua vizinha, senhora...

helen esboçou um aceno vago na direção do outro lado da rua estreita, confirmando
assim que a conversa que mantinha como sr. pewman estava a ser observada por
entre os cortinados.

- eu? - abanou a cabeça negativamente. - de modo nenhum. pobre diabo. nunca


teria chamado a polícia por causa dele. o meu caixote de lixo estava pouco cheio,
mas ele podia dar-lhe o uso que muito bem lhe aprouvesse. É provável que tenha
sido algum dos outros. miss schickel do n.° 10, talvez. revirou os olhos e inclinou a
cabeça na direção do n.” 10, ao fundo da viela. É do gênero empertigado,
sobrevivente-do-blitz, etc., etc. sabe a que me refiro? são absolutamente intolerantes
em relação aos mais desfavorecidos. o mais provável é que tenha advertido o tipo e
quando viu que ele não se ia embora telefonou à polícia. e insistiu até que eles se
decidissem a aparecer para mandá-lo embora.

- o senhor presenciou a cena?

- não, não tinha. apenas o vira enquanto ele vasculhava o lixo. não podia dizer ao
certo durante quanto tempo o homem deambulara pela zona, mas sabia que tinha
aparecido em mais do que um dia. apesar da ausência de tolerância que votava aos
mais desafortunados dos seus semelhantes, era pouco provável que miss schickel
tivesse decidido chamar a polícia por causa de uma única incursão ao seu caixote
de lixo.

- lembrar-se-ia ele do dia exato em que o mendigo fora expulso da zona?

refletiu sobre a pergunta, brincando com o lápis entre os dedos. por fim disse que a
cena devia ter acontecido cerca de dois dias antes.

- na quarta-feira, talvez. sim, fora com certeza na quarta-feira, porque a mãe


telefonava-lhe todas as quartas-feiras e fora enquanto conversava com ela que
olhara pela janela e vira o pobre diabo. não voltara a ver o homem desde esse dia,
pensando bem...

foi nesse preciso momento que helen se lembrou da expressão detetivesca.


finalmente acertara na mouche. encontrara uma pista segura.

a existência de uma pista atenuara a frustração que invadia st. james. com a bênção
da diretora da geoffrey shenkling school falara com todas as raparigas cujo nome se
assemelhava, ainda que remotamente, à forma abreviada e familiar de bretã.
entrevistara albertas, bridgets, elizabeths, berthes, babettes, ritas e brittanys com
idades compreendidas entre os oito e os doze anos de idade, de todas as raças,
credos e temperamentos. algumas eram tímidas, outras medrosas, outras francas e
havia ainda aquelas que se sentiam encantadas com a oportunidade de escapar a
uma parte das aulas. nenhuma delas, porém, conhecia charlotte bowen, nem como
charlotte, nem como lottie, tão-pouco como charlie. nenhuma delas acompanhara
um dos pais, um tutor ou amigo às sessões de consultoria de eve bowen, às sextas-
feiras à tarde. regressara da escola trazendo a lista das ausências do dia e
respectivos números de telefone. no entanto, algo lhe dizia que a shenkling school
iria revelar-se um beco sem saída.

- e se assim for, não nos restará outra alternativa senão verificar todas as outras
escolas de marylebone, uma por uma - disse st. james, - enquanto o tempo continua
a escoar-se, o que obviamente beneficia o raptor. sabes uma coisa, helen, se não
tivéssemos obtido confirmação junto de outras duas fontes de que bretã era, de fato,
amiga de charlotte estaria pronto a apostar que damien chambers a inventara na
quarta-feira à noite para desviar as nossas atenções.

- o fato de ele ter mencionado a existência de bretã encaminhou-nos, de fato, numa


determinada direção, não foi? - helen comentou, pensativa. encontraram-se no pub
rising sun, que ficava na rua principal, onde st. james cismava, cabisbaixo, em torno
de uma guinness e helen recobrava forças com um copo de vinho branco. tinham
chegado durante o período calmo entre o almoço e o jantar, por isso para além do
empregado, ocupado a limpar e a arrumar copos, o bar estava por conta deles.

- no entanto, dificilmente conseguirias convencer-me de que ele conseguiu fazer


com que a sra. maguire e brigitta walters corroborassem a história dele acerca de
bretã. o que é que as levaria a fazê-lo?

- a sra. maguire é irlandesa, não é? e damien chambers? falava com um sotaque


irlandês, disso não restam dúvidas.

de belfast precisou st. james.

- talvez possuam interesses comuns.

st. james considerou de novo a posição que eve bowen ocupava no ministério do
interior, bem como as alusões da sra. maguire aos interesses especiais da
deputada: apertar com o ira. contudo, abanou a cabeça.

- isso não explica brigitta walters. onde é que ela encaixa? por que motivo iria ela
contar a mesma história acerca de bretã, se a mesma não fosse verdadeira?

- talvez estejamos a restringir demasiado a nossa esfera de ação, no que diz


respeito ao paradeiro de bretã - disse helen. pensamos que ela poderia ser uma
colega de escola ou uma amiga da vizinhança. no entanto, charlotte poderia tê-la
conhecido noutro lugar. que me dizes a um centro paroquial? catequese? coro?

- ninguém referiu nenhuma dessas atividades.

- guias?

- teríamos sido informados.

- e a aula de dança? não a procuramos na aula de dança e isso foi referido mais do
que uma vez.

não tinham investigado esta hipótese. e não deixava de ser uma possibilidade. havia
ainda o psicólogo dela. era necessário seguir estas duas pistas, qualquer uma delas
poderia ser a chave que procuravam. então, perguntava st. james a si próprio, por
que teria ele tanta relutância em investigá-las? conhecia a resposta, todavia. curvou
os dedos e sentiu as unhas enterrarem-se na palma da mão.

- quero desistir disto, helen - disse.

- está a complicar a vida de qualquer um de nós, não é verdade? - lançou-lhe um


rápido olhar de soslaio.

- contaste-lhe?

- ao tommy? não. - helen suspirou. - ele interrogou-me, naturalmente. sabe que


estou preocupada com qualquer coisa, mas até agora consegui convencê-lo que
tudo não passa de um nervosismo pré-nupcial.

- ele não vai gostar de saber que lhe mentiram.

- eu não menti, não no verdadeiro sentido do termo. a verdade é que sinto de fato
um nervosismo pré-nupcial, ainda não estou bem certa.

- em relação a tommy?

- em relação a casar-me com tommy. em relação a casar-me com quem quer que
seja. em relação ao casamento, ponto final. toda esta idéia do até-que-a-morte-nos-
separe deixa-me apreensiva. como é que posso prometer amor eterno a um homem
quando nem consigo manter-me fiel a um par de brincos durante um mês inteiro? -
encerrou o assunto afastando o copo de vinho. - mas descobri uma coisa que nos
vai animar.

passou a explicar. e a explicação dela foi o incentivo que atuou, finalmente, sobre o
sentimento de frustração de st. james. a presença do mendigo em cross keys close
era o primeiro dado que realmente encaixava no outro dado que já possuíam.

- as casas abandonadas em george street - disse st. james com ar pensativo, depois
de refletir durante alguns instantes sobre a informação obtida por helen. - deborah
voltou a falar-me delas a noite passada.

- claro - disse helen. - seriam um abrigo noturno perfeito para qualquer mendigo, não
achas?

- seriam o espaço perfeito para qualquer coisa, quanto a isso não restam dúvidas -
concordou st. james. esvaziou o copo. - continuemos, então.

deborah começava a sentir-se inquieta. começara o dia com uma espera de duas
horas no vestíbulo do the source, distraindo-se com o vaivém dos jornalistas,
enquanto aguardava a chegada de dennis luxford.

durante o tempo que durou a espera dirigiu-se à secretária da recepcionista de meia


em meia hora, à procura de informações. as respostas, porém, eram sempre as
mesmas. o sr. luxford ainda não chegara. e não seria muito pouco provável que
entrasse pelas traseiras do edifício. perante a insistência dela para que a
recepcionista ligasse para o gabinete de dennis luxford para se certificar de que o
editor ainda não chegara, a rapariga acedera a fazê-lo com uma rudeza típica da
pós-adolescência. «ele já chegou?» perguntou a recepcionista através do bocal do
telefone. a chapa de identificação indicava que ela se chamava charity, uma
incorreção gritante, na opinião de deborah.

uma hora depois do período de almoço deborah saiu do edifício e foi à procura de
alimento. encontrou-o num estabelecimento próximo de st. bride street, onde um
prato de penne all’arrabbiata, um cesto de pão de alho e um copo de vinho tinto
nada fizeram pelo seu hálito, mas levantaram-lhe em muito os ânimos. arrastou-se a
si mesma, e às máquinas fotográficas, até farrington street.

desta vez, mais alguém aguardava a chegada de dennis luxford, segundo foi
informada por charity que a recebeu com um: «está de volta? não desiste
facilmente, pelos vistos? bom, junte-se aos restantes.»

deborah descobriu que entre os inúmeros talentos de charity figurava a hipérbole. os


restantes consistiam num único homem, que estava sentado na beira de um dos
sofás da entrada. sempre que alguém entrava pelas portas giratórias levantava os
olhos como se quisesse levantar-se de um salto.

deborah cumprimentou-o com afabilidade. ele franziu as sobrancelhas e afastou com


brusquidão o punho da camisa para consultar o relógio, caminhando em seguida até
à secretária da recepcionista para uma breve e áspera troca de palavras com charity.

- olhe lá, veja se se acalma. não tenho motivos para lhe mentir, pois não? - dizia-lhe
ela, num tom bastante acalorado, quando finalmente dennis luxford entrou pela porta
de entrada.

deborah levantou-se. charity disse:

- está a ver - e chamou. - sr. luxford? - o homem que aguardava a chegada do editor
virou-se junto da secretária de charity.

- luxford? - perguntou.

luxford pareceu desconfiar imediatamente do tom, que deixava entrever que não se
tratava de uma visita amigável. olhou de soslaio para o segurança que se
encontrava próximo da porta de entrada, que se aproximou devagar.

- sou alexander stone, o marido de eve disse o homem. - luxford examinou-o, e


depois com um movimento de cabeça quase imperceptível fez sinal ao segurança
para que recuasse.

- por aqui disse e fez menção de se dirigir aos elevadores. - foi então que viu
deborah.

deborah compreendeu de imediato que estava completamente fora do seu ambiente.


santo deus, aquele homem que esperava luxford era o marido de eve bowen, o
marido de eve bowen que segundo o que lhes tinham dito nem sequer sabia que
dennis luxford era o pai da filha de eve bowen. aqui estava ele, dando mostras de
um autocontrole de aço que fez com que deborah percebesse de imediato que
estava ao corrente da verdade e estava ainda em vias de digerir essa verdade. isso
significava que ele podia fazer qualquer coisa, dizer o que quer que fosse, provocar
uma cena, recorrer à violência. era aquilo a que se chamava uma bomba-relógio. e
os tristes fados já para não falar nas orientações do marido haviam-na colocado a
ela numa posição em que poderia ver-se obrigada a ter de lidar com ele.

queria que o chão a engolisse e que a terra a tragasse. onde poderia ir parar, caso
fosse engolida pela terra? À china? aos himalaias? ao bangladesh?

luxford olhou com curiosidade para o saco da máquina fotográfica.

- o que é isto? há novidades? - perguntou.

- luxford, gostaria de falar consigo - disse stone.

- e vai falar - respondeu-lhe luxford por cima do ombro. virou-se para deborah. -
venha até ao meu gabinete.

stone não estava disposto a deixar-se ficar na entrada. quando as portas do


elevador se abriram entrou atrás de deborah e de luxford.

o segurança voltou a esboçar um movimento, indicando que estava pronto a intervir.


luxford ergueu uma das mãos e disse:

- está tudo bem, jerry - e carregou no botão para o décimo primeiro andar.

estavam sozinhos no elevador.

- sim? - disse luxford, dirigindo-se a deborah.

tentou imaginar a situação: preciso de uma amostra das suas impressões digitais
para que o meu marido se certifique de que o senhor não é o raptor. isso bastaria
para que alexander stone saltasse ao pescoço do outro. exalava antipatia em doses
suficientes para deixar bem claro que discrição deveria ser a palavra de ordem.

- simon pediu-me que passasse por cá. há apenas um pequeno pormenor que ele
quer esclarecer - acabou por dizer, em voz alta.

stone pareceu tomar consciência de que a presença dela ali estava de algum modo
relacionada com o desaparecimento da enteada.

- o que é que sabe? que é que descobriu? porque diabo não nos comunicou o que
se estava a passar? - perguntou em tom brusco.

- simon falou com a sua mulher ontem à tarde. ela não lhe disse...? - respondeu
deborah, nervosa. ora, era óbvio que ela nada lhe dissera, sua pateta, deborah disse
para consigo em jeito de autocensura. esperando que a sua voz soasse confiante
acrescentou: - na verdade, ele apresentou-lhe um relatório pormenorizado sobre os
progressos da investigação, no gabinete dela. quero dizer, deslocou-se até ao
gabinete dela. o relatório não era sobre o gabinete. «magnífico», - pensou ela.
absolutamente profissional. mordeu o lábio superior com os dentes. tudo servia para
impedi-lo de tremer.

no quinto andar, as portas do elevador abriram-se para deixar entrar dois homens e
uma mulher, impedindo assim que deborah se enredasse ainda mais naquelas
areias movediças verbais. os três conversavam sobre política e a mulher dizia
calmamente:

- segundo uma fonte segura - a que os homens reagiram com um largo sorriso
cúmplice, que a incitou a dizer: - não, escutem. ele esteve a jantar em downing
street e, durante os aperitivos, o pm disse realmente a alguém que a opinião pública
não quer saber quem anda a enganar quem e onde, desde que os impostos não
sejam aumentados. É claro que tudo isto foi solto você, mas se mitch puder obter
confirmação, poderemos...

- pam - disse luxford. a mulher olhou na direção dele. - mais tarde. - ela desviou o
olhar da figura de luxford e olhou de soslaio para os que o acompanhavam. fez um
pequeno trejeito, desculpando-se pela indiscrição cometida. quando as portas do
elevador se abriram, no décimo primeiro andar, desapareceu dentro da sala de
redação.

luxford conduziu deborah e alexander stone até ao seu gabinete, no extremo oposto
da sala de redação, à esquerda dos elevadores. um grupo de pessoas, armadas
com blocos de notas e papéis cirandavam nas imediações da mesa da secretária
dele e, quando luxford se aproximou, um indivíduo atarracado, vestido com um
casaco de caqui, avançou e disse:

- den? o que é que... - olhou de relance para deborah e stone, dando especial
atenção para a mala onde deborah guardava as máquinas fotográficas, que
interpretou como sendo o prenúncio de alguma coisa. - estava a preparar-me para
fazer o conselho de redação sem a tua presença.

- adia-o por uma hora - disse luxford.

- achas que será uma decisão sensata, den? será que nos podemos permitir um
novo atraso? o da noite passada já foi suficientemente negativo, mas...

luxford fez sinal a deborah e a stone para que entrassem no gabinete dele. rodou
nos calcanhares.

- tenho um assunto a resolver, rodney - disse. faremos a reunião dentro de uma


hora. o mundo não vai acabar se a impressão atrasar. entendido?

- É mais um dia em que teremos de pagar horas extraordinárias - fez notar rodney.

- sim, mais um dia - luxford fechou a porta. - e agora - disse, virando-se para
deborah.
stone interveio.

- escute, meu sacana - disse ele calmamente, e interpôs-se entre luxford e a


secretária dele. era, concluiu deborah, cerca de dez centímetros mais alto do que o
editor do the source, mas ambos pareciam estar em boa forma física. além disso,
luxford não tinha ar de quem vacilava perante uma tentativa de intimidação.

- sr. luxford - disse ela, corajosamente. - na verdade trata-se de uma mera


formalidade, mas aquilo de que necessito é que...

- o que é que lhe fez? - perguntou stone. - o que é que fez com charlie?

luxford nem pestanejou.

- as conclusões de evelyn são falsas. É óbvio que não consegui convencê-la disso,
mas talvez possa convencê-lo a si. sente-se.

- não me diga o que...

- Ótimo. deixe-se ficar de pé, então. mas saia da minha frente, porque não estou
habituado a falar para as narinas de ninguém e não faço tenções de começar a fazê-
lo neste momento.

stone não se afastou. os dois homens mantinham um verdadeiro frente-a-frente,


olhos nos olhos. um músculo latejava no maxilar de stone. luxford reagiu tornando-
se mais tenso. todavia, a sua voz permaneceu calma.

- ouça-me, sr. stone. eu não tenho charlotte.

- não tente convencer-me de que uma pessoa como o senhor teria escrúpulos
quanto a raptar uma criança de dez anos.

- pois bem, não o farei - disse. - mas direi o seguinte: você não faz a mais pequena
idéia de como «alguém como eu» é na realidade e, infelizmente, não tenho tempo
para elucidá-lo sobre o assunto.

com um gesto brusco, stone apontou a parede que ficava perto da mesa de
reuniões. uma série de primeiras páginas emolduradas alinhavam-se umas ao lado
das outras. representavam algumas das histórias mais chocantes publicadas no the
source, abordando temas que iam de um ménage à trois protagonizado por três
estrelas, de sã reputação, de uma série televisiva do pós-guerra, intitulada para
gáudio do jornal no home but this (não há lar como este ) a um relatório prazeroso
das chamadas feitas pela princesa de gales a partir do seu telefone celular.

- não preciso de mais elucidações. a sua justificação patética para o jornalismo que
pratica é suficiente - disse stone.

- muito bem - luxford consultou o relógio. - isso deverá contribuir para a brevidade da
nossa conversa. o que é que o traz aqui? será que podemos ir direitos ao assunto,
porque tenho trabalho à minha espera e preciso ainda de falar com a sra. st. james.

deborah, que pousara a mala com a máquina fotográfica sobre um sofá bege
encostado à parede, aproveitou a oportunidade que luxford lhe oferecia.

- pois, claro. vou precisar de... - começou a dizer.

- os tipos como você escondem-se. - stone deu um passo em frente na direção de


luxford, exibindo um ar agressivo. - por detrás dos vossos empregos, das vossas
secretárias, dos sotaques típicos de quem frequentou escolas privadas. mas eu vou
desmascará-lo. percebeu?

- já disse a evelyn que estou disposto a esclarecer tudo publicamente. se ela achou
por bem não lhe explicar esse fato claramente, não vejo o que possa fazer para
remediar isso.

- deixe eve fora disto.

luxford ergueu uma das sobrancelhas, num movimento quase imperceptível.

- com licença, sr. stone - disse, e desviou-se do outro fazendo menção de ir até à
sua secretária.

- sr. luxford, se eu puder... - disse deborah, esperançada. stone agarrou luxford pelo
braço.

- onde está charlie? - perguntou.

os olhos de luxford fixaram-se no rosto tenso de stone.

- mantenha-se longe de mim disse, - calmamente. - aconselho-o a não fazer nada de


que possa vir a arrepender-se. não raptei charlotte e não faço idéia de onde ela
possa estar. tal como expliquei a evelyn ontem à tarde, não tenho qualquer interesse
em que o nosso passado mútuo seja exposto pela imprensa. tenho uma mulher e
um filho que desconhecem por completo a existência de charlotte e, acredite-me,
gostaria que tudo continuasse como dantes apesar do que o senhor e a sua mulher
possam pensar. se o senhor e evelyn comunicassem com mais assiduidade, talvez
soubesse...

stone intensificou a pressão sobre o braço de luxford e abanou-o com violência.


deborah viu que o editor reagiu semicerrando os olhos.

- não é eve que está em questão. não a envolva neste assunto.

- ela já está envolvida, não acha? É da filha dela que estamos a falar.

- e da sua. - stone proferiu estas três palavras como uma imprecação. soltou o braço
de luxford. o editor passou por ele e foi até à secretária. - que tipo de homem gera
uma criança para depois passar por cima desse fato, luxford? que tipo de homem se
recusa a assumir a responsabilidade do seu passado pessoal?
luxford carregou num dos botões do monitor de um computador e pegou numa série
de mensagens. folheou-as, pô-las de lado e fez o mesmo com um monte de cartas
ainda por abrir. pegou num envelope de correio almofadado, que estava sob as
cartas, e ergueu os olhos.

- e é o passado aquilo que mais o preocupa, não é? - perguntou. - não é o presente


que nos interessa aqui, pois não?

- ora, seu maldito... exatamente. aí está. diga-me, sr. stone, o que é que o preocupa
realmente, esta tarde? será o desaparecimento de charlie ou o fato de eu ter fodido
a mãe dela?

stone precipitou-se para a frente. deborah imitou-o, surpreendida pela rapidez com
que decidiu passar à ação. stone alcançou a secretária, as suas mãos dispararam
prontas para agarrar luxford. deborah segurou-o pelo braço esquerdo e afastou-o
com um puxão.

stone virou-se para ela, claramente esquecido de quem ela era. tinha o punho
cerrado e o braço levantado. virou-se e deborah tentou afastar-se, mas não foi
suficientemente rápida. ele atingiu-a violentamente num dos lados da cabeça e com
um golpe duro atirou-a ao chão.

sobrepondo-se ao zumbido que sentia nos ouvidos, deborah ouviu algumas


imprecações. em seguida, a voz de luxford soou, tonitruante.

- enviem um segurança cá acima. imediatamente. imediatamente.

viu os pés e as pernas de umas calças de homem. ouviu stone que dizia:

- oh, meu deus. merda. merda.

sentiu uma mão nas costas e outra sobre o braço.

- não. estou bem. estou mesmo. estou perfeitamente... não é nada... - disse.

a porta do gabinete abriu-se, deixando ouvir outra voz masculina.

- den? den? santo deus, passa-se alguma...

- fora daqui!

a porta fechou-se.

deborah sentou-se e viu que era stone quem tentava ajudá-la. o seu rosto tinha
agora a cor do fermento.

- peço-lhe desculpa - disse-lhe. - não tinha intenção... meu deus. o que é que está a
acontecer?
- afaste-se - disse luxford. - raios partam isto tudo. já lhe disse para se afastar -
levantou deborah, levou-a até ao sofá e acocorou-se em frente dela para
inspeccionar-lhe o rosto. respondeu à pergunta de stone. - o que está a acontecer é
agressão.

deborah levantou uma das mãos para anular aquelas palavras.

- não, não. por favor. eu estava... eu interpus-me entre ele e... ele não tinha forma de
saber...

- ele não sabe patavina - luxford interrompeu-a. - deixe-me ver. magoou a cabeça? -
enterrou os dedos nos cabelos dela, movendo-os com uma segurança suave e
rápida ao longo do crânio. - sente alguma dor?

abanou a cabeça negativamente. estava mais abalada do que magoada, embora


calculasse que era provável que mais tarde viesse a sentir-se dorida. sentia-se
também envergonhada. detestava ser o centro das atenções, diluir-se, satisfeita, no
cenário que a rodeava coadunava-se mais com o seu feitio e a sua reação
irreflectida ao movimento súbito de stone atirara-a precisamente para uma posição
onde não queria estar. aproveitou a ocasião para dizer o que tinha para dizer,
julgando que era pouco provável que alexander stone se descontrolasse uma
segunda vez no espaço de cinco minutos.

- na verdade vim até aqui para pedir-lhe uma amostra das suas impressões digitais -
disse ao editor do the source. - É apenas uma formalidade, mas simon quer... ele só
quer examiná-las, percebe?

luxford acenou rapidamente com a cabeça. não parecia de todo ofendido.

- claro. deveria ter-me lembrado de lhe dar uma amostra no outro dia - disse ele. -
tem a certeza de que está bem?

ela assentiu e esboçou o que esperava ser um sorriso convincente. luxford ergueu-
se e viu que stone se havia retirado para junto de uma mesa de reuniões, no canto
oposto do gabinete. puxara uma cadeira e afundara-se nela com a cabeça entre as
mãos.

luxford pegou numa folha de papel e começou a escrever. a porta do gabinete abriu-
se.

- há algum problema, sr. luxford? - perguntou o guarda. luxford levantou os olhos.


examinou stone durante alguns momentos antes de responder.

- mantem-te por perto, jerry. chamo-te, se precisar. - o guarda desapareceu.

- devia tê-lo expulsado do edifício. e fá-lo-ei, acredite-me, se não estiver disposto a


ouvir - luxford disse a stone.

- ouvi-lo-ei - disse stone sem levantar a cabeça.


- ouça-me, então. alguém raptou charlotte. alguém está a ameaçar a vida dela.
alguém pretende a verdade acerca de evelyn, acerca de mim. não sei quem é essa
pessoa e também não sei por que motivo terá esperado até este momento para nos
pressionar. a verdade, porém, é que está a fazê-lo. podemos cooperar, contactar a
polícia, ou oferecer-lhe resistência e desmascarar o esquema. devo dizer-lhe, aliás,
que não acredito que se trate de uma artimanha qualquer. por isso, em minha
opinião, restam-lhe duas alternativas, stone: ou vai para casa e convence a sua
mulher de que esta é uma situação altamente séria ou joga o jogo à maneira dela e
vive com as consequências disso. eu fiz o que pude.

- nas suas mãos - disse stone, em tom apagado, e soltou uma risada sardônica e
abafada.

- o quê?

- caí redondamente nas suas mãos - ergueu a cabeça, - não foi? - a expressão de
luxford era de incredulidade.

- sr. stone, não está com certeza a pensar que... - disse deborah.

- não se incomode - interpôs-se luxford. - ele já encontrou o vilão. ambos


encontraram. poupe o seu esforço.

concentrou-se no envelope almofadado que tinha nas mãos. estava agrafado, pelo
que teve de abri-lo.

- não temos mais nada a dizer um ao outro, sr. stone - disse. - sabe sair sozinho ou
precisa de ajuda? - abriu o envelope sem esperar pela resposta e observou o que
ele continha. deborah viu-o engolir em seco.

pôs-se de pé, ainda bastante cambaleante, e falou.

- sr. luxford? não, não lhe toque - apressou-se a acrescentar quando viu o que
estava misturado com o restante correio.

tratava-se de um pequeno gravador.

roodney aronson mantinha um olho fixo no ecrã do seu computador e o outro na


porta do gabinete de luxford, tarefa nada fácil se pensarmos que o seu próprio
gabinete ficava no lado oposto da sala de redação e que o espaço que o separava
do gabinete de luxford era preenchido por um vasto conjunto de secretárias,
arquivos, terminais de computador e o vaivém constante dos jornalistas do the
source. os outros membros do conselho de redação tinham dispersado dispostos a
concentrarem-se nas suas outras responsabilidades, logo que luxford adiara a
reunião por uma hora. se por acaso as ordens do editor lhes haviam parecido
curiosas não o tinham mencionado. rodney deixara-se ficar, contudo. olhara
fixamente o rosto do homem que chegara com luxford, reparando na expressão de
hostilidade mal disfarçada que o levou a manter-se perto do cubículo,
compulsivamente arrumado, onde estava miss wallace, não fosse dar-se o caso de
surgirem desenvolvimentos interessantes.
algo se passara, de fato. no entanto, quando rodney reagiu aos sons de vozes
alteradas e de corpos agredidos, escancarando a porta do gabinete do editor e
demonstrando assim a sua preocupação profunda e permanente para com a
segurança de luxford, a última coisa que esperava ver era a ruiva estendida no chão.
o sr. hostilidade debruçava-se sobre ela, hesitante, o que indicava que fora ele quem
a pusera naquele estado. que diabo se estaria a passar?

quando luxford, a gratidão personificada, como sempre lhe ordenou sumariamente


que saísse do gabinete, rodney pesou várias hipóteses. a ruiva era uma repórter
fotográfica, quanto a isso não restavam dúvidas. não havia outra explicação para o
saco que trazia com ela. provavelmente estava ali com o objetivo de vender algumas
fotografias para o jornal. o the source costumava comprar fotografias a fotógrafos
que trabalhavam em regime freelance, não sendo por isso inusitado que um
fotógrafo se apresentasse fazendo-se acompanhar de uma série de fotografias
excelentes e potencialmente embaraçosas de uma personalidade pública, desde um
membro da família real em situações pouco dignas a uma figura política entregue a
folguedos pouco dignos. todavia, os freelancers interessados em vender fotografias
não tinham por hábito pô-las à consideração do editor-chefe do jornal, em pessoa.
nem sequer se encontravam com ele, mas sim com o editor de fotografia ou com um
dos seus assistentes.

que significava então tudo aquilo? por que motivo teria luxford conduzido a ruiva até
ao gabinete dele? não, não fora exatamente assim que tudo acontecera, pois não?
luxford empurrara a ruiva até ao gabinete, certificando-se de que ninguém teria
oportunidade de falar com ela. ou com o sr. hostilidade, por falar nisso. e quem
diabo era ele?

dado que o sr. hostilidade neutralizara a ruiva sem margem para dúvidas, rodney era
forçado a concluir que o homem estava decidido a impedir que as fotografias dela
fossem publicadas pelo jornal. isso, por sua vez, sugeria que ele era alguém. mas
quem? não se parecia com ninguém, o que em si mesmo parecia indicar que estava
retratado nas fotografias juntamente com outra pessoa que pretendia proteger vindo
até ali.

uma atitude adorável, aquela. talvez os tempos do cavalheirismo não tivessem


terminado, afinal. um fato que levava, de fato, alguém a tentar imaginar o que teria
levado o sr. hostilidade a agredir uma mulher, quando teria todo o direito de ter
agredido luxford.

rodney controlava todos os movimentos do querido den desde o encontro no


harrods. passara a noite anterior no the source apostado em deixar luxford à beira
de um ataque de nervos passando hora a hora no gabinete dele e inquirindo
ansiosamente sobre o momento em que as impressoras começariam a imprimir a
edição matutina. luxford disse-lhe que fosse para casa por duas vezes, mas rodney
deixara-se ficar, farejando qualquer indício que lhe revelasse as razões que levavam
luxford a atrasar a impressão até um ponto quase insustentável. era seu dever
supervisionar o funcionamento das coisas, não era? se luxford estivesse a ceder à
pressão, como as aparências faziam crer, alguém teria de estar por perto para
recolher os pedaços quando ele se desintegrasse.
rodney decidiu que o atraso estava relacionado com o encontro ocorrido no harrods.
decidiu ainda que entendera mal o significado daquele encontro. embora, de início,
tivesse admitido que luxford tinha um caso com a mulher com quem se avistara viu-
se obrigado a rever na íntegra o seu raciocínio no momento em que o atraso da
impressão surgiu na sequência imediata da entrevista amorosa.

o caso estava ligado a uma história, isso era evidente. isso pondo de lado o
momento de ternura durante um breve contato físico, no restaurante fazia, de fato,
muito mais sentido do que uma aventura amorosa. afinal, luxford tinha acesso
noturno já para não falar no matutino e vespertino aos encantos esculturais da
fabulosa fiona.

a mulher que vira no harrods era razoavelmente atraente, mas não era nada que se
comparasse à esposa prodigiosa.

além disso, fazia parte do governo, o que fazia aumentar as probabilidades de ter
uma história para contar. e se assim fosse, era certamente uma história e tanto,
envolvendo o topo da hierarquia: o ministro das finanças, o secretário do interior,
talvez o próprio primeiro-ministro. as histórias mais fantásticas implicavam
habitualmente aventuras amorosas entre personalidades socialmente bem
colocadas e outras mais desfavorecidas, em particular quando se verificava que
segredos relativos à segurança nacional tinham estado envolvidos antes e depois
dos encontros sexuais. além do mais, fazia todo o sentido que um membro do
governo do sexo feminino, sentindo a sua natureza feminista fervilhar perante a
afronta que constituía a utilização indiferente das suas irmãs, tivesse decidido
denunciar a situação. se a sua intenção era desmascarar uma personalidade de
vulto, se pretendia garantir a sua segurança e anonimato e, mais importante do que
isso, se lograsse estabelecer uma ligação com o editor de um jornal, por que razão
não teria ela apresentado o caso diretamente a ele?

claro, claro. não era verdade que quando regressara do harrods, no dia anterior,
rodney dera com luxford teclando furiosamente ao computador? e por que outro
motivo teria ele atrasado a impressão se não aguardasse a confirmação de uma
história? luxford não era tolo. não arriscaria a publicação de um relato das aventuras
de quem quer que fosse no lado mau da vida sem obter pelo menos duas
confirmações imparciais. uma vez que a fonte era uma mulher havia possibilidades
de que fosse uma mulher despeitada. luxford era ainda um jornalista demasiado
astucioso para se deixar afogar pela sede de vingança de outra pessoa. assim
sendo esperara, atrasara a impressão do jornal e, vendo que ela não lograra
apresentar alguém que sancionasse as suas acusações, abortara a história.

tudo isto, porém, não solucionava o enigma da identidade dela.

desde que voltara do harrods, rodney empregara o tempo livre de que dispunha para
examinar religiosamente números passados do the source, procurando pistas que
conduzissem à identidade da mulher. se ela fazia parte do governo eles teriam
certamente publicado uma história sobre ela, em dado momento. renunciara a este
projeto às onze e meia da noite anterior, mas retomara-o nessa manhã sempre que
os seus afazeres lho permitiam. pouco antes do meio-dia, enquanto mitch corsico
apresentava o seu relatório sobre os últimos desenvolvimentos no caso da rumba do
rapaz de aluguel (larnsey avistara-se finalmente com o primeiro-ministro; não
prestaria declarações ao abandonar o n.o 10; daffy dukane contratara um agente
que estava disposto a negociar os termos de uma entrevista exclusiva, que seria no
entanto onerosa), rodney reparara numa observação de corsico sobre «fazer
trabalho de sapa na biblioteca» e, mentalmente, bateu com a mão na testa. porque
diabo andaria ele a vasculhar números passados do jornal, em busca de uma pista
quando tudo o que tinha a fazer para desvendar a identidade da mulher que vira no
harrods era descer três andares até à biblioteca do tablóide, folhear o the times
guide to the house of commons e comprovar se a fonte de luxford era, de fato, uma
deputada e não uma funcionária pública com acesso a uma viatura do governo?

ali estava ela, de fato, sorridente, na página trezentos e cinquenta e sete, com os
seus óculos demasiado grandes e a franja excessivamente comprida. eve bowen,
deputada pelo círculo de marylebone e subsecretária de estado para o ministério do
interior. rodney assobiou em sinal apreciativo ao ler a informação. ela era de fato
razoavelmente atraente, mas, à parte a existência da fabulosa fiona, era agora cada
vez mais evidente que luxford não se encontrara com ela por causa dos seus
atrativos físicos.

sendo um dos ministros mais jovens, bowen deveria ocupar o terceiro ou o quinto
lugar em termos de importância no ministério do interior. isso possibilitava-lhe o
convívio regular com meios influentes da maior importância. aquilo que ela tinha
para oferecer a luxford era ouro puro, concluiu rodney. como iria ele fazer para
descobrir o que isso era, para poder passar essa informação ao presidente, numa
conversa privada que acentuaria a máscara de rodney enquanto implacável caçador
de notícias, editor astucioso e confidente adorado dos poderosos? a não ser que
conseguisse ler na mente de luxford a palavra-chave que lhe daria acesso ao
terminal de computador de luxford onde, com alguma sorte, conseguiria encontrar a
história que o editor escrevera na véspera, rodney não sabia o que fazer. todavia,
fizera progressos ao descobrir a identidade de eve bowen, e isso era motivo de
regozijo.

a revelação da identidade dela constituía um primeiro passo indesmentível. a partir


dela, rodney sabia que poderia recorrer aos serviços de alguns dos correspondentes
na câmara dos comuns que lhe deviam favores. podia telefonar a um deles, ou a
vários, e tentar descobrir alguma coisa. tinha de agir com cautela, porém. a última
coisa que pretendia era atrair as atenções de outro jornal e pô-lo no rasto de uma
história que o the source estivesse prestes a revelar em primeira mão. todavia, se
agisse com subtileza... encontrando uma forma de combinar a sua curiosidade
pessoal com os fatos do momento... talvez, confessando a intenção, por parte do
jornal, de estudar o papel das mulheres no parlamento... indo ao ponto de afirmar
que procurava conhecer a reação feminina às recentes histórias de alcova
envolvendo os deputados do sexo masculino... certamente que desenterraria um
pormenor que poderia não ter qualquer significado para um jornalista parlamentar,
mas que, em contrapartida, seria um dado precioso para rodney, que sabendo do
encontro privado entre bowen e luxford saberia interpretar uma irregularidade no
comportamento dela que passaria despercebida aos olhos de outros.

exatamente. essa era a resposta. foi buscar o filofax. sarah happleshort apareceu à
entrada do gabinete dele, desembrulhando um pauzinho de chocolate wrigley,
recheado de hortelã.

- estás de serviço - disse ela. - nasceu uma estrela.

virou para ela um rosto inexpressivo, o espírito ocupado em decidir qual dos
correspondentes parlamentares se mostraria mais receptivo ao seu telefonema.

o sonho do substituto tornou-se realidade. o ombro de sarah apontava na direção do


gabinete de luxford. - dennis teve uma emergência e saiu por hoje. És tu quem
assume o comando. queres reunir a equipe aqui? ou usamos o gabinete dele?

rodney pestanejou. compreendeu o sentido das palavras de sarah. o manto do poder


descia sobre os seus ombros e ele reservou alguns instantes para saborear o calor
que ele proporcionava. depois esforçou-se por aparentar a dose adequada de
preocupação e falou.

- uma emergência? nada que ver com a família? com a mulher? o filho?

- não sei dizer-te. saiu com o homem e a mulher que o acompanhavam quando
chegou. sabes quem eles são? não? humm... - olhou por cima do ombro para a sala
de redação e, em seguida, prosseguiu medindo as palavras. - tenho a sensação de
que se passa alguma coisa. o que é que achas?

a última coisa que rodney queria era que happleshort metesse o seu nariz curioso
em toda esta história.

- acho que temos um jornal para mandar para a rua. reunimo-nos no gabinete de
den. chama os outros e dá-me dez minutos.

quando ela saiu para executar as ordens dele como lhe agradava pôr as coisas
nestes termos pomposos, rodney voltou a concentrar-se no seu filofax, folheando-o
rapidamente. dez minutos, pensou, eram mais do que suficientes para fazer o
telefonema que asseguraria o seu futuro.

st. james descobriu que aquilo que helen e deborah haviam descrito como casas
abandonadas se assemelhavam antes a abrigos em construção. estavam sentados
junto de uma correnteza de casas abandonadas em george street, muito perto de
um restaurante japonês de aspecto pretensioso e com parque de estacionamento
nas traseiras, um luxo raro. st. james e helen estacionaram aí o mg.

a george street era uma rua típica da londres moderna. nela havia de tudo, desde a
presença digna do united bank of kuwait a casas desocupadas que esperavam que
alguém investisse no seu futuro. as moradias para onde ele e helen se dirigiram
tinham sido, em tempos, estabelecimentos comerciais com três andares de
apartamentos por cima. as montras no andar térreo e as portas envidraçadas tinham
sido substituídas por placas de metal sobre as quais haviam sido pregadas tábuas
de madeira em sentido diagonal. no entanto, as janelas acima do nível da rua não
tinham sido entaipadas, nem tão-pouco estavam partidas, o que tornava os
apartamentos que ficavam por cima das lojas desejáveis como abrigos.
- não há qualquer hipótese de alguém entrar pela frente - disse helen, enquanto st.
james observava os edifícios.

- da forma como foram tapados com tábuas é impossível. em todo o caso, ninguém
correria o risco de entrar pela parte da frente, a rua tem demasiado movimento. as
probabilidades de ser visto e recordado por alguém que mais tarde decida telefonar
às autoridades são demasiado elevadas.

- telefonar...? - helen desviou os olhos das casas e fitou st. james. o ritmo da sua voz
tornou-se mais rápido, com o entusiasmo. - simon, achas que charlotte pode estar
aqui? num destes edifícios?

ele olhava as construções com uma expressão carregada e não teve qualquer
reação ao que ela dissera exceto quando ela o chamou pelo nome e repetiu as
perguntas. nessa altura limitou-se a dizer:

- temos de falar com ele, helen. se é que ele existe.

- com o vagabundo? duas pessoas que encontramos em cross keys close admitiram
que o tinham visto. como é que é possível que ele não exista?

- admito que tenham visto alguém - disse st. james. mas não notaste nada de
estranho na descrição feita pelo sr. pewman?

- apenas o fato de ele ter apresentado uma descrição extremamente fiel.

- isso também. mas não te parece que a descrição é invulgarmente genérica,


correspondendo exatamente à aparência que se espera de alguém que frequenta
albergues noturnos? a mochila de campanha, as roupas de caqui usadas, o barrete
de malha, o cabelo, as feições descoradas. sobretudo o rosto, um rosto
inesquecível.

o rosto da própria helen iluminou-se.

- estás a querer dizer que o homem usava um disfarce?

- haverá estratagema mais seguro para poder fazer o reconhecimento da área do


que esse?

- mas é claro. claro. dessa forma poderia remexer os caixotes de lixo e,


simultaneamente, controlar os movimentos de charlotte. no entanto, nunca poderia
raptar charlotte vestido dessa maneira, pois não? isso tê-la-ia assustado e ela teria
provocado uma cena que teria ficado na memória de alguém. então, depois de
conhecer exatamente os percursos dela livrar-se-ia do disfarce e raptá-la-ia, não
achas?

- contudo, precisaria de um sítio para mudar de roupa sem ser visto. um sítio onde
pudesse transformar-se num vagabundo e depois reassumir a sua verdadeira
identidade quando chegasse o momento de raptar charlotte.
- as casas abandonadas.

- É uma hipótese. vamos espreitar?

ainda que os utilizadores deste tipo de abrigos estivessem protegidos pela lei havia
procedimentos a cumprir, a fim de evitar uma acusação de arrombamento e invasão
de propriedade privada. todos os que pretendessem instalar-se num abrigo deveriam
mudar as fechaduras das portas e colocar um aviso, comunicando a sua intenção de
ocupar uma residência abandonada. além disso, deveria fazê-lo antes da
intervenção policial. todavia, alguém que pretendesse passar despercebido,
sobretudo alguém que não desejasse tornar-se objeto de interesse para a polícia
local não seguiria certamente os canais habituais para reivindicar o direito que lhe
assistia de se instalar num edifício ou apartamento. de preferência tomaria posse da
propriedade da forma mais sub-reptícia possível, ganhando acesso a um edifício por
processos menos convencionais.

- vamos tentar as traseiras - disse st. james.

a correnteza de casas era interrompida em cada uma das suas extremidades por
uma viela estreita. st. james e helen escolheram a mais próxima e percorreram-na
até encontrarem uma praceta. num dos lados da praceta havia um parque de
estacionamento de vários pisos, enquanto os dois outros lados eram ocupados pelas
traseiras de edifícios situados noutras ruas e o último pelos jardins das casas de
george street. eram jardins murados, rodeados por paredes de tijolos cheias de
fuligem com pelo menos três metros e meio de altura e cobertas, no topo, por uma
vegetação irregular capaz de desenvolver-se sem os cuidados de um jardineiro. a
não ser que viesse equipado com equipamento de montanhismo que lhe permitisse
escalar a parede, qualquer candidato a habitante apenas poderia penetrar nas
residências pelo extremo mais próximo da viela.

nesta zona, dois portões de madeira destrancados davam acesso a um pequeno


pátio rodeado de paredes de tijolo. a parede de um dos lados abrangia o muro
indistinto de um dos jardins traseiros. no pátio amontoavam-se detritos deixados
pelos antigos habitantes do prédio: colchões, caixotes de lixo, uma mangueira, um
velho carrinho de bebé, uma escada de mão partida.

a escada tinha um aspecto promissor. st. james arrastou-a e tirou-a de debaixo de


um dos colchões, mas a madeira estava podre e os degraus onde ainda os havia
não pareciam estar em condições de suportar o peso de uma criança, muito menos
o de um homem adulto. st. james desistiu dela e concentrou-se num enorme
contentor abandonado e vazio, que se encontrava atrás de um dos portões de
madeira do pátio.

- tem rodas - informou helen. - tentamos?

- acho que sim - disse st. james.

o contentor estava ferrugento e as rodas pareciam não querer girar. todavia, quando
st. james e helen se colocaram um de cada lado do contentor e começaram a movê-
lo na direção da parede do jardim descobriram que ele rolava com muita facilidade,
como se tivesse sido expressamente oleado.

quando conseguiram pô-lo na posição correta, st. james concluiu que o contentor
poderia muito bem funcionar como uma base de apoio para trepar a parede.
verificou a solidez dos lados, em metal, e da tampa. pareciam seguros. em seguida
reparou que helen o observava, inquieta, com um franzir de testa que lhe desenhava
uma linha de preocupação entre as sobrancelhas. sabia o que lhe ia no espírito: esta
não é propriamente uma atividade para um homem no teu estado, simon. não o diria
em voz alta, porém. não queria correr o risco de magoá-lo fazendo-o lembrar-se da
sua deficiência.

- É a única forma de entrar lá dentro - disse, em resposta à preocupação silenciosa


dela. - sou capaz de o fazer, helen.

- mas como é que vais voltar a trepar a parede do outro lado para tornar a sair?

- há-de haver alguma coisa dentro do prédio que eu possa usar. se não houver terás
de ir buscar ajuda. - ela parecia duvidar da eficácia do plano. - É a única maneira -
reafirmou.

ela ponderou a situação, pareceu aceitar a idéia e cedeu, dizendo:

- ao menos deixa-me ajudar-te a passar para o outro lado, está bem? - ele calculou
a altura da parede e a altura do contentor e, com um aceno de cabeça, concordou
com as alterações propostas por ela. subiu, desajeitadamente, para cima do
contentor, ajudado pela força dos seus membros superiores que aumentara ao longo
dos anos, desde que a parte inferior do corpo ficara incapacitada. em pé, sobre a
tampa, virou-se para helen e ajudou-a a subir. na posição em que se encontravam
podiam tocar o topo da parede de tijolo, mas não conseguiam ver o outro lado. helen
tinha razão, admitiu st. james. ele ia precisar da ajuda dela. juntou as mãos para
servirem de apoio a um dos pés dela.

- tu primeiro - disse. - vou precisar da tua ajuda para chegar ao topo. - deu-lhe um
pequeno impulso e ela agarrou-se ao parapeito de cimento que encimava a parede.
soltando um gemido e fazendo um movimento para cima sentou-se no parapeito,
com uma perna para cada um dos lados da parede. depois de ter encontrado uma
posição segura examinou durante alguns instantes as traseiras do edifício e o
jardim.

- É isto mesmo.

- o quê?

- alguém esteve aqui. - a voz dela estava impregnada pela excitação da


perseguição. - alguém levantou um velho guarda-louça e encostou-o ao lado de
dentro da parede, de forma que pudesse entrar e sair sem dificuldade. anda -
estendeu a mão na direção dele. - vem espreitar. há também uma cadeira para
descer do guarda-louça e um carreiro aberto através das ervas. parece-me
razoavelmente recente.
apoiando a mão direita na parede e a esquerda na mão de helen, st. james esticou-
se e subiu para junto dela com esforço. não era tarefa fácil, apesar das suas
palavras tranquilizadoras, alguns momentos antes. uma perna inerte metida num
aparelho ortopédico, por mais leve que este fosse, não facilitava em nada a vida
dele. sentiu a testa húmida de transpiração quando, finalmente, completou os seus
movimentos.

viu aquilo a que ela se referia. o guarda-louça suficientemente degradado para que
se percebesse que estava abandonado no jardim das traseiras havia já alguns anos,
mesmo no tempo em que o edifício ainda era habitado parecia ter sido arrastado de
debaixo de uma das janelas e era responsável, em parte, pela abertura do carreiro
entre as ervas a que helen se referira. e este parecia, de fato, recente. no local onde
atravessava os arbustos, as extremidades partidas dos ramos do matagal não
tinham ainda amarelecido em consequência da exposição aos elementos.

- na mouche - murmurou helen.

- o quê? - ela sorriu.

- nada. se usarmos o guarda-louça poderemos sair daqui facilmente. posso


acompanhar-te, nesse caso?

ele acenou com a cabeça em sinal de assentimento, satisfeito por poder contar com
a companhia dela. helen desceu até alcançar o guarda-louça e daí saltou para a
cadeira que se encontrava junto dele. st. james seguiu-a.

o jardim era pouco maior do que um quadrado de seis metros de lado, um


emaranhado denso de ervas daninhas, hera e giesta. esta florescera,
aparentemente, num ambiente de total negligência. resplandecentes cachos
amarelos brilhavam como sóis ao longo de três lados do jardim, junto da porta das
traseiras do prédio.

esta, conforme ambos descobriram, era uma porta de segurança, uma peça única
em aço, cortada de maneira a encaixar na armação da porta e fechada com um
ferrolho que entrava diretamente na madeira. não havia puxadores nem dobradiças.
a única maneira de passar por ela e entrar no edifício a que ela dava acesso era
desaparafusando a porta por inteiro.

as janelas das traseiras do andar térreo, em contrapartida, não eram tão seguras.
embora entaipadas no interior tinham os vidros partidos no lado de fora e, ao
inspeccioná-las, st. james verificou que uma das tábuas estava solta permitindo por
isso entradas e saídas sem grande dificuldade. helen foi buscar a cadeira enquanto
ele afastava ainda mais a tábua, desimpedindo-lhes o caminho.

- com a porta fechada desta maneira é de perguntar por que motivo é que os donos
não terão feito o mesmo com as janelas - disse ela.

st. james serviu-se da janela para elevar-se à altura do peitoril, dizendo:


- talvez julgassem que a porta seria suficiente para desencorajar qualquer intruso.
acho difícil acreditar que haja alguém que prefira utilizar continuamente esta
abertura como forma de entrar e sair do edifício.

- mas como solução temporária... - disse helen, pensativa. - É perfeita, não é?

- É, de fato - respondeu st. james.

a janela, como de imediato percebeu, dava para o que parecia ser um quarto de
arrumações de um dos estabelecimentos comerciais que estivesse instalado no
andar térreo do edifício. estava equipado com armários, prateleiras e o solo estava
coberto por linóleo poeirento onde mesmo na semiobscuridade era possível ver
algumas pegadas.

st. james transpôs a janela, esperou que helen se juntasse a ele e tirou uma lanterna
do bolso. fê-la incidir sobre o trajeto formado pelas pegadas que seguiam na direção
da parte da frente do edifício.

a atmosfera da despensa estava impregnada com os olores do bolor e da madeira


apodrecida. À medida que avançavam cuidadosamente pelo corredor que conduzia
à entrada do edifício apercebiam-se da presença de outros odores: o cheiro fétido e
nauseabundo a excrementos e urina que exalava de uma retrete onde havia uma
sanita entupida havia muito tempo, o odor penetrante do estuque que se libertava de
buracos abertos a pontapé nas paredes do corredor, o odor pestilento e adocicado
de um cadáver em decomposição. este exalava, ao que parecia, de uma ratazana
parcialmente devorada que jazia na base de um lance de escadas, no local onde a
despensa das traseiras se unia à loja da parte da frente.

conforme repararam, as pegadas não seguiam até à loja, escura como breu, em
virtude das janelas e da porta cobertas por chapas de metal. em vez disso
continuavam escadas acima. antes de subirem, st. james varreu com a lanterna a
divisão que teria funcionado como loja comercial. não havia nada para ver, à parte
um suporte de revistas tombado no chão, uma arca congeladora antiga à qual
faltava a cobertura, um monte de jornais amarelecidos e cerca de meia dúzia de
caixas de cartão destruídas.

st. james e helen voltaram para junto das escadas e seguiram as pegadas. helen
passou por cima da ratazana morta, estremecendo e agarrando-se compulsivamente
ao braço de st. james.

- meu deus, será que aqueles ratos estão mesmo a andar pelas paredes? -
perguntou num sussurro.

- ratazanas, para ser mais exato.

- É difícil imaginar que alguém possa realmente viver neste lugar.

- não é o savoy - admitiu st. james. subiu até ao primeiro andar, onde as janelas
descobertas deixavam entrar a luz de um sol de fim de tarde, que iluminava as
várias divisões.
cada um dos pisos superiores era aparentemente ocupado por um apartamento. as
pegadas que eles seguiam, e que pareciam ir e vir e sobrepor-se constantemente
nas escadas, levaram-nos a passar em frente do apartamento do primeiro andar. um
olhar de relance para o seu interior, através da porta parcialmente desengonçada,
não lhes revelou muito mais do que um quarto com as paredes cobertas de graffiti
onde se podia ler «assassinos de chuis arrumam dois» em enormes letras azuis
rodeadas por hieróglifos apenas inteligíveis por outros artistas do gênero e uma
alcatifa cor de laranja com rasgões enormes. pouco mais havia neste apartamento
que fosse útil, à exceção de uma incrível profusão de pontas de cigarro, maços de
cigarros amarfanhados, garrafas vazias, latas de cerveja, copos e sacos de papel de
restaurantes de comida rápida, sem esquecer um buraco no teto que indicava que a
instalação elétrica fora roubada.

o apartamento do segundo andar apresentava um panorama quase idêntico. a única


diferença consistia na cor da tinta escolhida pelos artistas dos graffiti. neste caso
tratava-se do vermelho, o que parecia ter inspirado os pintores a usar uma
imagística mais sangrenta para acompanhar os hieróglifos. «assassinos de chuis
arrumam dois» emparceirava com desenhos de agentes policiais estripados.
também aqui a alcatifa estava em farrapos e coberta de detritos. um sofá e uma
poltrona colocadas em cada um dos lados da porta da cozinha exibiam buracos
provocados pelo fogo, um deles suficientemente grande para servir como prova de
incêndio genuíno.

as pegadas continuavam na direção do topo do edifício e terminavam no último


apartamento, onde se diluíam no que restava da alcatifa. esta, tal como nos outros
dois apartamentos, era cor de laranja e, embora outrora tivesse sido arrancada junto
à parede, fora recentemente reposta na sua posição original. não estava rasgada,
mas ostentava manchas antigas de tonalidades diversas, sugerindo origens tão
variadas como vinho tinto e urina de cão.

À semelhança do que acontecia com os outros dois apartamentos, a porta estava


escancarada, sem estar fora dos gonzos. além disso, um aloquete fora fixado na
parte exterior, a dobradiça presa ao caixilho da porta e o encaixe da lingueta na
porta propriamente dita. st. james passou os dedos pela dobradiça, pensativo,
enquanto helen passava por ele e entrava na divisão. o aloquete parecia novo:
estava intato e limpo.

foi ter com helen. o aloquete implicava a presença de um cadeado, pelo que olhou
em volta, procurando-o. reparou que, ao contrário dos dois apartamentos que tinham
visto, este não tinha lixo, ainda que as paredes ostentassem inscrições em graffiti
não muito distintas das que existiam nos outros pisos. não havia qualquer fechadura
caída no chão ou colocada em qualquer das prateleiras da estante de metal fixa a
uma das paredes. encaminhou-se então para a cozinha na esperança de aí
encontrar a fechadura que procurava.

passou em revista gavetas e guarda-louças, descobrindo uma chávena de estanho,


um garfo dobrado, pregos soltos e dois frascos sujos. a água pingava da torneira do
lava-louça. rodou-a e comprovou que a água corria límpida e não turva e
acastanhada como se tivesse permanecido estagnada em canalizações ferrugentas
durante um ou dois anos.

regressou à sala de estar no momento em que helen saía do quarto de dormir. o seu
rosto estava animado por uma descoberta.

- simon, reparaste... - disse.

- sim, alguém esteve aqui. e não com o objetivo de perambular por aqui, mas para
ficar.

- então tinhas razão. acerca do vagabundo.

- pode ser mera coincidência.

- não me parece - indicou com um gesto a divisão atrás de si, de onde acabava de
sair, dizendo: - o espelho da casa de banho foi limpo. não totalmente, mas num dos
lados. tem o tamanho suficiente para devolver o reflexo de uma pessoa - parecia
aguardar uma reação da parte dele, pois ao ver que st. james não o fazia, reagiu
com impaciência. - ele iria necessitar de um espelho, não achas? se tivesse de se
disfarçar para parecer um vagabundo?

era uma hipótese. no entanto, st. james sentia alguma relutância em concluir,
mediante provas tão escassas, que tinham descoberto o esconderijo do vagabundo
logo à primeira tentativa. caminhou até à janela da sala de estar. estava imunda, de
uma maneira geral, à exceção de um canto de uma das quatro vidraças, que fora
limpo.

st. james espreitou através do vidro. refletiu sobre o contraste entre este
apartamento e os outros, meditou sobre as pegadas, considerou o aloquete e o fato
de a sua existência implicar a utilização recente de uma fechadura na porta do
apartamento. era evidente que ninguém pernoitava aqui com regularidade a
ausência de mobiliário, de utensílios de cozinha, de roupa e de comida era
testemunho disso. todavia, o fato de alguém ter usado aquele espaço como albergue
temporário e recente... a alcatifa reposta, a água na canalização, a total ausência de
lixo, tudo isso apontava para essa conclusão.

- admito que alguém esteve aqui - disse para helen, sem deixar de olhar pela
clareira de limpeza no meio da vidraça suja. viu que a janela dava para george
street. reparou também que num dos ângulos, coincidia com a entrada para o
parque de estacionamento do restaurante japonês onde deixara o mg. mudou de
posição, a fim de olhar naquela direção. - mas daí até saber se é mesmo o nosso
vagabundo, helen, não poderia... - calou-se. semicerrou os olhos para olhar para
algo que ficava para além do parque de estacionamento, numa rua a norte. não era
possível, pensou. era quase impossível. e, no entanto, lá estava ela.

- o que é? - perguntou helen.

agarrou-a às cegas e puxou-a para a janela. colocou-a à sua frente, virando a


cabeça dela na direção do restaurante japonês e pousou as mãos nos ombros dela.
- estás a ver o restaurante? o parque de estacionamento atrás dele?

- sim, vejo. porquê?

- olha para lá do parque de estacionamento. consegues ver a outra rua?

- claro que consigo. a minha visão é tão boa como a tua.

- e do outro lado dessa rua, o edifício? estás a vê-lo?

- qual... oh, o edifício de tijolo? o que tem os degraus? consigo ver as portas de
entrada e algumas das janelas - virou-se para ele. - porquê? o que é que tem?

- blandford street, helen. e esta através desta janela, da única janela limpa em todo o
apartamento, nota bem é uma perspectiva muito nítida da escola st. bernadette.

os olhos dela dilataram-se. tornou a virar-se para a janela.

- simon! - exclamou.

depois de ter deixado helen em onslow square, st. james estacionou o mg num lugar
vago em lordship place e empurrou com o ombro o portão gasto que dava acesso ao
jardim das traseiras da sua casa, em cheyne row. encontrou cotter na cozinha,
atarefado, pelando batatas novas no lava-louça com peach sentado aos seus pés,
esperançoso como sempre que lhe caísse qualquer coisa. o cão olhou na direção de
st. james e abanou a cauda para saudá-lo, embora fosse evidente que acreditava
que a posição que ocupava nesse momento, aos pés de cotter, era a que lhe
garantia maiores probabilidades de obter sucesso no plano comestível. o gato da
casa um animal grande de cor cinzenta chamado alasca e que tinha
aproximadamente o dobro do tamanho do minúsculo dachshund refestelava-se,
indolente, no peitoril da janela sobre o lava-louça e acolheu a chegada de st. james
com o ennui característico de todos os felinos: a ponta da sua cauda ergueu-se e
tornou a cair, após o que ele voltou ao estado de semiconsciência que era a sua
principal característica.

- já não era sem tempo, se quer que lhe diga - disse cotter dirigindo-se a st. james,
enquanto limpava uma das batatas.

st. james consultou o relógio ferrugento que estava sobre o fogão. ainda não eram
horas de jantar.

- há algum problema? - perguntou.

cotter pigarreou e apontou na direção das escadas com o descascador de batatas.

- deb trouxe dois tipos para casa com ela. já tão aqui há mais de uma hora, vai para
duas. fizeram chá, beberam xerez, depois mais chá, outra vez xerez. um deles
queria ir embora, mas deb não deixou. têm estado à sua espera.

- quem são eles? - st. james juntou-se a ele, junto do lava-louça, de onde tirou uma
mão-cheia de cenouras cortadas e mordiscou uma delas.

- isso é para o jantar - advertiu-o cotter. deixou cair outra batata na água e foi buscar
mais uma. - um deles é aquele tipo que esteve cá há dias. aquele que veio com
david.

- dennis luxford.

- o outro, não sei quem é. um tipo que mais parece um pau de dinamite prestes a
explodir. já se pegaram, os dois, desde que chegaram. está a ver o quadro. falam
entre dentes como se quisessem portar-se civilizadamente, mas só porque deb não
se atreve a sair da sala e a deixá-los sozinhos e livres para fazerem o que mais lhes
apetece.

st. james enfiou o resto das cenouras na boca e subiu as escadas, tentando
imaginar os riscos que obrigara a mulher a correr quando lhe pedira que fosse
recolher uma amostra das impressões digitais de luxford. parecia uma tarefa
bastante simples. que teria então sucedido?

não demorou muito tempo a perceber quando se juntou a eles no escritório,


juntamente com os restos do lanche e do xerez. luxford falava ao telefone com
alguém, sentado à secretária de st. james, deborah massajava nervosamente os nós
dos dedos da mão direita com os dedos da esquerda e o terceiro homem que, afinal,
era alexander stone observava luxford, a partir do lugar que ocupava junto às
estantes, com uma aversão indisfarçada estampada no rosto que levou st. james a
perguntar a si mesmo como teria deborah conseguido mantê-lo sob controle. ela
levantou-se de um salto.

- simon. graças a deus, meu amor - exclamou com um ardor que lhe comunicou o
quanto estava assustada.

luxford dizia lapidarmente:

- não, não estou a aprovar nada. atrasa tudo até teres notícias minhas... não se trata
de uma decisão sujeita a discussão, rod. está claro, ou preciso de soletrar as
conseqüências que advirão se insistires em levar a tua avante?

alexander stone pronunciou-se, dirigindo-se aparentemente a deborah.

- finalmente. agora dê-lhe essa coisa a ouvir para que possamos desmascarar o
jogo de luxford.

deborah pôs rapidamente st. james ao corrente da situação. quando luxford concluía
a conversa, desligando abrupta e ruidosamente o telefone na cara de quem quer
que estivesse no outro extremo do fio, deborah dirigiu-se à secretária para ir buscar
um envelope postal almofadado.

- o sr. luxford recebeu isto esta manhã - informou o marido.

- seja fiel aos fatos, se não se importa - disse stone. - isso estava na secretária de
luxford esta tarde. poderia ter sido colocado lá em qualquer altura. por qualquer
pessoa.

- não vamos voltar a isso tudo novamente - disse luxford. - a minha secretária deu-
lhe a informação, sr. stone. foi entregue por um paquete à uma hora.

- um paquete que você mesmo poderia ter contratado.

- por amor de deus - a voz de luxford soava infinitamente cansada.

- nós não lhe tocamos, na verdade - deborah entregou o envelope ao marido e viu-o
espreitar para o interior, onde estava o gravador.

- mas ouvimos a gravação quando descobrimos o que era. usei um lápis por afiar
para premir o botão. a parte de madeira, não a borracha - estas últimas palavras
foram acompanhadas de um rubor e, baixando a voz, continuou: - qual era a
maneira correta? não estava totalmente certa, mas pensei que ao menos podíamos
tentar saber se a gravação tinha alguma relação com o caso.

- fizeste bem - disse st. james, tirando dos bolsos as luvas de látex. calçou-as, tirou
o gravador de dentro do envelope e pô-lo a funcionar.

ouviu-se a voz aguda de uma criança. «cito...»

- santo deus - stone virou-se para as prateleiras e escolheu um volume ao acaso.

«este homem diz que tu podes tirar-me daqui. ele diz que deves contar uma história
a toda a gente. diz que tens de contar a história. diz que és um homem muito bom, e
que ninguém sabe, e deves contar a verdade para que toda a gente fique a saber.
se contares a história como deve ser ele diz que me salvas, cito.»

junto das prateleiras, stone levou um punho cerrado aos olhos. baixou a cabeça.

na gravação ouviu-se um estalido quase imperceptível e a voz continuou. «cito, tive


de fazer esta gravação para que ele me desse um pouco de sumo, porque estou
cheia de sede.» outro estalido. «sabes qual é a história que tens de contar? eu
disse-lhe que tu não contas histórias. disse-lhe que quem conta histórias é a sra.
maguire. mas ele diz que tu sabes que história deves contar.» de novo, um estalido.
«só tenho um cobertor e não tenho casa de banho. mas há tijolos.» estalido. «um
mastro.» estalido. a gravação terminava abruptamente.

- esta é a voz de charlotte? - perguntou st. james.

- luxford, meu estupor, vou dar cabo de si antes de tudo isto terminar - retorquiu
stone, que falava virado para as prateleiras.

st. james ergueu a mão para impedir qualquer reação da parte de luxford. ouviu a
gravação segunda vez.

- percebe-se que se trata de uma montagem, ainda que desajeitada.


- e daí? - perguntou stone. - todos nós sabemos quem é o responsável por isto.

st. james prosseguiu.

- temos duas hipóteses a considerar: ou o raptor não tem acesso ao equipemento


adequado, ou não se importa que saibamos que o material foi montado.

- os tijolos e o mastro? - perguntou deborah.

- ambos foram deixados para nos confundir, diria eu. charlotte pensa que está a
fornecer ao padrasto uma pista sobre o seu paradeiro, mas o raptor sabe que essa
pista não ajudará em nada. porque ela não está onde julga estar. - dirigindo-se a
stone, disse: - damien chambers disse-me que ela costuma tratá-lo por cito.

stone confirmou com um aceno de cabeça, permanecendo virado para as


prateleiras.

- dado que ela se refere a si na gravação, é óbvio que o raptor ainda não lhe disse
quem é o seu verdadeiro pai. podemos por isso deduzir que lhe forneceu o conteúdo
básico da mensagem que ela devia transmitir: o pai deve trazer a público a verdade
em troca da libertação dela. ela julga que é o senhor quem deve dizer a verdade e
não o st. luxford.

stone voltou a arrumar o livro na prateleira de onde o tirara momentos antes.

- não me diga que vai engolir esta merda? - perguntou a st. james, incrédulo.

- o que pretendo fazer é assumir, de momento, que a gravação é autêntica - explicou


st. james. - concorda que se trata da voz de charlotte?

- claro que é a voz dela. ele tem-na escondida algures. obrigou-a a fazer a gravação.
e agora temos de ceder e dançar ao som da música que ele toca. meu deus. olhe só
para o envelope, se não acredita em mim. para o nome dele, o nome do jornal. a
rua. nada mais. sem selos. sem carimbos de correio. nada.

- não haveria necessariamente nada disso, se foi entregue por um paquete.

- ou se tivesse sido ele mesmo a «entregá-la». ou se tivesse recorrido a quem quer


que esteja metido nisto com ele. - stone afastou-se das prateleiras e aproximou-se
do sofá, ficando de pé atrás dele e cravando as mãos nas costas do mesmo. - olhe
para ele disse, olhe só para ele. o senhor sabe quem ele é, sabe o que ele é. e sabe
o que ele quer.

- eu quero que charlotte esteja em segurança - disse luxford.

- você quer a sua maldita história. a sua história. a de eve.

st. james interveio, dizendo:


- lá para cima, por favor. vamos até ao laboratório. - depois, dirigiu-se calmamente à
mulher. - foste uma heroína, meu amor. obrigado.

ela retribuiu com um sorriso trêmulo e saiu, obviamente grata por poder escapar a
toda aquela confusão.

st. james pegou no gravador, no envelope e na amostra da caligrafia de luxford e


levou-os para o último andar da casa. os dois homens seguiram-no. a tensão entre
ambos era palpável. consciente dela, e sentindo-a como se fosse um banco de
nevoeiro vibrante, st. james ficou admirado com a forma como deborah conseguira
segurá-los com sucesso durante tanto tempo, tendo em conta o desejo evidente que
se apoderara dos dois homens de se desfazerem mutuamente.

- o que é que vamos fazer? - quis saber stone.

- eliminar algumas das minhas preocupações - respondeu st. james. chegados ao


laboratório, acendeu com um gesto rápido as luzes do teto e dirigiu-se até um dos
armários de aço cinzento, de onde tirou uma almofada de tinta e alguns cartões
brancos espessos. colocou-os sobre as mesas de trabalho, juntando-lhes um frasco
com pó, um grande pincel farfalhudo e a pequena lanterna que transportara no bolso
durante todo o dia.

- o senhor primeiro, por favor - disse, referindo-se a dennis luxford, que se apoiara
na ombreira da porta enquanto alexander stone andava por entre as mesas de
trabalho, observando, carrancudo, o aglomerado constituído pelo equipemento de st.
james. - depois será a vez do sr. stone.

- o quê? - perguntou stone.

- impressões digitais. uma mera formalidade, mas que gostaria de ver concluída. sr.
luxford...?

dennis luxford lançou a stone um olhar longo e fulminante antes de se aproximar da


mesa de trabalho, onde deixou que st. james lhe tirasse as impressões digitais. era
um olhar onde se podia ler a sua total e permanente disponibilidade para cooperar,
aliada ao fato de não ter nada a esconder.

- sr. stone...? - disse st. james.

- porque raio...

- tal como ele acabou de dizer - comentou luxford enquanto esfregava os dedos
sujos de tinta, - estamos a eliminar algumas das suas preocupações.

- merda - desabafou stone, em voz baixa e num tom sibilino, mas avançou e deixou
que st. james lhe tirasse as impressões digitais.

depois de dar por concluída esta tarefa, st. james concentrou-se no gravador.
começou por examiná-lo à luz da lanterna, procurando impressões óbvias que se
tornassem visíveis se o gravador fosse colocado na posição correta. fez saltar a
cassete de dentro do gravador e repetiu o procedimento anterior. a luz nada
revelava.

perante o olhar atento dos dois homens, que o observavam em lados opostos da
mesa de trabalho, enterrou o pincel no pó escolhera o vermelho, pois era a cor que
proporcionava um contraste mais marcado com o gravador, que era preto e passou-
o suavemente sobre o aparelho, um lado de cada vez.

- alguém o limpou - comentou ao ver que nenhuma impressão digital se destacava


sob o pó.

fez o mesmo com a cassete minúscula e, de novo, nada.

- então, que raio de preocupações estamos a eliminar aqui? - perguntou stone. - ele
não é estúpido. não vai deixar ficar as impressões digitais em lado nenhum.

st. james concordou com um ruído de garganta.

- nesse caso, a primeira preocupação foi eliminada, não é verdade? ele não é
estúpido - moveu o gravador de maneira que a parte de trás ficasse exposta. abriu a
tampa do compartimento onde se encontravam as pilhas, retirou-a e colocou-a sobre
a mesa. com cuidado, servindo-se de um bisturi que tirara de uma gaveta, sacou
também as pilhas, que colocou sobre uma folha de papel branco. pegou na lanterna
e fê-la incidir, quer sobre a parte de trás da tampa do compartimento das pilhas, quer
sobre as duas pilhas propriamente ditas. o que viu fê-lo sorrir. - pelo menos, não
totalmente - disse. mas não há ninguém que pense em tudo, não é?

- impressões digitais? - perguntou luxford.

- uma, muito boa, na parte de trás da tampa. e parte de outras, nas pilhas - tornou a
usar o pó. os dois homens permaneciam em silêncio enquanto ele aplicava o pó,
pincelando cuidadosamente na direção em que apareciam as impressões, retirando
o excesso de pó, com um pequeno sopro. sem desviar os olhos das impressões
digitais, admirando-as, estudando-as, agarrou na fita adesiva. sabia que seria fácil
trabalhar a parte de trás da tampa. as pilhas, em contrapartida, criariam mais
dificuldades.

fixou cuidadosamente a fita sobre as impressões digitais, certificando-se de que não


havia qualquer bolsa de ar. em seguida exerceu uma pressão acrescida sobre elas,
colocando o polegar sobre a tampa do compartimento das pilhas e a borracha da
ponta de um lápis sobre as pilhas. retirou a fita com um único movimento e colou as
impressões nos cartões que tirara do armário. etiquetou-as logo de seguida.

indicou a impressão digital que estava na parte de trás da tampa do compartimento


das pilhas, fazendo notar as estrias e o fato de penderem para cima e para dentro.

- polegar, mão direita - disse. - as outras, as das pilhas, são mais difíceis de decifrar,
porque não estão completas. diria que se trata do indicador e do polegar.

st. james começou por compará-las com as de stone. usou uma lupa, mais para
impressionar do que outra coisa qualquer, já que podia ver que aquelas não eram as
impressões digitais dele. os resultados foram idênticos no que se refere a luxford. as
circunvoluções das três impressões digitais de stone, de luxford e a que descobrira
no gravador eram completamente diferentes: uma simples, outra acidental e a
terceira com duas curvas.

stone pareceu ler as conclusões de st. james no rosto dele.

- isto não pode ser uma surpresa para si. ele não está nisto sozinho. não pode estar
disse.

st. james não respondeu logo. em vez disso, pegou na amostra da letra de luxford e
comparou-a com os bilhetes que tanto ele como eve bowen tinham recebido.
estudou demoradamente as letras, os espaços entre as palavras, outras
minudências. uma vez mais, não encontrou qualquer ponto de comparação.

levantou a cabeça e falou.

- sr. stone, quero trazê-lo à razão, porque o senhor é a única pessoa que poderá
convencer a sua mulher. se a gravação não foi suficiente para o convencer da
urgência de...

- santo deus... - a voz de stone deixava transparecer mais espanto do que afronta. -
ele tem-no na mão, a si também. mas isso não é de admirar. foi ele que o contratou,
aliás. que outra coisa haveria a esperar a não ser que o senhor corroborasse a
versão dele de que não está envolvido nesta história?

- por amor de deus, stone, raciocine - disse luxford.

- estou a raciocinar lindamente - retorquiu stone. você está empenhado em destruir a


minha mulher e descobriu a forma de o fazer, e as pessoas para o ajudarem a fazê-
lo. isto - indicou a sala com um movimento súbito e brusco do polegar - faz tudo
parte da encenação.

- se acredita nisso, vá à polícia - disse st. james.

- claro - stone esboçou um sorriso de onde estava ausente o humor. - o senhor


colocou-nos numa posição em que nos vemos forçados a recorrer a isso. todos nós
sabemos onde nos levará a decisão de envolver a polícia: diretamente aos jornais.
exatamente onde luxford nos quer. tudo isto, os bilhetes, a gravação, as impressões
digitais, nada mais é do que uma parte do trilho que devemos seguir e que deverá
levar-nos a jogar o jogo de luxford. eve e eu não o faremos.

- quando é a vida de charlotte que está em jogo? - disse luxford. - valha-nos deus,
homem, a esta altura já deve ter percebido que não pode correr o risco de que ela
seja morta por um maníaco qualquer.

stone rodou na direção dele e luxford mudou rapidamente de posição, preparando-


se para enfrentá-lo.
- sr. stone, ouça o que lhe digo - pediu st. james. - se o sr. luxford quisesse ludibriar-
nos, não teria agido de forma que alguém deixasse ficar uma única impressão digital
no interior do gravador. ter-se-ia, sim, assegurado de que houvesse impressões
espalhadas por todo o lado. a impressão que encontramos no gravador, tal como as
que estão nas pilhas, diz-nos que o raptor cometeu um único erro. não comprou
pilhas novas quando quis que charlotte gravasse a mensagem, limitou-se a testar as
que já lá estavam dentro e esqueceu-se de que quando as colocou no
compartimento, quando isso aconteceu é irrelevante, deixou obviamente as suas
impressões digitais inscritas, quer nas pilhas quer na parte de dentro da tampa do
compartimento. foi isso que aconteceu. para o resto usou luvas e limpou a cassete e
o gravador. e eu quase apostaria que se testarmos os bilhetes escritos pelo raptor
em busca de impressões digitais, o que pode ser feito, embora vá demorar mais
tempo, apenas encontraremos as do sr. luxford e as minhas no dele e as da sua
mulher no dela. e isso não nos levará a lado nenhum, só fará retardar o processo, o
que, quer queira quer não, só servirá para expor a vida da sua enteada a um risco
ainda maior. não estou a sugerir que pressione a sua mulher a autorizar o sr. luxford
a publicar a sua história no jornal. estou a sugerir, sim, que procure persuadir a sua
mulher a contactar as autoridades.

- É tudo a mesma coisa - disse stone.

luxford pareceu sucumbir à pressão e golpeou a mesa de trabalho com o punho.

- tive dez anos para destruir a sua mulher - disse. - dez malditos anos durante os
quais poderia perfeitamente tê-la desmascarado na primeira página de dois jornais
diferentes, humilhando-a sem qualquer remorso. no entanto, não o fiz. alguma vez
perguntou a si próprio porquê?

- não era o momento certo.

- ouça-me! você disse que sabe que espécie de pessoa eu sou. muito bem. você
sabe aquilo que sou, sou um homem desprovido de quaisquer escrúpulos. não
preciso de encontrar o maldito momento certo. se essa tivesse sido a minha vontade
teria publicado a história da minha relação com evelyn, tê-lo-ia feito sem pestanejar.
não sinto qualquer respeito por ela, abomino as suas opções políticas. sei muito bem
o que ela é e, acredite-me, adoraria desmascará-la perante a opinião pública. mas
não o fiz. quis fazê-lo inúmeras vezes, mas não o fiz. pense, homem. pergunte a si
próprio porquê.

- por que razão haveria de manchar o seu nome se podia evitá-lo?

- não é a minha pessoa que está em questão, neste caso.

- não? e quem é, então?

- por amor de deus. É a minha filha. porque ela é minha filha. - luxford deteve-se,
como se esperasse que essa informação penetrasse no cérebro de stone. no
instante que decorreu antes de luxford retomar a palavra, st. james notou a subtil
modificação que se operou em stone: o descair quase imperceptível dos ombros, os
dedos curvados como se quisesse agarrar algo que não existia. luxford prosseguiu
num tom mais calmo. - se tivesse escolhido evelyn como alvo teria acabado por
atingir charlotte. por que razão iria eu obrigar a minha filha a passar por uma
situação semelhante? sabendo que ela é minha filha. eu vivo no mundo que eu
próprio criei, sr. stone. acredite em mim quando lhe digo que sei exatamente que
esse tipo de publicidade se desviaria de evelyn para atingir a criança.

- essas foram exatamente as palavras de eve - disse stone, num tom de voz sumido.
- ela não quer tomar qualquer atitude, porque quer proteger charlotte.

luxford estava, aparentemente, disposto a discutir este ponto. no entanto, limitou-se


a dizer:

- então tem de convencê-la a tomar uma atitude, seja ela qual for. É a única solução
que nos resta.

stone pousou os nós dos dedos sobre o tampo da mesa de trabalho. friccionou-os
para cima e para baixo, observando esse gesto.

- oxalá existisse um deus qualquer que me dissesse o que devo fazer - disse para si
mesmo, em voz baixa, sem desviar os olhos da mão.

os outros ficaram calados. lá fora, algures ao fundo da rua, soou a voz de uma
criança:

- mentiroso! nojento! disseste que fazias e não fizeste, e eu vou contar tudo! vais ver
se não vou!

stone inspirou profundamente. engoliu em seco e ergueu a cabeça.

- deixe-me usar o seu telefone - pediu a st. james.

o sr. czvanek tinha um ar satisfeito quando saiu do gabinete de eve bowen. a


deputada eleita pelo seu círculo ouvira-o, mostrara-se solidária com as suas queixas
e comprometera-se a tomar uma atitude no que dizia respeito à queixa que
apresentara: a abertura de uma loja de jogos de vídeo, exatamente por baixo do seu
apartamento, em praed street. o local era já de si barulhento, com o trânsito, a
proximidade com a estação de paddington e o negócio noturno entre prostitutos e
transeuntes que a polícia deixava escapar, impunes, apesar dos seus telefonemas
regulares para as autoridades, a queixar-se. o sr. czvanek que vivia com a mãe, já
idosa, a mulher e os seis filhos de ambos em três assoalhadas que consideravam
como o ponto de partida para uma vida melhor no futuro sentia que os seus sonhos
se esfumavam cada vez mais depressa, já para não falar da paciência que se
esgotava a passo rápido.

- venho ter consigo como última esperança da minha família, sra. parlamento - disse,
num inglês macarrónico. - os meus vizinhos, eles dizem para eu falar com a
deputada para procurar ajuda. a minha família, nós não ligamos à rua, aos carros,
mas os pequeninos, não é bom para eles crescerem rodeados de pecado por todo o
lado, aquelas pessoas que se vendem na rua. aqueles jovens com os cigarros e as
drogas na loja de jogos de vídeo, isto não faz bem nenhum aos meus filhos. os
meus vizinhos, eles dizem que a senhora pode mudar isso, pode... - esforçou-se por
encontrar a palavra certa e, enquanto a procurava, torcia a dobra das calças em
torno do tornozelo esquerdo, assente sobre o joelho direito. repetira este movimento
durante a maior parte da conversa e o tecido estava já consideravelmente
amarrotado quando deu por concluídas as suas observações.- pode empurrar os
maus dali para fora. assim os meus filhos crescerão em paz, é o sonho de todo o
pai, a forma como os filhos crescem. tem filhos seus, sra. parlamento? - pegou no
retrato de família, politicamente correto, onde apareciam eve, alex e charlotte,
ostentando uma expressão jovial e de devoção mútua. a impressão digital do seu
dedo polegar, em forma de pá, ficou marcada na moldura de prata. - É a sua família?
a sua filha? então, compreende-me...

eve reagira emitindo os sons adequados e tirando as notas apropriadas. explicara a


natureza do comitê que presentemente estudava a hipótese de alargar o contingente
policial destacado para a zona e discorreu sobre o fato de praed street ser, tanto um
centro de negócios como de vício e, embora pudesse garantir que os comerciantes
de carne da área seriam objeto de uma vigilância mais apertada, não podia,
infelizmente, controlar os negócios que ladeavam a rua, dado que esses
estabelecimentos tinham licença para operar ali. assim sendo, a loja de jogos de
vídeo iria provavelmente continuar a ser vizinha dele até que a falta de interesse da
clientela obrigasse à suspensão da atividade. estava, no entanto, em condições de
prometer que a polícia local realizaria inspeções periódicas à loja, a fim de verificar
se havia drogas, venda ilegal de bebidas alcoólicas ou jovens na rua fora de horas.
disse-lhe que viver numa cidade grande implicava ter de fazer certos compromissos.
na vida do sr. czvanek, a loja de jogos seria um deles, pelo menos de momento.

ele pareceu dar-se por satisfeito. levantou-se. sorriu e disse, num tom expansivo:

- que grande país, este. um homem como eu ver a sra. parlamento. só entrar e
sentar e ver pessoalmente a sra. parlamento. É uma grande coisa.

eve apertara a mão do homem, como sempre fazia quando os seus constituintes
vinham visitá-la, no dia e hora que lhes estava reservado: a mão deles presa entre
as dela. quando a porta se fechou atrás dele, chamou a secretária pelo
intercomunicador.

- dê-me alguns minutos, nuala - disse. - quantos restam ainda? - nuala respondeu
em voz baixa, a partir do seu gabinete exterior:

- seis. e o sr. woodward voltou a telefonar, dizendo que é muito urgente. pediu-lhe
que telefonasse logo que lhe fosse possível.

- qual é o assunto?

- eu perguntei, miss bowen - o tom de voz de nuala revelava o quanto lhe


desagradava a propensão de joel woodward para desempenhar o papel de mestre
espião, retendo a informação como se a segurança nacional estivesse implicada
sempre que ele tinha uma mensagem a transmitir. - quer que faça a ligação?

- vou receber os outros constituintes primeiro. daqui a pouco. - eve tirou os óculos e
pousou-os sobre a secretária. encontrava-se no gabinete da constituinte desde as
três horas. era a tarde que habitualmente reservava para receber os eleitores do seu
círculo eleitoral, mas nada decorrera como era costume, à exceção do movimento
de eleitores e da reunião agendada com o presidente da associação. em vez de
controlar cada uma das entrevistas marcadas, apresentando uma resposta pronta
para cada pergunta e reivindicação, estivera desconcentrada e com o espírito
alheado. em diversas ocasiões, a pretexto de ter de tomar notas vira-se forçada a
pedir que determinados aspectos fossem reiterados e a solicitar mais elucidações
sobre um ou outro assunto. ainda que se tratasse de um procedimento normal em
qualquer reunião com constituintes, esta não era uma forma de atuação habitual em
eve bowen. orgulhava-se de possuir uma grande capacidade de memória e um
espírito prodigiosamente ágil. as dificuldades que sentia neste momento, ao reunir
com os seus constituintes cujos problemas deveria ser capaz de detectar, catalogar
e resolver com um dispêndio mínimo da sua capacidade cerebral, revelavam-lhe
quão fácil seria pôr a descoberto uma fissura que ela estava determinada a
resguardar de olhares alheios. o desaparecimento de charlotte exigira que
recorresse à simulação da normalidade. até esse momento fora bem sucedida, mas
a tensão começava a abalá-la. e o fato de estar a sentir-se abalada assustava-a
mais do que o próprio desaparecimento de charlotte. apenas quarenta e oito horas
haviam passado desde que a filha fora raptada, e eve sabia que se quisesse ganhar
a batalha que a opunha a dennis luxford teria de suportar um cerco prolongado. a
única forma de o conseguir era concentrar-se totalmente na tarefa que tinha em
mãos. por esse motivo não retribuíra os telefonemas de joel woodward. não podia
correr o risco de permitir que o seu assistente a desorientasse ainda mais do que já
estava. saiu pela porta lateral do gabinete, que abria para um corredor que conduzia
às traseiras do edifício. aí fechou-se na casa de banho e lavou as mãos, eliminando
as marcas deixadas pelo aperto de mão gorduroso do sr. czvanek. espalhou uma
fina camada de base debaixo dos olhos e contornou o lábio superior com um lápis
cor-de-rosa. afastou um fio de cabelo do casaco e compôs a gola da blusa. ainda em
frente ao espelho, deu um passo atrás e avaliou o seu reflexo. normal, concluiu.
exceto no que se refere aos nervos, que estavam em franja, e assim tinham estado
desde que saíra do seu gabinete em parliament square. o encontro com a jornalista
não tivera qualquer significado. mais significara menos que nada. era costume os
deputados serem abordados por jornalistas correspondentes parlamentares e outros
todos os dias da semana. a sua missão era arrancar-lhes respostas rápidas para as
suas perguntas, queriam entrevistas, informação de fundo, ou a confirmação de uma
história. prometiam anonimato, garantiam fidelidade e exatidão, asseveravam que as
declarações seriam atribuídas a outra fonte. mas estavam sempre por perto, quer
nos corredores adjacentes à sala dos comuns, quer entre o ministério do interior e
whitehall, ou então deambulando à espreita de novidades nas imediações de
parliament square. nada havia, por isso, de extraordinário no fato de ser abordada
por uma jornalista enquanto atravessava o corredor a caminho do seu carro,
atrasada como estava, para as consultas de sexta-feira à tarde no gabinete de
marylebone. inabitual fora a sequência de acontecimentos posterior a essa
abordagem inicial.

chamava-se tarp, diana tarp, segundo lhe dissera, embora eve conseguisse
distinguir claramente o nome dela no cartão de identificação que ela trazia
pendurado ao pescoço. trabalhava para o the globe e pretendia marcar uma
entrevista com a subsecretária de estado. o mais brevemente possível, se ela não
visse inconveniente.

eve ficara de tal modo surpreendida com a frontalidade daquela abordagem que se
deteve a meio caminho da porta, através da qual podia ver o seu rover e o motorista
que a esperava na berma do passeio.

- desculpe? - disse. e antes que diana tarp pudesse responder, prosseguiu. - se


pretende marcar uma entrevista, miss tarp, sugiro-lhe que telefone para o meu
gabinete e não que me aborde como um transeunte que pretende apresentar-me
uma proposta. com licença.

enquanto se afastava da jornalista, diana tarp disse calmamente:

- na verdade, julguei que preferisse uma abordagem mais pessoal, em vez de ter de
recorrer à mediação do pessoal do seu gabinete.

eve virara-se na direção da porta, mas abrandou o passo e parou.

- o quê?

a jornalista lançou-lhe um olhar avaliador.

- sabe como funcionam os gabinetes, miss bowen. o jornalista telefona, mas não
deixa uma mensagem muito definida. cinco minutos mais tarde, metade do pessoal
está ao corrente do que se passa. passam outros cinco minutos e a outra metade
está a especular sobre os motivos subjacentes. pensei que queria evitar isso. isto é,
a publicidade e a especulação.

eve sentiu um calafrio ao ouvir as palavras dela. em seguida, no entanto, sentiu-se


invadida por uma fúria tão avassaladora que por momentos se absteve de proferir
palavra. passou então a pasta de uma mão para a outra e consultou o relógio, ao
mesmo tempo que tentava impedir que o sangue lhe afluísse ao rosto.

finalmente conseguiu falar.

- temo não ter tempo para atendê-la neste momento, miss... - e olhou fixamente para
a identificação da outra mulher.

- tarp - disse ela, - diana tarp - num tom de voz que comunicou a eve que não estava
convencida e que tão-pouco se deixara impressionar pela atuação dela.

- exato. bom, se não deseja marcar uma entrevista através do meu gabinete, miss
tarp, dê-me um dos seus cartões e telefonar-lhe-ei quando puder. É o melhor que
posso fazer. neste momento, já estou atrasada para as reuniões da constituinte.

depois de uma pausa durante a qual se avaliaram mutuamente enquanto potenciais


adversárias, diana tarp entregou-lhe um cartão. todavia, enquanto tirava o cartão do
bolso do casaco nunca desviou os olhos do rosto de eve.

- espero sinceramente vir a ter notícias suas - disse ela. sentada no assento traseiro
do rover, enquanto seguia para marylebone, eve inspecionava o cartão. tinha escrito
o nome da mulher, o endereço, o telefone do emprego, o telefone do gabinete, o
pager e o número de fax. era óbvio que se houvesse uma história a arrancar de uma
fonte qualquer acerca de qualquer assunto, diana tarp disponibilizara-se para
consegui-la.

com movimentos lentos, eve rasgou o cartão, primeiro a meio e depois em quartos
e, finalmente, em oito partes. depois de reduzi-lo ao tamanho de confetti espalhou os
pedacinhos na palma da mão e, no momento em que o rover parou em frente do
gabinete da constituinte, atirou-os para a sarjeta, onde um fio de água cor de bronze
corria na direção de um esgoto. «e lá se foi diana tarp», pensou.

não significara nada, concluía agora. a estratégia de abordagem da jornalista era


invulgar, mas este era provavelmente o estilo dela. era possível que estivesse a
trabalhar numa história sobre o aumento do número de mulheres no parlamento,
acerca da necessidade de haver uma maior presença feminina no governo. poderia
estar em vias de investigar qualquer uma das muitas áreas que estavam sob a tutela
do ministério do interior. poderia estar a tentar descobrir eventuais alterações nas
políticas de imigração, descobrir dados sobre a centralização das políticas, reforma
das prisões. poderia desejar discutir a posição do governo no tocante à integração
dos refugiados, sobre os progressos nas negociações de um cessar-fogo
permanente nos confrontos com o ira. poderia estar a investigar um assunto
potencialmente perigoso relacionado com o mi5. podia ser qualquer coisa, podia não
ser nada. fora apenas o momento em que o encontro se produzira que a enervara.

eve tornou a pôr os óculos e ajeitou o cabelo de modo que a franja se encarregasse
de dissimular a cicatriz. olhando para a sua imagem refletida no espelho, disse:

- deputada ao parlamento. subsecretária de estado. - quando esses elementos da


sua máscara ocuparam o seu devido lugar, regressou ao gabinete e mandou entrar
o constituinte seguinte.

esta entrevista, uma conversa convoluta com uma mãe solteira com três filhos e um
quarto a caminho, que viera ter com ela para protestar sobre a sua posição atual na
lista de espera para aquisição de uma habitação camarária, foi interrompida por
nuala. desta vez não se fez anunciar pelo intercomunicador. em vez disso, bateu
discretamente à porta e abriu-a no momento em que miss peggy hornfisher
perguntava:

- e a culpa é minha se eles têm todos o mesmo pai? porque é que isso joga a meu
desfavor? se eu andasse a dormir com uns e com outros e parisse sem pestanejar e
sem querer saber quem eram os pais, estaria no primeiro lugar da lista, e nós as
duas sabemos isso. e não me mande falar com os vereadores. fiquei azul de tanto
falar com vereadores. fale a senhora com eles. foi para isso que votamos em si, não
foi?

o pedido de licença de nuala salvou eve de ter de explicar a miss hornfisher


aspectos mais pormenorizados da qualificação e distribuição das habitações
camarárias. além disso, o fato de nuala as ter interrompido pessoalmente sugeria
que se tratava de um assunto que exigia atenção imediata. eve caminhou até à porta
e juntou-se a nuala no lado de fora do seu gabinete.

- o seu marido acabou de telefonar - disse a secretária.

- porque é que não me passou a ligação?

- ele não quis. pediu-lhe que fosse para casa imediatamente. já está a caminho de
casa e pede-lhe que vá ter com ele lá. É tudo. - pouco à vontade, nuala apoiava-se
num pé ora noutro. falara com alex em ocasiões anteriores, por isso sabia que não
era de todo seu hábito dar instruções à mulher sem falar pessoalmente com ela. não
adiantou mais nada.

eve sentiu um laivo de pânico, mas alegou o mesmo que alex alegara na quarta-feira
à noite. com perfeito sangue-frio disse:

- o pai dele não está bem - e regressou ao gabinete. apresentou as suas desculpas
a miss hornfisher, acrescentou algumas promessas e começou a arrumar as suas
coisas na pasta, enquanto miss hornfisher saía da sala, deslocando-se
pesadamente. tentou manter a compostura mesmo quando a sua mente saltava de
idéia em idéia. era por causa de charlotte. alex telefonara-lhe por causa de charlotte.
de outro modo não lhe teria dito que fosse para casa. afinal, sempre havia
novidades. luxford cedera. eve mantivera-se firme, recusara-se a deixar-se dominar,
conservara-se impermeável à encenação de luxford, ativera-se à sua posição,
mostrara-lhe qual dos dois tinha tomates...

o telefone tocou. atendeu.

- o quê? - perguntou rispidamente.

- É joel woodward de novo - disse nuala.

- agora não posso falar com ele.

- miss bowen, ele diz que é urgente.

- oh, que diabo, passe-me a chamada - disse, e instantes depois ouviu a voz de joel,
dizendo com uma insubordinação que lhe era característica.

- merda! porque é que não retribuíste as minhas chamadas?

- com quem julgas que estás a falar, joel?

- sei muito bem com quem estou a falar. e sei outra coisa. alguma coisa de esquisito
se está a passar aqui e pensei que estarias interessada em saber o que é.

o trânsito de sexta-feira à noite estava mau. estava-se no mês de maio, no início da


estação de maior afluxo turístico, e era o momento de correr para os teatros. todos
estes elementos se combinavam para obstruir as ruas.

st. james vinha no carro de luxford, que seguia atrás de stone. luxford ligou para a
mulher a partir do telefone do carro, avisando que chegaria mais tarde a casa. não
lhe disse porquê, mas confessou a st. james:

- fiona não está a par de nada disto. não sei como lhe hei-de contar. meu deus, que
trapalhada - mantinha o olhar fixo no carro da frente e as mãos colocadas na parte
de baixo do volante.

- acha que estou envolvido nesta história? naquilo que aconteceu com charlotte.

- aquilo que eu penso não importa, sr. luxford

- está arrependido de se ter metido nisto

- estou, de fato.

- porque é que aceitou o caso?

st. james olhou pela janela, a seu lado. passavam nesse momento por hyde park.
espreitando por entre os enormes plátanos podia entrever as pessoas que
caminhavam ao longo das alamedas, na luz moribunda do crepúsculo. passeando
cães presos pela trela. pares enlaçados. empurrando crianças pequenas em
carrinhos de bebé. reparou numa mulher jovem que levantava uma criança no ar, o
tipo de brincadeira de que os bebés tanto gostam.

- receio que seja bastante complicado de explicar - disse, sentindo-se agradecido


por luxford não ter insistido.

quando chegaram a marylebone, a sra. maguire ia mesmo a sair, envolta num


poncho amarelo atirado por cima do ombro e com um saco de plástico balouçando
no braço. trocou algumas palavras com alexander stone, enquanto luxford
estacionava o carro num espaço vago, mais abaixo. quando finalmente se
aproximaram de novo da casa ela já ali não estava.

- eve está em casa - informou stone. - deixem-me entrar primeiro. - esperaram no


lado de fora. um ou outro carro passava por marylebone high street. o murmúrio de
conversas, vindo do devonshire arms, na esquina, chegava até eles, abafado. fora
isso, a rua estava silenciosa.

passaram alguns minutos antes que a porta se abrisse.

- entrem - disse stone.

eve bowen esperava-os na sala de estar. estava em pé, junto da escultura debaixo
da qual retirara o bilhete do raptor, duas noites antes. o seu porte era semelhante ao
de um guerreiro, imediatamente antes de um combate frente-a-frente. era o retrato
daquele tipo de serenidade de espírito cujo propósito é intimidar.

- ponha a gravação - disse.

st. james obedeceu. o rosto de eve manteve-se impassível à medida que a voz
aguda de charlotte se fazia ouvir, embora st. james tivesse a impressão de vê-la
engolir em seco no momento em que a miudita dizia: «cito, gravei esta cassete para
que ele me desse um pouco de sumo, porque tenho tanta sede.»

quando a gravação chegou ao fim, eve dirigiu-se a luxford.

- obrigada pela informação. agora podem ir.

luxford estendeu a mão num movimento súbito como se quisesse tocá-la, mas
ambos permaneceram em cantos opostos da sala.

- evelyn...

- sai.

- eve - interveio stone, - vamos telefonar para a polícia. não temos necessidade de
fazer o jogo dele, ele não precisa de publicar a história.

- não - replicou ela. o seu rosto tinha uma expressão tão empedernida quanto a sua
voz. st. james apercebeu-se de que ela não tirara os olhos de luxford desde que
tinham entrado na sala. todos eles permaneciam ali, em pé, como se fossem atores
em cima de um palco, cada um deles tendo assumido uma posição de que não
abdicavam: luxford junto à lareira, eve em frente a ele, stone perto da entrada para a
sala de jantar, st. james próximo do sofá. era ele quem estava mais próximo dela,
tentou penetrar no seu espírito, mas ela era tão prudente como um gato
desconfiado.

- miss bowen - disse, adotando o mesmo tom de voz baixo que se usa quando se
pretende manter a calma a todo o custo, - fizemos alguns progressos hoje.

- tais como? - os seus olhos continuavam a fitar luxford e, como se o olhar que ela
lhe lançava constituísse um desafio, ele sustentava-o.

st. james falou-lhe no vagabundo, no fato de ter sido avistado por dois residentes de
cross keys close. falou-lhe do polícia que mandara o vagabundo embora, e disse:

- um dos agentes do posto de marylebone lembrar-se-á do homem e da descrição


do mesmo. se lhes telefonar, os detetives já não terão de iniciar a investigação a
partir do nada. disporão de um bom ponto de partida.

- não - disse ela. - nem a tua melhor cartada fará com que leves a tua avante. -
comunicava qualquer coisa a luxford através destas palavras, algo que estava para
além da mera recusa de agir. st. james não podia adivinhar do que é que se tratava,
mas parecia-lhe que luxford podia. viu os lábios do editor entreabrirem-se, mas ele
não respondeu.

- não vejo que outra alternativa possamos ter, eve - disse stone. - só deus sabe que
não quero fazer-te passar por isto, mas luxford pensa... - o olhar dela silenciou-o. foi
de tal modo fulminante que poderia ter sido um projétil saído do cano de uma arma.
traição, dizia-lhe, deslealdade. «também tu», dizia. não, nunca. eu estou do teu lado,
eve. sorriu ao de leve.

- então deixa que te conte uma coisa. - o seu olhar tornou a pousar em luxford. -
uma das correspondentes parlamentares solicitou uma entrevista imediata comigo,
esta tarde. bem a propósito, não achas?

- isso não quer dizer nada - disse luxford. - por amor de deus, evelyn, és um membro
do governo recentemente nomeado. deves ter pedidos de entrevistas a toda a hora.

- o mais brevemente possível, - disse ela. eve continuou como se luxford não tivesse
dito palavra. - sem mencionar o fato a nenhum dos elementos da minha equipe,
porque, conforme me disse, “eu poderia não estar interessada em que a minha
equipe soubesse que ela estava a falar comigo”.

- era do meu jornal? - perguntou luxford.

- tu não serias idiota a esse ponto. mas era do teu antigo jornal, um dado que acho
fascinante. É tudo mera coincidência. tens de perceber isso. tê-lo-ia feito, se não
fosse o resto.

- o quê? - perguntou stone. - eve, o que é que se está a passar?

- cinco jornalistas telefonaram desde as três e meia da tarde. joel recebeu as


chamadas. suspeitam que alguma coisa está a acontecer, disse-me ele, todos eles
querem falar comigo. assim sendo será que eu sei o que procuram e que tratamento
é que eu gostaria que ele desse a esta súbita vaga de interesse por... ‘em que é que
eles estão interessados, assim de repente, miss bowen?’

- não, evelyn. não contei a ninguém - disse luxford com urgência. - isso nada tem
que ver com...

- sai da minha casa, seu patife - disse ela, calmamente. - prefiro morrer a ceder às
tuas pressões.

À saída, st. james conversou um pouco com luxford, junto do carro deste. a última
pessoa por quem alguma vez esperara poder sentir um profundo sentimento de
piedade era o editor do the source. no entanto, era esse o sentimento que o invadia
nesse momento. o homem parecia muito abatido. grandes círculos de suor
empapavam a elegante camisa azul. o seu corpo exalava um odor a transpiração.

- e agora? o que é que se segue? - perguntou numa voz desanimada.

- falarei com ela novamente.

- não há tempo.

- vou falar com ela agora.

- ela não cederá. - desviou o olhar para a casa, que apenas os informou que outras
luzes tinham sido acesas na sala de estar e outra num dos quartos do piso superior.
- ela devia ter abortado - disse ele. - há anos. não sei porque não o fez. costumava
pensar que era por precisar de uma razão concreta para odiar-me.

- por?...

- tê-la seduzido. ou por fazer com que quisesse ser seduzida. a última, creio. para
certas pessoas é assustador aprender a sentir desejo.

- É, sim - sr. james tocou o tejadilho do carro de luxford. - vá para casa. deixe-me ver
o que posso fazer.

- nada - vaticinou luxford.

- deixe-me tentar, apesar de tudo.

esperou até que luxford se tivesse afastado, antes de dirigir-se de novo à casa da
subsecretária. stone veio à porta.

- julgo que é mais do que tempo de se ir embora - disse ele. - ela já sofreu que
chegue. meu deus, quando penso que eu próprio quase engoli a encenação dele,
sinto vontade de dar murros na parede.

- não estou do lado de ninguém, sr. stone - disse st. james. - deixe-me falar com a
sua mulher. não lhe disse tudo o que ela precisava saber sobre a investigação do dia
de hoje. ela tem direito a essa informação, há-de concordar.

stone pesou as palavras de st. james semicerrando os olhos. tal como luxford,
parecia estafado. eve bowen, apercebia-se st. james, apresentava um aspecto
completamente distinto. tinha ar de quem estava pronta para enfrentar mais quinze
combates e sair vencedora. stone concordou e afastou-se da porta. subiu as
escadas pesadamente, enquanto st. james tornava a entrar na sala de estar e se
esforçava por pensar no que haveria de dizer, ou fazer, na forma de convencer
aquela mulher a agir antes que fosse demasiado tarde. reparou que no local
anteriormente ocupado pelo altar da sra. maguire, na mesa de café, aparecia agora
um tabuleiro de xadrez aberto. as peças, porém, eram diferentes das habituais. st.
james pegou nos reis oponentes. um deles representava harold wilson, o outro
margaret thatcher. tornou a colocá-los no devido lugar, cuidadosamente.

- ele convenceu-o a pensar que se importa com o que poderá acontecer com
charlotte, não foi?

st. james levantou os olhos e viu eve bowen, à entrada da sala. o marido aparecia
logo atrás, uma mão amparando o cotovelo dela.

- ele não se importa, sabe. nunca a viu, sequer. seria de admitir que, ao longo dos
seus dez anos de vida, pudesse ter tentado fazê-lo. eu não teria consentido,
obviamente.

- talvez ele soubesse isso.


- talvez - entrou na sala. sentou-se na mesma cadeira que escolhera na noite de
quarta-feira. a luz do candeeiro de mesa iluminava um rosto tão composto agora
como então.

- ele é um mestre na arte da hipocrisia, sr. st. james. sei-o melhor do que ninguém.
tentará levá-lo a pensar que sinto ressentimento em relação à nossa relação e ao
desfecho da mesma. esforçar-se-á por fazê-lo interpretar o meu comportamento
como uma reação à minha fraqueza interior, que fez com que eu sucumbisse, há
anos atrás, à sua panóplia de encantos pessoais. e enquanto a sua atenção estiver
concentrada em mim e na minha recusa em reconhecer a decência intrínseca de
dennis luxford, ele mover-se-á agilmente nos bastidores, manipulando a nossa
ansiedade de um nível para outro - pousou a cabeça no encosto da cadeira. fechou
os olhos. - a gravação foi uma boa cartada. eu própria poderia ter acreditado naquilo
tudo, se não soubesse que ele está disposto a tudo.

- era a voz da sua filha.

- oh, claro. era charlotte.

st. james caminhou até ao sofá. a perna deficiente parecia pesar toneladas, sentia
as costas doridas em resultado do esforço realizado para içar o corpo enquanto
trepava as paredes de tijolo. para que os seus padecimentos fossem completos,
bastava apenas que tivesse uma das suas enxaquecas. era preciso tomar uma
decisão, e a relutância que sentia abater-se sobre o seu corpo, a cada movimento
que fazia, dizia-lhe quão necessário era que a tomasse.

- vou dizer-lhe o que sei, a esta altura dos acontecimentos - disse ele.

- e depois deixar-nos-á cuidar da nossa vida - disse ela.

- sim, não posso prosseguir esta investigação com consciência.

- acredita nele, então.

- acredito, sim, miss bowen. não gosto particularmente dele, tão-pouco gosto daquilo
que ele representa. penso que o jornal dele devia ser banido da face da terra. no
entanto, acredito nele.

- porquê?

- porque, como ele próprio disse, poderia muito bem ter contado a sua história há
dez anos, poderia tê-la divulgado quando concorreu pela primeira vez ao
parlamento. não tem motivos nenhuns para contá-la agora. a não ser para salvar a
sua filha. a filha dele.

- a descendente dele, sr. st. james. não a filha dele. charlotte é filha de alex - abriu
os olhos e virou a cabeça para ele, sem a afastar das costas da cadeira. - o senhor
não percebe nada de política, pois não?
- ao seu nível? não, suponho que não.

- pois bem, isto é política, sr. st. james. como tenho dito desde o início, este é um
assunto de caráter político.

- não acredito nisso.

- sei isso. É por isso que estamos num impasse - fez um gesto cansado na direção
dele. - muito bem. dê-nos os fatos restantes e depois vá embora. decidiremos o que
fazer e as suas mãos não serão conspurcadas por essa decisão.

alexander stone sentou-se na cadeira que parecia uma almofada, e que combinava
com o sofá, perto da lareira e em frente à mulher. estava sentado na beira do
assento, cotovelos apoiados nos joelhos, cabeça baixa, olhos fixos nos pés.

liberto de uma responsabilidade que não quisera assumir desde início, st. james não
se sentia de modo nenhum livre. em vez disso, o peso que carregava parecia cada
vez mais pesado e lúgubre. tentou ignorá-lo. esta não era uma das suas obrigações,
disse para si mesmo. no entanto, continuava a sentir o esforço tremendo e
expectante para afastá-la de si.

- fui à shenkling school, como combinamos - disse. viu que alexander stone
levantava a cabeça. - falei com garotas entre os oito e os doze anos de idade. a
rapariga que procuramos não se encontrava lá. tenho uma lista das ausências de
hoje, se quiserem telefonar-lhes.

- o que significa isto? - perguntou stone.

- É uma amiga de charlotte - explicou-lhe a mulher, quando st. james lhe entregou a
lista.

- o professor de música de charlotte... - disse st. james.

- chambers - disse stone.

- damien chambers, sim. ele disse-nos que charlotte era habitualmente


acompanhada por outra rapariga, quando ia às lições de música da quarta-feira.
aparentemente, esta rapariga estava com charlotte na quarta-feira passada.
procuramo-la na esperança de que ela pudesse dizer-nos alguma coisa sobre o que
aconteceu na tarde desse dia. até agora, não conseguimos encontrá-la.

- e a descrição do vagabundo - disse eve bowen. - isso dá-nos uma pista.

- sim. e se conseguir encontrar a rapariga e convencê-la a confirmar a descrição


dele, talvez confirmar que o vagabundo deambulava de novo pela zona no momento
em que charlotte se dirigia para a sua lição de música, terá dados mais concretos
para apresentar às autoridades.

- onde poderá ela estar? - perguntou eve bowen. - se não está na escola st.
bernadette e na shenkling school?
- numa das outras escolas de marylebone. há ainda outras hipóteses. as lições de
dança, por exemplo. algum vizinho. outra criança que frequente o mesmo
psicoterapeuta. ela tem de estar em algum lado.

eve bowen meneou a cabeça em sinal de assentimento. levou os dedos às têmporas


num gesto pensativo.

- não me ocorreu antes, mas o nome... tem a certeza que é uma rapariga que
procuramos?

- o nome é invulgar, mas todos aqueles com quem falei disseram que se tratava de
uma rapariga.

- um nome invulgar? quem é? - perguntou alexander stone. porque é que não a


conhecemos?

- a sra. maguire conhece-a, ou pelo menos ouviu falar nela. tal como o sr. chambers
e pelo menos uma das colegas de charlotte, em st. bernadette. aparentemente, é
uma rapariga com quem charlotte convive livremente.

- quem é ela?

- É uma rapariga chamada bretã - disse eve bowen ao marido. - conhece-la, alex?

- bretã? - alexander stone levantou-se. caminhou até à lareira, pegou numa


fotografia de uma criança num baloiço, em que ele próprio aparecia atrás do baloiço,
sorrindo para a máquina fotográfica. - meu deus - disse. - jesus.

- o quê? - perguntou eve.

- passou os últimos dois dias à procura de bretã? - perguntou stone a st. james, com
lassidão.

- grande parte deles, sim. até termos obtido a informação sobre o vagabundo era a
única pista de que dispúnhamos.

- bom, esperemos que a sua informação acerca do vagabundo seja mais viável do
que a sua informação sobre bretã. - stone soltou uma gargalhada, que soou
desesperada. colocou a fotografia sobre a lareira, virada para baixo. - brilhante -
olhou para a mulher e depois desviou o olhar. - onde tens estado, eve? onde raio
tens andado? vives nesta casa ou só cá vens de visita?

- de que é que estás a falar?

- estou a falar de charlie. estou a falar de bretã. estou a falar do fato de a tua filha, a
minha filha, a nossa filha, eve, não ter um único amigo no mundo e de tu nem
saberes isso.

st. james sentiu o gelo correr-lhe nas veias, à medida que as palavras de stone e
aquilo que ele queria significar começaram a justapor-se, inelutavelmente. por fim,
viu eve bowen perder por momentos um pouco da sua aparente tranquilidade...

- o que é isto? - perguntou ela.

- a verdade - disse stone. e desatou a rir novamente. desta vez, porém, as suas
gargalhadas eram mais sonoras e roçavam os limites da histeria. - a bretã não
existe. não é ninguém. ninguém. bretã não é real. obrigaste os teus investigadores a
passarem marylebone a pente fino à procura da amiga imaginária de charlie.

charlotte murmurou: bretã. bretã, a minha melhor amiga. todavia, sentia os lábios
ressequidos e era como se tivesse a boca cheia de migalhas de pão seco. por isso
sabia que bretã não conseguia ouvi-la e, mais importante do que isso, sabia que ela
não lhe daria resposta.

sentia o corpo dorido. todas as partes do corpo capazes de se flectirem estavam


doloridas. ignorava por completo quanto tempo passara desde que fizera a gravação
para cito, mas parecia-lhe que tinham passado dias, e meses, e anos. tinha a
impressão que já tinha passado uma eternidade.

tinha fome e sede. era como se por detrás dos olhos houvesse uma nuvem que
empurrava as pálpebras e se espalhava pelo resto da cabeça. não se lembrava de
alguma vez se ter sentido tão cansada, e se o seu corpo não se arrastasse tão
lentamente e os braços não estivessem tão pesados poderia ter-se sentido um
pouco mais do que arreliada pelo fato de a barriga ter começado a doer, já que muito
tempo se passara desde que comera a tarte e bebera o sumo de maçã. no entanto,
ainda conseguia sentir o gosto de qualquer um deles não era? se friccionasse a
língua contra o céu da boca.

uma dor aguda apertou-lhe o estômago. deitada sobre o cobertor úmido, encolheu
lentamente os joelhos e apertou-os de encontro a si, o que fez deslocar o cobertor
alguns centímetros e a expôs à atmosfera úmida e fria da sua escura prisão.

- frio - disse ela, através dos lábios que continuavam ressequidos, aliviando a
pressão sobre o estômago para ajustar o casaco de lã em torno do corpo. enfiou
uma mão entre as pernas para mantê-la quente e fez deslizar a outra para dentro do
bolso do casaco.

foi então que deu com ele, dentro do bolso, e abriu os olhos no escuro que a
envolvia, surpreendida por se ter esquecido do pequeno widgie. que fraca amiga
que ela era, pensou acerca de si própria, desejosa de poder falar com bretã quando
durante todo aquele tempo widgie se tinha sentido certamente cheio de medo e
ansioso e com fome e sede, tal e qual como lottie.

- desculpa, widge - murmurou e fechou os dedos sobre a corcunda de barro, que


como cito tivera o cuidado de lhe explicar tinha sido cozido, envernizado e colocado
há muito tempo dentro de um biscoito de natal como presente para uma criança que
vivera décadas e décadas antes de charlotte ter nascido. tateou as saliências que
cobriam as costas de widge e aquele ponto, numa das extremidades, que fazia as
vezes de focinho. ela e cito tinham-no descoberto, certo dia, perdido no meio de
outras figurinhas parecidas, numa loja em camden passage, onde tinham entrado à
procura de uma prenda especial para dar à mamãe no dia da mãe.

- ouriço-cacheiro! ouriço-cacheiro! - exclamara lottie, numa voz aguda, e apontara


para a minúscula criatura. - cito, é tal e qual a sra. pica-pisca.

- não exatamente, charlie - dissera cito.

o que era verdade, porque, ao contrário da sra. pica-pisca, o ouriço-cacheiro em


questão não usava um saiote às riscas, nem um gorro, nem um vestido. não usava
absolutamente nada, à exceção dos seus espinhos de ouriço-cacheiro e, sobretudo,
da sua amorosa cara de ouriço-cacheiro. no entanto, apesar de pouco ataviado, não
deixava de ser um ouriço-cacheiro, e os ouriços-cacheiros eram as coisas vivas
superespeciais e preferidas de lottie. então, cito comprara-o para ela e oferecera-lho
estendendo a palma da mão na direção dela, e desde esse dia que ela o trazia
consigo, dentro do bolso, como um amuleto, para onde quer que fosse. como podia
ter-se esquecido de widgie, quando ele nunca a abandonara?

lottie tirou-o do bolso e encostou-o ao rosto. quando o tocou sentiu uma tristeza
instalar-se dentro dela. estava frio como gelo, devia tê-lo mantido mais quente, devia
tê-lo colocado num lugar mais seguro. ele dependia dela e confiava nela, e ela
abandonara-o.

tateou na escuridão procurando uma das pontas do cobertor sobre o qual estava
deitada e enrolou nela o ouriço-cacheiro. entreabrindo os lábios, que mal podia
mover de tão ressequidos que estavam, deixou escapar:

- deixa-te ficar assim, confortável, widge. não te preocupes. em breve voltaremos


para casa.

porque eles iriam mesmo para casa. ela sabia que cito iria contar a história que o
raptor queria, e isso poria fim a tudo isto. ao escuro. ao frio. aos tijolos em vez da
cama e ao balde em vez da casa de banho. só esperava que cito pedisse ajuda à
sra. maguire para contar a história. ele não era lá muito bom a contar histórias e
começava sempre da mesma maneira. «era uma vez um mágico terrível, feio,
retorcido e uma princesa muito, muito bela com cabelo curto e óculos...» se o raptor
quisesse uma história diferente, cito ia precisar da ajuda da sra. maguire.

lottie tentou calcular quanto tempo passara desde que fizera a gravação para cito.
tentou determinar de quanto tempo ele necessitaria para criar a história depois de
ouvir a gravação. tentou decidir que tipo de história agradaria mais ao raptor e
perguntava a si própria como faria cito para lhe entregar a história. será que ele a
contaria para o gravador, tal como ela fizera? ou ao telefone?

estava demasiado cansada para encontrar respostas para as suas perguntas.


estava demasiado cansada, até, para imaginar quais poderiam ser as respostas.
conservando uma mão bem no fundo do bolso do casaco e a outra bem
aconchegada entre as pernas, e os joelhos flectidos para atenuar as dores de
estômago, fechou os olhos e pensou em dormir. porque estava tão cansada, estava
terrivelmente, tremendamente cansada...
a luz e o som abateram-se sobre ela, ao mesmo tempo. pareciam um relâmpago,
mas ao contrário. primeiro, uma vociferação furiosa e um barulho desesperado,
indicativo de uma queda, depois o interior das suas pálpebras tingiu-se subitamente
de vermelho e inundou-se de luz e lottie abriu os olhos.

arquejou, ao sentir o impacte doloroso do foco de luz. desta vez não se tratava da
incandescência regulada de uma lanterna, mas sim de luz propriamente dita,
irradiada pelo sol. resplandecia numa abertura feita na parede e aí permaneceu
durante uma fração de segundo. a luz apenas, tão brilhante, tão difícil de ver. sentiu-
se como uma toupeira, recuando de olhos semicerrados e soltando um lamento,
cada vez mais enroscada como se fosse uma bola.

então, através da fenda entre as pálpebras, viu-o. ele transpôs o limiar e aí se


deteve, emoldurado pela luz nas suas costas. no triângulo formado pelas suas
pernas ela podia distinguir o azul e o verde, duas cores que a fizeram pensar no dia,
no céu e nas árvores, mas não conseguia discernir nada porque não tinha os óculos.

- preciso dos meus óculos - disse com os lábios quase cerrados.

- não - disse ele. disso é que tu não precisas. não precisas dos teus óculos.

- mas eu...

- bico calado!

lottie aninhou-se no cobertor. conseguia ver os contornos da figura dele, mas a luz
por detrás dele extremamente brilhante e violenta, como se quisesse sobretudo
engoli-la não a deixava ver mais nada.

exceto as mãos dele. que estavam cobertas com umas luvas. numa das mãos trazia
a garrafa térmica vermelha, na outra segurava algo que se parecia com um tubo. os
olhos de lottie, sequiosos, cravaram-se na garrafa térmica. «sumo», pensou ela.
fresco, doce e úmido. todavia, em vez de destapar a garrafa e servir-lhe algo para
beber, atirou o tubo na direção dos tijolos, junto da cabeça dela. semicerrou os olhos
e com grande esforço conseguiu distinguir um jornal.

- o papá não contou a história - disse. - o papá não disse palavra. isso é muito mau,
não é, lottie?

havia algo na voz dele... lottie sentiu picadas nos olhos e as suas entranhas
pareciam lutar para empurrar uma coisa dura garganta abaixo.

- eu tentei dizer-lhe. tentei. cito não sabe contar histórias muito bem.

- e isso é um problema, não é? mas não tem importância, porque do que ele precisa
é de um pouco de incentivo. e nós vamos dar-lho, tu e eu. estás preparada para
isso?

- eu tentei dizer-lhe... - lottie fez menção de engolir. estendeu um braço na direção


da garrafa térmica.

- sede - disse ela. queria levantar a cabeça pousada sobre os tijolos, queria correr
para a luz que brilhava atrás dele, mas não era capaz. não era capaz de fazer nada.
sentiu as lágrimas escorrerem pelos cantos dos olhos.

um verdadeiro bebé, bretã teria dito.

ele fechou a porta, empurrando-a com o pé. ela moveu-se, mas não se fechou. um
fio de luz continuava visível, indicando a lottie o seu posicionamento. um fio de luz
que lhe assinalava a direção para onde devia correr.

mas sentia demasiadas dores. havia demasiadas partes do seu corpo imobilizadas.
tinha fome, sede e cansaço a mais. além disso, ficava a três passos de distância, e
em menos de um segundo ele teria percorrido esses passos, e ela fitava os sapatos
dele e a ponta das suas calças.

ele ajoelhou-se e ela encolheu-se, recuando para longe dele. sentiu um alto por
baixo da cabeça e ficou a saber que, acidentalmente, rolara para cima de widgie.
«pobre widgie», pensou. não tenho sido grande amiga de widgie. saiu de cima dele.

- assim está melhor - disse-lhe ele. - É melhor quando não dás luta.

através de uma névoa viu-o destapar a garrafa térmica.

- os meus óculos, pode dar-me os meus óculos? - pediu.

- para isto, não precisas dos óculos - disse ele. os dedos dele ficaram tensos e
puxaram os cabelos dela. - o papá devia ter cumprido as instruções.

- por favor... - lottie sentiu os joelhos trêmulos. começou a agitar os pés e colou as
mãos ao chão. - isso magoa - disse. - não... a minha mamãe...

- não - continuou ele. - não vai doer. nem um bocadinho. estás pronta para a tua
bebida?

ele segurava-a com firmeza, mas sentiu-se encorajada. ele não tinha intenção de a
magoar, afinal.

todavia, em vez de servir um pouco de sumo na tampa da garrafa térmica que servia
também de copo, em vez de o erguer até ao nível da sua boca, ele agarrou o
pescoço dela com mais força e puxou a cabeça dela para trás, levando-lhe a garrafa
à boca. começou a entorná-la.

- engole - murmurou. - estás com sede. engole. vai ficar tudo bem.

ela tossiu, engasgou-se. engoliu o líquido com dificuldade. estava frio e úmido, mas
não era sumo.

- não é... - disse.


- sumo? - perguntou ele. - desta vez, não. mas é úmido, não é? bebe-se depressa
também. vá lá, bebe tudo.

debateu-se contra ele, mas quanto mais ela se contorcia mais ele a imobilizava com
firmeza. então percebeu que o caminho para a liberdade consistia em fazer o que
ele dizia. bebeu e engoliu. ele serviu uma e outra vez.

antes de dar por isso começou a flutuar e a andar à deriva. viu a irmã agnetis. viu a
sra. maguire. viu a mamãe e cito e fermain bay. e de novo a escuridão.

segunda parte

eram dezesseis e cinquenta e cinco da tarde quando o agente robin payne recebeu
a chamada de que estava à espera, três semanas depois de ter concluído o estágio,
duas semanas depois da sua nomeação oficial como agente de polícia e menos de
vinte e quatro horas após ter decidido que a única forma de acalmar a ansiedade
medo da ribalta, como lhe chamava era telefonar para casa do seu novo sargento e
pedir-lhe para ser destacado para o primeiro caso que surgisse.

- com que então estamos desejosos de ser a menina dos olhos de alguém, não é? -
perguntara o sargento stanley, com perspicácia. - estás apostado em chegar ao topo
antes dos trinta?

- apenas quero fazer uso das minhas capacidades, sargento.

- as tuas capacidades, dizes tu? - o sargento rira à socapa. - acredita no que te digo,
filho, terás muitas oportunidades para fazer uso das tuas capacidades, sejam elas
quais forem, antes de te mandarmos embora. vais lamentar o dia em que deste o
nome para o departamento de investigação criminal.

robin duvidava que isso viesse a acontecer, mas procurou no seu passado uma
explicação que o sargento pudesse compreender e aceitar.

- a minha mãe educou-me para dar provas do meu valor.

- o que não te falta são anos para o fazer.

- eu sei, mas deixa-me, de qualquer das maneiras?

- deixo o quê, fedelho?

- participar no primeiro caso que aparecer.

- humm. talvez. veremos - fora a resposta do sargento. e quando telefonara para


atender ao pedido de robin, concluíra dizendo: - vamos lá prestar algumas provas,
detetive.

ao deixar para trás a estreita rua principal de wootton cross, robin admitia para si
próprio que o empenho que demonstrara ao pedir para ser destacado para o
primeiro caso que surgisse poderia não ter sido boa idéia. sentia um nó apertado no
estômago, comprimindo os seis sanduíches ressequidos que ingerira na festa de
noivado da mãe, o telefonema do sargento-detetive stanley salvara-o,
miraculosamente, de presenciar o espetáculo muito pouco atraente que era ver a
mãe e o futuro marido, um homem corpulento e atacado por uma calvície reluzente,
adulando-se mutuamente e parecendo disposto a fazê-los subir e a expulsá-los.
santo deus, a que conclusão chegaria o sargento-detetive stanley acerca do seu
novo agente de polícia, se robin enjoasse no momento de olhar para o cadáver?

e era de fato um cadáver que ele iria ver daí a pouco tempo, a avaliar pelo que
dissera stanley, o cadáver de uma criança que fora encontrado nas margens do
canal do kennet e do avon.

- logo depois de allington - informara-o stanley. - há uma alameda que passa por
manor farm, atravessa os campos e depois continua para sudoeste até ir dar a uma
ponte. É lá que está o corpo.

- conheço o local. - era impossível que robin, que vivera os vinte e nove anos que
perfaziam a sua existência no campo, nunca tivesse feito caminhadas pelos campos.
há já muitos anos que elas constituíam a melhor forma que conhecia para escapar à
mãe e à asma que a atacava. bastava apenas ouvir a designação de determinado
lugar da região kitchen barrow hill, witch plantation, stone pit, furze knoll para que
uma imagem mental da localidade em questão se formasse na área adequada do
seu cérebro. sentido geográfico perfeito, dissera-lhe um dos seus professores
quando ainda estava na escola. tens um futuro natural em topografia, cartografia,
geografia, geologia. então, o que é que escolhes? nada disso, porém, o interessara.
queria ser polícia. queria corrigir o que estava mal. tinha, aliás, uma verdadeira
paixão por corrigir o que estava mal.

- posso estar aí em vinte minutos - dissera ao sargento, perguntando de imediato,


em tom ansioso. - mas não vai acontecer nada antes que eu chegue, vai? não vão
extrair nenhuma conclusão ou coisa parecida?

o sargento-detetive limitara-se a resmungar uma resposta.

- se tiver o caso encerrado quando aqui chegares guardarei segredo. vinte minutos,
dizes tu?

- posso fazer o percurso em menos tempo.

- não te mates, fedelho. É um cadáver, não é um incêndio. - mesmo assim, robin


cumpriu o percurso num quarto de hora, seguindo primeiro para norte na direção de
marlborough e depois fazendo um desvio para noroeste logo depois de passar a
estação de correios da aldeia, onde continuou pela estrada interior que dividia em
duas partes iguais uma viçosa zona de quintas, as dunas e a miríade de túmulos,
elevações tumulares e outras estações pré-históricas que formavam no seu conjunto
o vale de wootton. sempre considerara o vale um local pacífico, o seu local de
eleição quando queria escapar às atribulações por vezes inerentes à convivência
com uma mãe doente. isso era ainda mais verdadeiro neste fim de tarde de maio,
em que a brisa agitava os campos de feno e em que estava prestes a libertar-se do
fardo que era viver com uma mãe debilitada. sam corey não era o homem certo para
ela vinte anos mais velho, muito dado a distribuir palmadinhas no traseiro e a
festinhas no pescoço com a ponta do nariz, para além de piscadelas de olho
maliciosas e de comentários ambíguos sobre folguedos entre lençóis «quando te
apanhar sozinha e a jeito, minha coisa doce» e robin não conseguia perceber o que
ela pretendia dele. todavia, sorrira quando esperavam que sorrisse e erguera o seu
copo para brindar ao feliz casal com champanhe morno. ao ouvir o som do telefone
escapulira-se, esforçando-se por não pensar nas palhacices a que ambos se
entregariam mal ele tivesse fechado a porta de entrada. não era agradável imaginar
a própria mãe enrolada nos braços de um amante, em particular este. não era nada
agradável.

a aldeola de allington ficava numa curva da estrada, como a parte saliente de um


cotovelo. o lugar era constituído por duas quintas, cujas casas, celeiros e anexos
eram as construções mais importantes da zona. um cercado, onde uma manada de
vacas com as tetas inchadas de leite mugiam, delimitava as fronteiras da aldeia.
robin contornou o cercado e atravessou manor farm, onde uma mulher com ar
sofrido enxotava três crianças ao longo da margem na direção de uma casa com
telhado de colmo e parcialmente coberta de madeira.

a alameda que o sargento stanley descrevera não passava, na realidade, de um


carreiro. passava em frente de duas casas de telhado vermelho e abria uma incisão
distinta entre os campos. tinha a largura exata de um trator, apresentava sulcos
deixados por pneus e ao longo da zona central havia um fio de erva. vedações de
arame farpado erigidas em ambos os lados do carreiro delimitavam os campos,
todos eles cultivados e todos eles verdejantes graças ao trigo que se elevava a
cerca de trinta e seis centímetros de altura.

o carro de robin avançava pelo carreiro aos solavancos, entrando e saindo dos
sulcos. a ponte ficava a mais de uma milha de distância. guiava o escort com
extremo cuidado, desejando que a suspensão não ficasse permanentemente
danificada após mais esta aventura por estradas rurais.

mais à frente reparou que o carreiro se elevava ligeiramente, sinal de que nesse
momento passava sobre o alto da allington bridge. em ambos os lados da ponte,
viam-se veículos estacionados na faixa de urtiga seca que servia de orla. três deles
eram pandas, um era uma carrinha e o outro uma mota azul ariel-square-four, o
meio de transporte preferido do sargento-detetive stanley.

robin parou o carro atrás de um dos pandas. a oeste da ponte, guardas


uniformizados um grupo de que fizera parte, ainda muito recentemente percorriam a
passo os dois lados do canal, alguns com olhos fixos no atalho que bordejava a
margem sul do canal, outros abrindo caminho meticulosamente por entre a densa
vegetação no lado oposto, a cinco metros de distância. um fotógrafo acabava de
concluir o seu trabalho, atrás de um denso emaranhado de juncos, enquanto o
médico-legista aguardava, pacientemente, ali perto, as mãos enfiadas num par de
luvas brancas e uma mala de pele preta, aos pés. para além do grasnar dos patos-
bravos e das cantadeiras que chapinhavam no canal, não se ouvia um único som.
robin pensou, curioso, se isso seria um sinal de reverência para com a morte ou se
indicava, simplesmente, a concentração dos profissionais no trabalho que estavam a
fazer. roçou as palmas das mãos contra as calças para secar o suor provocado pela
antecipação. engoliu em seco, obrigou o estômago a acalmar-se e saiu do carro
disposto a enfrentar o seu primeiro caso de homicídio. ainda que ninguém o tivesse
classificado desse modo até ao momento, lembrou a si mesmo. tudo o que o
sargento havia dito fora: «encontramos o corpo de uma criança», e se era homicídio
ou não era uma decisão que cabia aos médicos.

robin avistou o sargento stanley em ação, na ponte. conversava com um casal de


jovens que se comprimiam um contra o outro, enlaçados pela cintura, como se
sentissem necessidade de se aquecer um ao outro. e bem precisavam, já que o que
vestiam mal lhes cobria o corpo. a mulher usava três reduzidos triângulos pretos que
pretendiam ser um fato de banho, enquanto ele vestia um par de calções brancos. o
casal saíra, indubitavelmente, de um barco fluvial atracado no canal, a leste do
canavial. a expressão casados de fresco, desenhada nos vidros da embarcação com
espuma de barbear explicava a sua presença naquela zona. a navegação fluvial era
uma atividade popular durante a primavera e o verão, como eram os passeios a pé
ao longo das margens do canal, as visitas às represas e as noites mal dormidas
desde reading até bath.

o sargento stanley levantou a cabeça quando robin se aproximou. fechou o bloco de


notas e disse para o casal:

- não saiam daqui, certo? - e enfiou o bloco no bolso traseiro das calças de ganga.
remexeu dentro do seu blusão de cabedal de motociclista e tirou um maço de
cigarros embassy, oferecendo um a robin. cada um acendeu o respectivo cigarro. -
por aqui - indicou o sargento. guiou robin até ao talude que descia até à margem do
canal. prendia o cigarro entre o polegar e o indicador e falava, como sempre, pelo
canto da boca, como se cada uma das suas revelações fosse um segredo entre ele
e o seu confidente. - estão em lua-de-mel - resmungou e, com o cigarro, apontou
para o barco fluvial. - alugaram aquilo. e tendo em conta que é um pouco cedo
demais para ancorar para passar a noite, e considerando que não há muito que ver
nas redondezas, posso muito bem imaginar o que lhes ia na cabeça quando
decidiram parar. tu, não? - continuou a fitar o barco e acrescentou: - olha-me só
para aquilo, miúdo. a rapariga, não o barco. a rapariga.

robin obedeceu. o biquini dela não tinha costas e, no traseiro, via-se apenas uma tira
de tecido estreita e indecorosa que desaparecia entre as nádegas firmes e
douradas. a mão do rapaz descansava numa delas, numa atitude possessiva. robin
ouviu o sargento stanley inspirar entre dentes.

- chegou a hora de exercer as prerrogativas conjugais, julgo eu. eu próprio, não me


importava de morder um pedacinho daquele doce. deus tenha piedade de mim. o
traseiro daquela mulher. e tu, miúdo?

- eu?

- se pudesses comê-la.

robin sentia que estava a corar até à raiz dos cabelos e baixou a cabeça para
dissimular o rubor que o invadia. em vez de responder revolveu o solo com a
biqueira do sapato e atirou fora a cinza do cigarro.

- o que aconteceu foi o seguinte - o sargento prosseguia sem deixar de falar pelo
canto da boca. - eles atracaram para dar uma queca. É a quinta vez só hoje, mas,
que diabo, são recém-casados. ele sai para atracar o barco, mãos a tremer e o coiso
que nem um periscópio à procura do inimigo. encontra um sítio bom para enterrar a
estaca e prender o barco, estás a vê-la no fim da linha, ali, não estás?, mas
enquanto está ocupado com isto encontra o corpo da criança. ele e o traseiro de
bronze desatam a correr como desalmados até manor farm e daí telefonam à
polícia. agora estão ansiosos por desaparecer daqui, e ambos sabemos porquê, não
sabemos?

- acha que eles poderão ter tido alguma coisa que ver com...

- com isto? - o sargento abanou a cabeça, negativamente. - mas querem ter muito
que ver um com o outro. nem a visão de um cadáver é suficiente para extinguir o
fogo dentro de certas pessoas, se é que percebes onde quero chegar. - com um
rápido movimento de dedos atirou a beata na direção dos patos-bravos, que se
apagou com um zumbido característico. um dos patos apoderou-se dela. stanley
sorriu ironicamente, murmurou – varredores - e disse: - vamos lá, então. dar uma
espreitadela ao teu primeiro. estás com mau aspecto, miúdo. não estás a pensar ir-
te abaixo das canetas, logo agora, estás?
- não, - robin tranquilizou-o, - não iria ficar mal disposto. estava nervoso, só isso. -
dar um passo em falso na presença de um oficial superior era a última coisa que
queria, e o receio de que isso viesse a acontecer tinha-lhe posto os nervos em
franja. queria explicar a stanley o que se passava, queria também expressar a sua
gratidão pelo fato de o sargento ter acedido ao seu pedido para ser destacado para
um caso, mas conteve-se. não havia necessidade de lançar a dúvida sobre si
próprio nesse momento, e, nas atuais circunstâncias, expressar sentimentos de
gratidão não parecia próprio de um agente de polícia.

stanley chamou o casal que tinha descoberto o corpo.

- vocês dois. não se afastem da zona, ainda não acabamos - disse, enquanto
conduzia robin ao longo da margem. pronto. - agora vamos ver de que material és
feito - acrescentou. apontou para os guardas que povoavam os dois lados do canal.
- aquilo é provavelmente um exercício inútil. porquê?

robin observou os guardas. comportavam-se de forma ordeira, silenciosos e


movendo-se ao mesmo ritmo. estavam concentrados no seu trabalho e ignoravam
tudo o que pudesse distrai-los.

- inútil? - repetiu.

numa tentativa de ganhar tempo para pensar, apagou o cigarro na sola do sapato,
guardando a beata dentro da algibeira.

- bom, não vão encontrar pegadas, pois não? se é isso que procuram. há demasiada
erva na margem, demasiadas flores silvestres e ervas daninhas. mas... - hesitou,
perguntando a si mesmo se daria a impressão de estar a corrigir o que parecia ser a
conclusão precipitada do sargento, seu superior. decidiu arriscar. - mas podem
encontrar outras coisas para além de pegadas. se isto for um homicídio. É, meu
sargento?

stanley ignorou a pergunta, semicerrando os olhos e levando mais um cigarro aos


lábios, que se preparava para acender.

- tais como? - perguntou.

- se for um homicídio? qualquer coisa. fibras, beatas, uma arma, uma etiqueta, um
fio de cabelo, o cartucho de uma bala de caçadeira. tudo.

stanley acendeu o cigarro com um isqueiro de plástico. tinha a forma de uma mulher
dobrada à altura do abdómen, agarrando os tornozelos. a chama saía do traseiro.

- bonito - disse stanley. robin não sabia se o sargento estava a referir-se à resposta
ou ao isqueiro.

stanley caminhou pela margem, seguido por robin. seguiam na direção do canavial
onde o patologista estava em vias de trepar pela margem do canal através de um
denso emaranhado de saxífraga dourada e de primaveras, com lama e algas
agarradas às botas de borracha. mais acima, dois médicos-legistas aguardavam-no
com as malas das amostras abertas. junto deles, estava um saco para transporte de
cadáveres pronto a usar.

- e então? - perguntou stanley ao patologista. este deslocara-se até à cena do crime


vindo diretamente de uma partida de tênis, dado que calçava sapatos de tênis
brancos e usava uma fita em torno da cabeça. uma combinação estranha com as
botas pretas até ao joelho.

- temos um enrugamento bastante razoável nas duas mãos e na planta de um dos


pés - disse ele. - o corpo está na água há dezoito horas, vinte e quatro, no máximo.

stanley assentiu. fez rolar o cigarro entre os dedos.

- dá uma olhadela, então, miúdo - disse, dirigindo-se a robin, após o que tornou a
virar-se para o patologista, com um sorriso. - aqui o nosso robbie ainda é virgem, bill.
queres apostar cinco libras em como ele vai ficar de todas as cores que nem um
arco-íris?

uma expressão de desagrado atravessou o rosto do patologista. juntou-se a eles no


carreiro que ladeava o canal e disse calmamente a robin: - duvido que se sinta mal
disposto. os olhos estão abertos, o que é sempre um choque, mas ainda não há
sinais de decomposição.

robin meneou a cabeça. respirou fundo e endireitou os ombros. estava a ser


observado, quer pelo sargento quer pelo patologista, já para não falar dos guardas,
do fotógrafo e dos outros médicos. todavia, estava decidido a mostrar-lhes apenas o
seu desprendimento profissional.
desceu o talude que ia dar ao canal, abrindo caminho por entre o emaranhado de
flores silvestres. o silêncio à sua volta pareceu intensificar-se, tornando-o
hipersensível aos ruídos emitidos pelo seu próprio corpo: o som da sua respiração
semelhante a um motor a jato, o som martelado do coração, o impacte sonoro dos
seus pés à medida que pisavam as flores e as ervas daninhas. a lama escorria e
colava-se às solas dos seus sapatos quando chegou ao canavial, que contornou.

o corpo jazia exatamente por detrás do canavial. robin viu primeiro um pé, saindo da
água e desaparecendo no canavial, como se a criança tivesse sido atracada ali por
uma razão qualquer. depois reparou no outro pé, enrugado, tal como dissera o
patologista, metido dentro de água. os seus olhos percorreram as pernas, subindo
até às nádegas e daí até à cabeça. esta estava virada para o lado, e os olhos
estavam abertos e fortemente congestionados. o cabelo castanho cortado curto
flutuava, separado do couro cabeludo, ondulando suavemente na superfície da
água, e enquanto fitava o corpo, dando voltas à cabeça para encontrar a pergunta
adequada à ocasião ciente de que sabia qual era, certo de que essa pergunta
estava solidamente enraizada algures dentro do seu cérebro, como uma segunda
pele, quase previamente planejada, uma pergunta que indicaria que ele passara a
funcionar em piloto automático robin entreviu um rápido lampejo prateado na boca
da criança, parcialmente aberta, no momento em que um peixe cintilou, decidido a
provar carne morta. sentiu-se agoniado. as mãos estavam pegajosas. todavia, quase
por milagre, a sua mente engrenou na velocidade certa. desviou os olhos do corpo,
lembrou-se da pergunta oportuna e formulou-a num tom de voz firme.

- rapaz ou rapariga?

- tragam o saco - foi a resposta do patologista e foi juntar-se a robin, à beira do


canal. um dos guardas puxou o fecho do saco e outros dois, calçados com botas de
borracha, avançaram para a água. ao sinal de cabeça do patologista viraram o
corpo. - para já, rapariga - foi a resposta do patologista, quando a região púbica,
ainda imatura e lisa, ficou exposta. os guardas tiraram o corpo do canal e meteram-
no no saco. no entanto, antes de o fecharem, o patologista ajoelhou-se junto do
cadáver da criança e pressionou a caixa torácica. uma espuma fina formada por
bolhas brancas muito semelhantes a água de sabão escorreu de uma das narinas. -
afogamento - disse ele.

- não é um homicídio, então? - perguntou robin, dirigindo-se ao sargento stanley.

- diz-me tu, miúdo. quais são as hipóteses? - retorquiu stanley, com um encolher de
ombros.

enquanto o corpo era removido e a equipe de médicos-legistas descia o talude


transportando as suas garrafas e malas, robin ponderava sobre a questão e sobre
as respostas razoáveis para a mesma. reparou no barco fluvial alugado pelo casal
em lua-de-mel.

- estaria de férias? terá caído de um barco? - disse.

- nenhuma criança foi dada como desaparecida - disse stanley, meneando a cabeça
como se refletisse sobre esta hipótese.

- empurrada, então? um encontrão rápido não deixaria marcas no corpo.

- É uma boa possibilidade - admitiu stanley. - isso faz com que seja homicídio. que
mais?

- será uma criança da região? de allington, talvez? ou então de all cannings? É


possível atravessar os campos a pé e ir daqui a ali cannings.

- o problema continua a ser o mesmo.

- ninguém foi dado como desaparecido?

- exato. mais? - stanley ficou à espera. não dava quaisquer mostras de impaciência.

robin traduziu por palavras a hipótese final, que contradizia a sua conclusão
preliminar.

- vítima de um crime, então? ela foi... - apoiava-se ora num pé ora noutro e
procurava um eufemismo. - ela foi... bom, molestada, sargento?

stanley ergueu uma sobrancelha, interessado. robin apressou-se a continuar.

- suponho que isso poderia ter acontecido, não acha? só que aparentemente não
havia... no corpo... em termos superficiais... apelou ao seu autodomínio, pigarreou e
prosseguiu o seu raciocínio. - podia tratar-se de uma violação, mas o corpo não
apresentava marcas superficiais de violência.

- há um golpe no joelho - informou o patologista que estava na margem do canal. -


algumas equimoses em volta da boca e no pescoço e uma série de queimaduras em
vias de cicatrização na face e no queixo. de primeiro grau, estas.

- mesmo assim - começou robin.

- existem muitas maneiras de violar - assinalou stanley.

- nesse caso... - pensou na direção a seguir e decidiu-se a dizer: - parece que não
temos muito por onde começar, não é?

- e quando isso acontece?

- esperamos os resultados da autópsia - era a resposta óbvia. stanley fez-lhe uma


saudação, roçando o dedo pela sobrancelha. - quando? - interpelou o patologista.

- amanhã terei os resultados preliminares, a meio da manhã. desde que não receba
mais chamadas até lá - cumprimentou robin e o sargento stanley com um aceno de
cabeça, disse para os guardas - vamos levá-la - e seguiu atrás do corpo até à
carrinha.
robin acompanhou o percurso com o olhar. o casal recém-casado ainda esperava,
na ponte. quando o pequeno cadáver passou por eles, a rapariga escondeu o rosto
no peito do marido. ele puxou-a para mais perto de si, uma das mãos no cabelo dela
e a outra na nádega. robin desviou o olhar.

- e agora, o que é que se segue? - perguntou stanley. robin refletiu sobre a pergunta.

- precisamos de saber quem ela era.

- antes disso.

- antes? recolhemos depoimentos formais do casal e pedimos-lhe que os assinem.


depois consultamos o registro de desaparecidos. se ninguém foi dado como
desaparecido na zona, talvez tenha sido noutra região qualquer e já esteja incluído
na base de dados do computador.

stanley abriu o fecho do blusão de cabedal e tateou os bolsos das calças de ganga.
tirou um porta-chaves e agitou-o ao de leve. - e antes disso? - tornou a perguntar.

a pergunta deixou robin confuso. olhou para trás, para o canal, em busca de
inspiração. podia sugerir que o dragassem, mas para quê? stanley apiedou-se dele.

- antes das declarações e antes do registro de desaparecimentos lidamos com


aquela tropa - agitou rapidamente o polegar na direção da ponte.

um veículo poeirento acabava de parar. de dentro dele saíam uma mulher com um
bloco de notas e um homem com uma máquina fotográfica. robin viu-os caminhar
apressadamente ao encontro do casal em lua-de-mel. trocaram algumas palavras
que a mulher anotou. o fotógrafo começou a tirar fotografias.

- jornais? como é que podem ter descoberto tão depressa? - disse robin.

- pelo menos não é a televisão - replicou stanley. - por enquanto. - e afastou-se para
ir falar com eles.

dennis luxford passou os dedos pela face corada de leo. estava úmida das lágrimas.
aconchegou os cobertores em torno dos ombros do filho e sentiu uma dor súbita e
aguda, um misto de culpa e de impaciência. porque é que o rapaz tinha de tornar
tudo sempre tão difícil?

luxford sussurrou o nome dele. alisou o cabelo brilhante de leo e sentou-se na beira
da cama. leo continuou imóvel. ou estava profundamente adormecido, ou era um
perito mais consumado na arte da dissimulação do que luxford imaginava. fosse
como fosse, não estava disposto a continuar a discussão com o pai. o que talvez
fosse preferível, considerando o rumo seguido por todas as disputas entre ambos.

luxford suspirou. pensou na palavra filho e em tudo o que estava implicado em cada
uma das suas sílabas, no que dizia respeito a responsabilidade, orientação, amor
cego e esperanças acalentadas. perguntava a si próprio o que o teria levado a
pensar que era capaz de transformar a paternidade num sucesso. interrogava-se
sobre as razões que o tinham levado a encarar a paternidade em termos das
recompensas que a mesma proporcionava. na maior parte das vezes, ser pai
parecia ser uma obrigação sem fim. era um dever vitalício que exigia dele um
reservatório de perspicácia, da mesma forma que contrariava constantemente os
seus desejos pessoais e punha à prova as suas magras reservas de paciência. era
demais para um homem só. como, interrogava-se luxford, como é que os outros
homens faziam?

conhecia pelo menos uma parte da resposta. os outros homens não tinham filhos
como leo. um olhar rápido pelo quarto de leo combinado com uma espreitadela ao
passado para recordar o aspecto do seu próprio quarto e do quarto do irmão,
quando tinham a idade de leo confirmava-o. fotografias de filmes a preto e branco
nas paredes: todos, desde fred astaire e ginger rogers em traje de cerimônia, até
gene, debbie e donald, sapateando à chuva. uma pilha de livros de arte sobre uma
secretária em pinho e, ao lado deles, um bloco de desenho onde se via o esboço de
um anjo ajoelhado, cuja auréola perfeita e asas graves e recolhidas faziam dele um
exemplo de um fresco do século catorze. uma gaiola com tentilhões: água fresca,
sementes novas, papel limpo cobrindo o chão da gaiola. uma estante com livros de
capa dura ordenados por autores, de dahl a dickens. a um canto estava um malão
de madeira com ferrolho em ferro escuro dentro do qual luxford sabia que estavam,
absolutamente menosprezados, um bastão de críquete, uma raqueta de tênis, uma
bola de futebol, um par de patins, um conjunto de química, uma coleção de soldados
de brincar e um conjunto miniatura daquela espécie de pijama que usam os
especialistas de karatê.

- leo - chamou suavemente - o que é que vou fazer contigo?

- nada, - ter-lhe-ia respondido fiona com firmeza. - absolutamente nada. ele está
ótimo. É perfeito. o problema está em ti.

luxford expulsou as asserções de fiona da sua mente. inclinou-se, roçou os lábios


pela face do filho e apagou a luz do candeeiro da mesa de cabeceira. continuou
sentado na cama até que a escuridão total e repentina que envolvera o quarto se
diluísse na claridade exterior, filtrada através das cortinas corridas. quando foi capaz
de distinguir as formas dos móveis e os contornos pronunciados das molduras
pretas que enquadravam os quadros pendurados nas paredes saiu do quarto.

no andar de baixo, encontrou a mulher na cozinha. estava de pé junto da bancada,


preparando-se para moer café, num moinho próprio para isso. no preciso momento
em que o pé dele tocou a tijoleira do chão da cozinha, ela ligou bruscamente o
aparelho que emitiu um ruído sonoro.

esperou. ela deitou água na máquina do cappuccino, ligou o fio à tomada da parede,
verteu o café acabado de moer para dentro do filtro, empurrou-o para baixo como se
fosse tabaco e premiu o botão para ligar a máquina. uma luz de cor âmbar acendeu-
se. ouviu-se o ruído surdo produzido pelo motor da máquina. ela permaneceu em
frente do aparelho, aguardando ostensivamente que o café ficasse pronto, de costas
voltadas para ele.

conhecia os sinais. compreendia o volume de mensagens silenciosas que uma


mulher transmitia por intermédio do simples subterfúgio de mostrar a um homem a
nuca em vez do rosto. mesmo assim aproximou-se dela. colocou as mãos sobre os
seus ombros. afastou o cabelo para um lado. beijou-lhe o pescoço. «talvez
pudessem fingir apenas», pensou.

- isso não te vai deixar dormir - murmurou.

- o que não me incomoda minimamente. não faço tenção de dormir esta noite. - não
acrescentou contigo, mas luxford não precisava ouvir a palavra para conhecer com
exatidão a disposição dela. podia senti-la nos músculos retesados sob o seu toque.
deixou cair as mãos.

liberta, ela foi buscar uma chávena e colocou-a por debaixo de um dos dois bicos da
máquina. um fio de café começou a pingar através do filtro.

- fiona - esperou que ela olhasse para ele. ela, porém, não o fez. estava
completamente concentrada no café. - desculpa, não quis perturbá-lo. não era minha
intenção que as coisas fossem tão longe.

- e qual era então a tua intenção?

- que conversássemos. tentei falar com ele ao almoço, na sexta-feira, mas não
chegamos a conclusão nenhuma. pensei que se tentasse, se tentássemos os três
em conjunto, talvez pudéssemos resolver as coisas sem que leo fizesse uma cena.

- e tu não consegues suportar isso, pois não? - caminhou para o frigorífico de onde
trouxe um pacote de leite. verteu uma quantidade meticulosamente medida para
dentro de um jarro em aço inoxidável. voltou para junto da máquina de café e
pousou o jarro sobre a bancada. - deus nos livre se um rapazinho de oito anos de
idade fizer uma cena, não é verdade, dennis? - ajustou um dos lados da máquina e
começou a aquecer o leite. fazia girar o jarro, furiosa. o ar quente assobiava. o leite
começou a fazer espuma.

- essa não é uma conclusão justa. não é tarefa fácil tentar aconselhar uma criança
que interpreta qualquer tentativa de diálogo como um convite à histeria.

- ele não estava histérico - pousou violentamente o jarro com o leite.

- fiona.

- não estava.

luxford tentou imaginar que outra designação pretenderia ela dar-lhe: cinco minutos
de observações cuidadosamente ponderadas acerca das glórias e das vantagens da
baverstock school for boys recebidos por um leo lavado em lágrimas, como se ele
fosse um torrão de açúcar e o pai a água quente. as lágrimas funcionando como
prenúncio dos soluços, estes dando rapidamente lugar a gemidos, que por sua vez
anunciavam pés a bater no chão e murros nas almofadas do sofá. o que era a
histeria senão aquela reação exasperante à adversidade, tão característica de leo?
baverstock curá-lo-ia disso, - sendo essa a razão principal que levava luxford a
empenhar-se tanto em arrancar leo ao casulo protetor de fiona para introduzi-lo num
mundo de contornos mais definidos. mais cedo ou mais tarde ele teria de enfrentar
esse mundo. que bem podia advir para o rapaz se continuasse a esquivar-se daquilo
que precisava muito aceitar?

luxford escolhera a ocasião perfeita para discutir a questão: estavam os três juntos,
a família feliz na sala de jantar, reunida para partilhar a refeição da noite. era o prato
preferido de leo, e ele comia-o com apetite e a grandes garfadas enquanto
tagarelava sobre um documentário da bbc sobre arganazes, acerca do qual
aparentemente tirara imensas notas. dizia ele: «achas que podemos construir um
habitat para eles, no jardim, mamãe? eles preferem normalmente edifícios velhos,
sabes, sótãos e os espaços entre as paredes. mas são tão amorosos, e penso que
se criarmos um habitat adequado, dentro de um ou dois anos...» quando luxford
decidiu que era tempo de clarificar de uma vez por todas o sítio exato onde leo
passaria a residir nesse espaço de um ou dois anos a que estava a referir-se.

- não fazia idéia que te interessavas por ciência, leo - disse, comunicativo. - já
pensaste na hipótese de medicina veterinária?

os lábios de leo moveram-se para formar a palavra veterinária. fiona olhou para
luxford, mas ele decidiu ignorar a expressão fulminante dos olhos dela.

continuou, em tom divertido. - a medicina veterinária é uma ótima carreira, mas


exige alguma experiência prévia com animais. e vais poder adquirir uma experiência
enorme nessa área. estarás muito mais adiantado do que os outros candidatos
quando estiveres preparado para entrar na universidade. uma das coisas que mais
vais gostar em baverstock é daquilo a que eles chamam quinta-modelo. já te falei
nela? - não deu oportunidade a leo para responder. - pois então deixa-me falar-te
nela. - e assim começou o seu monólogo, um verdadeiro cântico de louvor às glórias
da criação de animais. na verdade, não sabia muito acerca da quinta-modelo da
escola, mas aquilo que desconhecia embelezava sem pudor: tardes passadas ao sol
nas colinas varridas pelo vento, o prazer de ver uma ovelha parir, o desafio de ter de
lidar com uma vaca, criar gado, castrar os garanhões. animais em grande
quantidade. não eram arganazes, evidentemente, pelo menos não eram arganazes
legítimos. nos edifícios exteriores, porém, nos estábulos, nas águas-furtadas dos
dormitórios até, talvez fosse possível encontrar um arganaz ocasional.

concluiu o seu discurso, dizendo: - a quinta-modelo é um dos clubes existentes, não


faz parte do currículo escolar propriamente dito. através dela, porém, terás um
contato com animais que poderá eventualmente encaminhar-te para a carreira
profissional da tua vida.

enquanto falava, o olhar de leo desviara-se do rosto do pai para o rebordo do seu
copo de leite. fixou-o nesse ponto e o resto do corpo imobilizou-se de forma sinistra,
à exceção de um pé que, conforme luxford ouvia, batia cadenciadamente na perna
da cadeira. cada vez mais alto. tal como as costas de fiona, momentos antes,
também o olhar fixo de leo, os seus pontapés e silêncios eram sinais de advertência.
mas eram de igual modo um motivo de irritação para o pai. que diabo, pensou. todos
os anos havia rapazes que entravam na escola. enchiam os malões, escolhiam a
sua recordação favorita de casa e partiam. com um nó no estômago, talvez, mas
com a coragem estampada no rosto. certos de que os pais sabiam o que era melhor
para eles e, acima de tudo, partiam sem uma exibição dos seus talentos histriónicos.
esta seria, aliás, como luxford bem sabia, o culminar dos pontapés na perna da
cadeira, tão certo e inevitável quanto o pôr do sol é o prenúncio da noite.

recorreu ao poder do pensamento positivo.

- imagina os novos amigos que vais fazer, leo - disse.

- eu tenho amigos - disse leo, olhando para o copo de leite. falou naquela irritante
linguagem das docas que estava cada vez mais na moda. graças a deus, a escola
privada em breve se encarregaria de o livrar de semelhantes vícios de linguagem.

- pensa então no sentido de lealdade que irás cultivar. permanecerá dentro de ti para
o resto da tua vida. já te disse com quantos antigos colegas de baverstock ainda
mantenho contato durante o ano? já te falei da grande influência que todos eles têm
exercido no progresso profissional de cada um?

- a mamãe não frequentou a escola privada. a mamãe ficou em casa e ia para a


escola. a mamãe teve uma carreira.

- claro que sim. uma ótima carreira. mas... - santo deus, não era possível que o
rapaz estivesse a pensar em tornar-se manequim, como a mãe? a dança
profissional já era mau, mas a moda? moda? passear para lá e para cá numa
passerelle com a pélvis espetada para fora, um cotovelo saído, uma camisa
desabotoada, um balançar de ancas, o corpo transformado num convite explícito a
testar a mercadoria. a idéia era inaceitável. leo estava tão preparado para entrar
naquela forma de vida como ele estava preparado para voar até à lua. e se
persistisse... luxford recuperou com esforço o controle da sua imaginação. - É
totalmente diferente no caso das mulheres, leo - disse com afabilidade. - os seus
objetivos de vida são diferentes, por isso a educação que recebem também é
diferente. tu precisas de ser educado como um homem, não como uma rapariga.
porque vais viver num mundo de homens, não num mundo de raparigas. certo? -
não houve resposta. - certo, leo?

luxford reparou que os olhos de fiona estavam pregados nele. movia-se em terreno
perigoso um verdadeiro atoleiro e se se aventurasse mais arriscar-se-ia a ficar
atolado em algo mais para além das reações teatrais de leo.

contudo, aceitou correr esse risco. a questão iria ficar resolvida esta noite.

- o mundo dos homens exige traços de caráter que são mais bem desenvolvidos na
escola privada, leo. espinha dorsal, recursos interiores mais profundos, rapidez de
raciocínio, qualidades de liderança, capacidade de tomar decisões,
autoconhecimento, um sentido de história. É isto que eu quero para ti, e podes
acreditar que quando tiveres chegado ao termo da tua estada em baverstock irás
agradecer-me pelo meu sentido de visão. vais dizer: «pai, nem posso acreditar que
cheguei a estar relutante quanto a vir para baverstock. obrigado por insistires que
era para meu bem, quando eu ainda não tinha percebido...»
- não vou - disse leo.

luxford optou por ignorar esta provocação ostensiva. este tipo de atitude não era
próprio de leo e ele, provavelmente, não tinha pretendido soar rebelde.

- iremos até lá antes do início do trimestre de outono e visitaremos as instalações


em pormenor - disse. - assim estarás em vantagem em relação aos outros caloiros,
quando estes chegarem. poderás mostrar-lhes a escola, até. vai ser bom, não vai?

- não vou. não vou.

o segundo não vou foi dito num tom de voz mais elevado e mais insistente que o
primeiro. foi o foguete que precedeu o bombardeamento propriamente dito, uma luz
de aviso atirado ao ar para iluminar o caminho às bombas que se seguiriam.

luxford tentou manter a calma.

- irás, sim, leo - disse. - temo que esta seja uma decisão tomada e que não está, por
isso, sujeita a mais discussões. É natural que te sintas relutante e até assustado.
como disse antes, a maior parte das pessoas acolhe a mudança com algum receio,
mas uma vez passado o período de adaptação...

- não - disse leo. - não, não, não!

- leo.

- não vou - afastou a cadeira da mesa e levantou-se, preparando-se para abandonar


a mesa, encolerizado.

- volta a puxar a cadeira para a frente.

- já acabei.

- pois eu não. e até te darem licença...

- mamãe!

o apelo a fiona e tudo o que esse apelo implicava acerca da natureza da relação
entre ambos fez com que o campo de visão de luxford fosse rasgado por um
relâmpago vermelho. inclinou-se para a frente, agarrou o filho pelo pulso e puxou-o,
bruscamente, para junto da mesa.

- ficarás sentado até te dizerem que já acabaste - disse. - está claro?

leo soltou um grito.

- dennis - disse fiona.

- e tu - disse, virando-se para fiona, - não te metas nisto.


- mamãe!

- solta-o, dennis! estás a magoá-lo. - as palavras de fiona funcionaram como um


convite. leo começou a chorar. depois a lamuriar-se. depois a soluçar. então aquilo
que antes fora uma conversa à mesa de jantar, depressa evoluiu para uma
altercação que terminou quando leo, gritando, distribuindo pontapés e murros, foi
finalmente conduzido ao seu quarto e lá foi deixado. aí num gesto de consideração
para com os seus pertences era muito pouco provável que ele fizesse outra coisa
para além de bater com a cabeça de encontro às almofadas da cama. e,
aparentemente, foi isso que fez, até à exaustão.

luxford e a mulher terminaram o jantar em silêncio. arrumaram a cozinha. luxford leu


o resto do the sunday times, enquanto fiona aproveitou os últimos raios de luz para
trabalhar nas proximidades do lago do jardim. só voltou a entrar em casa às nove e
meia, hora a que a ouviu pôr a correr a água do duche e que se deslocou até ao
quarto de leo, que dormia. nesse momento perguntou a si próprio pela milionésima
vez de que forma iria resolver a discórdia que se instalara em sua casa sem recorrer
a uma atitude autoritária e sem agir como uma espécie de paterfamilias, figura que
desprezava profundamente.

fiona deitava leite a ferver na chávena. queixava-se constantemente do preço


exorbitante que era obrigada a pagar por uma chávena de café, em que um terço
era de café propriamente dito e os restantes dois terços eram constituídos pela
espuma com a consistência de um dente-de-leão. por isso, nessa ocasião decidira
preparar uma chávena de café latte em vez de um cappuccino. usou três colheres
de espuma para o topo e polvilhou com canela. em seguida removeu,
meticulosamente, o filtro da máquina e colocou-o, com igual cuidado, dentro do lava-
louça.

tudo nela indicava o desejo de não querer discutir o assunto.

um imprudente teria avançado. um indivíduo mais sensato teria compreendido e


reconhecido a mensagem. luxford decidiu fazer de teste.

- leo precisa de mudar, fiona - disse. - ele tem necessidade de se integrar num
ambiente que exija mais dele. necessita de uma atmosfera que fortaleça o seu
caráter, precisa de conviver com rapazes oriundos de boas famílias e com uma
tradição familiar decente. frequentar baverstock só lhe trará vantagens. É impossível
que não concordes comigo.

levou a chávena de caffe latte aos lábios e bebeu. limpou a espuma que se colara
ao lábio superior com um pequeno guardanapo quadrado. encostou-se à bancada
da cozinha sem fazer menção de querer passar a uma divisão mais confortável. era
isso, aliás, que ele teria feito para poder continuar a conversa, e ela sabia-o muito
bem.

manteve a chávena à altura dos seios, estudando a espuma polvilhada de canela.

- como és hipócrita - disse, então, sem desviar os olhos da espuma. - sempre


pregaste a igualdade, não foi? chegaste ao ponto de demonstrar a tua fé na
igualdade casando com um membro de uma familiazinha miserável...

- pára com isso.

- ... do sul de londres. céus. da outra margem do rio. a filha de um canalizador e de


uma empregada de hotel. onde as pessoas dizem retrete, em vez de casa de banho,
sem que quem quer que esteja a ouvir tenha uma ataque ou saiba, sequer, por que
razão deveria ter um. como é que foste capaz de descer tão baixo? como foi isso
possível, acreditando, como pelos vistos acreditavas, que aquilo de que realmente
precisavas era da convivência com boas famílias com uma tradição familiar
decente? ou fizeste-o apenas pelo desafio que representava?

- fiona, a minha decisão acerca de leo nada tem que ver com classe.

- as tuas terríveis escolazinhas têm tudo que ver com classe. têm que ver com travar
conhecimento com as pessoas certas e estabelecer os contatos adequados e
aprender o sotaque correto e certificar-se de que a roupa, a postura, as atividades
ao ar livre, a escolha de carreira profissional e a atitude de uma pessoa em relação
aos outros a conota com o topo da hierarquia social. porque deus nos proteja
daquele que tenta viver a sua vida simplesmente com base no seu talento e nas
credenciais do seu valor enquanto ser humano.

ela manuseava as suas armas com perícia. e era o fato de ela fazer tão-pouco uso
delas que fazia com que produzissem um efeito mais devastador. os combatentes de
trincheira eram assim, e luxford sabia isso muito bem. esperavam a sua hora,
esquivavam-se dos projéteis e induziam os adversários a pensar que as armas de
que dispunham eram insignificantes.

- quero o melhor para leo - disse luxford, com alguma afetação. - ele precisa de
orientação e tê-la-á em baverstock. lamento que não entendas as coisas assim.

ela ergueu os olhos e fitou-o diretamente.

- o que tu queres é que leo mude. estás preocupado com ele, porque ele parece...
suponho que dirias excêntrico, não é verdade, dennis? em vez de utilizar a palavra
em que estás realmente a pensar.

- quero que ele tenha um sentido de orientação. aqui, isso não é possível.

- ele tem toda a orientação de que necessita. sucede apenas que tu não a aprovas.
pergunto a mim mesma porquê? - bebeu um gole de café.

sentiu vibrações avisadoras subindo pela coluna acima. reconhecê-las, no entanto,


equivaleria a sucumbir à cobardia.

- não te armes em psicóloga amadora comigo - disse. - lê esses disparates, se


quiseres. não tenho nada contra e tu pareces gostar, mas agradeço-te que não
apliques os teus diagnósticos à nossa relação.

- estás aterrorizado, não estás? - disse ela, ignorando as palavras dele. - ele gosta
de dança, de pássaros, gosta de animais pequenos, de cantar no coro da escola, de
arte medieval. como é que podes explicar estas coisas horríveis no teu filho? será
que o fruto das tuas entranhas se vai transformar num maricas? e se for esse o
caso, uma escola para rapazes não será justamente o ambiente mais prejudicial
para ele? ou será o contrário, porque a primeira vez que um dos rapazes mais
velhos tentar mostrar ao leo o que acontece quando um grupo de homens nus se
reúne, ele vai sentir-se horrorizado e como por milagre expulsará todas as
tendências aberrantes que possam existir no seu espírito apenas por medo?

ele fitava-a. ela fitava-o. ele imaginava o que poderia ela ler no seu rosto e pensava
se ela teria consciência do quanto o seu corpo ficara tenso e de que ele podia sentir
o sangue afluir, célere, a todas as suas extremidades. no rosto dela percebia apenas
o processo que ela seguia para avaliá-lo.

- presumo que tenhas aprendido nas tuas leituras que há coisas que não podem ser
reprimidas - disse ele.

- a preferência sexual? claro que não. ou se o é, é-o apenas por tempo indefinido. e
a outra? essa não pode ser reprimida eternamente.

- que outra?

- o artista. a alma do artista. estás a fazer o melhor que podes para destruí-la dentro
de leo. começo a perguntar-me quando terás perdido a tua?

saiu da cozinha. ouviu o som suave das sandálias de cabedal no chão de madeira.
ela caminhava na direção da sala de estar. da janela da cozinha podia ver a luz
acender-se naquela parte da casa. enquanto olhava, fiona aproximou-se da janela e
correu os cortinados.

virou-se, mas ao fazê-lo ficou frente-a-frente com os sonhos que pusera de parte.
uma carreira literária, fora isso que sempre quisera, imprimir a sua marca no mundo
das letras. ia ser o pepys do século vinte. possuía as palavras, e as idéias sempre
tinham sido como uma segunda pele para ele. noite após noite adormecera
embalado pela idéia de um casamento entre ambas. o melhor escritor que já
conheci, fora assim que david st. james o apresentara na semana anterior. que seria
feito de tudo isso agora?

sucumbira ao peso da realidade, à necessidade de pôr comida na mesa, de


construir um teto que o abrigasse.

sem esquecer o prazer intenso e requintado do exercício do poder, embora isso


fosse secundário. fundamentalmente, crescera. como toda a gente, como todos
deviam fazer, incluindo leo.

luxford decidiu que a conversa entre ele e fiona ainda não tinha terminado. se ela
insistisse em jogar o jogo da análise psicológica, não podia certamente ser avessa a
uma análise das suas motivações pessoais relativamente ao filho de ambos. o
comportamento dela em relação a leo merecia ser decentemente escrutinado. o
mesmo se aplicava ao posicionamento dela entre os desejos de leo e a sabedoria do
pai dele.

foi ao encontro dela, preparando-se para mais um combate verbal. conseguia ouvir
os sons emitidos pela televisão e distinguir a oscilação das imagens claro-escuras
refletidas na parede. abrandou o passo. a sua determinação de esclarecer tudo com
a mulher esmoreceu. ela deve estar mais aborrecida do que ele pensara
inicialmente, compreendeu. fiona nunca ligava a televisão, a não ser quando queria
anestesiar o cérebro agitado.

aproximou-se da entrada da divisão. viu-a encolhida num canto do sofá, uma


almofada apertada contra o estômago numa tentativa de obter conforto. o desejo de
travar um combate diminuiu quase por completo quando a viu. dissolveu-se quando
ela falou, sem virar a cabeça para encará-lo.

- não quero que ele vá. não lhe faças isso, querido. não está certo. - para além dela,
no ecrã, luxford viu que estavam a dar o jornal da noite. o rosto do locutor
desapareceu para dar lugar a uma vista aérea de uma paisagem campestre. no ecrã
aparecia a configuração serpenteante de um rio cortado por pontes, um rendilhado
de terrenos, carros seguindo ao longo de uma alameda estreita.

- os rapazes recompõem-se depressa - luxford disse à mulher. dirigiu-se para o sofá


e parou atrás dele. tocou o ombro dela. - É natural que te queiras agarrar a ele, fi. o
que não é natural é ceder ao impulso quando o melhor é deixá-lo viver uma nova
experiência.

- ele é demasiado jovem para novas experiências.

- vai sair-se bem.

- e se isso não acontecer?

- porque é que não enfrentamos as coisas à medida que elas forem acontecendo?

- tenho medo por ele.

- É por isso que és a mãe dele - luxford mudou de posição, indo sentar-se ao lado
dela, retirando a almofada e envolvendo-a nos seus braços. beijou-a nos lábios, e
sentiu o sabor a canela. - será que não podemos assumir uma posição conjunta em
relação a isto? pelo menos até vermos o que acontece?

- Às vezes acho que estás empenhado em destruir tudo o que nele é especial.

- se é especial e se for autêntico, não pode ser destruído. - virou a cabeça para olhar
para ele.

- acreditas nisso?

- tudo aquilo que eu sempre fui permanece vivo dentro de mim - disse ele,
indiferente ao fato de estar a falar verdade ou a mentir, desejando apenas pôr fim à
inimizade entre eles. - tudo o que existe de especial em leo permanecerá vivo dentro
dele. se for forte e autêntico.

- nenhum rapazinho de oito anos devia ser obrigado a suportar um batismo pelo
fogo.

- É uma forma de testar o material de que são feitos. tudo o que for forte resistirá.

- e é por isso que queres que ele passe por esta experiência? - perguntou ela. para
testar a sua determinação para ser quem é?

olhou-a diretamente nos olhos e mentiu sem um pingo de consciência.

- É por isso, sim.

puxou-a contra si e desviou a sua atenção para o ecrã de televisão. nesse momento,
uma repórter falava para um microfone. atrás dela via-se um plácido curso de água
que parecia um rio visto do ar, mas que era afinal, segundo ela, «... o canal do
kennet e do avon, onde no fim da tarde de hoje fora encontrado o corpo não
identificado de uma rapariga entre seis a dez anos de idade, aproximadamente pelo
sr. e a sra. esteban marquedas, um casal de recém-casados que descia o canal
num barco fluvial, viajando de reading para bath. embora a morte esteja a ser
investigada como tendo sucedido em circunstâncias suspeitas, não foi ainda tomada
qualquer decisão quanto ao fato de se tratar de homicídio, suicídio ou acidente.
fontes policiais informaram-nos que membros do departamento de investigação
criminal já esteve no local e que neste momento os computadores da polícia estão a
ser usados para tentar estabelecer a identidade da criança. todos aqueles que
possuam qualquer informação que possa ser útil à polícia deverão telefonar para a
esquadra de amesford». ela divulgou em seguida o número de telefone, que passou
no ecrã em rodapé. concluiu identificando-se e dizendo a sigla da estação, virando-
se em seguida para olhar a água do canal com uma expressão grave que, sem
dúvida, considerava adequada à situação.

fiona estava a dizer-lhe qualquer coisa, mas luxford não apreendia as suas palavras.
em vez disso, ouvia uma voz masculina que dizia: mato-a luxford, se a história não
for publicada, sobrepondo-se à voz de eve que ecoava: prefiro morrer a ceder à tua
chantagem, que, por sua vez, se misturava com a sua própria voz interior que
repetia os fatos que acabara de ouvir nas notícias.

levantou-se de um salto. fiona chamou-o. ele abanou a cabeça e tentou arranjar uma
explicação.

- raios. esqueci-me de falar com rodney acerca do conselho de redação de amanhã -


foi o melhor que conseguiu inventar.

saiu à procura de um telefone que ficasse o mais distante possível da sala de estar
de fiona.

Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o inspetor-detetive john thomas lynley foi
informado da morte ocorrida no canal. acabava de regressar à new scotland yard,
depois de ter concluído mais um encontro com os procuradores da coroa. nunca
sentira grande apetência pela investigação de casos de homicídio envolvendo
figuras mediáticas, e o caso que a acusação preparava neste momento para levar a
julgamento relacionado com a morte por asfixia de um dos membros da equipe
inglesa de críquete atraíra sobre ele mais atenções do que desejava. o interesse da
comunicação social, porém, ia declinando à medida que o caso iniciava o seu
percurso pelos meandros do sistema judicial, e era quase certo que só voltasse a
acender-se por altura do julgamento propriamente dito. sentia-se por isso como se
se tivesse descartado de um peso que fora obrigado a carregar semanas a fio.

fora até ao seu gabinete disposto a dar-lhe uma arrumação. durante a última
investigação, o caos ali dentro assumira proporções gigantescas. para além dos
relatórios, das notas, da transcrição de entrevistas, de documentação relativa à cena
do crime e da coleção de jornais que tinham passado a fazer parte do modo como
conduzira o caso, a sala de operações fora desmontada logo após a detenção do
criminoso, pelo que o conjunto de mapas, gráficos, horários, relatórios de
computador, registros telefônicos, arquivos e outros dados que aí se encontravam
tinham-lhe sido entregues para que ele se encarregasse da sua seleção,
arquivamento e deferimento. passara a maior parte da manhã a organizar este
material até ao momento em que saíra para encontrar-se com os procuradores da
coroa. estava decidido a concluir a tarefa antes do final do dia.

no entanto, ao entrar no gabinete descobriu que alguém tomara a iniciativa de o


auxiliar nos seus esforços titânicos. o sargento-detetive barbara havers, que
trabalhava com ele, estava sentada de pernas cruzadas no meio de uma pilha de
pastas de arquivo, um cigarro balançando-lhe nos lábios enquanto olhava através de
uma cortina de fumo para um relatório agrafado que tinha no colo. sem levantar os
olhos para encará-lo disse: - como é que estava a fazer isto, senhor? estou nisto há
uma hora e seja qual for o método que utilizou não faz qualquer sentido para mim.
este é o meu primeiro cigarro, agora, por isso. tinha de fazer alguma coisa para
acalmar os nervos. dê-me uma pista, então. qual é o seu método? há pilhas para
guardar e pilhas para deferir e pilhas para deitar fora? como é?

- até agora, só pilhas - disse lynley. tirou o casaco e pendurou-o nas costas de uma
cadeira. - julguei que fosse para casa. hoje não é dia das suas idas a greenford.

- É, mas chegarei lá quando chegar. não estou propriamente com pressa. sabe
como é.

sabia, de fato. a mãe do sargento estava instalada em greenford, numa residência


particular cuja proprietária cuidava de pessoas idosas, doentes e no caso da mãe de
havers de pessoas com problemas mentais, a troco de um pagamento. havers
rumava até lá sempre que o seu irregular horário de trabalho lho permitia, mas pelo
que lynley fora capaz de ler nas entrelinhas dos comentários lacônicos do sargento
sobre essas visitas, ao longo dos últimos seis meses, o fato de a mãe a reconhecer
ou não era sempre uma questão de sorte.

deu uma longa passa no cigarro antes de o apagar, num gesto de deferência para
com o pedido silencioso dele, esmagando-o contra a parede de metal do cesto dos
papéis e atirando-o para o lixo. rastejou através de uma série de pastas de arquivo
dispersas pelo chão e agarrou no saco de lona a tiracolo, sem forma definida.
remexeu dentro dele e acabou por sacar do interior um amontoado dos seus
pertences, entre os quais selecionou um pacote amarrotado de rebuçados de fruta.
desembrulhou dois e enfiou-os na boca.

- como é que deixou as coisas chegarem a este ponto? - indicou com um gesto largo
todo o gabinete e encostou-se à parede. equilibrou o tornozelo esquerdo sobre os
dedos do pé direito e contemplou os sapatos. calçava uns tênis vermelhos de pala
subida, que, combinados com as calças azul-marinho constituíam uma verdadeira
afirmação de um estilo de vestir.

- só a anarquia reina neste mundo - disse lynley, em resposta à pergunta dela.

- neste gabinete, mais exatamente - retorquiu ela.

- acho que perdi um pouco o controle das coisas - continuou ele, e acrescentou com
um sorriso, - mas pelo menos não se desmoronaram por completo. o que significa,
acho eu, que o centro se mantém intacto.

o rosto dela contorceu-se numa careta, sobrancelhas juntas, lábios enrugados,


queixo levantado na direção do nariz como se perscrutasse as palavras dele, em
busca do seu significado.

- quem, o quê, onde, senhor? - disse ela.

- poesia - disse ele. dirigiu-se à secretária e estudou melancolicamente o conjunto


de pastas de arquivo, livros, mapas e documentos que se amontoavam sobre ela.

- «as coisas desmoronam-se; o centro não pode resistir; só a anarquia reina neste
mundo.» um excerto de um poema - disse ele.

- oh, um poema. bonito. já lhe disse como aprecio os seus esforços para elevar a
minha consciência cultural? shakespeare, era?

- yeats.

- melhor ainda. gosto que as minhas alusões literárias sejam obscuras. voltando ao
nosso assunto, o que é que vamos fazer com tudo isto?

- rezar para que haja um incêndio - disse ele.

um pigarrear elegante e delicado desviou a atenção de ambos para a porta do


gabinete de lynley. um corpo cingido por um fato assertoado rosa-choque assomara
à entrada, um folho de seda creme espreitando exuberantemente à altura da
garganta. na parte central do folho repousava um camafeu antigo. para completar o
conjunto, bastava que a secretária do superintendente tivesse colocado um chapéu
de abas largas, e pareceria um membro da família real vestido a rigor para ascot.

- que espetáculo desolador, inspetor-detetive lynley - dorothy harriman abanou a


cabeça num movimento melancólico, referindo-se ao estado do gabinete dele. - deve
ser um truque para obter uma promoção. só o superintendente webberly seria capaz
de uma desordem semelhante, embora com muito menos material.

- não quer dar-nos uma mãozinha, dee? - sugeriu havers, que continuava sentada
no chão.

harriman levantou as mãos exibindo umas unhas perfeitamente arranjadas.

- lamento muito. outros deveres me chamam, sargento-detetive - disse. - e a si


também. sir david quer vê-los. aos dois, aliás.

havers bateu com a cabeça na parede, fazendo um ruído surdo.

- mate-nos agora - resmungou ela em tom de lamento.

- já teve idéias piores do que essa - disse lynley. sir david hillier acabara de ser
promovido a comissário-adjunto. durante as duas últimas capturas que lynley fizera
com hillier a situação oscilara perigosamente entre a insubordinação e a guerra
declarada. fosse qual fosse o motivo por que hillier queria vê-los nesse momento,
não se trataria provavelmente de nada agradável.

- o superintendente webberly está com ele - adiantou harriman, talvez em jeito de


encorajamento. - e sei de fonte bem segura que ambos passaram a última hora
trancados no gabinete com a nata da nata: sir richard hepton. chegou e partiu a pé.
o que é que pensa disto?

- dado que o ministério do interior fica a cinco minutos daqui, a pé, não penso nada -
disse lynley. - deveria pensar?

- o secretário do interior? deslocar-se à new scotland yard a pé? fechar-se no


gabinete com sir david durante uma hora?

- deve ser masoquista - concluiu havers.

- a meio do encontro, sensivelmente, mandaram chamar o superintendente webberly


e conversaram os três durante mais trinta minutos. então sir richard saiu e depois sir
david e o superintendente webberly mandaram-vos chamar. estão à espera neste
momento. lá em cima.

lá em cima significava no novo gabinete do comissário-adjunto, sir david hillier, para


onde ele se mudara lestamente mal a sua promoção fora oficializada. possuía uma
vista desinteressante sobre victoria street, e as paredes ainda não tinham sido
decoradas com o arsenal de fotografias que imortalizavam os momentos altos da
carreira de hillier. estas, porém, encontravam-se já espalhadas pelo chão, como se
alguém tivesse tentado decidir-se pela disposição mais favorecedora. no centro
estava uma ampliação da investidura de sir david com o título de cavaleiro. aparecia
ajoelhado, dedos entrelaçados e cabeça baixa. havia anos que não parecia tão
humilde.

hoje, o homem estava vestido de cinzento, com um fato feito por encomenda que
combinava exatamente com o tom da cabeleira farta. sentado atrás da secretária,
que de tão grande parecia um campo de futebol, tinha as mãos cruzadas sobre um
mata-borrão debruado a pele numa posição que fazia com que o anel brasonado
brilhasse sob as luzes do teto. exatamente à direita de um dos lados do mata-borrão
estava um bloco amarelo coberto com a caligrafia arredondada, fluente e
autoconfiante de hillier.

o superintendente webberly o superior hierárquico imediato de lynley equilibrava-se,


desconfortável, na beira de uma cadeira de encosto recuado, um exemplo do estilo
ultramoderno de que hillier tanto gostava. tinha na mão um charuto embrulhado que
fazia rolar, pensativamente, ao longo do polegar. parecia um urso, no seu fato de
tweed coçado.

- o corpo de uma criança foi encontrado em wiltshire, ontem à noite - disse hillier,
indo direto ao assunto. - dez anos. É filha da subsecretária de estado para o
ministério do interior. o primeiro-ministro quer que a yard conduza a investigação. o
secretário de estado é da mesma opinião. indiquei o seu nome.

as suspeitas de lynley despertaram de imediato. hillier nunca sugeria o seu nome


para um caso a não ser que tivesse algo desagradável na manga. viu que havers
estava igualmente desconfiada, pois lançou-lhe um rápido olhar de soslaio como se
quisesse avaliar a reação dele. hillier pareceu reconhecer as reticências de ambos,
porque continuou de forma concisa.

- sei que tem havido alguns conflitos entre nós nos últimos dezoito meses, inspetor.
no entanto, ambos partilhamos as culpas.

lynley ergueu os olhos, pronto a questionar a utilização da palavra ambos. hillier teve
consciência disso, porque disse logo de seguida:

- eu posso ser mais culpado do que o senhor. todos nós obedecemos a ordens
quando somos obrigados a isso. eu reajo da mesma maneira que o senhor, numa
situação como essa. gostaria de enterrar o passado. está disposto a fazer o mesmo?

- se está a destacar-me para um caso, cooperarei - disse lynley e acrescentou, -


senhor.

- terá de fazer mais do que cooperar, inspetor. terá de se reunir comigo quando para
isso for solicitado, para que eu possa elaborar relatórios para o primeiro-ministro e
para o secretário de estado do interior. isso significa que não poderá reter
informação como fez no passado.

- david - disse webberly, cautelosamente. puseste o pé no sítio errado, era a


mensagem implícita no seu tom de voz.

- julgo que expus os fatos claramente, tal como me foram dados a conhecer - lynley
disse para hillier, num tom imparcial.

- foi suficientemente claro e direto depois de eu ter apertado consigo - disse hillier. -
mas não quero ser obrigado a fazê-lo desta vez. a investigação vai ser seguida de
perto por todos, desde o primeiro-ministro até ao último dos deputados
conservadores. não podemos dar-nos ao luxo de não conseguir trabalhar em equipe.
se o fizermos, a cabeça de alguém há-de rolar.

- percebo muito bem o que está em jogo, senhor - disse lynley. o que estava em jogo
era virtualmente tudo, uma vez que o ministério do interior tutelava o funcionamento
da new scotland yard.

- Ótimo. folgo muito em sabê-lo. ouça isto, então. ainda nem há uma hora, o
secretário de estado do interior deu-me ordens para destacar para o caso o meu
melhor elemento. escolhi-o a si. - era o mais próximo de um elogio que hillier
conseguira chegar, e acrescentou: - faço-me entender? - não fosse dar-se o caso de
lynley não ter percebido a homenagem indireta que o comissário-adjunto estava a
prestar aos talentos do seu subordinado.

- perfeitamente - disse lynley.

hillier meneou a cabeça e começou a desfiar os pormenores: a filha de eve bowen,


ministra do ministério do interior, fora raptada na quarta-feira anterior, alegadamente
no percurso entre a lição de música e a sua casa em marylebone. algumas horas
depois, foram entregues notas de rapto, apresentadas reivindicações e foi ainda
enviada uma gravação audio da criança.

- resgate? - perguntou lynley, referindo-se às reivindicações. hitler abanou a cabeça


em sinal negativo. - o raptor, - disse, - pretendia que o verdadeiro pai da criança
revelasse a sua identidade nas páginas dos jornais. o pai da criança não o fez,
porque a mãe não queria. quatro dias depois da primeira reivindicação a criança foi
encontrada, afogada.

- assassinada?

- ainda não há provas concretas disso - interveio webberly. - mas é provável que sim.

hillier abriu uma das gavetas da sua secretária e tirou uma pasta de arquivo, que
entregou a lynley. para além do relatório da polícia continha as fotografias oficiais
que a polícia tirara ao corpo. lynley examinou-as lentamente, registrando o nome da
criança, charlotte bowen, e o número do caso impresso nas costas de cada uma
delas. o corpo não apresentava marcas de violência significativas. superficialmente,
a sua aparência indicava afogamento acidental. À exceção de um pormenor.

- não tem espuma nas narinas - disse.

- de acordo com o departamento de investigação criminal local, o patologista


encontrou vestígios de espuma nos pulmões, mas só depois de pressionar o tórax -
disse webberly.

- aí está uma peculiaridade interessante.

- É, não é?

- o que queremos é o seguinte - interveio hillier, impaciente. nenhum dos presentes


ignorava que ele nunca se interessara pelas provas existentes na cena do crime,
pelos depoimentos das testemunhas, pela corroboração de alibis ou pela reunião e
interligação dos fatos. o que o fascinava acima de tudo era a estrutura política da
polícia e este caso, em particular, prenunciava uma exposição a esses meios de
uma forma ainda imprevisível. - o que queremos é o seguinte - repetiu. - um
elemento da yard em todos os níveis da investigação, em todos os locais da ação e
em todas as circunstâncias.

- isto é uma batata quente - observou havers.

- o secretário de estado não está preocupado com as sensibilidades pessoais que


possam vir a ser feridas, seja em que distrito policial for, sargento. ele quer que
estejamos envolvidos em todas as áreas de investigação, e é isso que vamos fazer.
mandaremos alguém para wiltshire para chefiar as operações na zona, outra pessoa
para conduzir as coisas aqui em londres e outra para estabelecer a ligação entre o
ministério do interior e downing street. se algum dos elementos destacados tiver
algum problema no decurso da investigação poderá ser substituído por outro que
não os tenha.

lynley passou as fotografias ao sargento, enquanto perguntava a hillier: - que


informações nos deu a divisão policial de marylebone até ao momento?

- nenhumas.

lynley fitou hillier e depois webberly, registrando o fato de este último ter passado a
olhar fixamente para o chão.

- nenhumas? - disse. - mas quem é o nosso contato na esquadra de polícia local?

- não temos contato lá. a polícia local não foi envolvida no caso.

- mas disse-me que a criança foi dada como desaparecida na quarta-feira passada.

- pois disse. a família não contatou a polícia.

lynley tentou digerir este último dado. cinco dias tinham passado desde o
desaparecimento da garota. segundo hillier e webberly, um dos pais recebera
telefonemas. uma mensagem numa cassete audio tinha sido gravada. cartas
escritas. reivindicações apresentadas. a criança em questão tinha apenas dez anos.
e agora estava morta.

- eles são loucos? - disse. - com que tipo de pessoas estamos a lidar? a filha
desaparece e eles nada fazem para...

- isso não é exatamente verdade, - tommy webberly levantou a cabeça. - na


verdade, eles procuraram ajuda. contactaram alguém logo na quarta-feira à noite. só
que não foi a polícia.

a expressão do rosto de webberly fez com que lynley se sentisse tenso. tinha a
nítida sensação de que, pondo de parte o fato de hillier reconhecer o seu talento e
competência pessoais, estava prestes a descobrir por que motivos o tinham
escolhido para dirigir o caso.

- quem foi, então? - perguntou.

webberly soltou um suspiro e enfiou o charuto no bolso superior do casaco.

- receio bem que seja aqui que as coisas se tornam turvas e perigosas - disse.

lynley conduzia energicamente o bentley na direção do tamisa. segurava o volante


com força. não sabia o que pensar sobre o que acabava de saber e fazia um esforço
diabólico para reprimir qualquer tipo de reação. só quero chegar lá, dizia para si
próprio, tentando ser razoável. limita-te a chegar lá inteiro e faz as perguntas que
entenderes necessárias para a compreensão dos fatos.

havers seguira-o enquanto ele atravessava o parque de estacionamento


subterrâneo.

- ouça o que lhe digo, senhor - pedira ela, conseguindo por fim agarrá-lo pelo braço,
embora ele continuasse a andar sem lhe responder, perdido nos seus próprios
pensamentos. vendo que não conseguia detê-lo decidiu que só lhe restava bloquear-
lhe o caminho com o seu corpo atarracado. - ouça-me. É melhor não ir até lá agora.
acalme-se primeiro. fale com eve bowen, ouça a versão dela.

ele fitara o sargento, perplexo com o comportamento dela.

- estou perfeitamente calmo, havers. siga para wiltshire. faça o seu trabalho e deixe-
me fazer o meu - dissera ele.

- perfeitamente calmo? - duvidara ela. - isso é tanga. está prestes a explodir à


mínima provocação, e sabe-o muito bem. se bowen o contratou para procurar a filha
e webberly disse que ela o fizera, ainda nem há quinze minutos, então a atuação de
simon daí para a frente foi meramente profissional.

- concordo. por isso gostaria de inteirar-me dos fatos através dele. parece-me lógico
começar por aí.

- pare de mentir para si mesmo. não são fatos o que procura, é vingança. basta
olhar para si para perceber isso.

não restavam dúvidas, compreendeu lynley, ela era maluca.

- não seja absurda. vingança de quê? - perguntou.

- sabe muito bem de quê. devia ter visto a sua cara quando webberly disse o que se
tinha passado desde quarta-feira. ficou pálido até aos lábios e ainda não recuperou
as suas cores normais.

- que disparate.
- será? ouça, eu conheço simon e o senhor também. o que é que acha que ele
andou a fazer? acha que se limitou a ficar sentado à espera que a miúda fosse
encontrada morta no meio do campo? É isso que julga que aconteceu? É essa a sua
idéia do que terá acontecido?

- o que aconteceu - disse ele, sensatamente, - foi que uma criança morreu. e com
certeza concordará comigo quando lhe digo que essa morte poderia ter sido evitada
se simon, já para não falar de helen, tivesse sido previdente ao ponto de advertir a
polícia logo de início.

havers cerrou os lábios. na expressão do seu rosto podia ler-se: apanhei-te.

- e essa é que é a questão, não é? - disse. - É isso que está a incomodá-lo?

- a incomodar-me?

- É helen, não simon. nem sequer é esta morte. helen esteve envolvida no caso até
ao pescoço, até aos brincos de ouro de dezoito quilates e você não sabia de nada.
certo? então? tenho razão, ou não, inspetor? e é por isso que vai a casa de simon.

- havers - disse lynley - eu tenho coisas a fazer. por favor, saia do meu caminho.
porque caso não se afaste para me deixar passar imediatamente, vais descobrir que
foi destacada para outro caso.

- muito bem - disse ela. - continue a mentir para si próprio. e enquanto está nisso
puxe dos galões e resolva o assunto.

- creio que foi isso que acabei de fazer. e uma vez que esta é a sua primeira
oportunidade para estar à frente de pelo menos um ramo da investigação, sugiro
que reconsidere as suas opções de forma sensata antes de me pressionar mais.

arqueou o lábio superior e meneou a cabeça.

- que inferno - disse ela - o senhor às vezes consegue ser mesmo estúpido. - rodou
nos calcanhares e encaminhou-se para o seu próprio carro, atirando a alça do saco
de lona sobre o ombro.

lynley entrou no bentley e arrancou com um estrondo desnecessário, mas


gratificante. um minuto depois saía do parque subterrâneo e dirigia-se, veloz, para
victoria street. a sua mente tentava lidar com o processo de dar início a uma
investigação. todavia, lutava igualmente com o seu coração que, tal como havers
astutamente descobrira maldita intuição, a dela, estava fixo em helen. porque helen
mentira-lhe deliberadamente na quarta-feira à noite. toda aquela conversa
despreocupada acerca dos nervos, sobre o casamento, o futuro deles juntos não
passava de uma fachada inventada para esconder as suas atividades com simon. e
a conseqüência dessa mentira e dessas atividades fora a morte de uma garota.

carregou com força no acelerador. estava preso entre três camionetas de turismo
que tentavam escapar em simultâneo à zona que circundava a abadia de
westminster quando se apercebeu que, dada a hora do dia, deveria ter tomado uma
estrada diferente para chegar ao rio. já que ali estava, porém, disporia de tempo
suficiente para questionar o comportamento incompreensível dos amigos e tempo
igualmente suficiente para meditar sobre as conseqüências desse comportamento
até conseguir ultrapassar, por fim, o engarrafamento da hora de ponta em volta de
parliament square e dirigir-se para chelsea, a sul.

o trânsito estava terrivelmente congestionado. disputou espaços livres com táxis e


autocarros. na zona em que se elevavam os cabos e as torres esguias da albert
bridge contornou a curva de cheyne walk e daí seguiu para cheyne row. enfiou o
bentley na parte alta da ruazinha estreita e agarrou no processo que continha os
dados sobre a morte de charlotte bowen. caminhou na direção do rio, até à casa alta
de tijolo ocre, situada na esquina de cheyne row com lordship place. o bairro estava
envolto num silêncio absoluto e ele recebeu esse silêncio como um bálsamo
momentâneo. respirou fundo para se acalmar. «muito bem», pensou, «controla-te.
estás aqui para te inteirares dos fatos, e é tudo. este é o local mais lógico para
iniciar a investigação, e faças o que fizeres não poderás ser acusado de perder as
estribeiras. a recomendação do sargento havers de que começasse por visitar eve
bowen não passava do reflexo da inexperiência dela. não havia razão para falar com
eve bowen em primeiro lugar quando a informação de que precisava para dar início
à sua investigação se encontrava aqui, nesta casa. essa é que era a verdade dos
fatos. quaisquer pretensões de que se encontrava ali para se vingar, ou de que
estava a mentir para si mesmo eram completamente descabidas. certo? certo.»

usou a aldraba para sinalizar a sua chegada. momentos depois recorreu também à
campainha. ouviu o cão ladrar e depois o toque do telefone. a voz de deborah ecoou
no interior: - santo deus, tudo ao mesmo tempo e continuou. eu vou à porta. podes
atender o telefone?

a porta foi destrancada. deborah apareceu, descalça e vestida com umas calças de
ganga cortadas à altura da coxa, as mãos cheias de farinha, que manchava
igualmente a sua t-shirt preta. o rosto dela iluminou-se quando o viu.

- tommy! santo deus. ainda nem há cinco minutos estávamos a falar em ti - disse
ela.

- preciso de falar com helen e com simon.

o sorriso dela esmoreceu. conhecia-o demasiado bem. o tom de voz dele dizia-lhe
apesar do esforço que fazia para se manter calmo que algo não ia bem.

- na cozinha. no laboratório. quer dizer, helen está na cozinha e simon está no


laboratório informou. o meu pai e eu estávamos mesmo agora a ensiná-la a... tommy
o que é que...? passa-se alguma coisa?

- importas-te de chamar simon?

deixou-a quando ela se precipitava escadas acima, dirigindo-se ao andar superior.


encaminhou-se para as traseiras, onde um lance de escadas conduzia à cozinha, na
cave. as gargalhadas de helen e a voz de joseph cotter chegavam até ele.
- vamos lá ver, o segredo está nas claras - dizia cotter. - são elas que lhes dão o tom
acastanhado certo e faz com que fiquem bonitas e brilhantes por cima. mas primeiro
separamos as claras das gemas, tá a ver. fazemos uma racha firme à volta da
casca, assim. usamos as metades da casca pr’a passar a gema dum lado pr’ó outro,
assim, até a clara estar separada.

- É mesmo só isso que é preciso fazer? - retorquia helen. - mas é simplicíssimo. até
um idiota era capaz de fazer isto. até eu sou capaz de o fazer.

- É simples, é - disse ele. - experimente lá.

lynley desceu as escadas. cotter e helen ladeavam a mesa de trabalho que estava
no centro da cozinha. helen estava enrolada num enorme avental branco, cotter em
mangas de camisa, enroladas até aos cotovelos. espalhados entre os dois viam-se
tigelas, formas, caixas de passas, sacos de farinha e outros ingredientes. helen
estava concentrada na tarefa de separar uma clara de uma gema para dentro de
uma das tigelas mais pequenas. as formas continham os frutos do trabalho deles:
montículos de massa em forma de circunferência, pintalgados de passas.

a pequena cadela dachshund dos st. james foi a primeira a notar a presença de
lynley. lambia, atarefada, a farinha que cobria o chão em redor de helen, mas talvez
pressentindo a presença dele, levantou a cabeça e ao vê-lo soltou um latido agudo.

helen levantou a cabeça, uma casca de ovo suspensa em cada mão. tal como
deborah, momentos antes, também o seu rosto se abriu num sorriso.

- tommy! olá - disse ela. - imagina o impossível. estou mesmo a fazer scones.

- temos de conversar

- agora não posso. estão prestes a ensinar-me o toque final na minha obra-prima,
logo que acabe de separar a clara e a gema deste ovo. tarefa em que, devo
confessar, estou a ficar especialista, como cotter sem dúvida concordará.

cotter, no entanto, parecia ter sido mais perspicaz ao observar a expressão do rosto
de lynley.

- eu acabo isto aqui - disse ele. - num abrir e fechar de olhos. não custa nada. vá
conversar com lord asherton.

- que disparate - disse ela.

- helen - disse lynley.

- não posso abandonar a minha criação num momento tão importante. cheguei até
aqui e quero continuar até ao fim. tommy esperará por mim. esperas, não é verdade,
querido?

a expressão carinhosa enervou-o.


- charlotte bowen morreu - disse.

as mãos de helen ficaram suspensas, segurando ainda a casca do ovo. baixou-as.

- meu deus - disse.

cotter, avaliando corretamente o clima que se instalara entre ambos, chamou a


cadela e foi buscar a trela que estava pendurada próximo da porta das traseiras.
saiu sem dizer uma palavra. instantes depois, o portão que dava para lordship place
abriu com um ranger de gonzos e voltou a fechar-se.

- o que é que pensavas que estavas a fazer? - perguntou lynley. - diz-me, helen, por
favor.

- o que é que aconteceu?

- acabei de te dizer o que aconteceu: a garota está morta.

- como? quando?

- não interessa como nem quando. o que importa é que ela poderia ter sido salva.
isto podia nunca ter acontecido. ela poderia estar com a família neste preciso
momento, se tivesses tido o bom senso suficiente para informar a polícia sobre o
que se estava a passar.

ela recuou ligeiramente perante as palavras dele. em seguida falou numa voz quase
indistinta.

- isso não é justo. pediram a nossa ajuda. não queriam a polícia envolvida no
assunto.

- helen, não me interessa o que vos pediram. não me interessa quem pediu a vossa
ajuda. a vida de uma criança estava em risco e essa vida já não existe. acabou. está
morta. não vai voltar. afogou-se no canal do kennet e do avon e o corpo ficou a
apodrecer no meio do canavial. então...

- tommy - a voz ríspida de st. james vinha das escadas, por cima dele. deborah
vinha logo atrás. - já percebemos.

- fazes alguma idéia do que aconteceu? - perguntou lynley.

- barbara havers acabou de telefonar-me - desceu desajeitadamente as escadas até


à cozinha. deborah vinha atrás dele. o seu rosto estava tão branco como a farinha
que lhe manchava a t-shirt. ela e st. james juntaram-se a helen junto da mesa da
cozinha, do lado oposto àquele onde se encontrava lynley.

- lamento - disse st. james, calmamente. - não queria que as coisas terminassem
desta forma. penso que sabes isso.
- então, porque é que não fizeste nada para impedi-lo?

- tentei.

- tentaste o quê?

- conversar com os dois, com a mãe e com o pai. tentei chamá-los à razão.
convencê-los a contactar a polícia.

- mas não a manterem-se afastados. não tentaste forçá-los. isso não tentaste.

- de início, não. não o fiz, admito isso. nenhum de nós fez isso, inicialmente.

- nenhum de...? - os olhos de lynley fixaram-se em deborah, que torcia as mãos no


rebordo da t-shirt e parecia completamente arrasada. ele compreendeu a extensão
das palavras de st. james, compondo o pecado que haviam cometido milhares de
vezes.

- deborah? deborah participou nesta trapalhada? santo deus, perderam


completamente a cabeça, todos vocês? com algum esforço, sou capaz de perceber
o envolvimento de helen, porque ela, pelo menos, possui um mínimo de experiência,
já que trabalha contigo. mas deborah? deborah? ela está tão preparada para se
imiscuir numa investigação de rapto como o cão cá de casa.

- tommy - disse helen.

- quem mais? - perguntou lynley. - quem mais tomou parte nisto? e o cotter? ele
também colaborou? ou foram vocês os únicos cretinos que mataram charlotte
bowen?

- tommy, já disseste o suficiente - disse st. james.

- não disse, não. e duvido que alguma vez venha a dizer. o responsável és tu, vocês
três, e gostaria que percebessem exatamente aquilo de que são responsáveis -
abriu a pasta de arquivo que trouxera do carro.

- aqui, não - disse st. james.

- não? preferes não ver como as coisas acabaram? - lynley atirou uma fotografia
para cima da mesa, que aterrou precisamente em frente a deborah. - dá uma
olhadela - disse ele. - podes querer memorizá-la, na eventualidade de decidires
matar outras crianças.

deborah tapou a boca com o punho, mas isso não foi suficiente para abafar o grito.
st. james afastou-a da mesa com um gesto brusco.

- vai-te embora, tommy - disse para lynley.

- não vai ser assim tão fácil.


- tommy! - helen estendeu uma mão na direção dele.

- quero saber o que é que sabes disse, - referindo-se a st. james. - quero todas as
informações de que dispões. quero todos os pormenores e deus te ajude, simon, se
te esqueceres de incluir um único fato. - st. james abraçara a mulher.

- agora não. estou a falar a sério. vai-te embora - disse lentamente.

- não saio antes que me dês aquilo de que vim à procura.

- creio que acabaste de o conseguir - disse st. james.

- diz-lhe - disse deborah, encostada ao ombro do marido. - por favor, simon. diz-lhe,
por favor.

lynley observou st. james enquanto este ponderava cuidadosamente as alternativas.

- leva deborah para cima - acabou por pedir a helen.

- deixa-a ficar aqui - disse lynley.

- helen - disse st. james.

passaram-se alguns instantes antes que helen se decidisse.

- vem comigo, deborah - disse, e depois, virando-se para lynley. - ou quererás deter-
nos? És suficientemente grande para o fazer e, para ser sincera, começo a
interrogar-me se nos dias que correm te absterás de agredir mulheres. já que
aparentemente não te importas de ultrapassar outros limites.

passou por ele, apressada, com um braço em torno dos ombros de deborah.
subiram as escadas e fecharam a porta atrás delas.

st. james olhava para a fotografia. lynley podia ver um músculo latejando
furiosamente no maxilar dele. lá fora, a uma certa distância, ouvia o cão ladrar e os
grito de cotter, chamando-o. então, st. james levantou finalmente a cabeça. - tudo
isto foi particularmente indesculpável - disse.

embora soubesse a que st. james se referia, lynley optou deliberadamente por fingir
que não entendera o significado das suas palavras. - concordo - disse, friamente. -
foi indesculpável. agora diz-me o que sabes.

estudaram-se um ao outro através da mesa da cozinha. longos minutos escoaram-


se durante os quais lynley imaginou se o amigo iria cooperar fornecendo-lhe as
informações, ou retaliar através do silêncio. passaram quase trinta segundos antes
que as suas dúvidas fossem respondidas, antes que st. james se decidisse a falar.

contou a sua história de maneira concisa, sem erguer os olhos. elucidou lynley sobre
o que se passara dia após dia desde o desaparecimento de charlotte bowen.
delineou os fatos que apurara. fez uma lista das provas que reunira. explicou os
passos que dera e porquê. e quando, por fim, acabou, a sua atenção ainda
teimosamente concentrada na fotografia, disse:

- É tudo. deixa-nos, tommy. - lynley sabia que era tempo de ceder.

- simon... - disse.

mas st. james cortou-lhe a palavra.

- vai-te embora - disse. lynley fez-lhe a vontade.

a porta do escritório estava fechada. lynley vira-a aberta no momento em que


deborah o convidara a entrar em casa, e percebeu que fora para lá que helen a
levara. rodou a maçaneta sem bater à porta.

deborah estava sentada na otomana, braços apertados em torno do estômago e


ombros arqueados. helen estava sentada em frente dela, no sofá. tinha um copo na
mão.

- bebe mais um pouco, deborah - dizia.

- acho que não sou capaz - respondia deborah.

lynley chamou helen pelo nome. a reação de deborah foi virar o corpo de forma a
ficar de costas para a porta. helen pousou o copo na mesa de apoio ao lado do sofá,
tocou ao de leve no joelho de deborah e veio ao encontro de lynley. saiu para o
corredor e fechou a porta atrás de si.

- excedi-me há pouco. lamento - disse lynley. ela brindou-o com um ligeiro sorriso.

- não, não lamentas. mas suponho que estejas satisfeito. espero que não tenhas
conseguido deixar uma única pedra de pé.

- que diabo, helen. escuta-me.

- diz-me uma coisa. há mais alguma coisa por que queiras esfolar-nos vivos, antes
de saíres? porque eu detestaria que saísses sem que tenhas saciado o teu desejo
de castigar, humilhar e catequizar.

- não tens o direito de te sentires ofendida, helen.

- do mesmo modo que tu não tinhas o direito de julgar.

- morreu uma pessoa.

- a culpa não é nossa. e eu recuso-me, tommy. recuso-me a baixar a vergar os


joelhos e a implorar o teu perdão hipócrita. não fiz nada de mal em toda esta
situação. nem simon, nem deborah.

- À parte as tuas mentiras.


- mentiras?

- podias ter-me contado a verdade na quarta-feira à noite. eu perguntei. mentiste.

ela levou a mão à garganta. na luz difusa do corredor, os olhos escuros dela
pareciam ter adquirido um brilho ainda mais escuro.

- meu deus - disse ela. - miserável fariseu. não posso acreditar... - cerrou os punhos.
- isto não é por causa de charlotte bowen, pois não? isto nada tem a ver com
charlotte bowen. vieste até aqui e rebentaste como um cano de esgoto roto por
minha causa. porque eu escolhi guardar um segredo para mim, porque não te disse
algo que nem sequer tinhas o direito de saber.

- perdeste a cabeça? morreu uma criança, está morta, helen, e suponho que posso
presumir que tu saibas o que isso significa. por isso que conversa é essa sobre
direitos? ninguém a não ser a pessoa que corre perigo tem quaisquer direitos
quando uma vida humana está em perigo.

- exceto tu - disse ela. - exceto thomas lynley. exceto lord asherton, o homem que
nasceu com uma colher de prata na boca. É aí que pretendes chegar: aos teus
direitos onipotentes e, neste caso em particular, ao teu direito de saber. não sobre
charlotte bowen, porque ela é apenas o sintoma. não é a doença.

- não transformes isto numa reflexão sobre nós.

- não preciso de o fazer. está à vista.

- está? - perguntou ele. - e o resto, não vês? se me tivesses dito alguma coisa, ela
poderia estar viva. poderia estar em casa. poderia ter escapado ilesa do rapto e não
ter acabado morta, flutuando no canal.

- se te tivesse simplesmente contado a verdade?

- isso teria sido um bom começo.

- era uma opção de que eu não dispunha.

- era a única opção que poderia ter salvo a vida dela.

- achas que sim? - recuou, observando-o com um olhar que ele não pôde deixar de
classificar de lastimoso. - isto é capaz de te surpreender, tommy - disse ela - e quase
que odeio ter de ser eu a informar-te, tendo em conta o choque que vais ter. não és
onipotente, e apesar da tua tendência para interpretar esse papel, também não és
deus. e agora, se me dás licença, gostaria de ver se deborah está melhor. levou a
mão à maçaneta da porta do escritório.

- ainda não terminamos - disse ele.

- tu talvez não - assinalou ela - mas eu já. de vez.


deixou-o de frente para as almofadas escuras da porta. olhou fixamente para elas.
lutou para dominar o impulso avassalador de golpear a parede. reparou que em
determinado momento da conversa tinha cerrado os punhos movido por um desejo
de agredir. sentia-o ainda nesse momento, um desejo intenso de enfiar o punho
numa parede ou numa janela, de sentir dor e simultaneamente de a provocar.

fez um esforço para se afastar do escritório. fez um esforço para caminhar até à
porta de entrada. lá fora, fez um esforço para respirar.

tinha a impressão de que ouvia a avaliação que o sargento havers faria do seu
encontro com os amigos: belo trabalho, inspetor. até tirei algumas notas. acusar,
insultar e afastar toda a gente. brilhante maneira de garantir a colaboração de todos
eles.

e que outra coisa poderia ter feito? tê-los cumprimentado pela forma absurda como
tinham interferido no caso? deveria tê-los informado educadamente do falecimento
da criança? será que deveria ter utilizado um termo imbecil e inócuo como
falecimento para poupá-los, não fossem eles sentir-se como muito bem se deviam
sentir na ocasião: responsáveis?

eles fizeram o melhor que sabiam, diria havers. o senhor ouviu o relatório de simon.
seguiram todas as pistas, reconstituíram os movimentos dela na quarta-feira,
mostraram a fotografia dela na zona de marylebone, falaram com as pessoas que a
viram pela última vez. que mais teria o senhor feito, inspetor?

teria investigado antecedentes, instalado escutas telefônicas, destacado uma dúzia


de agentes para marylebone, fornecido a fotografia da garota aos canais de
televisão e solicitado que os espectadores fornecessem dados sobre se a tinham
visto ou não, teria inserido o nome e a descrição dela na base de dados do
computador. tudo isso apenas para começar.

e se os pais não quisessem que procedesse dessa forma? havers teria perguntado.
o que faria, então, inspetor? que teria feito se eles o tivessem atado de pés e mãos,
como fizeram com simon?

acontece que eles não teriam podido fazer o mesmo com lynley. ninguém telefonava
para a polícia denunciando um crime para, em seguida, definir o modo como a
polícia deveria investigar o caso. st. james se não helen e deborah sabia isso
perfeitamente. desde o início que poderiam ter desenvolvido um tipo de investigação
completamente diferente daquela que tinham posto em prática. e todos eles tinham
consciência desse fato.

mas tinham dado a sua palavra...

lynley conseguia ainda ouvir a argumentação de havers, mas esta estava a tornar-se
mais indistinta. e o último ponto que apresentara era o mais fácil de rejeitar. a
palavra deles não tinha qualquer valor quando comparada com a vida de uma
criança.
lynley desceu os degraus até ao asfalto. sentiu o alívio que acompanhava a
consciência de que tinha razão. caminhou até ao bentley, e quando se preparava
para abrir a porta do carro ouviu alguém chamá-lo pelo nome.

st. james avançava na direção dele. o seu rosto era uma máscara impassível e
quando chegou junto do carro limitou-se a entregar-lhe uma pasta de arquivo,
dizendo:

- creio que vais precisar disto.

- o que é?

- uma fotografia da escola de charlotte. os bilhetes enviados pelo raptor. as


impressões digitais no gravador. o registro das impressões digitais que fiz de luxford
e stone.

lynley concordou com um aceno da cabeça e aceitou o material. ao fazê-lo


descobriu que, apesar de acreditar que censurara justamente os amigos e a mulher
que amava, sentia algum desconforto ao ser confrontado com a cortesia deliberada
de st. james e tudo o que essa cortesia implicava. este desconforto irritava-o,
obrigando-o a recordar que certas obrigações que faziam parte da sua vida eram
muitas vezes sujas, ultrapassando os meros limites do seu trabalho.

desviou o olhar, fitando o cimo da rua onde cheyne row descrevia uma curva, onde
ficava uma casa de tijolo antiga em adiantado estado de degradação. poderia valer
uma fortuna se alguém se tivesse interessado pela sua renovação. tal como estava
era inabitável.

- raios te partam, simon - disse com um suspiro. - que querias que eu fizesse?

- que tivesses alguma confiança, suponho. - lynley tornou a olhar para ele. no
entanto, antes que pudesse emitir qualquer comentário sobre a observação de st.
james, este continuou a falar, retomando um tom de voz que apenas transmitia a sua
adesão ao protocolo exigido pelo pedido de informação que lynley fizera antes. -
tinha-me esquecido de um dado. webberly está errado. a polícia de marylebone foi
contactada, ainda que de forma superficial. um guarda expulsou um vagabundo de
cross keys close no mesmo dia em que charlotte bowen foi raptada.

- um vagabundo?

- É provável que ele tivesse pernoitado em algumas das casas abandonadas de


george street. julgo que terás necessidade de confirmar isto.

- percebo. É só isso?

- não. helen e eu pensamos que ele poderia nem ser um vagabundo.

- se não é um vagabundo, que poderá ser então?

- alguém que poderá ter sido reconhecido. alguém que usasse um disfarce.
rodney aronson retirou o papel que envolvia a barra de kit kat. partiu um bocado e
enfiou-o na boca. feliz, guiou a língua numa viagem de exploração pelas deliciosas
nodosidades e fendas formadas pela engenhosa conjugação de sementes de cacau
e bolacha de baunilha. o kit kat desta tarde, cuja degustação rodney adiara até o seu
corpo ser incapaz de ignorar por mais tempo a sua diabólica necessidade de
chocolate, era razão quase suficiente para afastar da sua mente a figura de dennis
luxford. mas não totalmente.

sentado à mesa de reuniões do seu gabinete, luxford estava embrenhado na análise


das duas maquetas alternativas para a primeira página da edição do dia seguinte,
que rodney acabara de lhe entregar, a pedido de luxford. enquanto as examinava, o
editor do the source alisava com o polegar da mão direita uma cicatriz curva no
queixo, ao passo que o polegar esquerdo acompanhava a forma do seu bicípite, sob
a camisa branca. era o retrato perfeito da contemplação, mas as informações que
rodney aronson conseguira reunir nos últimos dias induziam-no a tentar imaginar
quanto da representação de luxford estaria a ser fabricada espontaneamente para
benefício do seu editor-adjunto.

a verdade era que o editor do the source ignorava que rodney andara armado em
cão perdigueiro, seguindo-o de perto, pelo que a concentração na análise das
maquetas da primeira página podia muito bem ser genuína. todavia, a existência
destas duas propostas para a primeira página constituíam em si mesmas motivo
para questionar as motivações de luxford. ele já não podia defender que a história
de larnsey com o rapaz de aluguel era suficientemente picante para continuar a sair
na primeira página. não agora, que a notícia vinda a lume sobre a morte da miúda
bowen reverberava em todas as esquinas de fleet street, desde que o anúncio oficial
fora entregue pelo ministério do interior, nessa tarde.

rodney ainda tinha presente as sobrancelhas erguidas e os maxilares descaídos dos


colegas durante a reunião do conselho de redação, quando luxford comunicara as
suas intenções, não obstante as notícias da morte da mirda bowen, que corriam
céleres: queria uma maqueta de primeira página com uma fotografia datada do ano
anterior onde aparecia daffy dukane num tête-à-tête com o deputado larnsey, que
um dos historiadores de fotografia conseguira desenterrar depois de uma aturada
investigação arqueológica no acervo fotográfico do jornal. talvez como resposta
direta ao coro de protestos incrédulos dos colegas, luxford decidiu pedir outra
maqueta de primeira página, onde era reproduzida uma fotografia da subsecretária
do ministério do interior, uma fotografia espontânea que representava eve bowen
saindo de um sítio para entrar noutro. luxford dissera que não queria uma fotografia
de estúdio ou publicidade, não estava disposto a publicar nenhuma das duas
juntamente com a notícia da morte de charlotte bowen. queria uma fotografia
recente, uma fotografia de hoje. e se não fosse possível conseguir uma antes de o
jornal entrar em impressão, o jornal do dia seguinte sairia com sinclair larnsey e daffy
dukane e a história sobre a bowen seria remetida para uma das páginas interiores.

- mas esta é a nossa peça principal - protestara sarah happleshort.

- o larnsey são águas passadas. que diferença tem a proveniência das fotografias da
bowen? vamos ter de usar uma fotografia de escola para a miúda, que também não
é recente. portanto, quem diabo quer saber se a da mãe é recente ou não?

- eu importo-me - disse luxford. - os nossos leitores importam-se. o presidente deste


jornal importa-se. por isso, se queres publicar a história arranja a fotografia para a
acompanhar.

rodney suspeitava que luxford estava a tentar empatá-los e, para isso, apostava no
fato de ninguém ser capaz de descobrir uma fotografia atualizada a tempo de ser
publicada na edição seguinte.

mas calculara mal, porque exatamente às cinco e meia dessa tarde, eve bowen
evitara habilidosamente uma entrada lateral do ministério do interior, e o the source,
que destacara tanto fotógrafos do quadro como outros que trabalhavam em regime
independente para todos os sítios onde a ministra poderia comparecer desde
downing street ao instituto de beleza conseguira surpreendê-la na companhia do
secretário de estado que, pousando uma mão solícita no ombro dela, a conduzia até
ao carro que a aguardava.

era uma fotografia perfeita e nítida. ela não era a imagem da mãe pesarosa, é certo
não havia nenhum lenço debruado a renda a secar-lhe as lágrimas, nem óculos
escuros para esconder os olhos raiados de sangue mas ninguém duvidava de que
era a mulher do momento. no entanto, algo na expressão do rosto de dennis luxford
parecia indicar que ele estava disposto a questionar esta evidência.

- temos cópia sobre isto? - perguntou luxford depois de ter lido quatro curtos
parágrafos compactados no espaço que sobrava depois da inclusão do cabeçalho.
este dizia filha de deputada bem cotada encontrada mortal, numa combinação de
cores que garantia uma troca de jornais entre vendedor e cliente mais rápida do que
o tempo necessário para deixar cair as moedas sobre o balcão do quiosque.
comparado com o título da outra maqueta, larnsey & daffy em horas mais felizes,
não havia que hesitar.

rodney procurou o resto da cópia da história no maço de papéis que trouxera


consigo para a reunião. era um rascunho que pedira a happleshort para imprimir,
antecipando o pedido do editor. luxford leu-o.

- É sólido - disse rodney. - começamos com a declaração oficial e construímos o


texto a partir dela. está tudo confirmado e há mais informações a chegar.

- que tipo de informações? - perguntou luxford, erguendo os olhos.

rodney viu que os olhos de luxford estavam raiados de sangue. a pele por baixo
deles estava enrugada. preparou-se para ler no rosto do editor a mudança mais
imperceptível e disse com um encolher de ombros despreocupado:

- todo o tipo de dados que a polícia e bowen estejam a reter. - luxford colocou a
cópia junto da maqueta da primeira página.

rodney tentou interpretar a precisão dos seus gestos. estaria ele a tentar ganhar
tempo? a delinear uma estratégia? a tomar uma decisão? o quê, então? ficou à
espera que luxford fizesse a pergunta lógica: o que é que te leva a pensar que eles
estão a reter informação? a questão, porém, ficou por apresentar.

- recapitulemos os fatos, den - disse rodney, - a miúda vive em londres mas foi
encontrada morta em wiltshire, e foi tudo o que nos foi dito na declaração oficial do
ministério do interior, juntamente com «circunstâncias misteriosas» e «aguardando
os resultados da autópsia». bom, não sei que interpretação dás a esta treta, mas
pessoalmente penso que tresanda a bacalhau podre.

- que sugeres que façamos?

- que destaquemos corsico para seguir o caso. o que - rodney apressou-se a


acrescentar - já tomei a liberdade de fazer. ele está lá fora. regressou à sala de
redação quando eu me preparava para te trazer as maquetas. queres que...? - o
braço de rodney indicava a sua intenção de pedir a mitch corsico que se juntasse a
eles. - ele fez tudo o que podia ser feito em relação ao caso larnsey - assinalou
rodney. - parecia um desperdício não recorrer aos seus talentos naquilo que
claramente vai ser uma história de muito maior fôlego. não concordas? - falou com
tanta afabilidade, imbuído de um intenso desejo de desenvolver a notícia. que outra
alternativa restava a luxford a não ser concordar?

- manda-o entrar - disse luxford. afundou-se na cadeira e passou o polegar e o dedo


indicador pela têmpora.

- certo - rodney enfiou outro pedaço de kit kat na boca. fê-lo deslizar para a
bochecha para que o chocolate aí se derretesse lentamente, penetrando no seu
organismo como se de uma droga se tratasse. dirigiu-se até à porta do gabinete e
abriu-a, chamando num tom expansivo: - mitch, meu rapaz. chega aqui. vem contar
as notícias ao papá.

na antecâmara do gabinete, mitch corsico puxou as calças de ganga para cima, que
usava sempre sem cinto, e atirou os restos de uma maçã para o cesto de papéis
perto da secretária de miss wallace. pegou no casaco de ganga, lutando para sacar
da algibeira um bloco de notas sujo e atravessou o cubículo de miss wallace com as
suas botas à cowboy, dizendo: - acho que temos uma coisa bem boa e finória para
amanhã. e posso garantir-vos que somos os únicos a sabê-lo até ao momento.
podemos atrasar as impressoras?

- para ti, meu filho, tudo é possível - disse rodney. - É sobre o caso bowen?

- nem mais nem menos - respondeu corsico.

rodney fechou a porta atrás do jovem repórter. corsico juntou-se a luxford na mesa
de reuniões e, apontando com o dedo indicador para a maqueta das primeiras
páginas e o rascunho da história da miúda bowen, disse: - há qualquer coisa nesta
história que cheira mal. forneceram-nos um único fato, um cadáver encontrado em
wiltshire, e depois, quando quisemos saber mais entretiveram-nos com o número do
será-que-não-têm-um-pingo-de-decência. tivemos de esfolar-nos para obter cada
pormenor, que não lhes teria custado nada dar-nos. a idade da miúda, a escola que
frequentava, o estado do corpo, o sítio exato onde foi encontrada. enfim, tudo,
tivemos de esfalfar-nos para o conseguir. a sarah disse-lhe?

- ela apenas me entregou a versão final da história, que, devo acrescentar, é do


melhor que já fizeste. - rodney caminhou até à secretária de luxford e apoiou a coxa
num dos cantos. estranho, como o conhecimento dissimulado podia revigorar uma
pessoa. nesse dia, já trabalhara dez horas e da forma como se sentia podia
trabalhar outras dez. - atualiza-nos - disse, e acrescentou virando-se para luxford. -
mitch disse-me que tem qualquer coisa que vamos querer publicar amanhã,
juntamente com isto. - indicou a maqueta da página com o caso bowen, projatando a
sua confiança na decisão a tomar pelo editor, no que dizia respeito à maqueta que
seria de fato selecionada.

luxford não dispunha de grande escolha na matéria, e rodney sabia-o melhor que
ninguém. poderia ter procurado ganhar tempo na reunião do conselho de redação,
solicitando duas maquetas e uma fotografia atualizada de eve bowen, que ele
julgava impossível de obter, mas agora estava encurralado. era o editor do jornal,
mas tinha de responder perante o presidente do conselho de administração, e este
esperaria que o the source publicasse a história da miúda bowen na primeira página
e nas páginas centrais. o preço a pagar seria alto, caso o rosto escolhido para
decorar a primeira página da edição da manhã seguinte fosse o de sinclair larnsey e
não o de bowen, e seria luxford a pagá-lo.

rodney considerava um exercício intrigante o de especular sobre as razões que


levariam luxford a retardar a sua decisão sobre a primeira página. e essa
especulação tornava-se particularmente intrigante tendo em conta o encontro de
luxford com um dos principais intervenientes da história, no harrods. até que ponto
podia ser considerado uma coincidência o fato de ele se ter avistado com eve bowen
em segredo, apenas três dias antes da filha dela ser encontrada morta? e de que
forma é que esse encontro se encaixava em todos os acontecimentos
subsequentes: den mandando atrasar as impressoras ao mínimo pretexto, a visita
da fotógrafa ruiva e do estranho que a agredira, a saída apressada de den, nem dez
minutos depois dessa agressão, e agora esta morte... rodney passara a maior parte
do fim-de-semana matutando sobre o que luxford poderia andar a tramar, e quando
a notícia do caso bowen eclodira destacara de imediato corsico para segui-la, ciente
de que se houvesse algum elemento menos limpo em toda esta história, mitch era a
pessoa ideal para o descobrir.

agora sorria abertamente a corsico.

- desembucha.

corsico fez uma pausa para tirar o stetson, o seu ex-libris. olhou para luxford como
se aguardasse uma ordem de caráter mais oficial. luxford fez um aceno de cabeça
cansado.

- ok primeiro. mamãe é a palavra de ordem no gabinete de imprensa da polícia em


wiltshire começou corsico. até agora não houve qualquer comentário para além dos
fatos básicos: quem encontrou o corpo, a que horas, onde, o estado em que ele foi
encontrado, etc. bowen e o marido confirmaram a identificação do corpo por volta da
meia-noite, em amesford. e aqui é que as coisas começam a ficar interessantes. -
mudou de posição na cadeira, como se estivesse a preparar-se para uma conversa
agradável. o olhar de luxford colou-se, fixamente à figura do repórter. corsico
prosseguiu. - pedi ao gabinete de imprensa dados sobre os preliminares habituais. o
nome do oficial encarregado da investigação, a hora da autópsia, a identidade do
patologista, a decisão inicial relativamente à hora da morte. não houve quaisquer
comentários. estão a controlar a saída de informações.

- isso dificilmente será motivo para suspender a impressão - observou luxford.

- certo. sei disso. eles gostam de jogar este tipo de jogos conosco. É a luta do
costume para ver quem fica por cima. no entanto, tenho uma toupeira no posto da
polícia em whitechapel que...

- o que é que whitechapel tem a ver com isto tudo? - para enfatizar a sua irritação,
luxford olhou de relance para o relógio.

- diretamente, nada. mas espere. telefonei à minha fonte e pedi-lhe que desse uma
espreitadela à base de dados do computador, só para ver que tipo de dados
essenciais podia obter sobre a miúda. mas, e aqui é que as coisas começam a
tornar-se finórias, não havia nenhum relatório no computador da polícia.

- que tipo de relatório?

- nenhum relatório sobre a descoberta do corpo.

- e é isso que consideras bombástico? É por causa disso que devo suspender a
impressão? talvez a polícia não tenha simplesmente posto a papelada em dia.

- É uma possibilidade. mas também não havia qualquer relatório sobre o


desaparecimento da miúda. apesar de o corpo, e whitechapel teve de consultar
documentos oficiais para me dar isto, ter estado na água dezoito horas.

- essa é boa - disse rodney. e olhando para luxford de forma significativa


acrescentou: - pergunto-me qual será o significado disto tudo. qual é a tua opinião,
den?

luxford ignorou a questão e levando a mão ao queixo, apoiou-o nos nós dos dedos.
rodney tentou decifrar a expressão do rosto dele. parecia entediado, mas não havia
dúvida de que os olhos tinham um brilho circunspecto. rodney fez sinal a corsico
com a cabeça para que continuasse.

corsico começou a entusiasmar-se com o assunto.

- de início pensei que não tinha grande importância o fato de ninguém ter
comunicado o desaparecimento da miúda. afinal era fim-de-semana. talvez tivesse
havido um cruzamento de linhas, e os pais pensassem que a filha tinha ficado em
casa dos avós, ou estes julgassem que ela estava com um tio ou com uma tia. a
criança podia ter ido dormir em casa de alguém, esse tipo de coisa. no entanto,
achei que valia a pena verificar. e descobri que o meu palpite estava certo. - corsico
abriu o bloco de notas e algumas páginas soltaram-se. apanhou-as e voltou a enfiá-
las na algibeira das calças. - há uma irlandesa que trabalha para bowen - disse.
gorducha, vestida com umas calças de malha deformadas, que se chama patty
maguire. tive uma conversa com ela cerca de um quarto de hora depois do anúncio
feito pelo ministério do interior.

- na casa da deputada?

- fui o primeiro a chegar ao local.

- É assim mesmo, meu rapaz - murmurou rodney.

em sinal de modéstia, corsico baixou o olhar até ao bloco de notas e simulou estudá-
lo em pormenor. em seguida continuou: - na verdade fui entregar umas flores.

- esperto - disse rodney com um largo sorriso.

- e? - perguntou luxford.

- ela tinha estado a rezar fervorosamente, ajoelhada na sala de estar e quando lhe
disse que gostaria muito de compartilhar com ela as suas orações, que demoraram
uns bons quarenta e cinco minutos, acreditem-me, tomamos uma chávena de chá
na cozinha e ela abriu o jogo. - rodou a cadeira de forma a deixar de estar de frente
para a mesa e passar a enfrentar luxford. - a miúda desapareceu na quarta-feira
passada, sr. luxford. supostamente foi raptada na rua, muito provavelmente por um
tarado. todavia, nem a deputada, nem o marido comunicaram o fato à polícia. o que
tem a dizer sobre isto?

rodney assobiou baixinho, divertido. até ele não estava preparado para isto.
caminhou até à porta e abriu-a, pronto para chamar sarah happleshort e pedir-lhe
que alterasse a primeira página.

- o que é que estás a fazer, rodney? - perguntou luxford.

- vou chamar a sarah. temos de avançar com isto.

- fecha a porta.

- mas, den...

- disse-te que fechasses a porta. senta-te.

rodney sentiu a irritação crescer dentro dele. foi o tom que o incomodou, aquela
maldita certeza de luxford de que todas as suas ordens seriam obedecidas.

- temos uma maldita história sólida nas mãos - disse rodney. - há alguma razão que
te leve a abortá-la?

- que tipo de confirmação tens para isto? - luxford perguntou a corsico.


- confirmação? - interpelou-o rodney. - ele esteve a falar com a empregada da casa
em pessoa. quem melhor do que ela saberia se a criança teria sido raptada ou não e
se a polícia teria sido contactada?

- tens confirmação? - luxford repetiu.

- den! - disse rodney, sabendo que luxford deixaria cair a história, a não ser que
corsico tivesse sido esperto o suficiente para cobrir todos os ângulos possíveis.

corsico, porém, reagiu, dizendo:

- falei com pessoas de três esquadras de polícia da área de marylebone: albany


street, greenberry street, wigmore street. não há qualquer registro nos serviços de
recepção de nenhum deles sobre o desaparecimento de uma criança.

- dinamite - sussurrou rodney. queria gritar, mas conteve-se. corsico continuou a


falar.

- nada disto fazia sentido para mim. que tipo de pais não telefonariam para a polícia
se o filho ou a filha desaparecesse? - inclinou a cadeira para trás e respondeu à
pergunta que ele próprio colocara: - aqueles que talvez quisessem ver-se livres dela
pensei eu.

luxford permaneceu impassível e rodney deu um longo assobio.

- por isso pensei que poderíamos adiantar-nos em relação aos outros, se eu


investigasse um pouco mais - disse corsico. - e foi isso que fiz.

- e? - perguntou rodney, vendo que a história começava a ganhar forma.

- e descobri que o marido de bowen, um tipo chamado alexander stone, não é o


verdadeiro pai desta criança.

- isso dificilmente poderá ser considerado novidade - assinalou luxford. - qualquer


pessoa que acompanha minimamente a atualidade política poderia ter-te dito isso,
mitchell.

- sim?... bom, para mim foi uma novidade, e uma viragem interessante. e quando há
uma viragem gosto de ver até onde ela me leva. por isso fui até st. catherine e
verifiquei a certidão de nascimento para descobrir a identidade do pai. porque pensei
que poderíamos querer entrevistá-lo, não? o pai desgostoso? com a morte e tudo
mais? - agarrou no casaco de ganga e levou a mão a um dos bolsos, primeiro e
depois ao outro. tirou um pedaço de papel dobrado, que abriu e alisou sobre o
tampo da mesa, entregando-o depois a luxford.

rodney aguardava, sustendo a respiração em antecipação. luxford passou os olhos


pelo papel, ergueu a cabeça e disse: - e então?

- então, o quê? - perguntou rodney.


- ela não deu o nome do pai - explicou corsico.

- já vi - disse luxford. - mas uma vez que também nunca o identificou publicamente,
isto não pode ser visto como uma surpresa esmagadora.

- talvez não seja uma surpresa, mas é uma ligação possível e, mais importante do
que isso, uma maneira inquestionável de inverter a história.

luxford devolveu a corsico a cópia da certidão de nascimento. ao fazê-lo parecia


estudar o jovem repórter da mesma forma que se poderia estudar uma forma de vida
que não se conseguia identificar com exatidão.

- onde é que pretendes chegar exatamente com tudo isto?

- por não constar nenhum nome na certidão de nascimento? nenhum relatório do


desaparecimento da criança na polícia? estamos a falar de ocultação de informação,
sr. luxford. É esta a idéia dominante, a idéia que preside ao nascimento desta pobre
criança, para começar, e a idéia que prevalece no final, no momento da sua morte.
podemos começar por fazer girar a história em torno disso. se o fizermos, e seria
bom ter também um editorial acerca da natureza insidiosa dos segredos de família,
acredite-me, até um cretino seria capaz de, mais tarde, desenterrar os podres da
vida de bowen e fornecê-los ao the source. porque se tomarmos a história de
larnsey e do rapaz de aluguel como barômetro daquilo que podemos esperar do
público, então mal tenhamos explorado esta história em torno da tendência de
bowen para sonegar informação crucial, todos os inimigos que ela tenha não
perderão tempo a telefonar-nos e a dar-nos uma pista que nos colocará na direção
que pretendemos seguir.

- que é? - perguntou luxford.

- no rasto do culpado. e aposto que esta é a informação essencial que ela está a
reter. - corsico tornou a endireitar a cadeira, mas esta retomou rapidamente a
posição anterior. - É que as coisas só fazem sentido se ela souber quem raptou a
miúda. de duas uma, ou o que acabei de dizer ou então ela própria planejou o rapto.
estas duas hipóteses são as únicas duas explicações possíveis para o fato de ela
não ter telefonado à polícia imediatamente. e é também a única explicação sensata.
ora bem, se colarmos esta informação ao fato de ela ter mantido em segredo a
identidade do pai da criança ao longo de todos estes anos... então, julgo que pode
perceber onde quero chegar, não é?

- na verdade, não.

rodney ficou imediatamente alerta. já ouvira aquela inflexão a luxford antes. sem
quaisquer variações, absolutamente educado. luxford estava a esticar a corda. se
tudo corresse conforme queria, corsico pegaria na corda que ele lhe estendia,
enrolá-la-ia em torno do pescoço e enforcar-se-ia logo a seguir. e a história morreria
com ele. iniciou a sua intervenção, falando num tom que esperava soasse decidido: -
até agora parece-me que estamos perante um trabalho jornalístico consistente. É
claro que mitch irá desenvolver a história passo a passo, confirmando toda a
informação recolhida. certo?
corsico, no entanto, não percebeu esta alusão velada. - ouçam disse ele. aposto
vinte e cinco libras em como existe uma relação entre o desaparecimento da criança
e o pai dela. e se começarmos a esquadrinhar o passado de bowen, aposto outras
vinte e cinco em como descobriremos qual é.

silenciosamente, rodney ordenou a corsico que moderasse a tagarelice. tentou fazer


com que se calasse simulando com um gesto que lhe cortaria a garganta, mas o
repórter estava resolvido a expor as suas idéias. afinal, luxford sempre gostara
delas. que motivos tinha corsico para achar que não iria gostar delas neste preciso
momento? era só mais um conservador que estaria sob a mira deles. e não era
verdade que luxford se sentira deliciado com a forma como corsico se esforçava
para afundar os conservadores?

- não seria difícil descobrir essa ligação - estava corsico a dizer. - temos a data de
nascimento da miúda. recuamos nove meses e começamos a meter o nariz no
passado de bowen para descobrir o que ela fazia então. até já iniciei a busca. -
folheou ruidosamente duas páginas do bloco de notas, leu durante alguns instantes
e continuou: - exato. cá está, o daily telegraph. ela era correspondente dos assuntos
políticos para o daily telegraph. este é o nosso ponto de partida.

- e depois, onde é que isso te leva?

- não sei ainda, mas digo-lhe qual é o meu melhor palpite.

- faz favor.

- quanto a mim, ela andava metida com alguma figura de peso do partido
conservador que lhe abriu as portas de acesso a um lugar numa das listas de
candidatos a um círculo eleitoral qualquer. estamos a falar do ministro das finanças,
do secretário do interior ou dos negócios estrangeiros. alguém desse calibre. a
recompensa dela foi um assento no parlamento. por isso só temos de descobrir com
quem é que ela andava metida. quando tivermos esse dado nas mãos, o resto da
história resumir-se-á a pressioná-lo até que ele se decida a falar conosco. e verão
como essa será a ligação de que andamos à procura entre isto - agitou a certidão de
nascimento e a morte da miúda.

- charlotte - disse luxford.

- ha?

- a criança em questão. chamava-se charlotte.

- oh, claro. pois, charlotte - corsico escrevinhou no seu bloco de notas.

luxford pousou os dedos sobre as maquetas da primeira página, alinhando-a


relativamente à secretária. no silêncio que cresceu entre eles, os ruídos
provenientes da sala de redação foram subitamente amplificados. os telefones
reverberavam, as gargalhadas irrompiam e alguém gritava: - merda! socorro! estou a
morrer por um cigarro!
«morrer, era essa a palavra», pensou rodney. podia prever o que iria suceder-se com
a mesma nitidez com que distinguia o próximo kit kat que fazia tenções de comer
mal a reunião estivesse terminada. a única coisa que não conseguia antever com
clareza era a forma como luxford iria sair-se disto. foi então que o editor o
esclareceu.

- esperava muito mais de ti disse - luxford, dirigindo-se a corsico.

corsico parou de escrever, embora continuasse com o lápis em punho. - o quê? -


reagiu.

- melhores informações.

- porquê? o que é que...

- um trabalho melhor do que a treta que acabaste de desfiar, mitchell.

- bom, vamos com calma, den - interveio rodney.

- não - disse luxford. - quem tem de ter calma és tu, vocês dois. não estamos a falar
sobre um qualquer cidadão anônimo, uma maria qualquer, uma cidadã-modelo que
obedece cegamente a todas as leis e nunca pisa o risco. estamos a falar de uma
deputada, e não de uma deputada qualquer, mas de um ministro do governo. estão
realmente à espera que eu acredite, por um segundo que seja, que um ministro do
governo, uma subsecretária de estado, santo deus, iria alguma vez telefonar para a
esquadra da polícia local e comunicar o desaparecimento da filha, quando pode dar
dois passos e pedir ao secretário do interior que se encarregue pessoalmente do
assunto? quando está numa posição em que pode exigir discrição? quando poder
beneficiar do maior sigilo? num maldito governo que faz do sigilo a sua palavra de
ordem? ela tem poderes suficientes para colocar este caso no topo da lista de
prioridades da scotland yard, sem que nenhuma esquadra de polícia tome
conhecimento do assunto. porque diabo então pensas que uma esquadra qualquer
de marylebone iria ter um relatório sobre o caso? queres mesmo que eu acredite
que temos aqui material para uma história de primeira página com base na qual
podemos construir um caso contra bowen só porque ela não telefonou para o polícia
do bairro? - puxou a cadeira para trás e levantou-se. que tipo de jornalismo é este?
sai daqui, corsico, e não voltes a não ser quando tiveres uma história que possamos
publicar.

corsico agarrou na cópia da certidão de nascimento.

- mas e...

- o que é que tem? - perguntou luxford. - É uma certidão de nascimento onde falta
um nome. o mais provável é que existam duzentas mil iguais a esta e nenhuma
delas é notícia. quando conseguires que o secretário do interior ou o comissário da
polícia declarem oficialmente que desconheciam por completo o desaparecimento
desta criança antes da sua morte, nessa altura, sim, teremos motivos suficientes
para mandar parar as máquinas. entretanto, não me faças perder tempo.
corsico fez menção de falar. rodney ergueu a mão para impedi-lo. não conseguia
acreditar que luxford seria capaz de ir ao ponto de usar de argumentos como estes
para matar a história, por maior que fosse a vontade que parecia ter de o fazer.
contudo tinha de se certificar. - está bem. mitchell, voltamos à estaca zero - disse. -
voltamos a verificar todos os dados. vê se consegues obter três confirmações. - e
apressou-se a continuar sem dar tempo a corsico para ripostar. - qual vai ser a
primeira página para amanhã, dennis?

- avançamos com o artigo sobre a bowen tal como está. sem alterações. e nada
sobre a ausência de relatórios da polícia.

- merda - disse corsico, baixinho. - a minha história é sólida, sei que é.

- a tua história é uma merda - disse luxford.

- isso é...

- vamos trabalhar sobre isto, den - rodney agarrou corsico pelo sovaco e conduziu-o,
rapidamente, para fora da sala, fechando a porta atrás de ambos.

- que diabo? - perguntou corsico. - o meu material é escaldante. tu sabes isso. eu sei
isso. toda aquela treta sobre... olha, se não formos nós a publicá-lo, serão outros. vá
lá, rodney. santo deus. o que eu devia fazer era mostrar a história ao the globe e
vendê-la a eles. isto é notícia, e quente. e nós somos os únicos a tê-la. raios partam.
raios partam. eu devia era...

- continua a trabalhar nisso - disse rodney, em voz baixa, deitando um olhar


especulativo para a porta do gabinete de luxford.

- e fazer o quê? devo supostamente convencer o comissário da polícia a conversar


comigo sobre uma deputada? essa tem piada.

- não. esquece-o. segue a pista.

- a pista?

- julgas que há uma ligação, não é? a miúda, a certidão de nascimento, tudo isso?

corsico endireitou os ombros e a coluna. se tivesse uma gravata posta nesse


momento, provavelmente teria composto o nó da mesma.

- exato. não estaria interessado nela, se ela não existisse.

- então descobre essa ligação e entrega-ma a mim.

- e depois o que é que acontece? luxford...

- para o diabo com luxford. não percas esta história de vista, e deixa o resto por
minha conta.
corsico arriscou um olhar para a porta do gabinete do editor.

- É uma história e tanto - disse ele, mas pela primeira vez a sua voz soava ansiosa.

rodney agarrou-o pelo ombro e sacudiu-o levemente. - É, sim - disse. - vai atrás
dela. não desistas dela. escreve-a e entrega-ma.

- e depois?

- eu saberei o que fazer com ela.

dennis luxford premiu o botão que ligaria o monitor do seu terminal. afundou-se na
cadeira. os números começaram a cintilar no monitor, mas os seus olhos não se
fixaram neles. o ato de ligar o monitor fora apenas uma desculpa para se ocupar
com alguma coisa. poderia sempre virar-se para ele e fingir que lia avidamente
aquela linguagem sem nexo, não fosse dar-se o caso de alguém entrar
inesperadamente no seu gabinete à espera de encontrar o editor do the source
supervisionando o desenvolvimento de uma história que, nesse momento, levava
todos os repórteres de londres a concentrarem-se ativamente num escrutínio
minucioso da vida de eve bowen. mitch corsico era apenas um entre eles.

luxford sabia que era muito pouco provável que mitch corsico e rodney aronson
tivessem ficado convencidos com a sua encenação de editor ofendido. desde que
dirigia o the source, havia já alguns anos, nunca mexera um dedo para bloquear
uma história tão promissora em termos de vileza como era a que se referia ao fato
de a deputada bowen não ter comunicado à esquadra de polícia da área da sua
residência que a filha fora raptada. além disso, podia servir mais uma história do
partido conservador. deveria estar exultante com o número de oportunidades
agradáveis que uma história deste tipo abria. devia ter revelado uma ânsia
apaixonada de manipular a descoberta de que evelyn não telefonara à polícia,
transformando-a numa acusação inteligente e sentenciosa a todo o partido
conservador. ali estavam eles, tentando religiosamente angariar partidários para o
projeto de lei dos valores britânicos fundamentais, um dos quais obviamente deveria
ser a família britânica fundamental. e quando a família era ameaçada da maneira
mais abominável, através do rapto de uma criança, uma ministra conservadora de
nomeada, segundo as nossas fontes, nem se dignara a apelar às autoridades
competentes para que encontrassem a criança. esta era uma oportunidade de
manobrar fatos escassos e transformá-los numa história que uma vez mais retrataria
os conservadores como os demagógicos que verdadeiramente eram. e ele não só
não aproveitara esta oportunidade, como também se empenhara em erradicá-la.

quando muito, e luxford sabia-o, ganhara apenas mais algum tempo. o fato de
corsico ter conseguido chegar tão rapidamente à certidão de nascimento o fato de
possuir um plano extremamente sensato para esquadrinhar o passado de evelyn
confirmavam a luxford quão vã seria a esperança de que as circunstâncias sigilosas
em que ocorrera o nascimento de charlotte permanecessem em segredo, agora que
ela estava morta. mitchell corsico possuía o tipo de espírito empreendedor que
outrora teria deliciado luxford. o instinto evidenciado pelo rapaz para desbravar o
caminho da verdade era assombroso, e o seu talento para persuadir as pessoas a
contarem-lhe essa mesma verdade era, em si mesmo, uma obra de arte. luxford
podia retardar a sua progressão impondo-lhe restrições, recorrendo a conjecturas
capciosas acerca do secretário do interior e da new scotland yard e ordenando ao
rapaz que investigasse cada uma delas. todavia, não podia impedir essa
progressão, a não ser despedindo-o, o que apenas serviria para instigá-lo a colocar
as suas notas, o seu filofax e o seu faro para notícias ao serviço de uma publicação
concorrente, do the globe, muito provavelmente. e o the globe não tinha motivos
para frustrar uma história que revelaria a verdade nua e crua.

charlotte. meu deus, pensou luxford, nunca a vira sequer. vira as fotografias de
campanha quando evelyn concorrera ao parlamento, fotografias que mostravam a
candidata posando em sua casa, junto da família dedicada e sorridente a seu lado. e
fora tudo. até nessa época passeara pelas fotografias o mesmo olhar desdenhoso
que reservava a todos os candidatos-modelo às eleições gerais. não reparara, de
fato, na criança. não se dera ao trabalho de a observar atentamente. era sua, e dela
apenas sabia o nome. e agora que estava morta.

ligara para marylebone do telefone do quarto, no domingo à noite. ao ouvir a voz


dela, fora parco nas palavras:

- as notícias na televisão. encontraram um corpo, evelyn.

- meu deus. És um monstro. És capaz de todas as vilezas para vergar a minha


vontade, não és? - dissera ela.

- não! ouve-me. É em wiltshire. uma criança. uma rapariga. morta. não sabem quem
ela é e estão a pedir informações. evelyn, evelyn.

ela desligara o telefone e ele não voltara a falar com ela desde essa noite.

um lado dele dizia-lhe que ela merecia ser destruída. merecia uma objurgação o
mais pública possível. merecia que cada pormenor sobre o nascimento de charlotte,
a sua vida, o seu desaparecimento e morte fossem expostos ao julgamento dos
seus compatriotas. e merecia, ainda, perder a sua posição de poder. outro lado,
porém, não podia participar na ruína dela, porque queria acreditar que fossem quais
fossem os pecados dela, pagara-os na íntegra com a morte da filha.

não a amara durante os poucos dias que passaram em blackpool, tal como ela não o
amara a ele. a experiência que tinham partilhado nada mais fora do que uma união
de corpos, a sua concupiscência carnal excitada pelo fato de terem personalidades
diametralmente opostas. não tinham nada em comum, a não ser a capacidade para
debater pontos de vista opostos e o desejo mútuo de saírem vitoriosos de todas as
polémicas em que se envolviam. ela tinha um espírito vivo e seguro. ele, um
espadachim verbal, não a intimidara em absoluto. as disputas de ambos acabavam
geralmente num empate, mas ele estava habituado a dizimar irremediavelmente os
seus adversários e, quando não conseguira neutralizá-la através das palavras
tentara outros meios. fora jovem e estúpido o suficiente para acreditar ainda que a
atitude submissa de uma mulher na cama constituía uma afirmação da supremacia
masculina. quando acabara, corado e transbordante de presunção por tê-la levado
até onde a levara e pelo modo como o fizera, esperara encontrar um par de olhos
radiantes, um sorriso sonolento, seguido por um apagamento delicado e
decididamente feminino, permitindo que ele reinasse, supremo, entre os seus pares.

o fato de ela não se ter diluído como ele esperava depois do momento de sedução,
o fato de ter agido como se nada se tivesse passado entre eles, o fato de o espírito
dela estar mais vivo do que nunca serviu apenas para enfurecê-lo, primeiro, e depois
aumentar o seu desejo por ela. pelo menos na cama, pensara, não haveria nem
simetria nem igualdade entre ambos. pelo menos na cama, pensara ainda, ele seria
o único conquistador. os homens dominam, acreditava ele, e as mulheres
submetem-se.

mas não evelyn. nada que ele fizesse ou jurasse que ela sentia era suficiente para
abalar a sua serenidade e segurança. as relações sexuais eram apenas mais um
campo de batalha para eles, em que as armas deixavam de ser as palavras e
passavam a ser o prazer.

o pior de tudo era que ela soubera desde o início o que ele estava a tentar fazer com
ela. e na última vez em que gozara, naquela última manhã agitada em que ambos
tinham comboios para apanhar e prazos a cumprir, ela erguera o rosto umedecido
pelo contato com os seus próprios fluidos e dissera: - não me sinto diminuída,
dennis. de forma nenhuma. nem sequer por isto.

sentiu-se envergonhado quando soube que uma vida inocente nascera daquela
união desprovida de amor. a sua indiferença em relação às conseqüências da sua
decisão de a atingir da única forma que pudera fora tal que não se preocupara em
tomar uma única precaução e não se importara em saber se ela tomara alguma.
nem sequer pensara no que ambos estavam a fazer como sendo algo capaz de
gerar uma vida. vira-o apenas como uma demonstração de domínio e superioridade,
um passo necessário para lhe provar a ela e acima de tudo a si mesmo a sua
supremacia.

não a amara. não amara a criança. não quisera nem uma nem outra. tranqüilizara a
pouca consciência que lhe restava, «tratando do assunto» de forma a nunca vir a ser
afetado pessoalmente por nenhuma delas. era justo, pois, que agora nada sentisse,
a não ser amargura e choque pelo fato de a recalcitrância egoísta de evelyn ter
custado uma vida humana.

a verdade, porém, era que sentia muito mais do que amargura e choque. a culpa, a
raiva, a angústia e o arrependimento consumiam-lhe as entranhas, porque embora
fosse responsável pela vida de uma criança que nunca tentara conhecer, sabia
muito bem que era também responsável pela morte de uma criança que nunca
conheceria. nada podia alterar este fato agora. nem agora nem nunca.

com um gesto maquinal puxou o teclado para junto de si. chamou a história que teria
salvo a vida de charlotte. leu a primeira linha: «aos trinta e seis anos de idade
engravidei uma mulher.» no silêncio do gabinete um silêncio entrecortado pelos
ruídos exteriores produzidos pelo jornal que o contratara para reestruturá-lo quase
até às suas fundações recitou a conclusão daquela história sórdida: «aos quarenta e
sete matei essa criança.»
quando lynley chegou a devonshire place mews verificou que hillier desenvolvera já
os esforços necessários para satisfazer as exigências do secretário do interior no
sentido de montar uma operação eficiente. uma série de barreiras tinha sido erguida
à entrada da rua. junto delas estava um polícia, enquanto outro guardava a entrada
principal da casa de eve bowen.

por detrás das barreiras, formando um grupo compacto que enchia marylebone high
street, a comunicação social reunia-se à luz tênue do crepúsculo. viam-se equipes
de várias estações de televisão montando holofotes para filmar as reportagens que
os respectivos correspondentes ultimavam para os noticiários dessa noite,
jornalistas da imprensa escrita gritando perguntas ao polícia que se encontrava mais
perto deles e fotógrafos, aguardando, inquietos, a oportunidade para fotografar todos
os que estivessem relacionados com o caso.

quando lynley parou o bentley para mostrar a sua identificação ao agente que
guardava a barreira, os repórteres rodearam o carro, balbuciando perguntas. a
morte iria ser classificada como homicídio? nesse caso, havia já algum suspeito?
havia algum fundamento para os rumores que descreviam a filha de bowen como
sendo dada a desaparecimentos súbitos e inesperados, sempre que se sentia
infeliz? iria a scotland yard trabalhar em conjunto com a polícia local? era verdade
que provas importantes iriam ser removidas da casa da deputada nessa noite?
haveria algum comentário da parte do detetive-inspetor lynley acerca de
determinados aspectos do caso relacionados com abuso de crianças, tráfico de
escravas brancas, rituais satânicos, pornografia e sacrifícios rituais? a polícia
suspeitava do envolvimento do ira? a criança tinha sido molestada antes de ter sido
morta?

- não faço comentários - disse lynley e, dirigindo-se ao agente policial, acrescentou -


abra caminho, por favor, sr. agente. - conduziu o bentley para dentro dos limites da
área isolada de devonshire place mews.

enquanto se apeava ouviu passos rápidos na sua direção e, virando-se, viu o


detetive winston nkata, que se aproximava vindo do fundo da rua.

- e então? - disse lynley quando nkata se juntou a ele.

- nada - nkata inspeccionou a rua. - há gente em todas as casas, à exceção de duas


delas, mas ninguém viu nada. todos conheciam a garota, parece que era uma
criança afetuosa que gostava de fazer queixinhas a quem estivesse disposto a ouvi-
la mas ninguém a viu na última quarta-feira. - nkata enfiou um pequeno bloco-notas
forrado a pele no bolso interior do casaco. logo de seguida fez o mesmo com a
lapiseira, não sem antes recolher cuidadosamente o grafite. - tive uma longa
conversa com um tipo mais velho, um reformado confinado a uma cama de hospital
que vive no primeiro andar do número vinte e um, está a ver? passa a maior parte
dos dias a controlar o que se passa na rua. a semana passada, diz ele, não viu nada
fora do comum, apenas o movimento do costume: o carteiro, o leiteiro, moradores e
coisas do gênero. e, segundo me disse, as entradas e saídas na casa dos bowen
são tão exatas como um relógio, por isso se algo de anormal se tivesse passado ele
teria visto.
- referiu-se à presença de algum vagabundo na vizinhança? - lynley contou a nkata o
que soubera através de st. james.

nkata abanou a cabeça.

- nem um pio sobre isso, meu. e este velhote de que lhe falei mesmo agora de
certeza que se lembraria disso, está a par de tudo o que acontece no bairro de uma
ponta a outra. até me disse quem gosta de confraternizar com belos exemplares do
sexo oposto quando os respectivos maridos não estão por perto. atividade esta que,
garantiu-me ele, acontece três a quatro dias por semana.

- tomaste bem nota disso, presumo?

nkata sorriu com ironia e ergueu uma mão, em sinal de negação.

- nos dias que correm ando mais limpo do que o detergente para a loiça. e assim me
tenho mantido nos últimos seis meses. nada se gruda a este menino querido de sua
mãe, a não ser o que ele queira que grude. acredite-me.

- folgo muito em sabê-lo - lynley indicou a casa de eve bowen com um movimento de
cabeça. - alguma entrada ou saída?

- o secretário do interior esteve lá dentro cerca de uma hora. depois disso, apareceu
um tipo alto, magricela, com uma grande cabeleira. ficou um quarto de hora, talvez
mais. saiu trazendo com ele uma pilha de blocos de apontamentos e pastas de
arquivo, juntamente com uma tipa mais velha, uma mulher forte com um enorme
saco de lona. empurrou-a para dentro do carro e arrancou à pressa. a governanta,
diria eu, pelo aspecto dela. ia a chorar, com a cabeça enfiada na manga da
camisola. ou isso, ou então estava a tentar esconder a cara dos fotógrafos.

- É tudo?

- É. a não ser que alguém tivesse descido de pára-quedas no jardim das traseiras.
verdade seja dita que eu não me atreveria a tentar passar por aquele grupo, por
agora. e, por falar nisso, como é que eles chegaram aqui tão depressa? - perguntou
nkata, referindo-se aos repórteres.

- com a assistência de mercúrio ou teletransportados a partir do enterprise. entre


uma e outra, é escolher.

- só eu não tenho essa sorte. fiquei preso num engarrafamento em frente de buck
house. porque é que eles não mudam aquele maldito lugar para qualquer outra zona
da cidade? está mesmo no meio da rotunda e a única coisa que faz é obstruir o
trânsito.

- o que - observou lynley, - certos deputados considerariam uma metáfora


apropriada, winston. mas não miss bowen, parece-me. vamos lá conversar com ela.

o polícia perfilado à porta verificou a identificação de lynley, antes de os deixar


entrar. no interior havia uma mulher-polícia, sentada numa cadeira de verga
colocada na base das escadas. fazia as palavras cruzadas do the times e levantou-
se thesaurus na mão quando lynley e nkata entraram. conduziu-os até à sala de
estar que abria para uma sala de jantar. aí, uma refeição estava disposta sobre a
mesa: costeletas de borrego nadando num molho gelado, ervilhas e batatas. a mesa
estava posta para dois. havia também uma garrafa de vinho aberta. no entanto, nem
a comida nem a bebida tinham sido tocadas.

do outro lado da mesa de jantar, portas francesas abriam para o jardim das traseiras.
este fora projetado para ser um pátio. o pavimento, que estava coberto de pedras de
terracota, era bordejado por canteiros de flores amplos e bem cuidados e, no centro,
havia uma pequena fonte de onde corria um fio de água. numa mesa de ferro verde,
num recanto à esquerda das portas francesas, estava sentada eve bowen, protegida
pelas sombras cada vez mais acentuadas. tinha um bloco-notas aberto à sua frente
e um copo ao lado, meio cheio com um vinho cor de rubi. numa outra cadeira junto
dela amontoavam-se outros cadernos de apontamentos.

- ministra bowen, a new scotland yard - anunciou a mulher-polícia, ficando-se por aí


nas apresentações. quando eve bowen levantou a cabeça, retirou-se e regressou ao
interior da casa.

- falei com o sr. st. james - disse lynley, depois de ele e o agente nkata se terem
identificado. - precisamos ter uma conversa franca consigo. poderá ser doloroso,
mas não há outra forma de o fazer.

- ele contou-vos tudo, então - eve bowen não olhou nem para lynley, nem para
nkata, que tirou o bloco-notas do bolso e procedeu a um primeiro ajuste à grafite da
sua lapiseira. em vez disso fitou os papéis que tinha à sua frente, separados do
bloco-notas. a luz estava a enfraquecer com demasiada rapidez para que ela
pudesse continuar a ler, pelo que não fez qualquer menção de continuar essa
atividade. limitou-se a passar os dedos pela extremidade de um dos papéis
enquanto esperava pela resposta de lynley.

- contou, sim - disse lynley.

- e o que é que comunicaram à imprensa até ao momento?

- não tenho por hábito falar à comunicação social, se é isso que a preocupa.

- nem sequer quando eles garantem o anonimato?

- miss bowen, não estou interessado em revelar os seus segredos à imprensa.


sejam quais forem as circunstâncias. de fato, não estou de todo interessado nos
seus segredos.

- nem sequer por dinheiro, inspetor?

- exatamente.

- nem sequer quando lhe oferecem mais do que ganha na polícia? será que um
suborno bem chorudo, três ou quatro meses de salário, por exemplo, não poderia
ser considerada uma circunstância tentadora, na qual o senhor poderia vir a
descobrir-se subitamente possuído por um interesse insaciável em cada um dos
meus segredos?

lynley sentiu, mais do que viu, o olhar de nkata cravado nele. sabia de que é que o
agente estava à espera: da reação de despeito verbal do detetive-inspetor lynley
perante o insulto à sua integridade, já para não falar da indignação sentida por lord
asherton diante do insulto ainda mais grave dirigido à sua conta bancária.

- estou interessado no que aconteceu à sua filha disse. se o seu passado estiver
relacionado com isso poderá vir a tornar-se um assunto de domínio público. É
melhor que esteja preparada para tal. devo acrescentar que será tão doloroso como
tudo o que já aconteceu até ao momento. podemos falar sobre isso?

ela favoreceu-o com um olhar avaliador que nada lhe revelou acerca dela, nem uma
prega à superfície, nem o mais pequeno indício de emoção nos olhos por detrás dos
óculos. no entanto, parecia ter chegado a uma conclusão, já que baixou o queixo de
forma quase imperceptível no que pareceu ser um sinal de assentimento e disse: -
telefonei à polícia de wiltshire. seguimos diretamente para lá para identificá-la, ontem
à noite.

- nós?

- o meu marido e eu.

- onde se encontra o sr. stone?

baixou as pálpebras. agarrou no copo de vinho, mas não bebeu. - alex está lá em
cima - disse - sedado. a visão de charlotte ontem à noite... para ser franca, julgo que
durante todo o caminho para wiltshire ele alimentou a esperança de que não fosse
ela. acho até que conseguiu convencer-se disso. por isso, quando finalmente viu o
corpo reagiu mal. - aproximou um pouco mais o copo de vinho, sem segurar nele
mas fazendo-o deslizar sobre o vidro que servia de tampo da mesa. - a nossa
cultura espera demasiado dos homens, penso eu, e não o suficiente das mulheres.

- nenhum de nós sabe como irá reagir perante a morte - disse lynley. - até ser
confrontado com ela.

- suponho que isso será verdade - virou um pouco o copo e observou o modo como
o movimento afetava o conteúdo. - sabiam que ela tinha morrido afogada, refiro-me
à polícia de wiltshire - disse ela. - no entanto, não nos disseram mais nada. nem
onde, nem quando, nem como. principalmente como, o que acho muito curioso.

- têm de esperar pelos resultados da autópsia - informou-a lynley.

- dennis telefonou para cá primeiro, afirmando que tinha sabido da história através
das notícias.

- luxford?
- dennis luxford.

- o sr. st. james disse-me que a senhora suspeitava que ele poderia estar envolvido.

- suspeito - corrigiu ela. afastou a mão do copo de vinho e começou a ordenar os


papéis sobre a mesa, alinhando os cantos e os lados com gestos mecânicos. lynley
perguntou a si próprio se ela também teria sido sedada, dada a lentidão dos seus
movimentos. - se bem compreendo, inspetor, de momento não há provas que
indiquem que charlotte foi assassinada. correto?

lynley hesitava em traduzir as suas suspeitas por palavras, apesar de ter visto as
fotografias.

- só a autópsia poderá dizer-nos o que aconteceu exatamente - disse.

- sim, claro. os trâmites oficiais da polícia. compreendo. mas eu vi o corpo, eu... - as


pontas dos dedos dela ficaram brancas quando as pressionou sobre o tampo da
mesa. passaram alguns momentos antes que ela prosseguisse, e durante esse
tempo todos eles ouviram distintamente as vozes abafadas dos repórteres ali perto,
em marylebone high street. - vi o corpo todo, não apenas o rosto. não havia
quaisquer marcas. em zona nenhuma. pelo menos não havia marcas significativas.
não foi atada, nem a prenderam a nenhum objeto pesado. não se debateu contra
ninguém que estivesse a mantê-la debaixo de água. o que é que isto lhe sugere,
inspetor? a mim faz-me pensar em acidente.

lynley não discordou abertamente dela. a curiosidade que sentia em saber até onde
a levaria aquele tipo de raciocínio era superior ao desejo de corrigir os pressupostos
errados dela em relação a afogamentos acidentais.

- acho que o plano dele correu mal - disse ela. - a intenção dele era mantê-la presa
até que eu cedesse à sua exigência de trazer o caso a público. nessa altura tê-la-ia
libertado ilesa.

- sr. luxford?

- ele não a teria morto, nem a teria mandado matar. precisava dela viva para garantir
a minha cooperação. no entanto, alguma coisa correu mal, e ela morreu. ela não
sabia o que estava a passar-se, pode ter-se assustado e talvez tenha fugido por
esse motivo. essa seria uma atitude típica de charlotte, a fuga. talvez tivesse
começado a correr. estava escuro e ela estava no campo, não estaria familiarizada
com o lugar, e como nunca tinha estado em wiltshire não tinha forma de saber da
existência do canal.

- ela sabia nadar?

- sabia, sim, mas se fosse a correr... se correu, caiu, bateu com a cabeça...
consegue imaginar o que lhe poderia ter acontecido, suponho.

- não estamos a eliminar nenhuma das hipóteses possíveis, miss bowen.


- então está a considerar o possível envolvimento de dennis?

- tal como o de todas as outras pessoas.

desviou os olhos para os papéis e concentrou-se na ordenação dos mesmos.

- não há mais ninguém.

- não podemos tirar essa conclusão - disse lynley, - sem um exame exaustivo dos
fatos - puxou uma das três cadeiras que rodeavam a mesa, fazendo sinal a nkata
para que o imitasse.

- vejo que trouxe trabalho para casa - disse.

- e esse é, então, o primeiro fato a examinar? por que motivo estará a ministra
calmamente sentada no jardim de sua casa, com o trabalho espalhado à sua frente,
enquanto o marido, que nem sequer é o pai da sua filha, está no quarto,
absolutamente prostrado pela dor?

- as suas responsabilidades são enormes, suponho.

- não. supõe que sou insensível. essa é a conclusão mais lógica a que pode chegar,
não é? o senhor tem de observar o meu comportamento, faz parte do seu trabalho.
tem de perguntar a si próprio que tipo de mulher serei eu? está à procura de quem
raptou a minha filha e tanto quanto sabe, eu própria poderia ter planeado tudo isto.
se assim não fosse, como poderia eu ser capaz de estar aqui sentada, analisando
papéis como se nada se tivesse passado? não tenho o ar de alguém que esteja
desesperadamente à procura de qualquer coisa onde possa fixar o olhar, algo que
me dê a ilusão de estar ocupada, a fim de conter o impulso de arrancar cabelos em
resultado do sofrimento. ou tenho?

lynley inclinou-se para ela, pousando a mão perto do sítio onde ela pousara a dela,
sobre uma das pilhas de papéis.

- compreenda o que lhe vou dizer - disse ele, - nem todas as minhas observações
serão um juízo de valor a seu respeito, miss bowen.

ouviu-a engolir em seco.

- no mundo em que eu vivo, são.

- É sobre o seu mundo que precisamos de falar.

os dedos dela começaram a curvar-se sobre os papéis, como aconteceria se tivesse


decidido amarfanhar os documentos. aparentemente foi com esforço que conseguiu
descontraí-los de novo.

- não chorei - disse ela. - era minha filha e eu não chorei. ele olha para mim, à
espera de ver as lágrimas, pois se lhe der lágrimas então poderá reconfortar-me. e
enquanto isso não acontecer sentir-se-á completamente perdido. não há centro para
ele, nem sequer um sítio onde possa agarrar-se. porque eu não consigo chorar.

- ainda está em estado de choque.

- não estou, não. e isso é que é pior. não estar em estado de choque quando é isso
que todos esperam, médicos, família, colegas. todos eles esperam que eu lhes dê
um sinal de desgosto maternal aceitável e convenientemente inequívoco, para que
saibam o que fazer em seguida.

lynley sabia que era quase inútil descrever-lhe qualquer uma das infindáveis reações
a uma morte súbita que lhe fora dado testemunhar ao longo dos anos. era certo que
a reação dela à morte da filha não coincidia com a que ele esperaria de uma mãe
cuja filha de dez anos tivesse sido raptada, mantida prisioneira e encontrada morta.
no entanto, sabia também que a ausência de emoção por ela revelada não tornava
essa reação menos genuína. sabia ainda que nkata estava a registrá-la, já que o
agente começara a escrever logo que eve bowen principiara a falar.

- destacaremos alguém para investigar, sr. luxford - disse-lhe. todavia, não quero
fazê-lo com base na exclusão de outros possíveis suspeitos. se o rapto da sua filha
foi o primeiro passo para afastá-la do poder político...

- então teremos de considerar que outras pessoas para além de dennis estariam
interessadas nesse fim - concluiu ela por ele. - certo?

- sim, temos de considerar isso, bem como as paixões que motivariam alguém a
afastá-la do poder. ciúme, cobiça, ambição política, vingança. alguma vez frustrou os
planos de algum elemento da oposição?

os lábios dela formaram um breve sorriso irônico. - os nossos inimigos no


parlamento não se sentam em frente ao objeto da sua antipatia, inspetor. sentam-se
atrás dele, juntamente com os restantes elementos do partido.

- para que a facada nas costas seja mais eficaz - fez notar nkata.

- precisamente.

- a sua ascensão ao poder foi relativamente rápida, não é verdade? - perguntou


lynley à deputada.

- seis anos - disse ela.

- desde que foi eleita pela primeira vez? - quando ela assentiu com um movimento
de cabeça, continuou - foi um aprendizado breve. outros há que passam anos
aguardando na sombra, não é? outros que poderiam ter feito várias tentativas para
entrar para o governo à sua frente?

- o meu caso não é o primeiro em que um deputado mais jovem ultrapassa outros,
mais velhos. É uma questão de talento e de ambição.
- concordo - disse lynley. - no entanto, alguém igualmente ambicioso que se
considera tão talentoso poderá ter desenvolvido um sentimento de amargura ao vê-
la passar-lhe à frente na corrida a um cargo governativo. essa amargura pode ter-se
transformado num forte desejo de a ver cair em desgraça. por intermédio da
paternidade de charlotte. se esse for o caso, então teremos de procurar alguém que
tenha estado também em blackpool no congresso do partido conservador durante o
qual a sua filha foi concebida.

eve bowen levantou a cabeça em jeito de desafio, observou-o de perto e disse com
alguma surpresa: - ele contou-lhe tudo, não foi? sr. st. james?

- eu disse-lhe que tinha falado com ele.

- por alguma razão julguei que ele o teria poupado aos pormenores mais
desagradáveis.

- eu não poderia prosseguir a investigação sem saber que a senhora e o sr. luxford
tinham sido amantes em blackpool.

ela levantou um dedo: - parceiros sexuais, inspetor. apesar de tudo o que possamos
ter sido um para o outro, dennis luxford e eu nunca fomos amantes.

- seja qual for a designação que prefira dar-lhe, alguém está a par do que se passou
entre ambos. ele fez as suas contas...

- ou ela? - assinalou nkata.

- ou ela - concordou lynley. - alguém sabe que charlotte foi o resultado desse
encontro. essa pessoa, seja ela quem for, é alguém que esteve em blackpool há
muitos anos atrás, e é alguém que tem um ajuste de contas pessoal a fazer consigo,
muito provavelmente alguém que pretende ocupar o seu lugar.

ela pareceu retrair-se enquanto refletia sobre a descrição que ele fizera do hipotético
raptor. - joel seria o primeiro a querer ficar com o meu lugar - disse ela. - neste
momento é ele que trata da maior parte dos meus assuntos, aliás. mas é pouco
provável que...

- joel? - perguntou nkata, lápis pousado no papel. - o apelido, miss bowen?

- woodward, mas nessa altura ele devia ser muito jovem. tem apenas vinte e nove
agora. não poderia ter estado presente no congresso de blackpool. a menos que, é
evidente, o pai dele lá tivesse estado. poderia ter ido com o pai.

- quem é o pai?

- julian, o coronel woodward, presidente da associação da minha constituinte. É


funcionário do partido há décadas. não sei se esteve em blackpool, mas é possível
que sim. tal como joel. - ergueu o copo de vinho mas não bebeu. em vez disso
continuou a segurá-lo entre as mãos, fitando-o enquanto falava. - joel é meu
assistente e tem ambições políticas. por vezes colidimos. no entanto... - abanou a
cabeça, eliminando aparentemente a hipótese considerada. - não acho que seja joel.
ele conhece os meus horários melhor do que ninguém. conhece os horários de alex
e de charlotte também. É obrigado a sabê-lo, faz parte do trabalho dele. mas fazer
isto... como poderia ele tê-lo feito? ele esteve em londres. a trabalhar. durante todo o
tempo que isto durou.

- todo o fim-de-semana? - perguntou lynley.

- que pretende dizer com isso?

- o corpo foi encontrado em wiltshire, mas isso não significa que charlotte tenha sido
mantida prisioneira em wiltshire a partir de quarta-feira. poderia ter estado em
qualquer sítio, até aqui em londres, poderia ter sido transportada para wiltshire em
dado momento durante o fim-de-semana.

- depois de estar morta, quer dizer - disse eve bowen.

- não necessariamente. se tivesse estado presa na cidade e por qualquer razão o


lugar se tivesse tornado demasiado quente, poderia igualmente ter sido mudada.

- nesse caso, quem a mudou teria de conhecer a região de wiltshire. se ela tivesse
estado escondida antes... antes do que aconteceu.

- sim, há que acrescentar igualmente esse elemento. alguém dos tempos de


blackpool, alguém que cobice a sua posição, alguém com ressentimentos passados,
alguém que conhece wiltshire. joel conhece? e o pai?

fitava os papéis e, de súbito, desatou a folheá-los. - joel mencionou... - disse para si


mesma - quinta-feira à noite... disse...

- este woodward tem alguma ligação com wiltshire? procurou esclarecer nkata, antes
de continuar as suas anotações.

- não, não é joel - examinou os papéis, mas pô-los de lado enfiando-os no caderno
de apontamentos. pegou noutros, que tirou do monte pousado na cadeira perto dela.
- É uma prisão – disse - ele não a quer. pediu insistentemente para marcar uma
reunião comigo a fim de discutir o assunto, mas recusei-me a fazê-lo porque...
blackpool. É claro que ele esteve em blackpool.

- quem? perguntou lynley.

- alistair harvie. esteve em blackpool há anos atrás. entrevistei-o para o telegraph. fui
eu quem solicitou a entrevista, ele acabara de ser eleito para o parlamento, era uma
pessoa direta e rude. um excelente orador, inteligente e atraente. o menino bonito,
de olhos azuis do partido. especulava-se que ele seria em breve nomeado para
assessorar o secretário dos negócios estrangeiros e, mais do que isso, vaticinava-se
que seria primeiro-ministro no espaço de quinze anos. por isso quis entrevistá-lo. ele
concordou e marcamos um encontro. no quarto dele. não suspeitei de nada até ao
momento em que ele decidiu dar o primeiro passo. você acabou de ficar a conhecer-
me, disse, e é justo que haja uma inversão de papéis, não é, por isso quero
conhecê-la, quero realmente conhecê-la. acho que desatei a rir. duvido que tenha
fingido não perceber as intenções dele para que ele pudesse sair airosamente da
situação. este tipo de avanços masculinos sempre me desagradaram.

encontrou o que procurava no segundo caderno de apontamentos que tirou do


monte.

- É uma prisão - disse. - trata-se de um projeto que tem agora dois anos e que será
dispendioso por ser do mais moderno que se pode fazer hoje. está concebido para
alojar três mil homens e, a menos que alistair harvie consiga embargá-lo, será
construído no seu círculo eleitoral.

- que é?... - perguntou lynley.

- em wiltshire - replicou ela.

nkata dobrou a silhueta alta e esguia para poder entrar no bentley e sentar-se no
assento ao lado do condutor, mantendo uma das pernas pousada no passeio.
equilibrando o bloco-notas sobre o joelho continuou a escrever.

- organiza isso tudo de forma que hillier consiga perceber - disse-lhe lynley. entrega-
lho amanhã de manhã. evita encontrares-te pessoalmente com ele. hillier vai seguir
de perto cada passo que dermos, mas vamos tentar mantê-lo à distância.

- certo - nkata ergueu a cabeça para observar a fachada da casa de eve bowen. - o
que é que acha?

- wiltshire em primeiro lugar.

- este tipo, o harvie?

- É um ponto de partida. vou pôr havers a trabalhar nisso.

- e nós?

- nós investigamos. - lynley refletiu sobre tudo o que st. james lhe dissera. - começa
a procurar relações duplas, winston. precisamos de saber quem está
simultaneamente ligado a bowen e a wiltshire. já temos harvie, mas isso parece
demasiado fácil para ser verdade, não achas? por isso investiga luxford, os
woodward. não te esqueças de chambers, o professor de música de charlotte, já que
foi o último a vê-la. investiga a maguire, a governanta, e alexander stone, o
padrasto.

- pensa que ele poderá não estar tão perturbado quanto miss bowen quer fazer-nos
crer? - perguntou nkata.

- penso que tudo é possível.

- inclusive que bowen esteja envolvida?


- faz indagações sobre ela também. se o ministério do interior estava à procura de
um sítio em wiltshire para construir uma nova prisão, certamente que enviou uma
comissão para estudar a zona. se ela fez parte dessa comissão ficou a conhecer a
região, e se ela própria está por detrás do rapto pode muito bem ter descoberto
alguém que mantivesse a filha presa.

- atrás dessa hipótese há uma grande interrogação, meu. se foi ela quem planejou o
rapto, o que é que espera ganhar com isso?

- ela é um animal político - disse lynley. - qualquer resposta a essa pergunta terá de
ter origem na política também. aquilo que ela teria a perder está à vista.

- se luxford tivesse publicado a história ela estaria entregue às feras.

- isso é o que supostamente devemos pensar, não é? as atenções têm estado todas
viradas para o que ela tem a perder e, de acordo com st. james, todos os principais
implicados, à exceção do professor de música, ressaltaram esse fato desde o
princípio. vamos ter isso em mente, nesse caso. só que costuma ser igualmente
vantajoso seguir numa direção que não nos é sinalizada de forma tão gritante. por
isso vamos ver também o que é que a deputada bowen teria a ganhar com tudo isto.

nkata concluiu a tomada de notas com um ponto final meticulosamente colocado.


marcou a página com a estreita fita do caderninho. tornou a colocar o bloco-notas e
a lapiseira no bolso. saiu do carro. uma vez mais estudou a fachada da casa da
ministra, guardada pelo solitário agente de polícia, em pé, braços cruzados sobre o
peito.

curvou-se e fez a sua última observação através da janela aberta do carro.

- isto pode ficar muito feio, não pode, inspetor?

- já está feio - retorquiu lynley.

um desvio para hawthorne iodge, em greenford, a oeste do sítio onde vivia, em chalk
farm, conduziu barbara havers à m4, muito depois da hora de ponta. não que o
momento escolhido fizesse grande diferença, como ela cedo descobriu. um acidente
mesmo antes de reading, entre um range rover e um caminhão que transportava
tomates, reduzira a auto-estrada a uma procissão que avançava, obediente, por
entre um mar espesso e carmesim. quando viu a fila interminável de luzes de
travagem que se perdia no horizonte, barbara engatou o carro, carregou nos botões
do rádio até encontrar uma estação que pudesse informá-la sobre que raio se estava
a passar lá na frente, e dispôs-se a esperar. consultara um mapa antes de sair de
casa, por isso sabia que mais valia esquecer a auto-estrada e tentar a sua sorte na
a4, se fosse necessário. isso significava, porém, que teria de encontrar uma saída,
uma facilidade sempre escassa quando se pretendia tirar o máximo de proveito dos
gastos automóveis.

- raios partam isto - desabafou. tão cedo não conseguiria desembaraçar-se daquela
confusão. e o estômago começava a exigir atenção imediata.
sabia que devia ter improvisado uma refeição e tê-la engolido antes de se ter feito à
estrada. na altura, porém, um jantar apressado não se lhe afigurara tão importante
como atirar algumas mudas de roupa e uma escova de dentes para dentro do saco
de viagem e sair disparada em direção a greenford antes de iniciar a viagem para
wiltshire, a fim de pôr a mãe ao corrente das grandes novidades. vou chefiar uma
das divisões de uma investigação, mãe. que me dizes a esta promoção profissional,
finalmente? ser destacada para se encarregar de coisas mais importantes do que ir
ao quarto andar buscar sanduíches para lynley constituía um progresso significativo
na vida de barbara. e ela sentira-se ansiosa por partilhá-lo com alguém.

tentara os vizinhos, primeiro. no caminho para a casa minúscula onde vivia, ao fundo
do jardim em eton villas, parara no apartamento do rés-do-chão do edifício
eduardiano decidida a contar as boas notícias.

no entanto, nem khalidah hadiyyah que, com oito anos de idade, era a companhia
mais assídua de barbara nos churrascos ao ar livre, idas ao jardim zoológico e nos
passeios de barco até greenwich nem o pai, taymullah azhar estavam em casa
prontos a reagir às mudanças na sua vida profissional com o arrebatamento que tais
circunstâncias exigiam. visto isso emalara calças, camisolas, roupa interior e a
escova de dentes e dirigira-se para greenford, a fim de contar à mãe o sucedido.

encontrara a sra. havers, e as suas outras companheiras de hawthorne lodge, no


recanto que servia de sala de jantar. estavam reunidas em volta da mesa juntamente
com florence magentry guardiã, enfermeira, confidente, coordenadora de atividades
e gentil carcereira de todas elas que as ajudava a compor um puzzle a três
dimensões. pela gravura que ilustrava a tampa da caixa, barbara viu que depois de
terminado deveria representar uma mansão vitoriana. naquele momento parecia
uma relíquia do blitz.

- É um ótimo desafio para nós - explicou a sra. fio, compondo o cabelo já grisalho,
irrepreensivelmente penteado em forma de cunha perfeita. passamos os dedos em
torno das peças e a nossa mente estabelece relações entre as formas que vemos e
sentimos e as formas de que precisamos para construir o puzzle. e depois de ele
estar completo podemos contemplar um edifício encantador, não é verdade, minhas
queridas?

ouviram-se murmúrios de assentimento provenientes das três mulheres sentadas


em torno da mesa, inclusive da sra. pendlebury, que era completamente cega e cujo
contributo para a atividade do grupo parecia ser o de baloiçar-se na cadeira onde
estava sentada e cantar em uníssono com tammy wynette, ecoando os lamentos
desta que emanavam da velha aparelhagem-estéreo da sra. magentry. tinha uma
das peças do puzzle na palma da mão, mas em vez de tatear as suas formas com
os dedos, pressionava-o de encontro a uma das faces e entoava «Às vezes é difícil
ser mulher».

«como era verdade», pensou barbara. levou a cadeira que a sra. fio deixara vaga
para junto da mãe.

a sra. havers dedicava-se à atividade em curso com entusiasmo. tentava,


diligentemente, encaixar as peças que compunham uma das paredes da mansão e
enquanto o fazia confiava às senhoras salkild e pendlebury que a mansão que
estavam em vias de construir era a cópia exata daquela onde ficara como hóspede
convidada durante a sua viagem a são francisco, no outono do ano anterior.

- uma cidade maravilhosa - dizia, excitada. - colina acima, colina abaixo, elétricos
magníficos, gaivotas esvoaçando sobre a baía. e a ponte golden gate. envolta numa
neblina que parece algodão doce branco... uma festa para os olhos.

ela nunca lá fora, pelo menos fisicamente. na sua mente, porém, já estivera em toda
a parte e guardava uma série de álbuns dentro dos quais se amontoavam brochuras
de viagem de onde recortava religiosamente algumas fotografias como prova de que
estava a dizer a verdade.

- mãe? - chamou barbara. - como vou a caminho de wiltshire quis passar por aqui.
fui destacada para um caso.

- salisbury fica em wiltshire anunciou a sra. havers. tem uma catedral. foi lá que me
casei com jimmy, sabias? nunca te disse? claro que a catedral não é vitoriana, como
esta linda casa... inclinou-se para pegar noutra peça, com gestos apressados e
afastando-se de barbara.

- mãe - disse barbara, - quis dar-lhe a novidade, porque esta é a primeira vez que
vou estar por minha conta. num caso, quero dizer. o inspetor lynley vai dirigir parte
dele aqui, e eu fiquei incumbida da outra parte. eu. serei a responsável.

- a catedral de salisbury possui um gracioso coruchéu - continuava a sra. havers,


num tom mais insistente. - mede cento e vinte metros de altura. imaginem só, o mais
alto de inglaterra. a catedral em si mesma é bastante singular, já que foi projetada
como uma unidade única e construída ao longo de quarenta anos. mas a verdadeira
coroa de glória do edifício...

barbara pegou na mão da mãe. a sra. havers parou de falar, nervosa e confusa com
aquele gesto inesperado.

- mãe - começou barbara, - ouviste o que eu disse? fui destacada para um caso.
tenho de partir esta noite e vou estar fora durante alguns dias.

- o tesouro mais precioso da catedral - prosseguiu a sra. havers, - é uma das três
cópias originais da magna carta. imagina só. da última vez que eu e jimmy lá
estivemos, festejamos trinta e seis anos de casados este ano, passeamos em volta
da catedral e nas imediações e tomamos chá numa casinha encantadora em exeter
street. a loja não era vitoriana, nada que se parecesse com este lindo puzzle que
estamos a fazer. este puzzle de uma mansão de são francisco. É exatamente igual
àquela onde fiquei hospedada no outono passado. são francisco é tão bonito. colina
acima, colina abaixo. elétricos magníficos. e a ponte golden gate quando a neblina
desce... - arrancou bruscamente a mão que barbara segurava e encaixou uma peça
do puzzle no espaço correspondente.

barbara observava-a, consciente de que a mãe estava a estudá-la pelo canto do


olho. procurava nos recantos da sua mente confusa, tentando descobrir um nome ou
uma etiqueta que pudesse aplicar àquela mulher entroncada e de aspecto
desmazelado que viera juntar-se a ela, à mesa. por vezes identificava barbara com
doris, a irmã falecida havia muitos anos, ainda durante a segunda guerra mundial.
outras vezes reconhecia-a como sendo a sua própria filha. noutras ocasiões, como
esta, parecia acreditar que se não parasse de falar conseguiria de algum modo
evitar a confissão inevitável de que não fazia a mais pequena idéia de quem era
barbara.

- não venho cá tantas vezes como devia, não é? - barbara perguntou à sra. fio. - ela
costumava reconhecer-me. quando vivíamos juntas ela sabia sempre quem eu era.

a sra. fio tentou confortá-la.

- a mente é um mistério, barbie. não deves culpabilizar-te por algo que escapa
claramente ao teu controle.

- mas se eu viesse mais vezes... ela reconhece-a sempre, não? e a sra. salkild e a
sra. pendlebury. porque vos vê todos os dias.

- não podes vir visitá-la todos os dias - disse a sra. fio. - e não tens culpa disso.
ninguém tem. a vida é assim, é tudo. ora, quando decidiste ser detetive não sabias
que a tua mãe iria ficar assim, pois não? não o fizeste para evitar a companhia dela,
não é verdade? limitaste-te a seguir o teu caminho.

no entanto, sentia-se aliviada por lhe terem tirado aquele peso de cima dos ombros,
- admitiu barbara, ainda que apenas para si própria. - e esse alívio era a segunda
maior fonte de culpa. a primeira era o necessário lapso de tempo entre cada
deslocação a greenford.

- fazes o melhor que podes - disse a sra. fio. a verdade era que barbara sabia que
não fazia.

agora, entalada entre uma caravana em forma de caracol e um caminhão a diesel,


em plena auto-estrada, pensava na mãe e nas suas expectativas goradas. que
reação esperara que a mãe tivesse ao ouvir as novidades que lhe trazia? vou chefiar
parte de uma investigação, mãe. que maravilha, querida. tragam o champanhe.

que idéia estúpida fora a sua. barbara tateou o interior do saco à procura dos
cigarros, sem desviar os olhos do trânsito à sua frente. acendeu um, inalou
profundamente o fumo do tabaco e comemorou, em solidão, a sensação gratificante
que a invadia ao pensar na autonomia relativa de que iria beneficiar no decorrer
desta investigação. iria trabalhar em conjunto com o departamento de investigação
criminal local, naturalmente, mas apenas teria de prestar contas a lynley. e, uma vez
que ele estaria confinado a londres, em duelo permanente com hillier, a parte mais
suculenta do caso ficaria a seu cargo: o local do crime, a avaliação das provas, os
resultados da autópsia, a procura do sítio onde a criança fora mantida prisioneira e o
exame minucioso da região em busca de eventuais provas. e havia ainda a
identidade do raptor. estava decidida a deslindá-la, antes que lynley o fizesse.
estava em melhor posição para fazê-lo do que ele, e se fosse bem sucedida seria a
grande oportunidade da sua carreira. hora de promoção, diria nkata. deixá-la ser,
pensou, há muito que a merecia.

por fim conseguiu sair da m4 pela saída doze, exatamente a oeste de reading. isso
conduziu-a precisamente à a4, na direção exata da cidade de marlborough, a sul da
qual ficava wootton cross. aí, na esquadra da polícia local, tinha encontro marcado
com os agentes do departamento de investigação criminal de amesford nomeados
para o caso. estava já bastante atrasada e quando, finalmente, virou para entrar
num minúsculo parque de estacionamento situado nas traseiras do compacto
quadrado de tijolo que constituía a esquadra da polícia de wootton cross, não pôde
deixar de perguntar se eles teriam desistido de vez de esperar pela sua chegada. o
edifício estava mergulhado na escuridão e parecia estar vazio o que não era uma
circunstância invulgar numa aldeia, depois do pôr do sol, e o único carro visível, para
além do seu, era um velho escort em tão mau estado como o mini.

estacionou ao lado do escort e abriu a porta do seu lado, empurrando-a com o


ombro. aproveitou para distender os músculos tensos durante alguns momentos,
admitindo para si mesma que trabalhar lado a lado com o inspetor lynley tinha as
suas vantagens próprias, a menos negligenciável das quais não era certamente o
seu suntuoso carro. quando sentiu o corpo totalmente descontraído aproximou-se da
esquadra e espreitou através do vidro poeirento da porta das traseiras, que estava
trancada.

a porta em questão dava para um corredor que conduzia à parte da frente do


edifício. as portas que ladeavam o corredor estavam abertas, mas não se via
qualquer quadrado de luz refletido no chão.

com certeza teriam deixado um bilhete, pensou barbara. perscrutou o retângulo de


cimento que formava o degrau das traseiras do edifício, tentando certificar-se de que
nenhum papel fora empurrado pelo vento. encontrando apenas uma lata de pepsi
amachucada e três preservativos usados o sexo seguro era ótimo, mas ela nunca
conseguia perceber por que razão os seus adeptos nunca avançavam da proteção
durante o coito para a limpeza pós-coito encaminhou-se para a parte da frente do
edifício. esta coincidia com o ponto onde se cruzavam três estradas separadas que
entravam em wootton cross e se juntavam na praça da aldeia, no centro da qual se
erguia a estátua de um rei obscuro que parecia extremamente infeliz pelo fato de ter
sido imortalizado numa localidade rural ainda mais obscura. de frente para a
esquadra da polícia patenteava uma expressão lúgubre, espada numa mão, escudo
na outra, coroa e ombros generosamente salpicados por excrementos de pombo.
atrás dele, do outro lado da rua, o king alfred arms desvendava a sua identidade aos
espíritos mais perspicazes. o pub estava bastante movimentado nessa noite, a julgar
pelo som de música que jorrava pelas janelas abertas e pelo movimento de corpos
do outro lado dos vidros. barbara considerou-o como o outro sítio lógico onde
poderia averiguar o paradeiro dos seus colegas da polícia, se a fachada da
esquadra nada lhe dissesse.

e foi praticamente isso que sucedeu. um aviso bem impresso, colado na porta,
informava todos os que procurassem ajuda policial fora de horas que deveriam
telefonar para a polícia de amesford. apesar disso, barbara bateu à porta com pouco
entusiasmo, não fosse dar-se o caso de a equipe do departamento criminal que
supostamente a aguardava ter decidido passar pelas brasas. quando não viu
nenhuma luz acender-se em sinal de resposta, soube que não lhe restava outra
alternativa senão enfrentar a multidão e a música que soava vagamente ao tema in
the mood, tocado com entusiasmo, ainda que com pouca fidelidade, por uma banda
de septuagenários com deficiências pulmonares do king alfred arms.

detestava entrar num pub furtivamente, e desacompanhada. sentia-se sempre


nervosa no momento em que todos os olhares convergiam para o recém-chegado,
prontos para uma avaliação rápida. contudo, teria de habituar-se a avaliações
rápidas, não tinha, uma vez que ia dirigir a investigação do caso em wiltshire. sendo
assim, o king alfred arms era um ponto de partida tão bom como qualquer outro.

começou a atravessar a rua, procurando automaticamente o saco a tiracolo e os


cigarros, a fim de reforçar a coragem a poder de nicotina. procurou em vão. estacou,
gelada. o saco...

ficara no carro, lembrou-se, e revivendo mentalmente os passos que dera na


qualidade de chefe supremo da equipe de wiltshire, felicitou-se pela celeridade com
que tentara apresentar as suas credenciais e começar a puxar dos galões, ao ponto
de deixar a porta do carro aberta, o saco lá dentro e as chaves providencialmente na
ignição.

- diabo - murmurou.

virou-se e percorreu rapidamente o caminho inverso ao que fizera antes. contornou


um dos lados da esquadra da polícia, venceu apressada o acesso, desviou-se de
um contentor de lixo e entrou no minúsculo parque de estacionamento. foi nesse
momento que abençoou as sapatilhas silenciosas que trazia nos pés.

um homem vestido de escuro estava inclinado sobre o mini e, tanto quanto lhe era
dado ver, preparava-se para revistar diligentemente o saco dela.

bárbara atirou-se violentamente a ele. era alto, mas ela tinha a seu favor o fator
surpresa e a raiva. soltou um rugido digno do maior especialista em artes marciais
no momento em que agarrou o ladrão de sacos pela cintura, afastando-o
violentamente do seu carro e encostando-o a ele.

- polícia, saloio! - rosnou ela. - e não te atrevas a mexer nem um maldito cabelo.

ele estava em desequilíbrio, pelo que fez mais do que mexer um fio de cabelo. caiu
com o rosto virado para o chão. contorceu-se por momentos como se tivesse caído
em cima de uma pedra e fez menção de querer alcançar a algibeira direita das
calças. barbara imobilizou-lhe a mão com o pé.

- eu disse para não te mexeres.

- a minha identificação... algibeira - disse ele, numa voz abafada devido à posição
em que se encontrava.

- certo - retorquiu ela, causticamente. - que tipo de identificação? de carteirista?


ladrão de sacos? de carros? que mais?

- polícia - disse ele.

- polícia?

- exato. posso levantar-me? ou virar-me, pelo menos?

grande merda, pensou ela. bela maneira de começar. em seguida disse, com
desconfiança: - porque é que estava a remexer nas minhas coisas?

- estava a tentar ver a quem pertencia o carro. posso levantar-me?

- fique onde está. vire-se, mas continue deitado no chão.

- certo - continuou imóvel.

- não ouviu o que eu disse?

- continua a prender-me a mão.

afastou rapidamente a sapatilha de cima da palma da mão dele.

- nada de movimentos bruscos - disse.

- compreendido - retorquiu ele. com um gemido conseguiu virar-se para um lado,


primeiro, e depois deitar-se de costas. deitado no chão observou-a.

- sou o agente robin payne - disse. - algo me diz que deve ser da scotland yard.

ele parecia um jovem errol flynn, mas com um bigode mais peremptório. e não
estava vestido de preto, como barbara inicialmente pensara. usava, antes, umas
calças antracite e uma camisola azul-marinho de gola em v, com uma camisa branca
por baixo. o colarinho desta estava agora manchado de fuligem tal como a camisola
e as calças graças à queda. além disso, a face esquerda sangrava, uma possível
explicação para o fato de se ter contorcido quando ela o imobilizara no solo.

- não é nada - disse ele quando viu a careta de barbara. - eu teria feito o mesmo.

estavam no interior da esquadra da polícia. o agente payne abrira a porta das


traseiras e entrara no que parecia ser uma velha lavandaria. rodou as torneiras e a
água jorrou para dentro de uma tina de cimento cheia de manchas. num suporte de
metal ferrugento perto das torneiras havia um pedaço de sabão verde, incrustado de
fuligem, e antes de servir-se dele, payne tirou um canivete de dentro do bolso das
calças com o qual extraiu a sujidade entranhada no sabão. enquanto a água
aquecia, despiu a camisola e entregou-a a barbara pedindo - segure-me isto durante
um segundo, não se importa? - em seguida lavou o rosto.

barbara olhou em volta procurando uma toalha. um pedaço de tecido turco mole,
suspenso num gancho atrás da porta era, aparentemente, a única alternativa
adequada. todavia, estava sujo e cheirava a mofo. nem se atrevia a considerar a
hipótese de o entregar a alguém na esperança de que fosse de fato utilizado.

diabo, pensou. não era o tipo de mulher que trazia sempre consigo lenços de linho
perfumados destinados a momentos íntimos como este e, além disso, a bola de
lenços de papel amarrotados que formavam um chumaço dentro do bolso do seu
casaco não seria certamente o melhor que lhe podia oferecer para que ele
completasse as suas abluções. no momento em que considerava a hipótese de
recorrer a uma resma meio-aberta de papel para máquina de escrever, dado o seu
potencial de absorção presentemente servia para manter a porta aberta ele levantou
a cabeça do lavatório, passou as mãos molhadas pelo cabelo e solucionou o
problema por ela. puxou a camisa para fora das calças e usou as fraldas como
toalha.

- peço desculpa - disse barbara enquanto ele secava o rosto. conseguiu vislumbrar o
peito dele. «bonito», notou, peludo o suficiente para ser atraente sem que ninguém
fosse levado a pensar em possíveis antepassados simiescos. - vi-o junto do meu
carro e reagi instintivamente.

- a isso chama-se um treino capaz - disse ele, largando a fralda da camisa e


voltando a enfiá-la dentro das calças. - mostra que tem experiência - esboçou um
sorriso triste, e eu não. - isso explica por que razão está na scotland yard e eu não.
que idade tem, afinal? estava à espera de alguém perto dos cinquenta, a idade do
meu sargento.

- trinta e três.

- uau. você deve ser uma barra.

tendo em conta os altos e baixos de que era feita a sua carreira na new scotland
yard, barra não seria exatamente o termo que barbara usaria para se descrever a si
própria. só agora, depois de trinta meses de trabalho ao lado de lynley começava a
olhar para si própria como sofrível.

payne pegou na camisola que ela segurava e sacudiu-a energicamente várias


vezes, para fazer saltar a sujidade. passou-o pela cabeça, alisou o cabelo uma vez
mais e disse: - pronto. agora vamos ao estojo de primeiros socorros, que deve estar
algures por aqui... - procurou numa prateleira desarrumada por debaixo da única
janela do quarto. uma escova de dentes com as cerdas divididas deslizou para o
chão. -aqui está ele - disse payne, expondo uma caixa de folha azul coberta de
poeira, de onde tirou um emplastro que aplicou sobre o golpe numa das faces.

sorriu subitamente para barbara.

- há quanto tempo está lá? - perguntou.

- onde?

- na new scotland yard.


- seis anos.

assobiou baixinho.

- impressionante. tem trinta e três anos, foi isso que disse?

- exato.

- e quando é que se tornou agente?

- quando tinha vinte e quatro.

ergueu as sobrancelhas. sacudiu a poeira das calças com a mão.

- eu próprio consegui a promoção há três semanas. foi nessa altura que terminei o
curso. mas suponho que isso se nota, não é? isto é, que ainda sou verde, tendo em
conta o que se passou lá fora e o que aconteceu com o seu carro. - endireitou a
camisola na zona dos ombros. estes também eram bonitos, notou barbara. - vinte e
quatro - disse quase para consigo, com alguma admiração e, depois, para ela: -
tenho vinte e nove. acha que já é tarde demais?

- para quê, exatamente?

- para tentar chegar onde você está. à scotland yard. É esse o meu objetivo, que
espero alcançar um dia, - com a ponta dos pés levantava a ponta de um pedaço de
linóleo descolado, num gesto juvenil. - isto é, quando for suficientemente bom, o que
de momento não sou, como é óbvio.

barbara não sabia muito bem como explicar-lhe a ausência de glória que geralmente
acompanhava o trabalho dela. por isso resolveu dizer: - disse que tinha sido
promovido a agente há três semanas? este é o seu primeiro caso?

ele respondeu-lhe enterrando ainda mais o pé no linóleo solto. - o sargento stanley


está um pouco aborrecido pelo fato de terem nomeado alguém de londres para
dirigir as coisas aqui - disse ele. - esperou aqui comigo até às oito e meia e depois
foi-se embora. pediu-me que lhe dissesse que podia encontrá-lo em casa dele, se
achasse que iria precisar dele esta noite.

- fiquei presa no trânsito - disse barbara.

- esperei até às nove e um quarto, depois pensei que talvez tivesse ido para
amesford, para o nosso departamento de investigação criminal. tinha decidido ir até
lá, quando chegou. vi-a rondar o edifício e julguei que era alguém que queria
assaltá-lo.

- onde estava você? aqui dentro?

massajou a nuca e riu, baixando a cabeça, embaraçado.

- para dizer a verdade, estava a urinar - disse ele. - lá fora, atrás daquele barracão
que fica do outro lado do parque de estacionamento. já tinha saído e estava pronto
para partir para amesford quando decidi que era mais fácil urinar no meio das ervas
do que abrir a esquadra para depois ter de voltar a trancá-la. nem sequer ouvi o seu
carro. que imbecil, hem? venha, é por aqui.

ele encaminhou-se para a parte da frente do edifício e entrou num gabinete


esparsamente mobiliado com uma secretária, armários de arquivo e mapas militares
pendurados nas paredes. um filodendro com as folhas cobertas de poeira decorava
um dos cantos, e no vaso germinara um aviso escrito à mão onde se lia não
despejar café, nem deitar cigarros. sou verdadeiro.

sem dúvida, pensou barbara, sardonicamente. a planta tinha um ar triste, tal como a
maioria das vítimas das suas tentativas de jardinagem de interiores.

- porque é que o encontro foi marcado para aqui e não para amesford? - perguntou
ela.

- foi o sargento stanley - explicou robin. - ele pensou que quereria ver o local do
crime primeiro. de manhã, quero dizer. para se inteirar. fica a escassos quinze
minutos de carro daqui. amesford, por seu lado, são mais dezoito milhas para sul.

barbara sabia o que dezoito milhas adicionais significavam numa estrada local pelo
meio do campo: uns bons trinta minutos a mais de carro. teria saudado a perspicácia
do sargento stanley se não suspeitasse das suas intenções. falou com mais
determinação do que a que sentia, considerando o pouco entusiasmo com que
antecipava o evento: - vou querer assistir à autópsia. para quando é que está
marcada?

- para amanhã de manhã. - payne tirou de debaixo do braço um pequeno monte de


pastas de arquivo que trouxera do carro. por isso vamos ter de nos levantar com as
galinhas para inspecionar o local do crime antes disso. aliás, temos algum material
preliminar, - entregou-lhe as pastas.

barbara examinou os dados recolhidos. estes incluíam uma segunda série de


fotografias do local, mais uma cópia do relatório policial relativo às declarações
prestadas pelo jovem casal que descobrira o corpo, fotografias de pormenor tiradas
na morgue, uma descrição meticulosa do cadáver altura, peso, marcas naturais
presentes no corpo, cicatrizes e um conjunto de radiografias. o relatório indicava
ainda que tinha sido recolhida uma amostra de sangue para o toxicologista.

- o nosso homem queria prosseguir com a autópsia - disse payne, - mas o ministério
do interior mandou-o esperar até à sua chegada.

- não havia roupas juntamente com o corpo? - perguntou barbara. - presumo que o
departamento de investigação criminal terá feito uma busca intensiva à área.

- nem um fio - disse ele. - no domingo à noite, a mãe forneceu-nos uma descrição
pormenorizada do que a garota tinha vestido da última vez que foi vista. pusemos os
elementos a circular, mas ainda não tivemos resposta. a mãe disse... - nesse
momento colocou-se ao lado dela e folheou algumas páginas do relatório,
descansando o traseiro na beira da secretária, - a mãe disse que na altura em que
foi raptada devia ter os óculos postos e os livros escolares, carimbados no interior
com a insígnia da escola, st. bernadette. teria também uma flauta. divulgamos essa
informação, juntamente com as outras, a outras forças policiais. e os resultados
foram estes - folheou mais algumas páginas até encontrar o que procurava. -
sabemos que o corpo esteve na água durante doze horas e sabemos também que
antes de morrer esteve num sítio onde havia maquinaria pesada.

- como é que sabem isso?

payne explicou. - tinham chegado à primeira conclusão ao descobrirem uma pulga


inanimada, enredada nos cabelos da criança: depois de separada dos cabelos e
colocada sob uma lente ampliadora, a pulga demorara uma hora e um quarto para
recuperar da imersão no canal do kennet e do avon, que era praticamente o tempo
de reanimação de um inseto que tivesse estado exposto a um ambiente líquido e
hostil durante doze horas. a segunda conclusão decorrera da presença de uma
substância estranha sob as unhas da criança.

- o que era? - perguntou barbara.

- tratava-se de um composto baseado em petróleo: um produto de destilação da


nafta de petróleo contendo ácido esteárico e hidróxido de lítio, entre outros
ingredientes multissilábicos. É o produto utilizado para lubrificar maquinaria pesada -
informou ele.

- sob as unhas de charlotte?

- exatamente - disse ele. - era o que se usava para tratores, ceifadoras-


debulhadoras, esse tipo de coisas - explicou ele. apontou para os mapas militares
remendados suspensos na parede e continuou: - há centenas de quintas na região,
dúzias delas nas zonas mais próximas, mas já as identificamos todas no mapa e
com alguma ajuda das forças de salisbury, marlborough e swindon poderemos cobri-
las na totalidade e tentar encontrar provas da presença da criança. o sargento
stanley já tem tudo organizado. as equipes começaram ontem e com um pouco de
sorte... bem, quem sabe o que poderão descobrir? embora provavelmente vá
demorar uma eternidade.

barbara julgou detectar um resquício de dúvida na voz dele acerca da forma como o
sargento estava a conduzir o caso, pelo que decidiu perguntar: - você discorda
desse plano?

- É um trabalho moroso, não é, mas tem de ser feito. mas... - caminhou até ao mapa.

- mas o quê?

- não sei. É só uma idéia.

- gostaria de partilhá-la?

ele olhou-a, visivelmente hesitante. conseguia adivinhar os pensamentos dele: já


fizera figura de parvo uma vez nessa noite e não tinha a certeza de desejar correr o
mesmo risco outra vez.

- esqueça o que aconteceu no parque de estacionamento, agente. ambos


estávamos assustados. em que é que está a pensar?

- ok - disse ele, - mas é só uma idéia. - À medida que falava ia indicando localidades
no mapa. - temos a fábrica de fertilizantes, em coate. temos vinte e nove diques que
ligam o canal até caen hill, que é perto de devizes. temos bombas de reservatórios,
bombas de vento, isto é, aqui, perto de oare, aqui e aqui, perto de wootton rivers.

- consigo vê-las no mapa. qual é a sua idéia? - perguntou havers. sem baixar a mão
dirigiu a atenção dela novamente para o mapa.

- temos parques de caravanas. moinhos, de vento, como as bombas, em provender,


wilton, blackland, wootten. temos uma serração em honeystreet. e temos todos os
ancoradouros onde são alugados os barcos fluviais, caso alguém esteja interessado
em dar um passeio pelo canal - tornou a virar-se para ela.

- está a querer dizer que qualquer uma destas localidades poderia ser a fonte da
gordura encontrada sob as unhas da miúda. lugares onde ela poderia ter estado
presa? para além da hipótese de uma quinta?

ele pareceu arrependido. - acho que sim, senhor - apercebeu-se da última palavra e
fez uma careta, acrescentando, - perdão, senhora... ah, sargento...

era uma sensação estranha, apercebeu-se barbara, ser vista como o oficial superior
de outra pessoa. a deferência constituía uma mudança agradável, mas a distância
que impunha era desconcertante.

- barbara é suficiente - disse, concentrando a sua atenção no mapa e não tanto no


embaraço juvenil do agente.

- estamos a falar de maquinaria pesada, que é o que encontrará em todos esses


lugares - disse payne.

- mas o sargento stanley não deu instruções aos seus homens para que
investigassem estes sítios?

- o sargento stanley... - payne hesitou mais uma vez. rangeu os dentes da frente,
como se sentisse um certo nervosismo por falar francamente.

- o que é que ele tem?

- bem, é confundir a árvore com a floresta, não é? ele ouviu falar em gordura de
eixos, o que significou eixos, que por sua vez significou rodas, que implica veículos,
que aponta para quintas payne - alisou um dos cantos do mapa que estava dobrado
e usou um pionés para levá-lo ao sítio. parecia demasiado empenhado nesta
operação, o que elucidou barbara sobre o grau de desconforto que a conversa
provocava nele. - oh, que diabo, ele provavelmente tem razão. ele tem décadas de
experiência e eu estou mais do que verde nisto. como já percebeu. apesar disso,
pensei... - deixou de endireitar o mapa e começou a estudar os pés.

- fez bem em mencionar isto, robin. É preciso fazer uma busca em todos os outros
sítios, e é melhor que seja eu a sugeri-lo do que ser você a chamar a atenção do
sargento para o assunto. quando tudo isto terminar terá de continuar a trabalhar com
ele.

ele ergueu a cabeça. parecia agradecido e aliviado ao mesmo tempo. barbara já não
se lembrava da sensação de se ser tão novo e inexperiente num trabalho e tão
desejoso de ser bem sucedido. descobriu que simpatizava com o agente e sentiu um
certo carinho fraternal por ele. parecia inteligente e afável. se fosse capaz de
controlar o embaraço podia até vir a ser um bom detetive.

- mais alguma coisa? - perguntou. - porque se não há, preciso de ir ver o sítio onde
vou ficar. tenho de telefonar para londres e saber como vão as coisas por lá.

- o seu alojamento, claro disse. bom, pois.

ela ficou à espera que ele lhe dissesse onde é que o departamento de investigação
criminal de amesford lhe reservara um quarto, mas ele estava claramente relutante
em revelar-lho. apoiava-se ora num pé ora no outro, depois tirou as chaves do carro
do bolso e agitou-as levemente na mão.

- isto é realmente embaraçoso - disse.

- não tenho onde ficar?

- tem, tem. É só que... julgamos que era mais velha, percebe?

- e depois? onde é que me puseram? num lar de reformados?

- não - disse ele, - em minha casa.

- em sua casa?

ele apressou-se a explicar que a mãe vivia com ele, que a casa era uma pensão de
confiança, que vinham referidos no guia oficial do automóvel clube, que barbara teria
uma casa de banho só para ela bem, era um chuveiro de fato, se é que ela não se
importava que fosse um chuveiro, que em wootton cross não havia hotéis
propriamente ditos, que havia quatro quartos por cima do king alfred arms, se ela
preferisse... porque ela só tinha trinta e três e ele tinha vinte e nove e se ela achasse
que não ficava bem que ela e ele... na mesma casa...

a música continuava a jorrar em altos berros pelas janelas do king alfred arms,
yellow submarine para ser mais exato, com um interessante efeito de eco produzido
pelas estreitas ruas da aldeia. a banda não dava mostras de querer terminar o
número tão cedo.

- onde fica a sua casa? - barbara perguntou a robin payne. - a que distância do pub,
quero eu dizer.

- no outro extremo da aldeia.

- aceito - disse ela.

eve bowen não acendeu as luzes quando entrou no quarto de charlotte. força do
hábito. depois de regressar da casa dos comuns, quase sempre muito depois da
meia-noite, ia sempre ver a filha. força do dever, neste caso. as mães iam ver as
filhas quando regressavam a casa muito depois de elas se terem deitado. eve cabia
na categoria de mãe, charlotte na de filha, ergo eve ia ver charlotte. costumava abrir
suavemente a porta do quarto. aconchegava os cobertores caso fosse necessário,
apanhava a sra. tiggy-winkle, (uma das personagens das histórias para crianças
criadas por beatrix potter. ) a boneca, que estava caída no chão arrumava-a entre os
restantes membros da coleção de ouriços-cacheiros de charlotte e certificava-se de
que o despertador da filha estava programado para a hora certa. depois saía.

o que não fazia era deixar-se ficar a contemplar a filha, pensando sobre a sua
infância, a sua meninice, o seu crescimento, a adolescência que se avizinhava e a
sua futura condição de mulher. não se admirava com as mudanças que o tempo
operava na filha. tão-pouco meditava sobre a vida passada de ambas. não se perdia
em fantasias acerca do futuro de ambas. acerca do seu futuro pessoal, sim. fazia
mais do que fantasiar acerca do seu futuro pessoal. trabalhava, maquinava,
planificava, produzia, manipulava, confrontava, arvorava-se em defensora,
condenava. todavia, no que dizia respeito ao futuro de charlotte... dizia para si
própria que o futuro de charlotte estava nas mãos de charlotte.

eve atravessou o quarto imerso na escuridão. na cabeceira da cama vazia, a sra.


tiggy-winkle anichava-se entre um conjunto de almofadas de algodão fino. com
gestos maquinais, eve pegou no boneco de pano e deslizou os dedos pelo pêlo
espesso e áspero. sentou-se na beira da cama. depois deitou-se entre as
almofadas, aninhando a sra. tiggy-winkle no braço. refletiu. não devia ter tido o bebé.
soubera-o no momento em que o médico exclamara «oh, uma menina amorosa» e
depositara sobre o seu estômago uma coisa ensanguentada, quente e que se
contorcia, murmurando sufocado de emoção «conheço muito bem a sensação deste
momento, eve. eu próprio tenho três filhos». todos os que estavam na sala e tinha a
impressão de que havia dúzias de pessoas presentes sussurraram os comentários
apropriados à beleza do momento, sobre o milagre do nascimento e sobre a bênção
que era dar à luz um bebé perfeitamente saudável, bem formado e que chorava
vigorosamente. maravilhoso, milagroso, assombroso, espantoso, incrível, magnífico,
extraordinário. nunca antes desse momento, eve ouvira tantos adjetivos num curto
período de cinco minutos para descrever um acontecimento que obrigara o seu
corpo a contorcer-se violentamente durante vinte e oito horas torturantes, fazendo-a
ansiar mais do que nunca pela paz, o silêncio e, sobretudo, pela solidão.

a sua vontade fora dizer: «levem-na, tirem-na de cima de mim.» podia antecipar o
descontrole fervilhante que as suas palavras provocariam. começava na ponta dos
seus dedos e subia em direção aos seus lábios. todavia, era uma mulher que,
mesmo em circunstâncias extremas, nunca se esquecia de como a imagem era
importante. assim, passara os dedos pela cabeça suja e depois pelos ombros
daquele bebé agitado por um choro agudo, e brindara o auditório com um sorriso
radiante. assim, quando os tablóides começassem a vasculhar avidamente o seu
passado à procura de qualquer pormenor desagradável que bloqueasse a sua
ascensão ao poder seriam incapazes de saber fosse o que fosse junto de todos os
que tinham assistido ao nascimento de charlotte.

ao descobrir que estava grávida considerara a hipótese de abortar. enquanto


esperava, esmagada entre os passageiros alinhados na plataforma da estação de
bakerloo line, lera o anúncio oblongo colocado por cima de uma das janelas centro
de saúde de lambeth: você pode escolher e ponderou na possibilidade de uma
deslocação rápida a londres para assim colocar ponto final nas dificuldades
intermináveis que uma gravidez criaria na sua vida. pensara em marcar uma
consulta usando um nome falso. pusera a hipótese de alterar a sua aparência e de
inventar um sotaque para a ocasião, mas rejeitara estas idéias atribuindo-as à
imaginação histérica de uma mulher cujas hormonas estavam, no momento, em
tumulto. não tomes decisões precipitadas, dissera para si própria. reflete sobre cada
alternativa e traça o rumo que cada percurso te obrigará a seguir.

depois de ter ponderado todas as alternativas possíveis, concluiu que a única saída
segura era ter a criança e ficar com ela. o aborto poderia ser facilmente usado contra
ela, mais tarde, quando se apresentasse como a eterna paladina da família. dá-la
para adoção era uma possibilidade distinta, mas não aconselhável para quem como
ela pretendia apresentar-se como uma mãe trabalhadora, como tantas de vós, nas
campanhas para o parlamento que estava empenhada em integrar no futuro. podia
acalentar a esperança de um aborto espontâneo, mas tinha uma saúde de ferro e o
seu organismo funcionava na perfeição. além do mais, uma situação de aborto no
seu passado podia sempre dar azo a rumores desnecessários no futuro: teria ela,
uma mãe solteira, feito alguma coisa para provocar um aborto espontâneo? teria
violentado o corpo por processos obscuros? haveria alguma história de abuso de
drogas ou de álcool que devesse ser examinada? e a dúvida era um fator pernicioso
em política.

a sua intenção original fora não revelar a identidade do pai a ninguém, nem mesmo
ao pai da criança. no entanto, o encontro inesperado com dennis luxford cinco
meses depois de blackpool arruinara os seus planos. ele não era tolo. quando, do
outro lado do Átrio central do parlamento, viu o olhar dele percorrer o seu corpo de
alto a baixo para depois se fixar no rosto dela soube a que conclusão ele chegara.
desculpara-se perante o deputado cuja opinião solicitara para o telegraph e
refugiara-se na sala dos deputados para deixar uma mensagem a outro deputado e,
quando se preparava para enfiá-la no cacifo dele, luxford apareceu ao seu lado.
«temos de tomar um café», disse ele, ao que ela respondeu: «não me parece.» ele
segurara-a pelo cotovelo. ela reagira calmamente: «porque é que não pões um
anúncio, dennis?» sem um olhar sequer, para as dúzias de pessoas que se
apinhavam em volta deles desde turistas a estrategos baixara a mão. «desculpa»,
dissera ele. «não duvido», retorquiu ela.

deixara bem claro que nunca acolheria com bons olhos a participação dele na vida
do filho de ambos. À exceção de um único telefonema, um mês depois do
nascimento, em que ele tentara em vão chegar a acordo com ela quanto a
«disposições financeiras» que desejava tomar a favor de charlotte, não ousara
intrometer-se na vida delas. por várias vezes chegou a pensar que ele poderia fazê-
lo. primeiro quando concorreu para o parlamento. em seguida, quando casou, pouco
tempo depois. vendo que ele nada fizera e com o passar dos anos, pensou que
estava livre.

mas nunca nos livramos do passado, admitiu eve na escuridão do quarto de


charlotte. e, uma vez mais, admitiu a verdade, em silêncio: nunca devia ter tido
aquela criança.

virou-se de lado. aconchegou a sra. tiggy-winkle debaixo do queixo. encolheu as


pernas e respirou fundo. o animal de pano cheirava vagamente a manteiga de
amendoim. eve dissera a charlotte mais de um milhar de vezes que não podia comer
no quarto. teria charlotte tornado a desobedecer-lhe? será que tinha sujado o
boneco uma compra cara no selfridge’s desafiando abertamente os desejos da mãe?
eve baixou a cabeça na direção do ouriço-cacheiro, afundou o rosto no pêlo rijo e
inspirou rápida e repetidamente, desconfiada. cheirava mesmo a...

- eve! - os passos deles soaram rápidos pelo quarto. eve sentiu a sua mão sobre o
ombro.

- não, desta maneira não - disse. - sozinha, não.

em seguida, o marido tentou virá-la sobre a cama. quando a sentiu tensa disse: -
deixa-me ajudar-te, eve.

estava grata pela escuridão que envolvia o quarto e pelo ouriço-cacheiro em cujo
pêlo podia manter o rosto escondido.

- julguei que estivesses a dormir - disse.

sentiu a cama ceder um pouco quando ele se sentou ao seu lado. deitou-se junto
dela e aconchegou-se de encontro ao seu corpo, rodeando-a com um braço.

- desculpa-me - a voz dele soava baixa, e ela podia sentir a respiração dele na nuca.

- por?

- ter-me deixado ir abaixo - distinguiu a tensão subjacente às palavras dele.


procurou sem sucesso encontrar uma forma de lhe dizer que não precisava de
oferecer-lhe conforto, especialmente quando isso o fazia sofrer tanto. - não estava
preparado - continuou ele. - não pensei que as coisas pudessem acabar desta
maneira. as coisas com charlie - agarrou a mão dela que segurava ainda o ouriço-
cacheiro. - meu deus, eve. não consigo pronunciar o nome dela sem ter a impressão
de estar a cair num poço sem fundo.

- tu amava-la - disse eve, num sussurro.

- nem sequer sou capaz de pensar no que devo fazer para te ajudar.
ela presenteou-o com a verdade nua e crua.

- ninguém pode fazer nada para me ajudar, alex. - pressionou os lábios de encontro
à nuca dela. a mão dele apertava tanto a dela que ela sentiu os nós dos dedos
doridos, e mordeu o ouriço-cacheiro para não gritar.

- tens de parar com isto - disse ele. - estás a culpabilizar-te. não faças isso. fizeste o
que achaste melhor, não sabias o que ia acontecer. não podias saber. e eu
concordei contigo. concordei. nada de polícia. por isso, se há alguém que seja
culpado somos nós os dois. não vou deixar que carregues este fardo sozinha. raios
partam tudo isto - a voz dele soou trêmula quando proferiu partam.

ao ouvir o tremor perguntou a si própria como iria ele sobreviver aos dias que ambos
tinham pela frente. tinha consciência de que era crucial que ele não se confrontasse
com a comunicação social. podiam descobrir que ela não telefonara à polícia
quando charlotte desaparecera e uma vez que estivessem na posse dessa
informação descascá-la-iam até descobrirem a razão por que não informara a polícia
do sucedido. era diferente se a questionassem a ela. estava habituada aos duelos
com a imprensa, e mesmo que não possuísse o talento necessário para manejar os
subterfúgios de forma credível, não deixava de ser a mãe da vítima e se não
desejasse responder às perguntas que lhe eram lançadas na rua por jornalistas,
ninguém poderia concluir que estava a tentar esquivar-se a elas. com alex, por outro
lado, a situação era totalmente diferente.

podia imaginá-lo enredado numa autêntica rixa verbal com uma dúzia de repórteres
que lhe gritavam perguntas, cada uma mais incendiária do que a anterior. podia vê-
lo inflamar-se bruscamente, perder por completo o autocontrole e revelar-lhes a
história que eles pretendiam. «vou dizer-vos por que razão não telefonamos para a
maldita polícia», rosnaria ele. depois, em vez de recorrer ao subterfúgio limitar-se-ia
à verdade. não teria intenção de o fazer. tudo começaria mais ou menos assim:
«não telefonamos à polícia por causa de pulhas como vocês, está bem?», que os
levaria a perguntar o que queria ele dizer com aquilo. «a vossa necessidade
obsessiva de extorquir uma maldita história. deus nos livre a todos quando vocês
decidem que querem o raio das vossas histórias.» estava então a tentar proteger
miss bowen dos efeitos de uma história? porquê? que história? ela tem alguma coisa
a esconder? «não! não!» e assim sucessivamente, cada pergunta um nó que se
apertava.

uma vez mais, rodeando e fechando-se em torno dos fatos. ele não lhes daria tudo,
mas dar-lhes-ia o suficiente. era por isso essencial, crucial que ele nunca prestasse
declarações à imprensa.

ele precisava de outro sedativo, - decidiu eve. - mais dois, talvez, para que dormisse
profundamente durante toda a noite. o sono era tão essencial quanto o silêncio. sem
ele corria-se o risco de perder o controle. moveu-se disposta a levantar-se,
apoiando-se num dos cotovelos. segurou a mão dele, pressionou-a por breves
momentos de encontro à sua face e tornou a pousá-la sobre a cama.

- onde...
- vou buscar os comprimidos que o médico nos receitou.

- ainda não - disse ele.

- o cansaço e a exaustão não nos ajudam em nada.

- mas os comprimidos mais não fazem do que adiar as coisas. sabes isso.

sentiu-se imediatamente desconfiada. tentou ler o rosto dele em busca de um


significado para o raciocínio dele, mas a escuridão que a protegera fazia agora o
mesmo em relação a ele.

ele sentou-se. fitou por momentos as suas pernas longas, parecendo usar esse
lapso de tempo para pôr ordem nos seus pensamentos. por fim tentou persuadi-la.
pôs um braço em volta dela e falou, encostando os lábios à sua cabeça.

- eve, escuta-me. estás segura aqui, está bem? estás completa e absolutamente
segura aqui, comigo.

segura, pensou ela.

- aqui, dentro deste quarto, podes abrir-te. eu não sinto o mesmo que tu, não posso,
não sou mãe dela, não teria a pretensão de compreender o que uma mãe sente num
momento como este, mas eu amava-a, eve. eu... - deteve-se. ela podia ouvi-lo
engolir em seco enquanto tentava manter o controle sobre o seu sofrimento. - se
continuares a tomar os comprimidos, estarás apenas a adiar o momento em que
terás de suportar a dor. É isso que tens estado a fazer, não é? e fizeste-o porque eu
me fui abaixo, por causa do que eu disse na outra noite acerca de não viveres de
fato aqui e de não conheceres verdadeiramente charlie e tudo o mais. meu deus,
desculpa-me por isso. perdi a calma por momentos. mas quero que saibas que
agora estou aqui, para apoiar-te. este é o lugar onde podes abrir-te.

em seguida ficou à espera. sabia o que devia fazer: virar-se para ele, implorar para
que ele a reconfortasse e compor uma manifestação credível de sofrimento. em
suma devia deixar de disfarçar as suas emoções e começar a traduzir o seu
sofrimento por ações, já que não podia fazê-lo por palavras.

- sente o que precisas de sentir - murmurou. - estarei ao teu lado. - o cérebro dela
fervilhava à procura de uma solução. quando a encontrou, baixou o queixo e
expulsou a tensão que lhe tolhia o corpo.

- não consigo... - soltou um suspiro audível. - tenho demasiadas coisas dentro de


mim, alex.

- não admira. podes libertar-te de uma coisa de cada vez. temos a noite toda.

- abraças-me?

- que tipo de pergunta é essa?


estava nos braços dele. rodeou-o com os seus próprios braços e disse junto ao
ombro dele: - tenho estado a pensar que deveria ter sido eu. não charlotte. eu.

- É natural. És a mãe dela. - embalou-a. ela virou a cabeça para ele.

- sinto-me morta por dentro - disse. - que diferença faria se o que resta de mim
morresse também?

- sei como te sentes. eu compreendo.

acariciou-lhe o cabelo. pousou a mão na nuca dela. ela ergueu a cabeça.

- abraça-me, alex. não deixes que me vá abaixo.

- não vou deixar que isso aconteça.

- não saias daqui.

- nunca. tu sabes isso.

- por favor.

- claro.

- fica comigo.

- ficarei.

quando as bocas de ambos se encontraram, isso pareceu ser o desenlace para o


diálogo que acabavam de manter. o resto foi fácil.

- então eles dividiram a região em seções - dizia havers no outro extremo da linha
telefônica. - o sargento-detetive aqui, um tipo chamado stanley, destacou agentes de
polícia para investigarem todas as quintas da zona. no entanto, payne acha...

- payne? perguntou lynley.

- o agente payne. estava à minha espera na esquadra de wootton cross. pertence ao


departamento de investigação criminal de amesford.

- oh, sim. payne.

- ele acha que a hipótese das máquinas agrícolas significa restringir muito o campo
de ação. segundo ele, a gordura encontrada nas unhas dela podia ter outra
proveniência. os diques ao longo do canal, uma serração, um moinho, uma
caravana, um ancoradouro. qualquer um deles faz sentido para mim.

pensativamente, lynley pegou no gravador que estava em cima da sua secretária


juntamente com três fotografias de charlotte bowen, fornecidas pela mãe dela, o
conteúdo do envelope que st. james lhe entregara antes, em chelsea, as fotografias
e relatórios coligidos por hillier e o resumo rabiscado que ele próprio fizera de tudo
quanto st. james lhe comunicara na cozinha da casa dele. eram dez e quarenta e
sete, e estava a acabar de beber uma chávena de café morno quando havers
telefonara do sítio onde estava a ficar em wiltshire, para lhe dar as breves notícias:
«estou a ficar numa pensão local. lark’s haven, senhor» seguida de uma recitação
igualmente breve do número de telefone antes de passar a enunciar os fatos que
conseguira reunir. tomara notas do relatório dela. registrara rapidamente a gordura
de eixo, a pulga, o tempo aproximado durante o qual o corpo permanecera na água
e listara nomes de localidades desde wootton cross até devizes, quando a
observação dela relativamente à natureza restritiva da investigação efetuada pelo
sargento stanley o remeteu para algo que já ouvira essa noite.

- espere um segundo, sargento - disse, e premiu o botão para ligar o gravador, a fim
de voltar a ouvir a voz de charlotte bowen.

«cito - dizia a criança -, este homem diz que podes tirar-me daqui. ele diz que deves
contar uma história a toda a gente. ele diz...»

- É a garota? - perguntou havers no outro lado do fio.

- espere - disse lynley. andou com a cassete para a frente. por breves momentos, a
voz transformou-se em algo parecido com o piar de um esquilo. diminuiu a
velocidade. a voz continuou. «...não tenho casa de banho. mas há tijolos. um
mastro».

lynley carregou no stop.

- ouviu? - perguntou. - ela parece estar a referir-se ao sítio onde está presa.

- ela disse tijolos e um mastro? percebo. seja lá o que for que isso significa.

ouviu-se uma voz masculina em fundo. lynley ouviu havers abafar o bocal. depois
tornou a falar, disse numa voz - senhor? robin acha que os tijolos e o mastro
poderão ser um ponto de partida para a investigação.

- robin?

- robin payne. o agente aqui de wiltshire. estou alojada na pensão da mãe dele.
lark’s haven. já lhe disse. É a mãe que dirige a pensão.

- ah.

- não há um único hotel na aldeia e dado que amesford fica a dezoito milhas de
distância e que o corpo foi encontrado aqui, pensei...

- sargento, a sua lógica é impecável.

- okay. pois. certo - disse, passando depois a delinear o plano que elaborara para o
dia seguinte. primeiro o local onde tinham encontrado o corpo, em segundo lugar a
autópsia e uma reunião com o sargento stanley, em terceiro.

- faça também uma busca pela zona de salisbury - disse lynley. falou-lhe de alistair
harvie, do seu antagonismo em relação a eve bowen, da sua presença em blackpool
onze anos antes e do fato de ele se opor à abertura de uma penitenciária no seu
círculo eleitoral. harvie é o nosso primeiro elo direto com o congresso do partido
conservador e com wiltshire - concluiu lynley. - pode ser um elo demasiado oportuno,
mas vale a pena investigar.

- certo - disse havers. murmurou - harvie... salisbury - e lynley podia imaginá-la


escrevinhando no bloco-notas. ao contrário do de nkata, o dela teria uma cobertura
cartonada e das margens brotariam excrescências em forma de orelhas de cão. por
vezes tinha a impressão de que aquela mulher vivia noutro século.

- tem o telemóvel consigo, não tem, sargento? - confirmou ele, divertido.

- pr’ó diabo com eles - respondeu ela com idêntica afabilidade. - odeio aquelas
malditas coisas. como é que correram as coisas com simon?

lynley iludiu a questão passando a enumerar os fatos que constavam do seu resumo
e terminou dizendo: - ele encontrou uma impressão digital no gravador. no
compartimento das pilhas, o que o leva a pensar que é genuína e não uma fraude.
está a ser examinada pelo so4, mas se eles chegarem a um nome e descobrirmos
que quem está por detrás do rapto é um membro da brigada de reincidentes, não
terei quaisquer dúvidas sobre quem o terá contratado para fazer o trabalhinho.

- o que poderá levar-nos de novo a harvie.

- ou a qualquer outra pessoa: o professor de música, os woodward, stone, luxford,


bowen. nkata está a investigar toda a gente.

- e quanto a simon? - perguntou havers. - está tudo bem, inspetor?

- Ótimo - disse lynley. - tudo ótimo.

desligou, terminando a conversa com esta mentira. bebeu o resto do café agora à
temperatura ambiente e atirou a chávena vazia para o lixo. durante dez minutos
evitou pensar no seu encontro com st. james, helen e deborah, aproveitando esse
tempo para reler o relatório policial de wiltshire. em seguida acrescentou algumas
linhas às suas notas. depois organizou o material relativo ao caso dividindo-o em
pastas de arquivo ordenadas e separadas. finalmente admitiu que já não era capaz
de fugir à recordação do que se passara entre ele e os seus amigos, em chelsea.

nesse momento deixou o escritório. disse para si mesmo que o dia “ dera o que tinha
a dar.” estava cansado. precisava de esclarecer as idéias. queria um uísque. tinha
um novo cd, uma gravação da deutsche-grammophon, que ainda não ouvira e um
monte de correspondência da propriedade familiar na cornualha que ainda não
abrira. precisava de ir para casa.

no entanto, quanto mais se aproximava de eaton terrace, mais certo estava de que
devia estar a dirigir-se para onslow square. resistiu ao impulso voltando a repetir
para si mesmo que a razão estivera do seu lado desde o início. contudo, era como
se o carro tivesse vontade própria, porque não obstante a sua determinação em ir
para casa, engolir um uísque e acalmar a raiva que lhe invadia o coração ao som de
alguns compassos de mussorgsky deu consigo em south kensington e não em
belgravia, fazendo deslizar o carro para uma vaga de estacionamento algumas
portas a sul do apartamento de helen.

ela estava no quarto. no entanto, ainda não se deitara, apesar das horas. em vez
disso, tinha as portas do guarda-vestidos abertas, as gavetas da cômoda
espalhadas pelo chão e parecia estar a ser assaltada ou por um acesso de limpezas
domésticas de final de primavera ou por uma purga vestimentar. no espaço entre a
cômoda e o guarda-vestidos estava uma enorme caixa de cartão, onde ela colocava
nesse momento uma seda cor de ameixa, de corte trapézio, e cuidadosamente
dobrada que ele reconheceu como sendo uma das camisas de noite dela. dentro da
caixa encontravam-se já outras roupas, também dobradas com precisão.

chamou-a pelo nome. ela não olhou. para além dela, em cima da cama, viu um
jornal que ela deixara aberto, e quando falou, referiu-se aparentemente a ele.

- ruanda - disse ela. - sudão, etiópia. e eu aqui, desperdiçando a minha vida em


londres, providencialmente financiada pelo meu pai, enquanto todas aquelas
pessoas morrem de fome ou de desinteria ou cólera. - fitou-o. os seus olhos tinham
um brilho intenso, mas não era de felicidade. - o destino é cruel, não é? eu aqui, com
tudo isto, e eles lá, sem nada. não consigo justificá-lo; como é que encontro um
equilíbrio, então?

dirigiu-se ao guarda-vestidos e tirou o penteador cor de ameixa que fazia conjunto


com a camisa de noite. colocou-a sobre a cama com cuidado, compôs o cinto num
laço e começou a dobrá-lo.

- o que é que estás a fazer, helen? - perguntou ele. - com certeza não estás a
pensar em... - quando ela ergueu os olhos para ele, a frieza da sua expressão calou-
o.

- ir para África? - disse ela. - oferecer a minha ajuda a alguém? eu? helen clyde?
isso é completamente absurdo.

- não quis...

- deus nos livre, se fizesse isso, as minhas mãos ficariam uma lástima. - colocou o
penteador junto das outras roupas, voltou a aproximar-se do guarda-vestidos, fez
deslizar cinco cabides e tirou um vestido de verão, simples e sem mangas, cor de
coral. - além disso - continuou - seria totalmente despropositado, não é verdade?
tornar-me útil à custa das minhas unhas?

em seguida dobrou o vestido. o cuidado que punha de cada vez que juntava uma
nova peça de vestuário confirmou-lhe o quanto precisava de ser dito entre ambos.
tomou a iniciativa.
ela interrompeu-o, dizendo:

- por isso pensei que pelo menos poderia enviar-lhes algumas roupas. ao menos
podia fazer isto. e, por favor, não me digas que estou a comportar-me de forma
ridícula.

- não tinha pensado nisso.

- porque eu sei o que isto parece ser: maria antonieta oferecendo bolos aos
camponeses. que poderá uma pobre mulher africana fazer com uma camisa de noite
de seda quando aquilo de que mais precisa é de comida, medicamentos e um teto,
já para não falar de esperança?

acabou de compor o vestido de verão. colocou-o dentro da caixa. voltou para junto
do guarda-vestidos e percorreu rapidamente mais alguns cabides. escolheu um fato
de lã desta vez. pousou-o sobre a cama. escovou-o com uma escova de linho,
verificou os botões, encontrando um deles solto, caminhou até à cômoda e remexeu
numa das gavetas que estavam no chão até encontrar um pequeno cesto de palha.
tirou de lá uma agulha e um carrinho de linha de algodão. tentou enfiar a linha na
agulha por duas vezes, mas falhou.

lynley aproximou-se dela. tirou-lhe a agulha das mãos.

- não faças isto a ti própria por minha causa - disse. - estavas certa. fiquei furioso
com o fato de me teres mentido e não por causa da morte da garota. lamento tudo o
que aconteceu.

ela baixou a cabeça. a luz irradiada por um candeeiro colocado sobre a cômoda
enredou-se nos cabelos dela. quando ela se mexia, os fios de cabelo irradiavam um
brilho da cor do conhaque.

- quero acreditar que aquilo que viste esta tarde é o meu lado pior - disse ele. - sinto-
me dominado por um sentimento incontrolável no que te diz respeito. É um
sentimento que subverte todas as noções de educação que existem em mim. aquilo
que viste é o resultado disto. e não é nada de que me orgulhe. perdoa-me. por favor.

ela não respondeu. lynley descobriu que queria envolvê-la nos seus braços. no
entanto, não esboçou qualquer gesto para tocá-la, porque subitamente, e pela
primeira vez, sentiu medo, medo de saber o que ficaria se ela o repudiasse nesse
momento. esperou, então, com o coração na mão, e não o chapéu, pela resposta
dela.

quando o fez, falou num tom de voz suave. tinha a cabeça baixa e o olhar fixo na
caixa de roupas.

- fui assaltada por uma indignação justificada durante a primeira hora - disse ela.-
«como se atreve ele», pensei eu. que tipo de divindade julga ele que é?

- tinhas razão - disse lynley. - tinhas razão, helen.


- mas deborah contrariou-me - fechou os olhos como se quisesse apagar uma
imagem que neles estivesse gravada. pigarreou tentando afastar uma emoção. -
simon nunca quis ter nada a ver com o caso, mas deborah persuadiu-o a ver o que
se passava. agora sente-se responsável pela morte de charlotte. nem sequer deixou
simon deitar fora aquela fotografia. levava-a com ela para cima quando saí.

lynley julgara que não iria sentir-se pior em relação ao que se passara entre eles.
agora, porém, era isso que estava a suceder.

- hei-de compor as coisas, de alguma maneira - disse. - com eles. conosco.

- desferiste um rude golpe em deborah, mortal até. não sei o que é, mas simon sabe.

- falarei com ele. vou falar com os dois, em conjunto. em separado. farei o que for
preciso.

- vais ter de o fazer. no entanto, não creio que simon queira ver-te nos próximos
tempos.

- vou deixar passar alguns dias, então.

esperou que ela lhe comunicasse qualquer sinal, ainda que soubesse que era uma
cobardia da sua parte esperar que ela o fizesse. quando isso não aconteceu
compreendeu que o passo seguinte, por mais difícil que fosse, teria de ser dado por
ele. ergueu a mão e pousou-a na curva breve e indefesa do ombro dela.

- gostaria de ficar sozinha esta noite, tommy - disse ela, suavemente.

- está bem - disse, embora não estivesse, nem nunca viesse a estar. saiu e
desapareceu na noite.

quando o despertador soou às quatro e meia da manhã seguinte, barbara havers


acordou da forma habitual: soltou um grito assustado e sentou-se muito direita como
se a vidraça que era o seu sonho tivesse sido estilhaçada por um martelo e não por
um ruído. procurou desajeitadamente o despertador e silenciou-o, pestanejando no
escuro. um tênue fio de luz, com a espessura de um dedo, perpassava por entre
uma abertura nos cortinados. fitou-o e franziu a testa, consciente de que não estava
a acordar em chalk farm e, por momentos, perguntou-se onde diabo estaria. tentou
pôr ordem nos seus pensamentos. estes eram constituídos pelo dia anterior, londres,
hillier, scotland yard e a auto-estrada. em seguida lembrou-se de uma floresta de
chintz, almofadas de renda, mobiliário carregado, aforismos sentimentais traduzidos
em renda irlandesa e papel de parede florido. metros e metros de papel de parede.
quilômetros dele, mais exatamente. a pensão lark’s haven, concluiu barbara. estava
em wiltshire.

deslocou-se até à beira da cama e acendeu a luz. semicerrou os olhos por causa da
súbita claridade e arrastou-se até aos pés da cama à procura da gabardina de
plástico preto que usava como robe sempre que viajava. enfiou-a e atravessou o
quarto dirigindo-se à banheira e pôs a água a correr. quando sentiu coragem para
tal, ergueu o rosto para se olhar ao espelho.

não conseguia decidir o que era pior: a visão do seu rosto inchado pelo sono
evidenciando ainda a marca da almofada ao longo de uma das faces, ou o reflexo de
mais papel de parede. neste caso eram crisântemos amarelos, rosas malva, fitas
azuis e desafiando jovialmente todas as leis da razão e da botânica folhas azuis e
verdes. este motivo encantador repetia-se, quer na colcha da cama quer nos
cortinados com um descontrole tal, que sugeria o estilo de uma laura ashley
assaltada pela demência. barbara conseguia imaginar com clareza uma sucessão
de visitantes estrangeiros, ansiosos por viver a experiência de uma vida entre os
autóctones, soltando exclamações de admiração perante o caráter extremamente
inglês da pensão. oh, frank, não é exatamente aquilo que esperávamos que fosse
uma casa de campo inglesa? que maravilha. como é encantador. absolutamente
amoroso.

«que enjoativo», pensou barbara. e de qualquer maneira aquela não era nenhuma
casa de campo. era uma sólida casa de tijolo que ficava nos arredores da cidade,
em burbage road. mas gostos não se discutiam, não era, e a mãe de robin payne
parecia gostar muito do lugar.

- a minha mãe redecorou a casa o ano passado - explicara robin quando lhe
indicava o caminho para o quarto. uma pequena placa de cerâmica presa à porta
que, graças a deus não estava forrada a papel, informou-a que o quarto era
designado por o esconderijo do grilo. - sob a orientação carinhosa de sam, claro -
acrescentou revirando os olhos.

barbara encontrara-os na sala de estar do piso inferior: corinne payne e o seu


«recente prometido», como ela chamava a sam corey. eram adeptos fervorosos da
arte das carícias, o que de algum modo parecia estar em sintonia com a atmosfera
global da pensão, e enquanto robin conduzira barbara do carro até à cozinha e daqui
até à sala de estar o par não se fizera rogado para pô-la ao corrente da afeição
mútua que os unia. corinne era a «doçura» de sam e este era o «querido janota» de
corinne. e até ao momento em que corinne viu o emplastro que cobria o golpe no
rosto do filho, apenas tiveram olhos para eles mesmos.

o penso foi uma distração momentânea e interrompeu por momentos as carícias nas
mãos, os apertos nos braços, os beliscões nas coxas e os beijos na face. quando o
viu, corinne deu um pulo no sofá e exclamou: - robbie! o que é que fizeste à tua linda
cara? - chamou pelo seu «querido janota» e pediu-lhe que fosse buscar a tintura de
iodo, o álcool e o algodão para que a mamãe pudesse cuidar do seu tesouro. mas
antes que sam corey pudesse atender ao pedido dela, a ansiedade crescente de
corinne transformou-se naquilo que parecia ser um ataque de asma e, com um grito
de «eu vou buscá-lo, doçura», o recente prometido foi buscar o inalador. enquanto
corinne inalava, agradecida, robin aproveitou a oportunidade para levar barbara para
fora da sala.

- peço desculpa - dissera ele, em voz baixa, uma vez chegados ao cimo das
escadas. - eles nem sempre estão assim. acabaram de ficar noivos, por isso estão
um bocado empolgados um com o outro.
barbara pensou que um bocado era uma versão suavizada dos fatos. robin
prosseguiu, sentindo-se infeliz quando viu que ela não lhe dava resposta.

- devíamos ter arranjado um quarto no king alfred, não era? ou num hotel, em
amesford, ou noutra pensão. este lugar é demais. eles também são demais. mas ele
não está sempre aqui, e eu pensei...

- robin, é ótimo. está tudo bem - interrompeu-o barbara, num tom amigável. - e
eles... são uns aduladores do diabo era o que lhe apetecia dizer. em vez disso,
porém, disse - eles estão apaixonados - seguido de - sabes como é quando se está
apaixonado, como se ela própria o soubesse.

robin deteve-se antes de abrir-lhe a porta. pareceu aperceber-se pela primeira vez
da feminilidade dela, o que ela achou desconcertante sem saber porquê.

- És muito simpática, não és? - perguntou. depois, apercebendo-se das


interpretações que ela poderia dar à sua pergunta, apressou-se a continuar. - vê. a
tua casa de banho é na porta a seguir. espero... pois. bom, dorme bem.

depois abriu a porta e saiu apressado, tornando-se subitamente todo cotovelos,


joelheiras e canelas na sua ânsia de «deixá-la instalar-se».

bom, pensou barbara, estava realmente instalada, tanto quanto podia estar num
quarto chamado o esconderijo do grilo. as cuecas e peúgas já estavam guardadas. a
camisola estava suspensa num gancho atrás da porta. as camisas e as calças
pendurara-as no armário e quanto à escova de dentes pusera-a dentro de um copo,
ao lado do lavatório.

servia-se dela com a sua habitual energia matinal quando ouviu alguém bater à
porta e, em seguida, uma voz sussurrante que perguntava:

- pronta para a chávena de chá da manhã, barbara?

com a boca ainda coberta da espuma da pasta dentífrica, barbara abriu a porta e
deparou com corinne payne que trazia um tabuleiro nas mãos. apesar das horas
impróprias estava completamente vestida, maquiihada e habilmente penteada. se as
roupas que agora usava não fossem diferentes das da noite anterior e se não
tivesse enrolado o cabelo castanho cor de noz de forma diferente, barbara teria
deduzido que ela nunca chegara a deitar-se.

falava com uma voz ligeiramente arquejante, mas sorria quando entrou no quarto,
empurrando a porta atrás de si com a anca. pousou o tabuleiro sobre a cômoda e
disse: - uf! preciso de recobrar o fôlego - e encostou-se à cômoda inspirando várias
vezes. - primavera e verão. são as piores alturas do ano para mim. muito pólen no
ar. - indicou o tabuleiro com um gesto - trouxe-lhe chá. tome-o, ficarei bem num
instante.

barbara observava a outra mulher pelo canto do olho enquanto acabava de


bochechar para limpar os restos de pasta dentífrica. a respiração de corinne soava
como ar sendo libertado através da boca estreita de um balão. só lhe faltava ter um
colapso no preciso momento em que barbara engolia despreocupadamente a
chávena de formosa oolong que ela lhe trouxera.

alguns instantes depois, porém, durante os quais barbara ouviu o som abafado de
passos no corredor, corinne recuperou a fala.

- melhor, muito melhor - disse, e parecia de fato respirar com mais facilidade. -
robbie já está a pé, e como é costume deveria ter sido ele a trazer-lhe o chá -
continuou, enquanto servia barbara. o chá era forte e cor de canela. - mas nunca
permito que seja ele a trazer o chá quando se trata de raparigas jovens. não há nada
pior do que um homem ver uma mulher de manhã antes que ela esteja apresentável.
tenho ou não razão?

a sua única experiência com um homem, cerca de dez anos antes, não incluíra a
parte da manhã, pelo que deborah se limitou a dizer: - de manhã ou à noite, para
mim é tudo o mesmo e deitou um pouco de leite na chávena.

- isso é porque é nova e a sua pele ainda é tão aveludada como antes. e... que
idade tem? não se importa que lhe faça esta pergunta, pois não, barbara?

barbara considerou por breves instantes a hipótese de cortar alguns anos apenas
pelo gozo que isso lhe daria, mas dado que já revelara a sua idade a robin não havia
agora razão para mentir à mãe dele.

- que maravilha. ainda me lembro de como é ter trinta e três anos - disse corinne.

o que, decidiu barbara, não teria sido difícil. corinne estava ainda muito longe de ter
atingido os cinquenta anos, algo que de início surpreendera barbara quando vira a
mulher pela primeira vez na noite anterior. a sua própria mãe tinha sessenta e quatro
anos de idade. dado que robin payne tinha quase a mesma idade que ela, barbara
não estava preparada para ver a mãe dele como uma mulher que, obviamente, dera
à luz quando era ainda adolescente. num momento de amargura pouco habitual
nela, tentou imaginar como seria ter uma mãe que estava no meio da sua vida em
vez de estar a abeirar-se do ocaso da mesma, ter uma mãe na plena posse das
suas faculdades em vez de uma vítima da batalha contra a demência.

- sam é muito mais velho do que eu - disse corinne. - reparou nisso, não reparou? É
curioso o modo como as coisas são. eu costumava pensar que nunca seria capaz de
me apaixonar por um homem careca. o pai de robbie tinha muito cabelo. tufos dele.
em todo o lado. - alisou o pano de renda que cobria o tampo da cômoda. - mas sam
tem sido tão bom para mim. tem uma paciência infinita para isto - com três dedos
bateu ao de leve na parte oca da garganta. - quando ele finalmente se decidiu a
pedir-me em casamento, que outra resposta poderia eu dar-lhe a não ser sim? e é
tudo pelo melhor, porque deixa o robbie mais desafogado. agora ele poderá casar
com célia. É uma rapariga encantadora, a célia. um amor. tão querida. É a noiva de
robbie, sabe.

a suavidade da voz dela não enganava. barbara olhou-a nos olhos e leu a
inflexibilidade que eles refletiam. a sua intenção era dizer algo como: «sra. payne,
não se preocupe. não pretendo conquistar o seu filho, e mesmo que estivesse é
pouco provável que ele sucumbisse aos meus encantos duvidosos.» em vez disso,
porém, o que respondeu depois de mais um gole de chá foi: - vou só vestir qualquer
coisa e desço já.

corinne sorriu.

- muito bem. robbie está a preparar o seu pequeno-almoço. gosta de bacon, espero -
e sem esperar por uma resposta saiu.

no andar de baixo, robin vinha a sair da cozinha no momento em que barbara


entrava na sala de jantar. trazia uma frigideira na mão, de dentro da qual fez deslizar
dois ovos estrelados para o prato dela. olhando através da janela onde se via, como
barbara confirmou, um céu ainda escuro como breu, disse:

- o dia não tarda a amanhecer. temos de nos despachar, se ainda quiser ver o canal
por volta das cinco.

na noite anterior, enquanto percorriam a distância entre os respectivos carros e a


casa, ela comunicara-lhe a sua intenção de inspecionar o local onde aparecera o
cadáver à mesma hora em que o corpo entrara na água. robin estremecera.

- isso quer dizer que temos de sair daqui às cinco menos um quarto - assinalara ele.

no entanto, quando ela respondeu: «Ótimo. ligue o despertador» ele não opôs mais
resistência. e agora parecia tão desperto como se acordasse todos os dias antes do
nascer do dia, ainda que tivesse sufocado um bocejo quando lhe desejou bon
appétit antes de voltar para a cozinha.

barbara comeu os ovos com apetite. engoliu-os sofregamente e, uma vez que não
havia ninguém por perto para comentar as suas maneiras à mesa, molhou a torrada
na gema de ovo e comeu-o dessa maneira. para terminar, enfiou o bacon na boca,
mastigou-o e empurrou-o com o sumo de laranja. consultou o relógio com uma
expressão curiosa. três minutos dedicados à gastronomia. um novo recorde, sem
dúvida.

robin manteve-se calado durante o trajeto até ao local do crime. para sua satisfação
imediata, barbara descobriu que ele era fumador. então acenderam ambos o seu
cigarro e encheram alegremente o escort dele com carcinógenos. depois de alguns
minutos de inalação silenciosa ele saiu de marlborough road e meteu por um
caminho estreito que passava por detrás do edifício dos correios da aldeia e seguia
para o campo.

- já trabalhei aqui - disse ele subitamente, inclinando a cabeça na direção dos


correios. - costumava pensar que estava preso ali para sempre. foi por isso que
comecei a trabalhar no departamento de investigação criminal tão tarde - olhou para
ela, e parecendo ansioso por clarificar o que acabara de dizer e por apagar qualquer
tipo de preocupação que as suas palavras tivessem despertado nela, prosseguiu
rapidamente. - mas frequentei uns cursos extra para recuperar o tempo perdido.

- a primeira investigação é sempre a mais dura - disse barbara. - a minha pelo


menos foi. tenho a certeza que vais sair-te bem.

- fiz cinco exames finais - continuou ele, seriamente. - pensei em candidatar-me à


universidade.

- e porque é que não fizeste?

atirou a cinza do cigarro para fora através de uma nesga que criara, baixando
ligeiramente o vidro da janela.

- a minha mãe - disse. - a asma aparece e desaparece. ela tem vivido momentos
difíceis ao longo dos anos e senti que não podia deixá-la sozinha - tornou a olhar
para ela. - suponho que dou a impressão de ainda estar agarrado às saias dela.

«dificilmente», pensou barbara. pensou na sua própria mãe no pai e na mãe, de fato
e nos anos infindáveis em que, já adulta, vivera em casa dos pais, em aton, antes e
depois da morte do pai, prisioneira da saúde debilitada de um dos pais e da erosão
mental do outro. ninguém melhor do que barbara compreendia o que significava
manter uma vida eternamente adiada. no entanto, limitou-se a dizer: - ela tem sam
agora. já consegues ver a tua liberdade ao fundo do túnel, não?

- referes-te ao «nosso janota»? - perguntou ele sardonicamente. - oh, sim, claro. se


o casamento se realizar, ficarei livre. se o casamento se realizar.

falava como um homem que já estivera muito perto da liberdade mais do que uma
vez e, que no último momento, vira as suas esperanças e planos frustrados. célia,
pensou barbara, fosse ela quem fosse, deve ter a constituição de uma otimista
congênita.

o caminho descrevia um arco por cima da ponte que atravessava o canal do kennet
e do avon. - wilcot, - anunciou robin, identificando assim o lugarejo de casas com
telhados de colmo que bordejavam as margens do canal, como se fossem contas
deformadas de um colar. ele informou-a de que já não estavam muito longe do local
e barbara aproveitou a luz do painel de instrumentos para consultar o relógio e ver
quanto tempo faltaria para as cinco da manhã quando lá chegassem. eram quatro
horas e cinquenta e dois minutos. exatamente à hora prevista, pensou.

embrenharam-se ainda mais na paisagem campestre e a estrada seguiu para oeste.


a sul estendia-se uma zona de quintas onde o trigo que o despontar do dia tingia de
um tom verde-azulado ondulava ao sabor da brisa agitada pelo carro. a norte
erguiam-se as dunas ao longo das quais um dos cavalos de giz branco de wiltshire
esticava o pescoço num galope imóvel, uma presença fantasmagórica que
trespassava a escuridão.

quando entraram na aldeola de allington, o negrume do céu desaparecia para dar


lugar a uma mistura de cores que fazia lembrar o colorido dos pombos de trafalgar
square.

- estamos a chegar - disse robin. no entanto, em vez de a conduzir diretamente ao


local percorreu primeiro a aldeola, mostrando-lhe as duas formas de acesso que a
ligavam à estrada principal. um deles ficava mais para norte e atravessava park farm
e meia dúzia de casas de estuque rugoso cobertas por telhados de telha vermelha. o
outro situava-se mais próximo de wilcot e do caminho por onde tinham vindo,
dividindo em dois manor farm, cujas casas, celeiros e anexos se escondiam por
detrás de paredes de tijolo cobertas de folhagem.

os dois acessos juntavam-se num trilho nodoso que eles percorreram aos
solavancos, enquanto robin lhe dizia desculpando-se pela suspensão do carro que o
local do crime ficava cerca de uma milha e meia mais à frente.

barbara abanou a cabeça, num gesto ausente, embora estivesse ocupada tomando
nota da área. Às cinco da manhã já havia luzes acesas em pelo menos três casas.
não se via ninguém cá fora, mas se um veículo tivesse feito este caminho, no início
da semana, a esta mesma hora era quase certo que alguém o tivesse ouvido, ou
visto, e estivesse apenas à espera da pergunta certa para pôr a memória a
funcionar.

- o departamento falou com os habitantes destas casas? - perguntou.

- logo de início. - robin reduziu para primeira e o carro balançou, inquieto.

barbara agarrou-se ao painel de instrumentos.

- talvez tenhamos de voltar a falar com elas.

- talvez.

- podem ter-se esquecido. alguém deve ter estado acordado. as pessoas estão a pé
neste preciso momento. se um carro passasse...

robin sibilou. era uma forma de expressar uma dúvida que não queria explicitar
verbalmente.

- o que é? - perguntou ela.

- estás a esquecer-te de uma coisa - disse ele. - o corpo foi largado no domingo de
manhã.

ele abrandou ao aproximar-se de um buraco com o tamanho de uma cratera.

- És uma citadina, não és? no campo, o domingo é dia de descanso, barbara. os


trabalhadores rurais levantam-se antes das seis horas seis dias por semana. ao
sétimo dia seguem o mandamento de deus e descansam. provavelmente só se
levantam às seis e meia. mas às cinco? não, ao domingo.

- raios - murmurou ela.

- isso não facilita em nada as coisas - concordou ele.

no ponto em que o trilho se elevava para ligar-se à ponte, ele encostou à esquerda
tanto quanto pôde e desligou o motor, que crepitou três vezes antes de se calar por
completo. saíram ao encontro do ar matutino. - por aqui, - indicou robin, conduzindo-
a até ao outro lado da ponte, onde um declive densamente povoado por ervas
descia até ao carreiro que ladeava o canal.

aqui, os juncos multiplicavam-se generosamente, acompanhados por uma grande


profusão de flores silvestres que pintalgavam os taludes verde-escuros como se
fossem estrelas rosa, brancas e amarelas. algumas aves aquáticas tinham feito os
seus ninhos no meio dos juncos, e os grasnidos súbitos que soltavam à medida que
ficavam expostos ao ar pareciam ser os únicos sons num raio de várias milhas. a
oeste e a leste da ponte, dois barcos fluviais estavam ancorados nas margens do
canal, e quando barbara se virou para questionar robin acerca deles ele disse-lhe,
em jeito de explicação, que se tratava apenas de viajantes e não de residentes
permanentes. não estavam ali no dia em que o corpo fora encontrado e não
estariam ali no dia seguinte.

- vão em passeio até bradford-on-avon - disse ele. - para bath, bristol. sobem e
descem o canal de maio a setembro. param para passar a noite nos sítios onde
podem prender o barco com segurança. gente da cidade, na sua maioria - sorriu. -
como tu.

- onde é que arranjam os barcos?

ele tirou os cigarros e ofereceu-lhe um. serviu-se de um fósforo para acender o dela
em primeiro lugar, protegendo a chama da brisa com uma das mãos fechada sobre a
dela. a pele dele, descobriu barbara, era macia e fresca.

- alugam-nos - disse ele, em resposta à pergunta dela. - em praticamente todos os


pontos onde o canal se situa nas proximidades de uma cidade existe alguém que
aluga barcos fluviais.

- tal como?

rolava o cigarro entre o polegar e o dedo indicador enquanto refletia sobre a


pergunta.

- hungerford, para começar. kintbury. newbury. devizes. bradford-on-avon. até em


wootton cross. lá também há um sítio para alugar barcos.

- wootton cross?

- há um embarcadouro acima de marlborough road, no sítio onde o canal atravessa


a aldeia. os barcos alugam-se aí.

barbara viu a teia de aranha que começava a formar-se a partir das complexidades
do caso. através do fumo do cigarro, olhos semicerrados, tornou a observar o trilho
por onde tinham vindo de carro.

- onde é que ele vai ter se continuarmos em frente? - perguntou.


ele seguiu a direção do seu olhar e apontou para sudeste com a mão que segurava
o cigarro. - continua através dos campos - disse. - e termina num bosque de
sicômoros, a três quartos de milha, aproximadamente.

- há alguma coisa por lá?

- só as árvores. sebes nos sítios onde os terrenos se juntam. nada mais. passamos
a zona a pente fino no domingo à tarde. podemos dar uma vista de olhos, se
quiseres, quando houver um pouco mais de luz.

naquele momento, a luz continuava a furar o céu a leste, onde um leque cinzento-
pálido listrava a escuridão como dedos que se distendessem lentamente. barbara
ponderou a sugestão. estava ciente da posição seriamente desvantajosa em que se
encontravam no tocante a esta investigação. cinco dias tinham decorrido desde o
desaparecimento de charlotte bowen, seis se quiséssemos incluir aquele que agora
despontava. quarenta horas tinham passado desde que o corpo dela fora descoberto
e só deus sabia quantas se teriam escoado desde o momento exato da morte. a
cada mão-cheia de areia que deslizava através da ampulheta, as pistas iam-se
diluindo, a memória das pessoas tornava-se mais difusa e a possibilidade de
concluir o caso com sucesso eram cada vez mais remotas. barbara estava ciente de
tudo isto. ao mesmo tempo sabia também que se sentia fortemente compelida a
examinar de novo o terreno que já tinha sido investigado antes. porque seria?
perguntou a si própria. sabia a resposta, porém. esta era a sua oportunidade de
imprimir a sua marca tal como era a do agente payne e ela pretendia aproveitá-la ao
máximo.

esse desejo compulsivo, no entanto, não servia os interesses da família de charlotte


bowen, nem os da justiça.

- se o vosso pessoal não encontrou lá nada... - disse.

- nem o mais pequeno indício - confirmou ele.

- então concentremo-nos nos dados de que dispomos. - tinham percorrido


lentamente alguns metros ao longo do canal até chegarem ao local exato onde o
corpo jazera, próximo do canavial. barbara seguia à frente, agora que faziam o
caminho inverso, de regresso à ponte, uma construção de tijolo em forma de arco
sob a qual um remendo de betão formava uma estreita prateleira sobre a água.
atirou o cigarro para o canal e quando surpreendeu uma crispação nervosa em
robin, disse:

- desculpa, mas a luz ainda não é suficiente e eu preciso de ver... - a água corria
para oeste. - há duas possibilidades - deu uma palmadinha no arco da ponte que se
elevava para formar uma curva acima das cabeças de ambos, - ele estaciona o
carro em cima, desce pelo carreiro e esconde-se rapidamente debaixo da ponte
juntamente com o corpo. fica invisível no espaço de quê, dez segundos? larga o
corpo na água, aqui. o corpo flutua e é arrastado pela corrente até ao canavial.

regressou ao carreiro que bordejava o canal. robin seguiu-a. ao contrário dela,


apagou o cigarro na sola do sapato e colocou a beata dentro do bolso.
perante esta demonstração de ambientalismo escrupuloso, barbara sentiu-se de tal
modo culpada que pensou em mergulhar para dentro de água e procurar o seu
cigarro. em vez disso disse:

- ou então trouxe-a para cá num barco fluvial e fê-la deslizar pela parte de trás que é
o quê, a proa? a ré? a popa?

- popa.

- isso. muito bem. ele deixou-a cair na água pela popa e continuou a navegar, como
se fosse apenas mais um turista passeando ao longo do canal.

- então temos de dar uma espreitadela a todos os pontos de aluguel de barcos.

- parece que sim. o sargento stanley destacou alguma equipe para isso?

bateu levemente com os dentes da frente uns nos outros, tal como fizera na noite
anterior quando se referira à forma como o sargento stanley estava a lidar com o
caso.

- isso é um não?

- o quê... - ele parecia confuso.

- isso que estás a fazer com os dentes.

tocou-lhes com a língua e depois soltou uma gargalhada breve.

- nada te escapa. tenho de ter cuidado contigo.

- creio bem que sim. quanto ao sargento...? vá lá, robin. isto não é um teste de
lealdade. preciso de saber em que pé é que as coisas estão.

a resposta indireta que ele lhe deu forneceu-lhe a informação que pretendia.

- se não te importas gostaria de investigar algumas coisas hoje. tu tens de assistir à


autópsia, não é? e o sargento stanley há-de querer reunir contigo depois disso. a
yard quer que examines algumas coisas, tens telefonemas a fazer e pessoas a
entrevistar, relatórios para escrever. eu vejo as coisas assim: eu podia transportar-te
de um lado para outro, o que me daria muito prazer, que isso fique bem claro, e ser
o teu braço direito, ou então um par de olhos e ouvidos extra. ali - levantou o queixo
na direção do trilho, do carro e de wiltshire.

não podia deixar de admirar a sua diplomacia. quando ela voltasse para londres, ele
teria de continuar a trabalhar com o sargento stanley. ambos sabiam que se ele
quisesse subir dentro do departamento de investigação criminal, a sua preocupação
primordial teria de ser a manutenção do equilíbrio delicado da sua relação com o
oficial superior.
- certo. por mim está tudo bem - disse. trepou o declive que os levava de volta ao
trilho. ouviu os passos pesados dele atrás de si. no cimo do declive parou e olhou-o.
- robin - disse, acrescentando quando ele retribuiu o olhar dela, - acho que vais sair-
te muito bem como ajudante.

os dentes dele brilharam num sorriso e desviou a cabeça rapidamente. a luz era
ainda tênue, mas se fosse mais intensa, barbara teria a certeza de o ter visto corar.

- juro por deus que não - exclamou mitch corsico, acaloradamente. - acha que sou
maluco? acha que quero degolar-me a mim próprio? - puxou as calças de ganga
para cima com alguma agitação e passeou pelo pouco espaço livre do gabinete de
rodney aronson, enquanto, sentado atrás da sua secretária, o próprio rodney
observava o repórter e ouvia o ranger das botas de cowboy. desembrulhou um
chocolate com o desvelo que sempre dedicava à delicadeza da operação, expondo
apenas uma única porção do mesmo.

- não posso deixar de me lembrar das ameaças que fizeste ontem, mitch - disse
rodney, depositando um bocado de chocolate na bochecha. - certamente que
compreendes a nossa preocupação.

o possessivo nossa não passou despercebido a corsico.

- não disseste ao luxford o que eu... porra, rodney, luxford não está a pensar que eu
me tornei um traidor, está? sabes que eu só estava a desabafar.

- hmm - murmurou rodney, - mas fatos são fatos... - deixou que um exemplar da
edição matutina do principal rival do the source completasse a frase que iniciara.
sobre a secretária de rodney jazia um exemplar do the globe. na primeira página, ao
lado de uma fotografia da deputada bowen saindo do carro à porta de sua casa em
marylebone, um cabeçalho composto a cento e quarenta e quatro pontos apregoava:
filha de deputada raptada, polícia não foi contactada! o tablóide ganhara o dia com a
mesma história que mitch corsico apresentara e que luxford rejeitara cabalmente na
tarde do dia anterior.

- qualquer outra pessoa poderia ter obtido a informação - disse

- corsico. eu talvez tivesse sido o primeiro a chegar ao local...

- talvez?

- pronto, está bem. porra. fui o primeiro, mas isso não quer dizer que eu tenha sido a
única pessoa a quem a governanta contou a história. ela estava esquisita, como se a
miúda fosse filha dela. teria falado com qualquer pessoa que tivesse demonstrado
alguma solidariedade.

- hmm - murmurou de novo rodney. há muito que aprendera que parecer


contemplativo era tão vantajoso como estar de fato contemplativo. assim, depois de
emitir os sons apropriados indicadores de reflexões profundas, juntou os dois dedos
indicadores e os polegares formando um diamante e apoiou o queixo neles. - que
fazer, então? - voltou a murmurar.

- o que é que queres dizer com isso? - perguntou corsico. - luxford já viu isto?

rodney soergueu um ombro, em resposta.

- eu falo com ele. ele sabia que eu estava danado, mas também sabe que eu não
daria a minha história a outro jornal.

- o artigo não está assinado, mitch. acho que consegues ver as implicações disso.

corsico pegou com um gesto violento no tablóide que estava sobre a secretária de
rodney. percorreu com o olhar a primeira página. no sítio onde seria de esperar ver
exclusivo: por fulano de tal, numa caixa por baixo do título, não havia nada. largou o
jornal.

- o que é que estás a querer dizer, então? que eu dei a história ao globe, pedi-lhes
que a publicassem sem pôr lá o meu nome e preveni-os de que me juntaria ao barco
deles mal entregasse a luxford a minha carta de demissão? ora, rodney. tem juízo.
se quisesse fazer isso, não teria desistido ontem à noite e tu estarias aqui sentado
neste momento a olhar para o meu nome na primeira página desse pasquim.

recomeçou a andar pela sala, cobrindo o gabinete em toda a largura. fora dali, na
sala de redação, reinava a rotina habitual, mas os vários olhares na direção do
gabinete envidraçado do editor-adjunto informaram rodney de que outras pessoas
naquele andar, para além dele próprio, tinham conhecimento do furo conseguido
pelo globe. as cabeças desviavam-se quando ele olhava na sua direção. todos
sentiam a mesma sensação, um nó no estômago. perder uma cacha era tão mau
como ser mexato. pior até. a inexatidão ainda fazia vender jornais.

rodney descobriu mais uma porção de chocolate. com a língua empurrou outro
pedaço de chocolate para dentro da boca, ajustando-o no interior. o dentista
prevenira-o de que caso não deixasse de prender o chocolate entre os molares e a
bochecha, quando chegasse aos sessenta anos não lhe restaria nenhum dente. que
se lixe, pensou ele. havia coisas piores na vida do que ser dono de um conjunto de
trincadores de porcelana.

- o quadro está feio - disse rodney. - a tua cotação por aqui está um pouco
periclitante neste momento.

- Ótimo - resmoneou corsico.

- por isso vais ter de nos arranjar uma história, e rápido. para a edição de amanhã.

- ai sim? e quanto a luxford? ele não queria material deste tipo, ontem bateu com o
indicador na cópia do globe, sem que a scotland yard confirmasse que bowen não
tinha contactado diretamente victoria street passando por cima da polícia local.
então o que é que te leva a pensar que as coisas mudaram hoje? e não me digas
que alguém da scotland yard confirmou mesmo a história do globe. isso é esticar
muito as coisas, e essa não engulo eu.
- É uma possibilidade - disse rodney, e continuou num tom significativo. - há espiões
em todo o lado, mitch, como... e será que posso estar seguro disto?, tu muito bem
sabes.

corsico entendeu a mensagem de rodney, e isso estava implícito na sua resposta: -


muito bem, muito bem. eu estava de fato furioso quando saí daqui ontem, por isso
saí daqui e embebedei-me.

- em vez de trabalhares para confirmar a história. como, segundo creio, te foi pedido
- rodney soltou alguns estalidos reprovadores com a língua. - não queremos que
esse tipo de coisa volte a acontecer. eu não quero. o sr. luxford não quer. o
presidente do conselho de administração não quer. fui claro?

corsico levou a mão esquerda ao bolso traseiro das calças de ganga, de onde tirou o
seu bloco-notas. - está bem, mas as coisas não estão tão más como parecem. as
informações já começaram a chegar, exatamente como eu previa.

rodney reconheceu que chegara o momento de ceder um pouco.

- isso é excelente - disse, num tom agradável. - posso, e vou fazê-lo, farei com que
as notícias cheguem ao topo. serão com certeza bem recebidas. o que é que tens?

- parte são testemunhos de evidências, outra parte são tretas de doidos e,


finalmente, uma parte são possibilidades a explorar. - corsico molhou os lábios e
depois os dedos, com os quais folheou as páginas de notas que recolhera. -
comecemos pelas evidências: se sabemos que a criança era ilegítima, se sabemos
que bowen nunca revelara o nome do pai, e sabemos que a criança frequentava
uma escola de freiras. depois as tretas isto é uma conspiração religiosa e a próxima
criança será raptada no espaço de vinte e quatro horas; obra de um culto satânico
que sacrifica crianças; envolvimento de escravatura branca; a pornografia infantil
está na raiz de tudo isto. para além dos maluquinhos do costume que telefonam a
dizer que viram o raptor, a confessar o crime ou a revelar a paternidade.

- as pessoas são de fato desprezíveis - murmurou rodney. - bem certo.

corsico continuava a fitar as suas notas, e com a unha do dedo indicador virava e
revirava uma das páginas do seu bloco-notas. era um tique nervoso que não passou
despercebido a rodney.

- e quanto às possibilidades, mitch? - perguntou. - continuamos a precisar da nossa


história.

- ainda mal começaram a chegar, não há nada pronto para entrar em impressão.

- percebo. continua.

- certo. cheguei cedo esta manhã, por isso não vi isto - designou o globe com uma
inclinação de cabeça. - vi a certidão de nascimento da criança, a cópia de st.
catherine’s, lembras-te?
- dificilmente poderia esquecer-me disso. conseguiste saber alguma coisa, então?

corsico tirou um lápis do bolso da camisa. escrevinhou uma marca no bloco-notas e


depois, colocando o lápis debaixo do stetson, puxou a aba um pouco para cima.

- fiz as contas.

- as contas?

- da gravidez de bowen. se o parto não foi prematuro, um recuo de nove meses


calharia no dia treze de outubro. por brincadeira dei uma olhadela pelos microfilmes
para ver o que se estava a passar por essa altura. vi as duas semanas anteriores e
as duas posteriores à data de treze. continuou a ler as suas notas. um nevoeiro em
lancashire. um atentado à bomba num pub em st. albans. um assassino em série.
impressões digitais genéticas em estudo. bebés-proveta e...

- mitchell, já baixei as armas, caso não tenhas reparado - disse rodney. - por isso
não precisas de regalar-me com as minúcias da tua investigação. pretendes chegar
a algum lado, em particular?

corsico levantou a cabeça e desviou os olhos das notas: - ao congresso do partido


conservador.

- o que é que tem?

- o congresso do partido conservador que decorreu em blackpool, durante o mês de


outubro. era isso que se passava nove meses antes do dia em que nasceu a filha de
bowen. já sabemos que, na época, bowen era a correspondente de política do
telegraph. deveria estar a cobrir o congresso. e estava. de fato. obtive a informação
no arquivo do telegraph há quinze minutos atrás. - corsico brincava com as páginas
do bloco-notas fechado. - É caso para dizer que ontem não estava muito longe da
verdade, não é? É provável que todas as grandes figuras do partido se tenham
deslocado a blackpool durante o congresso. e ela andava com uma delas.

rodney era forçado a admirar a tenacidade do seu jovem colaborador. estava no


auge da força, da determinação e em plena posse das suas faculdades de
recuperação de uma situação adversa. arquivou a informação sobre o congresso na
sua memória, para utilização futura, e disse: - mas onde pretendes chegar com tudo
isto, mitch? uma coisa é especular sobre a identidade do pai, outra é descobri-la.
estamos a falar da presença de quantos conservadores, em blackpool? dois mil
militantes e duzentos deputados? por onde achas que devemos começar a
procurar?

- quero ver que tipo de histórias bowen enviava do congresso. vou investigar para
tentar saber se ela andava a acompanhar as atividades de algum comitê
parlamentar em particular. pode ter entrevistado alguém e ter ficado apanhada por
essa via. vou falar com os correspondentes parlamentares para ver se eles sabem
de alguma coisa.
- É um começo - reconheceu rodney. - mas quanto a ter uma história para a edição
de amanhã...

- certo. certo. não podemos avançar com este material. pelo menos por agora. mas
vou telefonar aos meus informadores imediatamente e vou ver o que é que eles
podem dar-me.

rodney assentiu com a cabeça. ergueu uma mão em jeito de bênção, que comunicou
a corsico que a reunião de ambos chegara ao fim. À porta do gabinete, corsico virou-
se.

- rod, não acreditas mesmo que eu tenha dado a história ao globe, pois não? -
perguntou.

rodney ordenou aos músculos faciais que adotassem uma expressão de genuína
retidão. - mitchell - disse, - ou acreditas em mim agora ou nunca mais: eu sei que
não deste aquela história ao globe.

esperou até que a porta se fechasse completamente atrás do repórter. retirou o que
restava do papel que envolvia o chocolate. escreveu blackpool e 13 de outubro nas
costas dele, dobrou-o em quatro e guardou-o no bolso. enfiou o último pedaço de
chocolate na boca. riu de satisfação enquanto pegava no filofax e no telefone.

não fora difícil encontrar as fotografias. evelyn ocupava, afinal, uma posição
conspícua. como funcionária pública, em vias de cimentar uma carreira brilhante,
fora a figura central de mais de um artigo de jornal ao longo dos últimos seis anos. e
conhecendo desde há muito a importância da imagem de uma figura política,
deixara-se fotografar na companhia da família.

dennis luxford espalhara três delas sobre a sua secretária. enquanto do lado de fora
do seu gabinete, a equipe do the source se afadigava no cumprimento das
respectivas tarefas diárias, ele estudava as fotografias da filha.

numa delas, ela aparecia sentada numa almofada fofa, em frente de evelyn e do
marido, por sua vez sentados num sofá. noutra, agarrava a crina de um cavalo
enquanto eve, em jodhpurs, a conduzia em torno de um cercado. a terceira
mostrava-a sentada a uma mesa, obviamente ocupada com os trabalhos de casa,
um lápis enfiado na mão, e a mãe inclinada sobre ela apontando para qualquer coisa
escrita no papel onde a criança escrevia.

luxford abriu uma das gavetas da secretária e procurou entre os objetos que havia
no seu interior até encontrar a lupa que utilizava para ler corpos de letra diminutos.
observou as fotografias através da lupa. estudou o rosto de charlotte.

agora que realmente a via pela primeira vez em vez de olhar e pôr de lado logo de
seguida as fotografias dela e da mãe, classificando-as de propaganda política para
consumo das massas via que os traços da sua família estavam gravados nela. o
cabelo e os olhos eram da mãe, mas os outros traços tinham a marca indelével dos
luxford. o mesmo queixo que a irmã dele, sobrancelhas amplas como as dele, um
nariz e uma boca iguais aos de leo. as marcas que a identificavam como sua filha
eram de tal modo indeléveis que ela parecia ter sido agraciada com o nome dele, em
vez de este lhe ter sido rejeitado.

e não sabia nada sobre ela. qual era a sua cor favorita, o número de sapatos que
calçava, as histórias que gostava de ler antes de se deitar. não fazia a mais pequena
idéia de quais teriam sido as suas aspirações, por que fases passara, que sonhos
sonhara. um conhecimento deste tipo era refém da responsabilidade. no momento
em que abdicara de uma, perdera o direito à outra. oh, claro, honrara as suas
responsabilidades paternais com uma visita mensal ao barclay’s, suportando o peso
das correntes da paternidade durante o quarto de hora que demorava a preencher
os talões de depósito a favor da causa da auto-absolvição. no entanto, essa era a
extensão do seu envolvimento com a filha, um não-envolvimento cujo propósito
superficial era assegurar o futuro de charlotte depois da sua morte, mas cuja
finalidade verdadeira era proporcionar à sua consciência um bálsamo permanente.

parecera de fato uma decisão acertada. evelyn deixara os seus desejos bem claros.
uma vez que com aquilo que ele gostava de ver como uma demonstração atípica de
egocentrismo masculino a designara a ela como sendo a parte ofendida disse para
consigo que o mínimo que poderia fazer seria garantir que os desejos dela fossem
satisfeitos. e era tão fácil fazê-lo. ela expressara-os em cinco palavras simples:
«mantém-te longe de nós, dennis.» ele fizera-o de bom grado.

luxford pousou as fotografias lado a lado, em cima da secretária. examinou cada


uma delas através da lupa uma segunda, depois uma terceira e, finalmente, uma
quarta vez. e surpreendeu-se a si mesmo a tentar descobrir se a criança que
estudava através da lente gostaria de música, detestaria brócolos, se recusaria a
comer cogumelos, meteria os pés para dentro quando andava, leria os livros de
narnia, andaria de bicicleta, teria alguma vez partido um osso. os traços dela diziam-
lhe que era sua, mas a sua ignorância acerca dela forçavam-no a admitir que nunca
lhe pertencera. este fato era tão claro hoje como tinha sido quatro meses antes do
nascimento dela.

mantém-te longe de nós, dennis.

muito bem, pensara ele.

agora, a filha dele estava morta. precisamente porque ele se mantivera afastado, tal
como lhe tinham dito que fizesse. se ele se tivesse recusado a aceitar as condições
dela, charlotte nunca teria sido raptada, sequer. não teria havido exigências para que
reconhecesse a paternidade dela porque essa informação seria do conhecimento de
todos, incluindo de charlotte.

luxford tocou a cabeça dela, na fotografia, e tentou imaginar qual seria a textura do
cabelo dela. não conseguia. honestamente, não conseguia imaginar um único
pormenor acerca dela.

a imensa extensão da sua ignorância queimava-o por dentro. tal como o que essa
ignorância testemunhava acerca do seu verdadeiro valor como homem.
luxford pousou a lupa sobre uma das fotografias. com o indicador e o polegar
pressionou a cana do nariz e fechou os olhos. durante toda a vida participara no jogo
do poder. neste momento procurava apenas a oração. algures, existiriam com
certeza as palavras certas capazes de mitigar a...

- gostaria de conversar consigo, dennis.

levantou a cabeça. num gesto automático baixou o braço até à secretária e tapou as
fotografias. À entrada do seu gabinete estava a única pessoa que teria tido a
ousadia de abrir a porta sem bater primeiro, ou sem pedir a miss wallace que
avisasse o editor da sua chegada pelo intercomunicador: o presidente do conselho
de administração do the source, peter ogilvie.

- posso...? - inquiriu ele, e dirigiu os inexpressivos olhos azuis para a mesa de


reuniões. era uma mera formalidade. ogilvie tinha a intenção inequívoca de entrar no
gabinete, quer fosse convidado a fazê-lo quer não.

luxford pôs-se de pé. ogilvie avançou e, como sempre, tomou a dianteira, com as
suas sobrancelhas tão características, que por não serem aparadas há muito
pareciam víboras cobertas de penas que volteavam na sua fronte. os dois homens
encontraram-se no centro da sala. luxford estendeu a mão. ogilvie entregou-lhe um
tablóide, com um gesto brusco.

- duzentos e vinte mil exemplares - disse ogilvie. - isto é, como é óbvio, duzentos e
vinte mil acima da tiragem diária, dennis. mas essa é apenas uma parte das minhas
preocupações.

ogilvie nunca interferira na direção do jornal. tinha mais com que se preocupar do
que com a rotina diária do the source, e geralmente contactava com eles a partir do
seu imponente gabinete, na sua casa de hertfordshire. era um homem de espírito
prático cujos interesses giravam quase exclusivamente em torno de lucros e
prejuízos.

para além de relatórios sobre uma alteração drástica nos lucros do jornal, somente
um outro evento obrigaria ogilvie a deslocar-se até londres e à sede do the source.
perder uma cacha fazia parte da vida de um jornal, e ogilvie que por vezes dava a
sensação de estar no setor desde o tempo de charles dickens seria o primeiro a
admiti-lo. todavia, perder a cacha de uma história que tinha potencial suficiente para
denegrir a imagem dos conservadores era absolutamente inaceitável.

luxford sabia, pois, o que ogilvie lhe entregara em mão. era a edição dessa manhã
do seu antigo jornal, o globe, com o título sobre o fato de a deputada bowen não ter
contactado a polícia na sequência do rapto da filha.

- a semana passada estávamos à frente de todos os outros jornais do país com o


caso de larnsey e do rapaz de aluguel - disse ogilvie. - estamos a perder o pé esta
semana?

- não. tínhamos a história. eu fi-la abortar.


a única reação de ogilvie estava espelhada nos seus olhos. por instantes
estreitaram-se quase imperceptivelmente. o movimento parecia um músculo
latejante.

- isto é uma questão de lealdade, dennis? ainda está ligado ao globe por algum
motivo?

- posso oferecer-lhe um café?

- uma explicação credível será suficiente.

luxford dirigiu-se até à mesa de reuniões e sentou-se. fez sinal a ogilvie para que
fizesse o mesmo. não viera trabalhar para ogilvie sem estar consciente de que
revelar quaisquer indícios de fraqueza na presença do presidente teria como efeito
desencadear a predileção que ele tinha em esborrachar insetos.

ogilvie caminhou até à mesa e puxou uma cadeira.

- diga-me.

luxford obedeceu. quando concluiu o relato da sua conversa com corsico e das
razões por que tinha decidido abortar a história, ogilvie escolheu como alvo o
elemento mais convincente, dando mostras de uma perspicácia jornalística típica.

- você já publicou histórias antes desta sem confirmações múltiplas. o que é que o
impediu de o fazer desta vez?

- a posição de bowen no ministério do interior. pareceu-me razoável concluir que ela


teria passado por cima da polícia local e contactado diretamente a scotland yard.
não quis publicar a história acusando-a de inação e arriscando-me a que o balão me
rebentasse na cara quando alguém bem posicionado na yard saltasse em defesa
dela, brandindo o seu caderno de notas diário e alegando que ela se tinha dirigido a
eles dez minutos depois de saber que a criança tinha sido raptada.

- o que não aconteceu - assinalou ogilvie, - na sequência do artigo do globe.

- apenas posso deduzir que o globe obteve confirmação de alguém da yard. dei
instruções ao meu homem para que fizesse o mesmo. se a tivesse obtido antes das
dez horas da noite de ontem, eu teria publicado a história. não o fez. eu não
publiquei. não há nada mais a dizer.

- há só mais uma coisa - discordou ogilvie.

luxford ficou desconfiado, mas recorreu à sua cadeira para demonstrar a sua
compostura perante o presidente, reclinando-se e entrelaçando os dedos sobre o
estômago. não pediu a ogilvie que o elucidasse acerca da sua «mais uma coisa».
limitou-se a aguardar que o outro continuasse.

- fizemos um bom trabalho com larnsey - disse ogilvie. - e fizemo-lo sem


confirmações múltiplas. estou correto?
não havia razão para mentir, já que uma conversa com sarah happleshort ou rodney
aronson seriam suficientes para revelar a verdade.

- está, sim.

- diga-me então uma coisa. tranquilize-me. diga-me que da próxima vez que
tivermos estes rufias conservadores presos pelos tomates você vai saber como
apertá-los. não vai permitir que o mirror, o globe, o sun ou o mail exerçam a pressão
no seu lugar. e não vai recuar a pretexto de obter confirmação junto de três, treze ou
três dúzias de malditas fontes.

a voz de ogilvie elevou-se, enfaticamente, ao pronunciar as últimas cinco palavras.


luxford disse: - peter, você sabe tão bem como eu que a situação de larnsey era
diferente da de bowen. não era necessário obter confirmações múltiplas nesse caso.
não havia nada de que duvidar abertamente. ele foi apanhado num carro com as
calças abertas e a gaita enfiada na boca de um rapaz de dezesseis anos. no caso
de bowen, o que temos é uma única declaração do ministério do interior e tudo o
resto que oscila entre o inuendo, a coscuvilhice e a fabricação mais flagrante.
quando dispuser de fatos que me dêem a garantia de que estou realmente perante
fatos, pode estar certo de que eles serão publicados na nossa primeira página. até
esse momento... - baixou a cadeira até à sua posição original e enfrentou o
presidente olhos nos olhos. - se não gosta do modo como dirijo o jornal, então terá
de começar a pensar em contratar um novo editor.

- den? oh. peço desculpa. não sabia... sr. ogilvie. olá. - rodney escolhera o seu
momento de forma soberba. o editor-adjunto estava à entrada, uma mão pousada na
maçaneta da porta do gabinete de luxford que ogilvy deixara parcialmente aberta,
para que a sua voz alterada pudesse escapar-se com mais facilidade até à sala de
redação, e agitar assim as tropas e a cabeça, separada do corpo, espreitando pela
abertura.

- o que é que se passa, rodney? - perguntou luxford.

- desculpa. não tinha intenção de interromper. a porta estava aberta e não sabia...
miss wallace também não está na secretária dela.

- realmente intrigante, isso. obrigado por nos informares.

os lábios de rodney curvaram-se num sorriso tênue, arredondado pela raiva súbita
que lhe esticava as narinas. luxford viu que ele não aceitaria ser envergonhado na
presença do presidente sem primeiro tentar retribuir esse favor.

- certo. desculpem. foi sem pensar - disse, num tom afável, após o que divulgou a
arma da sua escolha, acrescentando, - pensei que gostasses de saber o que temos
em curso relativamente à situação do caso bowen.

assumiu que esta observação lhe garantia o acesso ao gabinete de luxford. sentou-
se numa cadeira, em frente do presidente.
- tinhas razão - disse ele a luxford. - o secretário do interior fez de fato uma chamada
para a scotland yard em nome de bowen. um telefonema pessoal, em carne e osso.
um informador confirmou estes dados. - fez uma pausa, como se com ela quisesse
prestar homenagem a sabedoria demonstrada por luxford quando decidira
suspender a publicação da história que o globe entretanto divulgara. luxford, porém,
sabia que a última coisa que rodney faria seria incorrer no risco de enfraquecer a
importância da sua posição, aos olhos de ogilvie, a fim de fortalecer a de luxford.
preparou-se por isso para enfrentar o que se seguiria começou a alinhar
mentalmente as suas tropas para a escaramuça que se avizinhava. - mas o aspecto
curioso de tudo isto é o seguinte: o secretário de estado do interior só fez esta visita
à yard ontem à tarde. antes disso, a yard nunca ouvira falar do desaparecimento da
miúda. o que significa que a história de mitch era ouro puro.

- rodney, não estamos aqui para perder tempo a confirmar as histórias divulgadas
pelos outros jornais - observou ogilvie e, dirigindo-se a luxford: - ainda que, dado que
conseguiu obter confirmação hoje, gostaria de saber por que motivo não o
conseguiu ontem.

rodney interveio: - mitch andou a vasculhar tudo o que era sítio, desde ontem à tarde
até à meia-noite. as fontes de que dispunha estavam secas.

- nesse caso precisa de novas fontes.

- não podia estar mais de acordo consigo. e quando viu a primeira página do globe,
esta manhã, pôs-se logo em campo, depois de eu o ter encorajado no decorrer de
uma conversa no meu gabinete.

- posso concluir, pelo seu sorriso, que descobriu mais alguma coisa? - perguntou
ogilvie.

luxford notou que rodney não se privou de lançar um olhar de triunfo na direção dele.
dissimulou-o, porém, fazendo alarde de uma prudência que funcionava como um
estilete enterrado exatamente entre as costelas de luxford.

- gostaria que compreendesse uma coisa, sr. ogilvie. den pode não querer divulgar
este novo material, e eu não discordaria da sua decisão, se assim for. acabamos de
a obter através do nosso informador na yard e é possível que ele seja o único
disposto a falar.

- o que é, ao certo?

rodney passou a língua pelos lábios. - ao que parece foram escritas notas de rapto.
duas. foram entregues ao destinatário no mesmo dia em que a criança desapareceu.
o que significa que bowen sabia, sem margem para dúvidas, que a criança tinha sido
raptada, e mesmo assim nada fez para envolver a polícia.

luxford ouviu ogilvie inspirar e falou antes que o presidente pudesse intervir, dizendo
num tom imparcial: - talvez tenha telefonado a outra pessoa, rod. tu, ou mitchell,
consideraram essa possibilidade?
ogilvie, no entanto, impediu rodney de responder levantando uma mão larga e
ossuda. o presidente refletiu sobre a informação em silêncio. ergueu os olhos não
para o céu em busca de conselho junto de deus todo-poderoso mas na direção da
parede, onde, emolduradas em caixilhos cromados, estavam penduradas as
primeiras páginas do the source que os tinham colocado na liderança da guerra das
tiragens.

- se miss bowen telefonou a outra pessoa - disse, ponderadamente - então sugiro


que seja ela mesma a dizer-nos isso. e caso não tenha comentários a fazer acerca
da nossa história, o fato poderá ser divulgado, juntamente com os outros, para
consumo público. - baixou os olhos e pousou-os em rodney. - e o teor? - perguntou
jovialmente.

rodney pareceu desorientado. passou a mão pela barba num movimento que o fazia
ganhar tempo e servia para encobrir a sua confusão.

- o sr. ogilvie está a referir-se ao conteúdo das notas de rapto - traduziu luxford com
uma cortesia fria.

a temperatura em que esta afirmação foi proferida não passou despercebida a


rodney.

- não sabemos - respondeu rodney. - sabemos apenas que eram dois.

- estou a perceber - ogilvie considerou as opções possíveis durante mais alguns


momentos. finalmente, comunicou a sua decisão: - isso é material suficiente para
construir uma história. o seu homem está a trabalhar nisso?

- neste preciso momento - disse rodney.

- excelente - ogilvie levantou-se. virou-se para luxford e estendeu-lhe a mão. - as


coisas estão a compor-se, então. posso ir embora com a certeza de que não terei de
deslocar-me à cidade de novo?

- desde que todas as histórias tenham bases sólidas - replicou luxford, - serão
publicadas no jornal.

ogilvie meneou a cabeça.

- bom trabalho, rodney - disse, num tom pensativo deliberadamente destinado a


comunicar a avaliação que fizera das posições relativas que os dois homens
ocupavam no jornal. saiu da sala.

luxford regressou à secretária. meteu as fotografias de charlotte numa pasta de


arquivo e tornou a colocar a lupa dentro da gaveta. premiu o botão para ligar o
monitor do computador e deixou-se cair na cadeira.

rodney aproximou-se.

- den - falou num tom casual, em jeito de introdução. luxford consultou a sua agenda
e fez uma anotação desnecessária.

- rodney, - decidiu pela enésima vez, precisava de uma lição que o pusesse no lugar
que lhe competia. todavia, não conseguia pensar que lição poderia dar-lhe enquanto
tivesse a mente ocupada tentando adivinhar que opções evelyn poderia ser levada a
adotar para evitar tornar-se um alvo da imprensa. ao mesmo tempo perguntava a si
mesmo porque estava preocupado com ela. afinal, ela própria cavara a sua
sepultura neste caso e a idéia de sepultura gelava-o e fazia-o recordar-se de tudo
num assomo revoltante. não fora a sepultura de evelyn que fora cavada. e ela não
fora a única testemunha do processo.

- ... e, em geral, por tudo isso, como estou certo de que compreenderás, não fui
totalmente frontal com ogilvie ainda há pouco - dizia rodney.

- o quê? - luxford levantou a cabeça.

rodney apoiou uma porção considerável da sua coxa musculosa na parte da frente
da secretária de luxford.

- ainda não dispomos dos fatos todos, mas mitch está na pista deles. por isso aposto
em como saberemos a verdade dentro de um dia. sabes, den, às vezes gosto
daquele miúdo como se fosse meu filho.

- de que é que estás a falar, rodney?

rodney empertigou a cabeça em ar de desafio. - não estás a ouvir, den? - era a


pergunta que a sua expressão refletia. - preocupado com alguma coisa?

- o congresso dos conservadores em blackpool - disse rodney suavemente. - onde


bowen foi admitida no clube, pela mão de alguém. como acabei de dizer, ela estava
lá, cobrindo o congresso para o telegraph. e os trabalhos começaram nove meses
antes do dia em que nasceu a criança. mitch está a investigar essa pista neste
momento.

- que pista? - perguntou luxford.

- que pista? - repetiu rodney num tom gentilmente trocista. - do pai, claro - olhou com
admiração para as primeiras páginas emolduradas. - pensa nas repercussões se
conseguirmos um exclusivo nesta matéria, den: «amante não identificado de bowen
fala ao the source.» não quis mencionar a hipótese de uma história sobre o pai na
presença de ogilvie. não há necessidade de tê-lo à perna todos os dias quando
podemos não conseguir nada. no entanto,... - soltou um suspiro que reconhecia o
compromisso assumido pelo the source para bisbilhotar o passado das
personalidades mais proeminentes do país com o propósito de descobrir uma fatia
suculenta da sua história pessoal e projetar assim a tiragem do jornal para a casa
dos milhões. - quando publicarmos isto vai ser como a explosão de uma bomba
atômica - disse. - e vamos mesmo publicá-lo, não vamos, den?

luxford não fugiu ao olhar de rodney.


- ouviste o que eu disse a ogilvie. publicaremos tudo o que tiver uma base sólida.

- ainda bem - suspirou rodney. - porque isto... não consigo explicar, den, mas a
minha intuição diz-me que estamos na pista de uma coisa tão boa como diamantes.

- Ótimo - disse luxford.

- É. realmente é - rodney retirou a coxa de cima da secretária. caminhou até à porta.


aí deteve-se, cofiando a barba. - den - disse. - raios. acabo de me lembrar de uma
coisa. não percebo porque é que não me lembrei disto antes. tu és o homem que
procuramos, não és?

luxford sentiu-se gelar dos tornozelos até à garganta. não disse palavra.

- tu podes ajudar-nos, isto é, ajudar mitch.

- eu? de que modo?

- acerca do congresso dos conservadores - disse rodney. - esqueci-me de mencionar


isto. entreguei uma nota oficial no globe e fiz uma pesquisa nos microfilmes deles
depois de ter falado com mitch.

- sim, e depois?

- vá lá, den. não disfarces agora. o congresso dos conservadores? em blackpool?


não te diz nada?

- deveria?

- eu tinha esperanças que sim - os dentes dele brilharam como os de um tubarão. -


não te lembras? tu estavas lá, escrevendo editoriais para o globe.

- estava - disse luxford. não era nem uma pergunta, nem uma afirmação.

- estavas sim. mitch vai querer falar contigo. porque é que não refletes bem sobre
quem poderia ter engatado bowen; - pestanejou lentamente e saiu do gabinete.

barbara serviu-se da bainha do casaco de malha para limpar os suores frios da


testa. pôs-se de pé. mais desgostosa consigo própria do que se lembrava de ter
sentido ultimamente. puxou o autoclismo e viu o conteúdo invisível do seu estômago
rodopiar rumo ao esquecimento. deu uma valente sacudidela mental ao seu corpo e
ordenou a si própria que se comportasse como uma verdadeira responsável por uma
investigação, em vez de agir como uma adolescente choramingas, incapaz de se ter
de pé.

autópsia, disse para consigo rispidamente. o que é isso? um mero exame de um


cadáver, destinado a determinar a causa de morte. É uma etapa necessária numa
investigação de homicídio. É uma operação executada por profissionais que buscam
quaisquer processos suspeitos susceptíveis de terem contribuído para a interrupção
prematura das funções físicas. em suma, é um passo essencial para a descoberta
do assassino. de acordo, é o estripar de um ser humano, mas é igualmente a
procura da verdade.

barbara conhecia bem estes fatos. então por que razão, interrogava-se, se revelara
incapaz de se manter firme até ao fim da autópsia de charlotte bowen?

a autópsia fora realizada no hospital st. mark’s, em amesford, uma relíquia do


período eduardiano, construída ao estilo de um chateau francês. o patologista
trabalhara com rapidez e eficiência, mas não obstante a atmosfera profissional que
reinava na sala a incisão torácico-abdominal inicial fizera com que as mãos de
barbara começassem a suar de uma forma funesta. ficou imediatamente a saber que
estava em apuros.

estendido na marquesa de aço inoxidável, o corpo de charlotte bowen estava


virtualmente intato, à exceção de algumas equimoses em torno da boca, de várias
marcas de queimaduras avermelhadas nas faces e no queixo e de um golpe já
cicatrizado num dos joelhos. na verdade, a miudita parecia mais adormecida do que
morta. desse modo, cortar a carne alva do seu peito era como profanar a sua
inocência. no entanto, cortar foi precisamente o que o patologista fez, recitando com
uma voz inexpressiva o que ia descobrindo para um microfone que oscilava sobre a
sua cabeça. com um ruído seco separou as costelas da criança como se fossem
meros ramos delgados de uma árvore jovem e retirou os órgãos para análise. no
momento em que extraiu a bexiga e enviou o seu conteúdo para ser examinado,
barbara soube que não seria capaz de suportar o que iria seguir-se: a incisão no
couro cabeludo da criança, o descascamento da carne até deixar exposto o seu
pequeno cérebro, e o zumbido estridente da serra à medida que penetrava no osso
direita ao cérebro.

será que tudo aquilo era realmente necessário? queria protestar. raios partam tudo
isto, sabemos muito bem como é que ela morreu.

mas não sabiam, de fato. podiam adiantar especulações baseadas no estado do


corpo e no local onde o mesmo fora encontrado, mas as respostas exatas de que
precisavam apenas podiam ser obtidas a partir deste indispensável ato de mutilação
científica.

barbara sabia que o sargento-detetive reg stanley a observava. da posição em que


se encontrava, junto à balança onde cada órgão era pesado em separado, o homem
descortinava cada expressão que perpassava pelo seu rosto. aguardava o momento
em que ela sairia a correr da sala, com uma mão a tapar a boca. se o fizesse ele
teria oportunidade de resmungar «É mesmo de mulher», em jeito de conclusão.
barbara não queria proporcionar-lhe uma oportunidade de a ridicularizar perante os
homens com quem ela devia trabalhar em wiltshire, mas sabia que seria forçada a
fazer uma opção: ou se humilhava vomitando ali mesmo, no chão, ou saía na
esperança de encontrar um lavabo antes de enjoar em pleno corredor.

depois de alguma reflexão, porém sentindo o estômago cada vez mais agoniado, a
garganta cada vez mais apertada e vendo a sala começar a rodopiar diante de si,
percebeu que havia outra alternativa.
deitou um olhar ostensivo ao relógio, fingiu tomar consciência de que se esquecera
de qualquer coisa, folheando o bloco-notas para enfatizar o fato, e comunicou as
suas intenções a stanley. mimando uma chamada telefônica, levou uma mão ao
ouvido e formou com os lábios a frase: «tenho de telefonar para londres.» o
sargento-detetive abanou a cabeça em sinal afirmativo, mas a qualidade cáustica do
seu sorriso disse-lhe que ele não estava convencido. «que se lixe», pensou.

agora, na casa de banho das senhoras, lavava a boca. a garganta ardia. juntou as
mãos em forma de concha para amparar a água e bebeu avidamente. salpicou o
rosto com água, secou-o no toalhete azul e mole que estava enrolado, de forma
muito pouco higiênica, num carreto colocado no interior de um dispensador preso a
uma parede cinzenta.

não se sentia muito melhor. esvaziara o estômago, mas o coração continuava cheio.
a cabeça dizia-lhe, concentra-te nos fatos. a mente contra-atacava com argumentos
do tipo: «era apenas uma criança.»

barbara deixou-se escorregar ao longo da parede até ao chão e pousou a cabeça


sobre os joelhos. esperou até que o estômago acalmasse e os arrepios de frio
desaparecessem.

era uma criança tão pequena. tinha apenas um metro e vinte e dois de altura e
pesava menos de trinta e oito quilos. os pulsos dela eram de tal modo delgados que
poderiam ser rodeados pelo dedo de um adulto. os membros eram definidos pelo
que pareciam ser ossos de pássaro e não por músculos. os ombros eram magros e
salientes e os órgãos genitais, ainda não desenvolvidos, eram lisos como conchas.

tão fácil de matar.

mas como? o corpo não apresentava sinais de luta, nem qualquer traumatismo. não
exalava um odor denunciador a amêndoas, alho ou pirola. não havia qualquer
vestígio de monóxido de carbono no sangue, nem cianose nas faces, nos lábios ou
nos ouvidos.

barbara deslocou o braço por baixo do joelho e viu as horas. a esta hora já devia
estar tudo acabado. já teriam alguma resposta. fraca, ou não, tinha de estar
presente no momento em que o patologista fizesse o relatório preliminar. a troça que
lera nos olhos do sargento stanley, do lado oposto da marquesa da autópsia, fora o
bastante para lhe confirmar que não poderia contar com ele para obter um relatório
fiel dos resultados.

pôs-se de pé com esforço. foi até ao espelho que estava sobre o lavatório. não tinha
nada que a ajudasse a avivar as cores do rosto, pelo que teria de recorrer nos seus
limitados talentos dramáticos para iludir a inevitável suspeita de que acabara de
vomitar nos lavabos. bom, não havia nada a fazer.

encontrou-o no corredor a menos de cinco passos de distância dos sanitários das


senhoras. stanley fazia de conta que tentava aumentar o fluxo de água que jorrava
de um bebedouro antigo em porcelana. À medida que barbara se aproximava
interrompeu os seus esforços, endireitou-se com um «maldita coisa inútil» e fingiu
aperceber-se da sua presença.

- já fez os telefonemas? - perguntou, olhando de soslaio para a porta dos lavabos


com uma expressão que comunicava que conhecia intimamente todos os locais
onde a british telecom instalara cada uma das cabinas telefônicas que possuía
wiltshire. não há ali nenhuma cabina, minha menina, parecia querer dizer.

- todos - disse barbara, passando por ele na direção da sala de autópsias. - vamos
continuar? - preparou-se o mais possível para qualquer visão medonha que a
esperasse do outro lado da porta. sentiu-se aliviada quando viu que a avaliação que
fizera do tempo que entretanto se escoara desde que abandonara a sala estava
correta. a autópsia estava concluída, o cadáver fora removido e os únicos vestígios
do que se passara eram agora a marquesa de aço inoxidável sobre a qual a
autópsia tinha sido executada. um técnico estava em vias de lavá-la com a ajuda de
uma mangueira. Água tingida de sangue escorria ao longo da superfície de aço
escoando-se por orifícios e canais existentes em ambos os lados. outro corpo,
porém, aguardava os cuidados do patologista. jazia sobre uma maca com rodízios,
parcialmente coberto por um lençol verde, as mãos ainda inchadas e uma etiqueta
de identificação presa ao dedo grande do pé direito.

- bill - chamou um dos técnicos olhando na direção de um cubículo no extremo mais


afastado da sala. - meti cassetes novas no gravador, estamos prontos para começar.

barbara não via com bons olhos a idéia de ter de assistir a outra autópsia, como
condição necessária para ter acesso à informação relativa à anterior e encaminhou-
se para o cubículo. lá dentro, o patologista bebia um líquido por uma caneca, a
atenção concentrada num televisor em miniatura em cujo ecrã dois homens suados
disputavam uma partida de tênis. o volume estava no mínimo.

- vá lá, cabeça de nabo - murmurou. - ele tem um jogo de rede fatal e tu sabes isso.
por isso dá-lhe forte e feio, põe-no na defensiva. isso! - fez uma saudação ao
jogador de ténis com a caneca. viu barbara e o sargento stanley e sorriu. - apostei
cinquenta libras nesta partida, reg.

- tens de aderir aos jogadores anônimos.

- não, apenas preciso de um pouco de sorte.

- É o que todos dizem.

- porque é verdade - bill desligou a televisão e acenou com a cabeça na direção de


barbara.

barbara percebeu de imediato que ele estava prestes a perguntar-lhe se ela se


sentia melhor e achava que não precisava de alimentar ainda mais as suspeitas do
sargento stanley. tirou então o bloco-notas do saco a tiracolo e, com uma inclinação
de cabeça na direção do cadáver que estava na outra sala, disse:

- londres está à espera de informações minhas, mas vou tentar não atrapalhar muito
o outro trabalho que tem à espera. que pode adiantar-me?

bill olhou para stanley como se procurasse um sinal que lhe confirmasse quem
detinha o comando das operações. atrás de si, barbara conseguia adivinhar o
sargento concedendo uma espécie de dispensa papal limitada, porque o patologista
começou a apresentar o seu relatório.

- as indicações superficiais são todas consistentes, embora nenhuma delas seja


muito pronunciada. - em seguida mostrou-se mais cooperante e traduziu as suas
observações introdutórias, acrescentando: - as condições visíveis a olho nu, ainda
que não tão definidas como é habitual, apontam todas para uma causa de morte. o
coração estava em repouso. no lado direito, a aurícula e o ventrículo estavam
congestionados com sangue. as vesículas estavam enfisematosas, os pulmões
pálidos. a traqueia, os brônquios e bronquíolos estavam todos rodeados de espuma.
as mucosas apresentavam uma coloração vermelha e estavam congestionadas. não
havia rasto de hemorragias petéquiais sob a pleura.

- que significa tudo isso?

- ela morreu afogada - bill bebeu um gole do líquido que enchia a sua caneca e
desligou a televisão com um controle remoto.

- quando, exatamente?

- a palavra exatamente nunca se aplica às mortes por afogamento. contudo, diria


que ela terá morrido cerca de vinte e quatro a trinta e seis horas, aproximadamente,
antes da descoberta do corpo.

barbara fez os seus cálculos rapidamente.

- mas isso significa que ela foi levada para o canal no sábado de manhã e não no
domingo - disse ela. - o que queria dizer, - concluiu, - que em allington alguém pode
perfeitamente ter visto passar o carro que conduzia a garota para a sua morte.
porque, ao sábado, os agricultores levantam-se às cinco horas como de costume, de
acordo com o que dissera robin. o domingo era o único dia que se deixavam ficar
deitados. - virou-se para stanley e disse: - vamos precisar de enviar novamente
alguns homens a allington para interrogar todos os residentes. pensando no sábado,
desta vez, e não no domingo. porque...

- não foi isso que eu disse, sargento - disse bill, com suavidade. barbara dirigiu a sua
atenção para ele.

- não disse o quê?

- não disse que ela esteve no canal entre vinte e quatro e trinta e seis horas antes de
ser encontrada. disse que tinha morrido nesse espaço de tempo, antes de ter sido
encontrada. as minhas estimativas quanto ao tempo em que terá permanecido no
canal não mudou, continua a ser de doze horas.

barbara tentou decifrar aquelas palavras.


- mas acabou de dizer que ela tinha morrido afogada.

- e morreu, de fato.

- está então a sugerir que alguém encontrou o corpo dela na água, retirou-o do canal
e tornou a pô-lo lá mais tarde?

- não, estou a dizer-lhe que ela não se afogou no canal - bebeu o resto do café e
pousou a caneca sobre o televisor. foi até ao armário e procurou dentro de uma
caixa de cartão um par de luvas por usar. bateu com as luvas na palma da mão,
enquanto dizia: - o que acontece num caso típico de afogamento é o seguinte: uma
única inspiração vigorosa por parte da vítima enquanto está debaixo de água faz
com que partículas estranhas ao corpo penetrem nele. ao microscópio, o líquido
acolhido nos pulmões da vítima revela a presença dessas partículas estranhas:
algas, sedimentos e diatomáceas. neste caso, essas algas, sedimentos e
diatomáceas deveriam coincidir com as algas, sedimentos e diatomáceas presentes
numa amostra de água colhida no canal.

- e não coincidem?

- exatamente. porque para começar não estavam lá.

- isso não poderá significar que ela não fez aquela, como é que lhe chamou, «única
inspiração» debaixo de água?

ele abanou a cabeça.

- trata-se de uma função respiratória automática, sargento, faz parte da asfixia


terminal. e, seja como for, havia água nos pulmões e isso diz-nos que ela inalou
após a submersão. a análise, porém, revelou que a água presente nos pulmões dela
não coincide com a água do canal.

- deduzo que está a querer dizer que ela se afogou noutro lado.

- estou, sim.

- poder-se-á saber, a partir da água encontrada no corpo, onde é que ela morreu?

- em determinadas circunstâncias, talvez. nestas, não.

- porque não?

- porque o líquido presente nos pulmões da criança é compatível com água


canalizada. por isso poderia ter morrido noutro lado. poderia ter sido mantida
debaixo de água dentro de uma banheira com água, ter tido a cabeça mergulhada
numa sanita ou segura pelos pés com a cabeça metida dentro de uma banheira com
água. pode até ter-se afogado numa piscina. o cloro dissipa-se rapidamente, pelo
que não teríamos encontrado vestígios dele no corpo.
- mas se foi isso que aconteceu - disse barbara, - se a seguraram numa dessas
posições não deveria haver sinais disso? equimoses no pescoço e nos ombros?
marcas de ligaduras nos pulsos ou tornozelos?

o patologista enfiou a mão direita numa luva de látex e ajeitou-a à pele, com um
estalido sonoro.

- não teria sido necessário segurá-la dessa maneira.

- porquê?

- porque estava inconsciente quando foi colocada dentro de água, e é por essa
razão que todos os sinais típicos de afogamento eram menos marcantes do que é
habitual, como disse ao princípio.

- inconsciente? mas referiu que não havia golpes na cabeça, nem... ela não foi
agredida para que perdesse os sentidos, sargento.

- verdade, não foi molestada de forma alguma, antes ou depois da morte. no


entanto, o relatório toxicológico revela que o corpo estava saturado de uma
benzodiazepina. uma dose tóxica, para ser mais exato, tendo em conta o peso dela.

- tóxica, mas não letal - esclareceu barbara.

- exato.

- como é que disse que se chamava? uma benzo... o quê?

- uma benzodiazepina. É um tranquilizante. neste caso particular trata-se de


diazepam, embora talvez o conheça pela designação vulgar.

- que é?

- valium. a partir da quantidade encontrada no sangue, combinada com os indícios


limitados de afogamento presentes no corpo, sabemos que ela estava inconsciente
quando foi metida dentro de água.

- e morta quando chegou ao canal?

- oh, sim, claro. estava decididamente morta quando foi deixada no canal. e já
estava, diria eu, há perto de vinte e quatro horas.

bill calçou a segunda luva. remexeu dentro do armário procurando uma máscara de
gaze. com uma inclinação de cabeça na direção da outra sala, advertiu: - a próxima
vai ser bastante malcheirosa, devo dizer.

- já estamos de saída - disse barbara.

caminhando atrás do sargento stanley, no percurso de regresso ao parque de


estacionamento, barbara refletia no teor das conclusões do patologista. antes
pensara que progrediam lentamente, mas agora parecia que estavam de volta ao
ponto de partida. a presença de água canalizada nos pulmões de charlotte bowen
significava que ela poderia ter estado presa em qualquer lado antes do momento da
morte, que o afogamento podia ter tido lugar em londres ou em wiltshire. e se assim
fosse, se a garota tivesse sido assassinada em londres, então podia igualmente ter
sido mantida cativa em londres, o que daria ao raptor tempo mais do que suficiente
para matá-la na cidade e em seguida trazer o seu corpo de carro até ao canal do
kennet e do avon. valium remetia de igual modo para londres, sendo um
tranquilizante prescrito para nos ajudar a viver a vida na metrópole. a única coisa
que um(a) londrino(a) precisava para raptar charlotte e livrar-se dela era conhecer
um pouco a região de wiltshire.

havia, por isso, fortes possibilidades de que o sargento stanley tivesse passado a
região a pente fino em vão e que as buscas efetuadas pelas forças policiais que ele
destacara para procurarem o local onde charlotte bowen fora mantida em cativeiro
se revelassem igualmente ineficazes. e, ao que parecia, era altamente provável que
ela própria tivesse incumbido robin payne da mais infrutífera das perseguições,
obrigando-o a desperdiçar um dia inteiro passando em revista locais de aluguel de
barcos, já para não falar em serrações, diques, moinhos de vento e reservatórios.

que triste desperdício de recursos humanos, pensou. procuravam uma agulha que
provavelmente nem existia num palheiro tão grande como a ilha de wight.

precisamos de descobrir uma pista que nos indique por onde começar, disse para si
mesma. uma eventual testemunha do rapto, uma peça de roupa pertencente a
charlotte, um dos livros escolares da garota. algo mais, para além de um corpo com
gordura debaixo das unhas. alguma coisa que possa estabelecer uma ligação entre
aquele corpo e um local.

mas o quê?, interrogava-se. e nesta imensa paisagem se de fato tudo se tivesse


passado ali e não em londres como diabo iriam eles descobrir a pista de que tanto
necessitavam?

À sua frente, um pouco acima dela, o sargento stanley parara nos degraus. tinha a
cabeça inclinada enquanto acendia um cigarro. ofereceu-lhe o maço, gesto que ela
interpretou como uma proposta silenciosa de tréguas entre ambos. até que viu o
isqueiro dele. representava uma mulher nua, dobrada ao nível da cintura, com a
chama saindo pelo traseiro.

diabos o levem, pensou barbara. sentia o estômago abalado, não conseguia pensar
com clareza, embora a sua mente se esforçasse por perceber os fatos. e ali estava
ela, obrigada a fazer companhia ao mr. misoginia, disfarçado de sargento diligente.
ele estava à espera de ver o rosto dela tingido por um rubor intenso e de a ouvir
proferir um qualquer comentário ultrafeminista que ele se encarregaria, depois, de
transmitir aos amigalhaços do departamento de investigação criminal com um
sorriso triunfante.

muito bem, pensou, deixa-me fazer-te o obséquio, cretinóide. pegou no isqueiro que
ele segurava, rodou-o, protegeu a chama com a mão, acendeu-o e tornou a proteger
a chama.
- absolutamente notável. incrível, mesmo. já reparou? - disse ela. ele mordeu o
anzol.

- reparei em quê? - perguntou. apanhara-o.

- se baixar as calças e espetar o rabo para o ar, verá que este isqueiro é o seu
retrato vivo, sargento stanley - colocou-o na palma da mão dele com um gesto
sonoro. - obrigada pelo cigarro. - encaminhou-se para o carro.

as casas abandonadas de george street estavam apinhadas de gente, uma multidão


composta pelos elementos da brigada encarregue de investigar o local do crime.
armados dos respectivos equipamentos, envelopes, frascos e sacos realizavam com
afã o seu trabalho no edifício que st. james e helen haviam explorado anteriormente.
no último piso, alguns deles enrolavam a carpete que seria analisada no laboratório
e recolhiam impressões digitais com uma atenção redobrada.

À medida que sopravam a poeira negra que cobria as superfícies de madeira e as


maçanetas das portas, o peitoril da janela, a torneira da água, as vidraças e o
espelho as impressões digitais iam ficando visíveis. havia centenas delas, pareciam
asas despedaçadas e amputadas de insetos de ébano. os agentes encarregados da
recolha de impressões digitais assinalavam e registravam todas as que encontravam
e não apenas as que coincidiam com a que st. james descobrira no compartimento
de pilhas do gravador. havia fortes possibilidades de que mais do que uma pessoa
estivesse envolvida no desaparecimento de charlotte bowen. caso se chegasse à
conclusão de que a casa abandonada era importante para este caso, uma
impressão digital identificável poderia conduzi-los à pessoa ou pessoas envolvidas,
revelando assim ser a oportunidade que procuravam.

lynley instruiu a equipe para que prestasse uma atenção especial a dois locais: o
espelho da casa de banho e as torneiras por baixo dele e a janela que dava para
george street onde uma vidraça tinha sido limpa de forma ostensiva, a fim de
proporcionar a alguém uma panorâmica dos edifícios da escola st. bernadette, em
blandford street. o próprio lynley encontrava-se na cozinha minúscula espreitando
para dentro de armários e gavetas na tentativa de encontrar qualquer coisa que
tivesse passado despercebida a st. james, quando este inspecionara o local.

havia pouca coisa, e ele verificou que durante a conversa de ambos na tarde do dia
anterior st. james fizera uma listagem exata e exaustiva de todos os elementos
encontrados, com a escrupulosa atenção ao pormenor que lhe é tão peculiar. num
dos armários estava a chávena de estanho vermelho; dentro de uma gaveta
aparecia um garfo com os dentes dobrados e cinco pregos ferrugentos; na bancada
viam-se dois frascos enegrecidos pela fuligem. nada mais.

ouvindo o som de água que pingava suavemente para dentro do lavatório, lynley
inclinou-se sobre a superfície empoeirada da bancada e observou-a mais de perto.
examinou-a ao nível dos olhos, procurando qualquer coisa que tivesse permanecido
invisível sobre a formica matizada. passeou o olhar desde a parede até ao bordo
exterior da bancada e depois deste até à tira de metal que mantinha o lavatório em
posição. nesse momento viu-o. um fragmento azul pouco mais largo do que a lasca
de um dente incrustrado no espaço ínfimo entre a bordadura metálica que rodeava o
lavatório e o lavatório propriamente dito.

servindo-se de uma lâmina fina que tirara de um dos estojos de ferramentas


aplicadas no reconhecimento do local do crime, levantou delicadamente o fragmento
azul da superfície onde estava colado. exalava um odor vagamente medicinal e
quando o colocou sobre a palma da mão e o raspou com a unha viu que era
quebradiço. seria parte de uma droga? interrogou-se. uma espécie de detergente?
colocou-o dentro de um frasco, marcou-o e entregou-o a uma agente, pedindo-lhe
que providenciasse a sua identificação o mais brevemente possível.

saiu do apartamento e entrou no corredor abafado. os tapumes reduziam a


ventilação do edifício. o ar estava carregado do olor exalado por roedores, comida
em decomposição e excrementos, olor esse que era acentuado e cozido pelo tempo
quente do final de primavera. foi este atributo em particular que o agente winston
nkata escolheu para comentar quando subia as escadas no momento em que lynley
descia a caminho do apartamento do segundo andar. tapando a boca e o nariz com
um lenço impecavelmente engomado, murmurou:

- este sítio é uma latrina.

- vê por onde andas - advertiu-o lynley. - só deus sabe o que poderá estar por baixo
de todo este lixo que cobre o chão.

nkata mediu os passos que o separavam da porta do apartamento enquanto lynley


entrava. depois juntou-se a ele no interior.

- espero que estes tipos estejam a receber ordenado de combate.

- faz tudo parte da glória do trabalho policial. o que é que descobriste?

nkata desviou-se das pilhas de lixo mais volumosas, que estavam a ser investigadas
pelos agentes. foi até à janela e abriu-a, deixando entrar uma insignificante corrente
de ar. esta foi aparentemente suficiente para satisfazê-lo, pois afastou o lenço do
rosto embora o cheiro ainda o fizesse estremecer.

- estive a confirmar com a polícia de marylebone - disse. os guardas que fazem a


ronda em cross keys close pertencem à esquadra de wigmore street. deve ter sido
um deles que viu o vadio de que o sr. st. james lhe falou.

- e? - perguntou lynley.

- népia - disse nkata. - nenhum dos tipos ou das miúdas que lá presta serviço
regularmente se lembra de ter expulso um vagabundo daquela zona. tiveram muito
que fazer - época turística e tudo isso e não mantêm um registro de quem
afugentam, de que rua e quando. assim sendo, ninguém está pronto a afirmar que
não houve qualquer atividade, mas tão-pouco há alguém disposto a sentar-se com o
nosso desenhador para tentar fazer um retrato do tipo.

- bolas - disse lynley. lá se iam as esperanças de obter uma descrição decente do


vagabundo.

- foi exatamente isso que eu pensei - nkata sorriu e puxou a orelha. - por isso tomei
umas liberdadezinhas aqui e ali.

nkata e as liberdades que se permitia já tinham deslindado mais de uma informação


crucial. o interesse de lynley cresceu. - e?

o agente levou a mão ao bolso do casaco. convidara uma das desenhadoras para
almoçar, explicou com um movimento de cabeça que informou lynley de que o artista
era do sexo feminino. no caminho passaram por cross keys close e fizeram uma
visita ao escritor que fornecera a helen clyde a descrição do vagabundo que fora
corrido do labirinto de vielas precisamente no dia em que charlotte bowen
desaparecera. o trabalho da artista segundo os pormenores fornecidos pelo escritor
resultou num retrato do homem. e, com um pouco mais de liberdade e uma dose
considerável de iniciativa, nkata fora previdente o bastante para pedir à artista que
desenhasse um segundo retrato, este sans (sem, em francês) a cabeleira hirsuta, as
patilhas e o boné de malha que podiam fazer parte do disfarce.

- isto foi o que conseguimos - entregou dois retratos.

lynley estudou-os enquanto nkata prosseguia o seu relatório. - fizera cópias de


ambos, - disse. - distribuíra-as pelos polícias que patrulhavam a rua nesse momento
com o objetivo de determinar o local de onde charlotte desaparecera. entregara mais
alguns aos polícias que investigavam os albergues locais em busca de um nome
para o tipo.

- arranja alguém que vá mostrar os desenhos a eve bowen - disse lynley. - ao marido
e à governanta também. e ao senhor de que me falaste ontem à noite, aquele que
observa a rua a partir da sua janela. um deles talvez possa adiantar-nos alguma
coisa.

- certo - disse nkata.

no corredor, dois elementos da equipe de peritos que estudava o local debatiam-se


com a carpete enrolada do piso superior. o rolo pesava-lhes sobre os ombros, como
se fosse um fardo indesejado, e um deles deixou escapar um lamento: - presta
atenção, maxie. mal tenho espaço para me mexer - clamou um deles, enquanto
avançavam titubeando na direção das escadas.

lynley dispôs-se a ajudá-los. nkata, mais relutante, juntou-se-lhes, dizendo: - isto


tresanda a mijo de cão.

- o mais certo é estar saturado dele - disse maxie. - o teu casaco vai ficar cá com um
cheirinho, winnie.

os outros riram abertamente. com muitos tropeções, gemidos e atrapalhações


avançaram pelos corredores mal iluminados e chegaram ao andar térreo do edifício.
ali, pelo menos, havia mais luz e o ar mais respirável, já que o metal e os tapumes
da porta de entrada tinham sido removidos para permitir o acesso ao interior.
carregaram a carpete enrolada através da entrada e atiraram-na para dentro de uma
carrinha estacionada na rua. depois, nkata limpou-se vigorosamente.

regressando ao passeio, lynley refletia sobre o que o agente lhe tinha dito. embora
fosse verdade que com o número de turistas que deambulavam pela zona à procura
de regent’s park, do museu de cera ou do planetário, a polícia local poderia ter
dificuldade em lembrar-se do vagabundo ocasional a quem ordenavam que
circulasse, parecia igualmente razoável pensar que alguém poderia ser capaz de
identificá-lo ajudado pelo elemento que agora possuíam: o retrato.

- vais ter de voltar a falar com a polícia local, winston. põe o retrato a circular na
cantina, a ver se aviva a memória de alguém - disse.

- há ainda outra coisa - observou nkata. - e a notícia não lhe vai agradar muito. há
vinte especiais integrados na força.

lynley soltou uma imprecação em voz baixa. vinte agentes especiais voluntários civis
que vestiam um uniforme e patrulhavam as ruas como qualquer outro polícia
significavam outros vinte indivíduos que poderiam ter visto o vagabundo. as
complexidades do caso pareciam aumentar exponencialmente a cada hora que
passava.

- vais ter de lhes mostrar o retrato a eles também - disse lynley.

- não se preocupe. faremos isso - nkata despiu o casaco e inspecionou o ombro


onde antes equilibrara a carpete. satisfeito com o que viu tornou a enfiar-se nele e
reservou alguns instantes para ajustar os punhos da camisa. lançou um olhar
avaliador ao edifício de onde acabavam de sair e depois disse a lynley: - acha que
foi aqui que a criança esteve presa?

- não sei - respondeu lynley. - É uma possibilidade, mas pensando bem, toda a
cidade de londres o é, neste momento. já para não falar em wiltshire - num gesto
automático e irrefletido levou a mão ao bolso interior do casaco, onde, antes de os
ter renegado dezesseis meses antes, guardava sempre os cigarros. estranho como
os hábitos levavam tempo a desaparecer. o cerimonial de acender um canudo
delgado cheio de tabaco estava de certo modo relacionado com o seu processo de
raciocínio. precisava de cumprir um deles para estimular o outro. pelo menos era
assim que se sentia em momentos como este.

nkata deve ter compreendido o que se passava, porque procurou dentro do bolso
das calças e tirou um opal fruit. estendeu-o a lynley sem dizer palavra e tirou outro
para si. desembrulharam os rebuçados em silêncio, enquanto atrás deles, no interior
da casa abandonada, a equipe continuava a trabalhar.

- três motivos potenciais - disse lynley. - mas apenas um faz sentido. podemos
argumentar que este caso consistiu numa desajeitada tentativa para aumentar a
tiragem do the source...

- dificilmente se pode considerar isto desajeitado - assinalou nkata.


- desajeitada no sentido em que dennis luxford não fazia tenção de deixar morrer a
garota. no entanto, mesmo que este seja o nosso motivo, ainda assim temos de
descobrir o porquê de tudo isto. será que o emprego de luxford estava em risco?
será que um dos outros tablóides teria roubado uma fatia da publicidade do the
source? que se estaria a passar na vida dele que pudesse ter precipitado o rapto?

- as duas coisas talvez - disse nkata. - problemas no emprego e menos receitas


vindas da publicidade.

- ou será que os dois crimes: o rapto e o homicídio foram planeados por eve bowen
para saltar para a ribalta, graças a uma demonstração de solidariedade da opinião
pública.

- isso é de uma frieza... - disse nkata.

- É frio, sim. mas ela é um animal político, winston. quer ser primeiro-ministro. já
penetrou na alta roda, mas talvez o longo caminho até ao topo esteja a impacientá-
la. pensou em tomar um atalho e a filha foi a resposta para isso.

- uma mulher que pensasse dessa forma só poderia ser um monstro. não é natural.

- e ela pareceu-te natural?

nkata chupou o seu opal fruit com uma expressão meditativa. - eu vejo as coisas
assim - disse, por fim: - mulheres brancas, recuso-me a ter seja o que for com elas.
uma mulher negra é franca e honesta em relação ao que quer e quando quer. e
como, exatamente, até diz a um homem o modo como quer. mas as brancas? não.
as mulheres brancas são um mistério para mim, parecem-me sempre frias.

- e eve bowen, pareceu-te mais fria do que as outras?

- pareceu, sim. no entanto, essa frieza, é apenas uma questão de graus. todas as
mulheres brancas parecem feitas de gelo quando se trata dos filhos. na minha
opinião, ela limitou-se a ser o que é.

aquela, pensou lynley, podia muito bem ser uma avaliação muito mais clara da
ministra do que a sua.

- aceito isso - disse. - o que nos deixa com o motivo número três: alguém está
empenhado em derrubar miss bowen. exatamente aquilo que ela tem vindo a afirmar
desde o início.

- alguém que se encontrava em blackpool quando ela teve o caso com luxford -
disse nkata.

- alguém que poderá beneficiar com o afastamento dela - disse lenley. - já verificaste
os antecedentes dos woodward?

- É o assunto que se segue na minha lista - informou-o nkata.


- trata disso, então - lynley procurou as chaves do carro.

- e o senhor?

- vou fazer uma visita a alistair harvie - disse lynley. - ele é natural de wiltshire, não é
amigo de bowen e encontrava-se em blackpool para assistir ao congresso do partido
conservador.

- acha que é ele o nosso homem?

- É um político, winston - disse lynley.

- isso não lhe dará um motivo?

- precisamente - disse lynley. - para quase tudo.

lynley encontrou alistair harvie no centaur club, convenientemente situado a menos


de um quarto de hora a pé de parliament square. alojado na antiga residência de
uma das amantes de eduardo vii, o edifício era um monumento de cornijas wyatt,
bandeiras adam e tetos kauffmann. a sua arquitetura elegante era uma homenagem
a duas épocas passadas: jorgiana e regência com pormenores decorativos
traduzidos em qualquer tipo de material, desde o estuque ao ferro forjado, mas o
design dos interiores constituía uma asseveração do presente e do futuro. na grande
sala de visitas, no primeiro piso do clube, onde outrora se poderia ver uma profusão
de mobiliário hepplewhite e membros vestidos a rigor desfrutando langorosamente
um chá vespertino, via-se agora um autêntico engarrafamento de equipementos de
ginástica e homens empapados em suor, vestidos com calções e t-shirts
resmungando e gemendo enquanto passavam de aparelho em aparelho.

alistair harvie estava entre eles. vestido com calções de desporto e sapatilhas. a
rodear-lhe a cabeça tinha uma fita em tecido turco que amparava o suor que pingava
do cabelo grisalho, extremamente bem cortado. o deputado corria em tronco nu
sobre um tapete rolante virado de frente para uma parede espelhada, onde os
praticantes de exercício podiam ver-se refletidos e meditar sobre as respectivas
perfeições físicas ou ausência delas.

era isso que harvie fazia, aparentemente, quando lynley se aproximou. corria com os
braços flectidos, ombros direitos e olhos fixos na sua imagem refletida no espelho.
tinha os lábios retesados, parecendo abrir-se num sorriso ou numa careta, e à
medida que os pés batiam com um ruído seco no rápido tapete rolante inspirava
regular e profundamente, como um homem que gostasse de testar a capacidade de
resistência do seu corpo.

quando lynley exibiu o distintivo segurando-o ao nível dos olhos de harvie, o


deputado não parou de correr. tão-pouco se mostrou preocupado com esta visita da
polícia, limitando-se a dizer: - deixaram-no entrar lá em baixo? que diabo terá
acontecido à privacidade nesta casa? - falou com a voz inconfundivelmente baixa e
arrastada que caracterizava todos os antigos alunos de winchester. - ainda não
acabei aqui. terá de esperar sete minutos. a propósito, quem lhe disse que eu estava
aqui?

harvie parecia ser o tipo de homem que retiraria um intenso prazer do fato de
despedir a secretariazinha nervosa que, num acesso de nervos, depois de
contemplar a identificação da polícia exibida por lynley, lhe fornecera a informação.
lynley disse, então: - os seus horários não constituem propriamente matéria secreta,
sr. harvie. gostaria de falar consigo, por favor.

harvie não reagiu ao fato de estar perante um polícia que apresentava um sotaque
tão culto quanto o seu, típico das escolas privadas. comentou apenas: - como lhe
disse, quando tiver acabado. pressionou o pulso direito, envolvido numa banda
turca, sobre o lábio superior.

- receio bem não ter tempo suficiente para esperar por si. quer que o interrogue
aqui?

- esqueci-me de pagar uma multa de estacionamento?

- talvez, mas isso está fora da alçada do departamento de investigação criminal.

- departamento de investigação criminal, foi isso que disse? - harvie manteve a


mesma velocidade sobre o tapete rolante. - investigação criminal de quê? -
perguntou, entrecortando as palavras com inspirações cuidadosamente reguladas.

- do rapto e morte da filha de eve bowen, charlotte. quer que conversemos sobre o
assunto aqui, ou prefere que o façamos noutro lado?

o olhar de harvie desviou-se, finalmente, do seu próprio reflexo no espelho e pousou


na imagem de lynley. os seus olhos fitaram-no com uma expressão especulativa
durante alguns momentos, enquanto um praticante de pernas arqueadas e
estômago excessivamente protuberante trepava com esforço para o tapete rolante
ao lado deles, começando a carregar desajeitadamente nos botões da máquina.
esta começou a funcionar com um ruído prolongado. o seu utilizador soltou uma
exclamação e começou a correr.

lenley continuou, falando num tom destinado a ser audível se não para o resto da
sala, pelo menos para o corredor sobre tapetes rolantes, ao lado deles.

- sem dúvida que ouviu dizer que a criança foi encontrada morta no domingo ao fim
da tarde, sr. harvie. em wiltshire. não muito longe da sua casa, em salisbury, creio, -
pressionou as mãos de encontro aos bolsos do casaco, como se procurasse um
bloco-notas onde pudesse anotar as declarações de alistair harvie. - assim sendo, o
que a scotland yard gostaria de saber é... - continuou no mesmo registro.

- muito bem - respondeu harvie, com brusquidão. ajustou um dos botões do aparelho
e começou a abrandar o ritmo das passadas. quando o tapete rolante se imobilizou,
desceu do aparelho e disse: - o senhor é tão subtil quanto um vendedor de fruta
vitoriano, sr. lynley - agarrou numa toalha branca que adornava o corrimão do
aparelho. enquanto a esfregava vigorosamente nos braços nus, continuava: - vou
tomar um duche e mudar de roupa. se quiser esfregar-me as costas poderá
acompanhar-me, se não pode aguardar-me na biblioteca. a escolha é sua.

a biblioteca era um eufemismo para designar o bar, descobriu lynley, embora fizesse
jus a essa designação proporcionando aos frequentadores uma seleção de jornais e
revistas, dispostas sobre uma mesa de mogno no centro da sala, e contando ainda
com duas paredes forradas com prateleiras recheadas de volumes encadernados
em pele que pareciam não ter sido abertos uma única vez no decorrer deste século.
cerca de oito minutos mais tarde, harvie encaminhou-se sem pressas para a mesa
ocupada por lynley. parou para uma breve troca de impressões com um octogenário
que fazia paciências com uma rapidez ferozmente ufana. em seguida deteve-se
junto de uma mesa onde dois jovens vestidos com fatos às riscas estudavam,
absortos, o financial times e introduziam dados num computador portátil. depois de
agraciar ambos com um pouco da sua sabedoria pessoal, harvie pediu ao
empregado do bar: - uma pellegrino com uma rodela de lima, george. sem gelo, por
favor - juntando-se, finalmente, a lynley.

trocara o equipemento de ginástica pelo uniforme de deputado do parlamento. na


mais pura tradição das escolas privadas, usava um fato azul-marinho,
suficientemente puído para dar a entender que fora um velho servidor da família
quem primeiro chamara a sua atenção para ela. a camisa, lynley reparou,
combinava na perfeição com os olhos azuis daquele que a vestia. puxou uma
cadeira e, uma vez sentado, desabotoou o casaco e passou os dedos pelo nó e, em
seguida, ao longo da gravata.

- talvez - começou harvie, - me possa dizer qual é o seu interesse em entrevistar-me


sobre este assunto. - no centro da mesa, havia uma taça com nozes sortidas. ele
escolheu cinco cajus e deixou-os ficar na palma da mão. - quando souber as razões
que o trazem aqui terei o maior dos prazeres em responder às suas perguntas.

responderás às minhas perguntas, de uma forma ou de outra, pensou lynley,


dizendo em voz alta: - tem toda a liberdade para telefonar ao seu advogado, se
julgar que isso é necessário.

harvie enfiou um dos cajus na boca. agitou os restantes na mão. - isso levaria algum
tempo - disse, - algo que, segundo me disse há pouco, o senhor não dispõe.
deixemo-nos de jogos, inspetor lynley. o senhor é um homem ocupado e eu também.
por falar nisso tenho uma reunião da minha comissão dentro de vinte e cinco
minutos. por isso posso conceder-lhe dez. e sugiro que os utilize judiciosamente.

o empregado trouxe a água pellegrino que ele pedira e serviu-a num copo largo de
vidro. harvie agradeceu com um aceno de cabeça, fez girar a rodela de lima ao
longo do rebordo do copo antes de deixar cair o pedaço de fruto dentro de água.
enfiou outro caju na boca e mastigou-o lentamente, observando lynley como se
tentasse adivinhar qual seria a sua reação.

não havia qualquer vantagem em fomentar um duelo verbal, sobretudo numa


situação em que o seu adversário tinha a seu favor a vocação para vencer a todo o
custo.

- o senhor tem sido um claro opositor à instalação de uma nova prisão em wiltshire -
disse então lynley.

- tenho, sim. pode ser uma fonte de algumas centenas de empregos para o meu
círculo eleitoral, mas à custa da destruição de outras centenas de hectares da
planície de salisbury. isto sem falar da instalação na região de alguns espécimes do
gênero humano altamente indesejáveis. os meus constituintes opõem-se à prisão
com base em razões muito válidas. eu sou a sua voz.

- isso coloca-o em desacordo com o ministério do interior, segundo creio. e com eve
bowen, em particular.

harvie fazia girar os últimos cajus que tinha na palma da mão. - não está a querer
sugerir que arquitectei o plano de rapto da filha dela por causa disso, está? essa
dificilmente seria uma estratégia eficaz para alterar o local de instalação da prisão.

- estou interessado em examinar as suas relações com miss bowen.

- não mantenho quaisquer relações com ela.

- segundo julgo saber, conheceu-a em blackpool há cerca de onze anos atrás.

harvie parecia perplexo, embora lynley estivesse mais que inclinado a pensar que
essa perplexidade mais não era do que a demonstração do seu talento para a
dissimulação. durante um congresso do partido conservador.

- ela trabalhava como correspondente política para o telegraph e entrevistou-o.

- não me recordo disso. dei centenas de entrevistas durante a última década. seria
pouco provável que me lembrasse de alguma delas em pormenor.

- talvez o resultado dessa possa avivar a sua memória. o senhor queria ir para a
cama com ela.

- queria? - harvie pegou no copo de pellegrino e saboreou-a. parecia mais intrigado


do que ofendido com a revelação de lynley. inclinou-se para a mesa e remexeu as
nozes, à procura de mais cajus. - isso não me surpreende - disse. - ela não deve ter
sido a primeira repórter que quis levar para a cama no final de uma entrevista. e
fomos, já agora?

- segundo miss bowen, não. ela rejeitou-o.

- ai sim? bom, imagino que não me devo ter esforçado muito para a seduzir. ela não
é o meu tipo. o mais provável é eu ter tentado apalpar o terreno para avaliar a
reação dela à idéia de uma aventura sexual e não tanto querer propriamente ter
sexo com ela.

- e se ela se tivesse mostrado receptiva?

- nunca fui um defensor da abstinência, inspetor - olhou para o lado oposto da sala,
na direção de uma reentrância que alojava uma janela com um assento de veludo
vermelho já degradado. para lá das janelas via-se um jardim em flor, onde as flores
heliotrópicas de uma glicínia tombavam como cachos de uva de encontro à vidraça.
- diga-me - continuou harvie, desviando o olhar das flores, - serei eu suspeito de ter
raptado a filha dela como forma de retaliação por ter sido rejeitado em blackpool?
uma rejeição, note-se, que não recordo mas que estou disposto a admitir como
sendo de fato verdadeira?

- como lhe disse, em blackpool ela trabalhava como repórter para o telegraph. as
circunstâncias da vida dela mudaram radicalmente desde essa época. as suas, pelo
contrário, não sofreram qualquer alteração.

- inspetor, ela é uma mulher. a cotação dela tem subido em termos políticos mais por
causa disso do que pelo fato de ser mais talentosa do que eu. sou, tal como o
senhor, se me é permitido dizê-lo, e todos os nossos irmãos, uma vítima do clamor
feminista em prol de um aumento da presença das mulheres em cargos de
responsabilidade.

- sendo assim, se ela não ocupasse o cargo de responsabilidade que ocupa, um


homem estaria no seu lugar.

- no melhor dos mundos possíveis, assim seria.

- e esse homem seria possivelmente o senhor?

harvie acabou os cajus e limpou os dedos no guardanapo. - que conclusão devo


retirar desse comentário? - perguntou.

- se miss bowen fosse forçada a demitir-se do cargo que ocupa no ministério do


interior, quem ficaria a ganhar com isso?

- ah, imagina-me esperando nos bastidores, como o substituto que, desesperado,


acalenta a esperança de que a expressão «merda» signifique mais do que um mero
desejo de boa sorte para a atriz principal. estou correto? não se dê à maçada de
responder. não sou estúpido. a pergunta, no entanto, demonstra quão escasso é o
seu conhecimento da política.

- se não se importa de responder, contudo - disse lynley.

- não sou contra o feminismo per se, mas admito que partilho da opinião de que o
movimento está a escapar ao controle, em especial do parlamento. podemos ocupar
o nosso tempo com assuntos muito mais importantes do que com diálogos sobre se
os tampões e os collants deviam ser comercializados no palácio de westminster, ou
se deveria ser aberto um jardim de infância para acolher os filhos pequenos das
deputadas. estamos a falar da sede do nosso governo, inspetor. não do
departamento de serviços sociais.

obter uma resposta direta do deputado, - concluiu lynley, - era o mesmo que tentar
golpear uma serpente gordurosa com um palito.

- sr. harvie - disse, - não quero obrigá-lo a chegar atrasado à reunião da sua
comissão. responda à pergunta, por favor. quem fica a ganhar?

- gostaria que eu me incriminasse a mim próprio, não era? só que eu nada ganharia
com a demissão de eve bowen. ela é uma mulher, inspetor. se quer saber quem
sairá mais beneficiado se ela deixar de ser ministra terá de investigar as outras
mulheres que fazem parte dos comuns, e não os homens. o primeiro-ministro não
está disposto a substituir uma mulher por um homem, sejam quais forem as
qualificações que ele possua. nada semelhante irá acontecer no clima atual, não
enquanto os resultados das sondagens continuarem como estão.

- e se ela desistir igualmente do cargo de membro do parlamento? quem sai


beneficiado?

- ela detém mais poder com o cargo que ocupa no ministério do interior do que
alguma vez poderia aspirar enquanto mera deputada. se quer descobrir quem ganha
com a saída dela, então investigue de perto as pessoas cujas vidas são mais
afetadas pela presença dela no ministério. eu não sou uma delas.

- quem são elas, então?

serviu-se de mais nozes, tirando duas amêndoas de dentro da taça enquanto


considerava a questão. - cadastrados - disse. - imigrantes, magistrados de província,
detentores de passaportes - preparava-se para enfiar uma amêndoa na boca, mas
deteve-se abruptamente baixando a mão.

- mais alguém? - perguntou lynley.

com muito cuidado, harvie colocou as amêndoas junto do seu copo. falando mais
para si próprio do que para lynley, disse: - este gênero de coisa... aquilo que
sucedeu à filha de eve não corresponde à forma de atuação habitual neles. além
disso, com a atual atmosfera de cooperação... no entanto, se ela fosse afastada,
eles teriam menos um inimigo...

- quem? - ergueu os olhos.

- com a entrada em vigor do cessar-fogo e com as negociações em curso, não


consigo admitir que quisessem desafiar-nos. e, no entanto...

- cessar-fogo? negociações? está a falar...

- estou - disse harvie, gravemente -, do ira. - eve bowen, - explicou, - defendia desde
há muito uma das mais duras linhas de atuação no parlamento, no que dizia respeito
à forma de lidar com o exército republicano irlandês. os progressos de paz na irlanda
do norte em nada diminuíram as suas suspeitas em relação às verdadeiras
intenções dos provos. em público, é claro, mostrava-se sempre solidária com as
tentativas do primeiro-ministro para resolver a questão irlandesa. em privado
acreditava que, muito provavelmente, o inla sempre mais extremista do que o ira
provisional - sofreria uma remodelação interna e voltaria a emergir como uma força
ativa e violenta contrária ao processo de paz. ela é de opinião que o governo deveria
estar a preparar-se muito melhor para o momento em que as negociações sejam
interrompidas e o inla entre em ação - disse harvie. ela acreditava que o governo
deveria estar preparado para lidar com problemas potenciais na fonte dos mesmos,
e não correr o risco de viver mais uma década de atentados bombistas em hyde
park e oxford circus.

- e como é que ela acha que o governo deve preparar-se? - perguntou lynley.

- estudando formas, não só de alargar os poderes do ruc mas também de aumentar


a quantidade de tropas destacadas para o ulster, tudo isto no meio de grande
segredo, note-se, embora não deixe de asseverar uma fé inabalável nas
negociações.

- isso é o que se chama um negócio arriscado - disse lynley.

- É, não é? - harvie prosseguiu, explicando que eve bowen defendia igualmente um


aumento da presença de agentes à paisana, em kilburn. a sua missão seria
identificar e vigiar os apoiantes, em londres, de quaisquer elementos rebeldes no
seio do ira interessados em fazer contrabando de armas, explosivos e guerrilheiros
para inglaterra, como forma de se anteciparem por não estarem a obter o que
queriam com as conversações de paz.

- É como se ela não acreditasse na possibilidade de chegar a uma resolução - disse


lynley.

- essa é uma interpretação justa. ela mantém uma posição formal dúplice. primeiro,
como já disse, defende que o governo deve estar preparado para o momento em
que as conversações com o sinn fein falhem. segundo, sustenta que os seis
condados em questão votaram a favor da sua inclusão no império britânico e
merecem, sem sombra de dúvidas, a proteção do império britânico até ao fim, por
mais amargo que este seja. É um sentimento muito difundido entre aqueles que
gostam de acreditar que ainda existe de fato uma coisa chamada império britânico.

- o senhor discorda das opiniões dela?

- sou realista, inspetor. ao longo de duas décadas, o ira provou de forma bastante
convincente que não irá desaparecer só porque nós os enfiamos na prisão sem
direito a advogado de defesa, sempre que tivermos uma oportunidade de o fazer.
eles são irlandeses, afinal. continuam a reproduzir-se. pomos um deles na cadeia e
cá fora há outros dez que procriam debaixo de uma fotografia do papa. não, a única
forma sensata de pôr fim a este conflito é negociando um acordo.

- algo que eve bowen estaria relutante em fazer.

- a morte antes da desonra. apesar das suas declarações públicas, eve acredita
firmemente que se começarmos a negociar com terroristas agora, onde estaremos
dentro de dez anos? - consultou o relógio e bebeu o resto da água. levantou-se. -
não é típico deles, isto de raptar e matar um filho de uma figura política. e não
saberei dizer se qualquer uma destas situações, por mais terríveis que possam ser
para eve, poderá resultar na demissão dela. a não ser que haja algum elemento
relacionado com os dois acontecimentos que eu desconheça...?
lynley não respondeu.

harvie tornou a abotoar o casaco e compôs os punhos da camisa.

- seja como for - disse, - se está à procura de alguém que beneficie largamente com
o afastamento dela terá de ter em consideração o ira e os seus grupos dissidentes.
podem estar em qualquer lado, sabe. ninguém consegue fundir-se discretamente
num ambiente hostil tão bem como um irlandês que luta por uma causa.

alexander stone viu a sra. maguire pelo canto do olho. ele fitava o interior do guarda-
vestidos de charlotte, quando a governanta apareceu à porta. segurava um balde de
plástico numa das mãos, enquanto com a outra agarrava um conjunto de trapos
moles. havia duas horas que lavava janelas, os lábios movendo-se silenciosa e
incessantemente numa oração, os olhos marejados de lágrimas enquanto limpava a
sujidade e puxava lustro às vidraças.

- se não estou a incomodá-lo, sr. alex. - algumas covinhas formaram-se no queixo


dela quando passou os olhos pelo quarto, onde os pertences de charlotte estavam
exatamente como ela os deixara quase há uma semana atrás.

uma vez desaparecida a dor aguda que lhe apertava a garganta, alex respondeu: -
não, entre. não faz mal. - meteu a mão dentro do armário e roçou os dedos por um
vestido, em veludo vermelho com uma gola de renda de cor marfim e punhos a
condizer. o vestido de natal de charlotte.

a sra. maguire arrastava os pés pelo quarto. a água dentro do balde chapinhava de
um lado para o outro como o interior do estômago de um beberrão. tal como o
estômago dele, para falar verdade, embora desta vez não estivesse sob os efeitos
do álcool.

estendeu as mãos e tocou numa saia de criança, em tecido de lã axadrezado. ao


fazê-lo ouviu nas suas costas o som das cortinas sendo corridas, seguido por outro
que indicava que os animais empalhados de charlie eram transferidos do assento da
janela para a cama. fechou os olhos com força ao pensar na cama, onde na noite
anterior, neste mesmo quarto, tinha feito sexo com a mulher, montando nela
freneticamente rumo ao orgasmo como se nada capaz de alterar as suas vidas para
sempre tivesse ocorrido. onde teria ele a cabeça?

- sr. alex? - a sra. maguire mergulhara um dos panos na água do balde. espremera-o
e agora segurava-o nas mãos vermelhas, ainda torcido como se fosse uma corda. -
não quero causar-lhe mais sofrimento, mas sei que a polícia telefonou há uma hora
atrás. e como não tive coragem de me intrometer na dor de miss eve, pensei que o
senhor talvez fosse capaz de encontrar uma forma de me contar sem que isso
atormentasse ainda mais a sua pobre alma... - os olhos dela tornaram-se líquidos.

- o que é? - a sua voz soou brusca, ainda que essa não fosse a sua intenção. só que
a última coisa que queria era ser objeto da compaixão de quem quer que fosse.
- podia então dizer-me, como foi com charlie? só li os jornais e, como eu disse, não
tenho querido perguntar nada a miss eve. não tenho intenção de ser insensível, sr.
alex. É só que se souber como foram as coisas com ela, poderei rezar ainda mais
fervorosamente pelo seu eterno descanso.

como foram as coisas com charlie, pensou alex. obrigá-la a dar um salto rápido
enquanto seguia a seu lado, para que ela pudesse acompanhar o ritmo das
passadas dele quando caminhavam juntos; ensiná-la a cozinhar galinha com molho
de lima, o primeiro prato que ele próprio aprendera a cozinhar; procurar o hospital de
ouriços-cacheiros com ela e observá-la enquanto deambulava, encantada os punhos
apertados contra o pequeno tórax ossudo, por entre as gaiolas. tinha sido assim
com charlie, pensou. contudo, sabia qual a informação que a governanta pretendia.
e não era sobre a forma como charlie vivera.

- ela morreu afogada.

- naquele lugar que mostraram na televisão?

- não sabem onde. o departamento de investigação criminal de wiltshire diz que ela
foi drogada com tranquilizantes, primeiro, e depois afogada.

- valha-nos nosso senhor jesus cristo - tomada por uma espécie de torpor, a sra.
maguire virou-se para as janelas. passou um dos panos úmidos por uma das
vidraças, dizendo: - santa mãe de deus - e alex ouviu a sua respiração entrecortada.
pegou num pano seco e limpou a vidraça molhada. dedicou uma atenção
escrupulosa aos cantos, onde a sujidade se acumulava e mais facilmente passava
despercebida. ele, porém, ouviu-a fungar e percebeu que ela começara a chorar de
novo.

- sra. maguire - disse, - não tem necessidade de cá vir todos os dias.

ela virou-se. parecia muito abatida quando disse: - não está a querer dizer-me que
me quer daqui para fora?

- não, nada disso. quero apenas que tire uns dias...

- não - disse com firmeza. - não quero tirar dias. - voltou para junto das janelas,
molhando o pano para limpar a segunda vidraça. lavou-a tão bem como lavara a
primeira, antes de dizer num tom hesitante e numa voz ainda mais baixa: - ela não
foi... sr. alex, perdoe-me, mas charlie não foi molestada, pois não? ela não foi...
antes de ela morrer, ele não tentou abusar dela, tentou?

- não - disse-lhe alex. - não há provas disso.

- deus misericordioso - respondeu a sra. maguire.

alex queria perguntar-lhe onde estava a misericórdia de um deus, como o dela, que
permitia que a vida de uma criança fosse ceifada. para quê poupá-la amavelmente
ao terror e à tortura preliminar que era a violação, a sodomia ou outras formas de
violentação, quando iria acabar por ser descartada como as esperanças desiludidas
de alguém, flutuando morta no canal do kennet e do avon? em vez disso, porém,
regressou inexpressivamente para junto do guarda-vestidos e tentou cumprir a
missão de que eve o incumbira.

- vão libertar o corpo - dissera-lhe ela. - temos de entregar uma peça de roupa à
casa mortuária para ela vestir dentro do caixão. tratas disso por mim, alex? acho que
ainda não sou capaz de mexer nas coisas dela. fazes isso? por favor?

ela estivera a pintar os cabelos na casa de banho. estava de pé junto ao lavatório, e


pusera uma toalha em volta dos ombros. com o cabo de um pente repartia o cabelo
em fileiras perfeitamente direitas e espremia a tinta que saía de dentro de uma
bisnaga e caía no couro cabeludo. possuía até aquilo a que se chamava um
pequeno pincel que manejava com precisão para cobrir todos os fios de cabelo ao
nível das raízes.

ele observava-a através do espelho. não dormira na noite anterior depois de se


terem separado. ela insistira com ele para que tomasse os sedativos e fora deitar-se,
mas ele recusara-se a ingerir mais drogas e dissera-lhe isso. deambulara pela casa
do quarto deles para o quarto de charlie, deste para a sala de estar, da sala de estar
para a sala de jantar; aí deixara-se ficar sentado a olhar para o jardim onde, até ao
amanhecer, nada mais pudera ver a não ser silhuetas e sombras e acabara
observando-a enquanto ela pintava calmamente o cabelo, o cansaço pesando-lhe
nos membros e um desespero crescente apertando-lhe o coração.

- que queres que ela vista? - perguntara.

- obrigada, querido - aplicou a tinta num fio de cabelo, desde a testa até à coroa da
cabeça. cobriu as raízes com o pincel. - haverá uma inspeção, por isso temos de
escolher algo adequado.

- uma inspeção? não lhe ocorrera...

- quero uma inspeção, alex. se não o fizermos vai parecer que temos alguma coisa a
esconder do público. não temos. por isso precisamos de uma inspeção e ela deverá
estar vestida de forma adequada.

- de forma adequada - sentia-se como se fosse o eco dela, sem disposição para
pensar porque temia o rumo que os seus pensamentos poderiam tomar. acrescentou
com esforço - o que é que sugeres?

- o vestido de veludo. aquele do natal passado. ainda deve servir-lhe. eve - enfiou o
cabo do pente no cabelo e separou mais uma seção para ser pintada. - tens de
encontrar os sapatos pretos também. e dentro da gaveta há peúgas. um par com
renda em torno dos tornozelos seria o ideal. certifica-te que não escolhes um par
que tenha um buraco no calcanhar. a roupa interior é dispensável, creio. e seria bom
arranjar também uma fita para o cabelo, se conseguires descobrir uma que combine
com o vestido. pede à sra. maguire que escolha por ti.

ele observara as mãos dela, movendo-se com grande perícia. manejavam a bisnaga
com a tinta, o pente, o pincel sem o mais leve tremor ou estremecimento.
- o que é que se passa? - perguntara ela, finalmente, olhando a imagem dele
refletida no espelho e vendo que ele não se afastara para cumprir a tarefa que ela
lhe destinara. - porque olhas para mim dessa forma, alex?

- eles têm alguma pista? - já conhecia a resposta, mas precisava de lhe perguntar
qualquer coisa, porque o fato de colocar uma questão e de ouvir a resposta parecia-
lhe ser a única forma de chegar a compreender quem e o que ela de fato era. - não
há nada? só a gordura debaixo das unhas?

- não te escondi nada. sabes exatamente o mesmo que eu. - ela viu que ele a
observava e, por breves instantes, interrompeu a coloração do cabelo. - lembrou-se
de como ela nunca deixava de demonstrar a inveja que sentia pelo fato de ele,
apesar dos seus quarenta e nove anos de idade, não ter ainda um único cabelo
branco, enquanto nela a metamorfose começara quando ela tinha trinta e um.
lembrou-se das inúmeras vezes em que reagira à inveja dela, dizendo: «porque é
que o pintas? quem é que se importa com a tua cor de cabelo? eu, por mim, não me
importo», ao que ela replicava: «obrigada querido, mas não gosto do tom grisalho,
por isso enquanto puder fazer qualquer coisa que pareça remotamente natural para
me livrar dele, não tenciono desistir.» em todas essas ocasiões pensara, com um
estremecimento mental, que era a vaidade inerente a todas as mulheres que impelia
eve a procurar a bisnaga de cor para o cabelo, algo que se assemelhava ao ato de
deixar crescer a franja um pouco mais do que o normal a fim de esconder a cicatriz
que lhe cortava a sobrancelha. agora, porém, percebia que as palavras-chave que
poderia ter utilizado para compreendê-la tinham sido sempre as mesmas: algo que
parece remotamente natural. e, não conseguindo ouvir o seu verdadeiro sentido,
fora igualmente incapaz de a compreender. até este momento, parecia-lhe. e nem
agora estava certo de que a conhecia.

- alex, porque me olhas fixamente? - perguntara-lhe ela.

ele voltara a si, dizendo: - estava a olhar? peço desculpa. estava só a pensar.

- em quê?

- pintar o cabelo.

ele viu-a pestanejar. competente como era avaliava rapidamente o rumo que
qualquer resposta da sua parte daria à conversa entre ambos. vira-a fazê-lo vezes
sem conta, antes, quando falava com constituintes, jornalistas, adversários.

pousou a bisnaga, o pincel e o pente sobre o lavatório. então voltou-se de frente


para ele.

- alex - disse, o rosto composto, a voz doce, - sabes tão bem como eu que temos de
encontrar uma forma de continuar.

- foi isso que fizemos a noite passada?

- lamento que não tenhas conseguido dormir. eu própria só consegui descansar a


noite passada, porque tomei um sedativo. podias ter feito o mesmo. pedi-te que
tomasses um. não me parece que seja justo da tua parte decidir que só porque eu
consegui dormir e tu não...

- não estou a referir-me ao fato de teres conseguido dormir, eve.

- então a que é que te referes?

- ao que aconteceu antes disso. no quarto de charlie.

um movimento de cabeça deu a impressão de que ela se retraía perante as palavras


dele, mas limitou-se a dizer:- fizemos amor no quarto de charlie.

- na cama dela. sim. isso era uma das formas de continuar a nossa vida? ou seria
outra coisa?

- onde é que queres chegar, alex?

- estava apenas a tentar adivinhar porque é que quiseste que fizesse sexo contigo
ontem à noite.

ela deixou que as palavras permanecessem em suspenso enquanto os seus lábios


formavam a palavra sexo, como se ela, à semelhança do que acontecera com ele
antes, fosse agora o eco. um músculo latejava sob o seu olho direito.

- não queria que fizesses sexo comigo - disse calmamente. - queria que fizesses
amor comigo. pareceu-me... - virou-se de costas para ele. pegou no pente e na
bisnaga de tinta para o cabelo, mas não os aproximou da cabeça. na verdade, nem
levantou a cabeça, pelo que tudo o que ele podia ver era o reflexo no espelho dos
perfeitos carreiros de tinta que se alinhavam ao longo do couro cabeludo. - precisava
de ti. foi uma forma, ainda que durante uns escassos trinta minutos, uma forma de
esquecer. não me ocorreu que estávamos no quarto de charlotte. tu estavas ali, e
abraçavas-me. só isso importava naquele momento. tive de fugir da imprensa, reunir
com a polícia, estava a tentar, a tentar, meu deus, esquecer-me do aspecto de
charlie quando identificamos o corpo. foi por isso que quando te deitaste ao meu
lado e me envolveste nos teus braços e me disseste que não havia nada de mal em
evitar o que me esforçava por evitar sentir, alex, pensei... - nesse momento ergueu a
cabeça. ele viu que a boca dela descaía espasmodicamente para os lados. -
desculpa-me se fiz mal em querer sexo naquele momento, no quarto dela. mas eu
precisava de ti.

olharam um para o outro através do espelho. ele compreendeu o quanto e quão


desesperadamente queria acreditar na veracidade das suas palavras.

- para quê? - perguntou.

- para que me deixasses ser aquilo que precisava ser. para que me abraçasses.
para que me ajudasses a esquecer tudo durante alguns momentos. que é o que
estou a fazer neste momento, - com isto indicou a tinta para o cabelo, o pente, o
pincel. - porque é a única forma... - engoliu em seco. os músculos do pescoço
estavam tensos. a voz falhou-lhe - alex, é a única forma que encontro para...

- oh, meu deus, eve - virou-a para si e abraçou-a com força, sem prestar atenção à
tinta que se transferia do cabelo dela para as mãos e para as roupas dele. -
desculpa-me. estou exausto e incapaz de raciocinar... não consigo conter-me. para
onde quer que olhe vejo-a.

- precisas de descansar - disse ela, encostada ao peito dele. - promete-me que vais
tomar um daqueles comprimidos esta noite. não podes ir-te abaixo agora, preciso
que sejas forte porque não sei por quanto tempo mais eu própria conseguirei ser
forte. promete-me, diz-me que tomarás um comprimido.

era uma promessa simples. e ele precisava de dormir. por isso concordou e dirigiu-
se ao quarto de charlie. no entanto, tinha as mãos manchadas com a tinta do cabelo
de eve e quando as ergueu para segurar os cabides do guarda-vestidos e reparou
nas listras castanhas que escondiam a cor da sua pele percebeu que um sedativo,
ou cinco que fossem, pouco fariam para apaziguar a inquietação que o impedia de
dormir.

a sra. maguire falava para ele do sítio onde estava, junto das janelas do quarto de
charlie. ouviu as últimas palavras.

- ...muito senhora do seu nariz no que dizia respeito às roupas dela, não era?

despertou da apatia em que mergulhara, pestanejando sob o efeito da dor por detrás
dos olhos.

- estava a pensar. desculpe.

- tem a cabeça tão cheia como o coração, sr. alex - murmurou a governanta. - não
tem nada que se desculpar comigo. eu só estava a papaguear, no fundo. deus me
perdoe, mas a verdade é que às vezes é melhor falar com outro ser humano do que
com nosso senhor.

abandonou o balde, os panos e as janelas e aproximou-se dele. tirou uma pequena


blusa branca do armário de charlie. tinha mangas compridas, pequenos botões
brancos à frente, e a gola redonda estava desgastada pelo uso na zona do pescoço.

- charlie odiava estas blusas da escola - disse. - as irmãzinhas têm boas intenções,
mas só deus sabe o que lhes passa pela cabeça de vez em quando. disseram às
miuditas que tinham de abotoar estas blusas até cima por razões de pureza. se não
fizessem isso, punham-lhes uma marca preta no livro de comportamento. a nossa
charlie não queria marcas pretas, mas não conseguia suportar as blusas tão
apertadas em volta do pescoço. por isso desgastava a parte de cima de todas elas.
está a ver como ela alargou este botão de cima? e como se está a desfiar? fazia isto
com todas, torcendo os dedos que enfiava entre a blusa e o pescoço. ela detestava
estas blusas, a nossa charlie, como se tivessem sido enviadas pelo diabo em
pessoa.

alex tirou a blusa das mãos dela. não sabia dizer se era a sua imaginação exausta a
funcionar ou se o perfume estava ainda entranhado no tecido. mas era o cheiro de
charlie, e parecia estar saturado com os seus odores de garota, um misto de
alcaçuz, borrachas escolares e aparas de lápis.

- as roupas não lhe serviam muito bem - dizia a sra. maguire. - quase todos os dias,
quando chegava a casa, atirava o uniforme para o chão, blusa e tudo. Às vezes
pisava-os com os sapatos. e aqueles sapatos, santo deus a tenha, também não
gostava deles.

- de que é que ela gostava? - ele deveria saber. ele tinha de saber. contudo, não
conseguia lembrar-se.

- de que roupas, quer o senhor dizer? - perguntou a sra. maguire. com uma
segurança rápida procurou entre os vestidos e as saias, os casacos e camisolas de
aspecto aprumado e disse: - disto.

alex baixou os olhos e viu o fato-macaco desbotado. a sra. maguire continuou a


procurar ruidosamente entre as roupas e tirou uma t-shirt às riscas. - e disto - disse.
= charlie usava-os em conjunto, com as sapatilhas. ela adorava as sapatilhas
também. usava-as sem os atacadores e com as línguas puxadas para fora. quantas
vezes lhe disse “miss charlotte, as senhoras não se vestem como uns desmazelados
quaisquer.” mas, pergunto eu, quando é que alguma vez charlie se importou com o
modo como as senhoras se vestem?

- o fato-macaco - disse ele. claro vira-a com ele pelo menos uma centena de vezes,
ou mais. ouvira eve dizer: «nem penses em sair de casa vestida dessa maneira,
charlotte bowen», sempre que charlie saltitava escadas abaixo dirigindo-se ao carro,
vestida com o fato-macaco. «vou sim, vou sim!», desafiava charlie. eve, no entanto,
impunha sempre a sua vontade e o resultado era uma charlie resmungando e
contorcendo-se dentro de um vestido de renda, perfeito para uma fotografia: o
vestido de natal, santo deus e sapatos pretos em pele. «esta coisa pica», queixava-
se charlie e com um franzir de sobrancelhas puxava com força a gola do vestido. da
mesma forma que puxava as golas das blusas brancas da escola, que devia usar
abotoadas até cima por razões de pureza e para que o seu livro não contivesse
quaisquer marcas pretas.

- deixe-me ver isto - alex tirou o fato de treino do cabide. dobrou-o juntamente com a
t-shirt. viu as sapatilhas sem atacadores no canto do armário e tirou-as para fora.
«por uma vez», pensou, «perante deus e perante toda a gente, charlie bowen ia
vestir as roupas de que gostava.»

em salisbury, barbara havers não teve grande dificuldade em descobrir o gabinete da


constituinte do deputado alistair harvie. todavia, no momento em que mostrou a sua
identificação e solicitou algumas informações de rotina sobre os antecedentes do
deputado deparou-se com a oposição obstinada da presidente da associação. a sra.
agatha howe usava um penteado desatualizado há pelo menos cinquenta anos e
vestia um fato com chumaços e de corte direito que parecia ter saído diretamente de
um filme de joan crawford. mal ouviu as palavras new scotland yard associadas ao
nome do seu dileto membro do parlamento, limitou-se a comunicar-lhe que o sr.
harvie estivera em salisbury desde quinta-feira à noite até domingo à tarde «como
sempre, pois é o nosso deputado, não é verdade?». no entanto, os seus lábios
selaram-se no tocante à informação adicional que barbara procurava. deixou bem
claro que nem pés-de-cabra, nem bombas, nem quaisquer tipo de ameaças veladas
acerca das consequências da recusa de prestar assistência à polícia a fariam dizer
fosse o que fosse, pelo menos não antes que pudesse «dar uma palavrinha ao
nosso sr. harvie». era o gênero de mulher que barbara desejava ardentemente
esmagar sob o seu calcanhar, o gênero que partia do princípio que a sua educação
fina lhe concedia um direito de supremacia sobre o resto da humanidade.

enquanto a sra. howe consultava a agenda para ver onde poderia localizar o
deputado a essa hora do dia, em londres, barbara disse: - muito bem. faça como
quiser. mas talvez lhe interesse saber que esta é uma investigação que envolve
personalidades muito bem colocadas, com jornalistas metendo o nariz na vida de
toda a gente. sendo assim, ou conversa comigo agora e depois irei à minha vida, ou
pode demorar algumas horas até localizar harvie e correr o risco de a imprensa vir a
descobrir que ele passou a fazer parte da investigação. isso daria um belo título para
os jornais de amanhã: harvie sob suspeita. qual é exatamente a maioria dele, agora
por isso?

os olhos da sra. howe estreitaram-se até ficarem da largura de uma unha.

- está realmente a ameaçar-me? - perguntou. - ora, sua...

- eu acho que sargento é o que pretende dizer - interrompeu barbara. - ora,


sargento, não é verdade? exato. bom, eu compreendo certamente o modo como se
sente. não é agradável lidar com pessoas como eu que ainda por cima ofendem a
sua sensibilidade. mas nós temos um problema de tempo, e gostaria de avançar
com as coisas, se puder.

- terá de esperar até que eu fale com o sr. harvie - insistiu a sra. howe.

- não posso fazer isso. o meu chefe, na yard, exige relatórios diários e eu ainda
tenho de apresentar o meu aqui, - barbara estudou o relógio de parede para
impressionar - precisamente agora. detestaria ser obrigada a dizer-lhe que a
presidente da constituinte do sr. harvie se recusou a colaborar, porque isso só irá
desviar as atenções para o próprio sr. harvie. e todos irão ficar a cogitar sobre o que
ele terá a esconder. e, uma vez que o meu chefe distribui um relatório à imprensa
todas as noites, é quase certo que o nome do sr. harvie será mencionado. a menos
que não haja razões para isso.

a sra. howe viu as luzes da razão, mas não era por acaso que era a presidente da
associação dos conservadores locais. era uma negociante e deixava as suas
reivindicações bem claras: toma lá dá, dá cá, pergunta em troca de pergunta. queria
saber o que se estava a passar. expressou esse desejo de forma indireta, afirmando:
- os interesses da constituinte são primordiais para mim. e devem ser servidos. se,
por algum motivo, o sr. harvie tiver sido afetado por algo que o impeça de servir os
nossos interesses...

«blá, blá, blá», pensou barbara. foi direita ao assunto. fez o acordo. tudo o que a sra.
howe ficou a saber através dela foi que a investigação em curso era a mesma que
constituía o tema central dos blocos noticiosos do turno da noite e que enchia os
cabeçalhos de todos os matutinos e vespertinos o rapto e a morte por afogamento
da filha de dez anos da subsecretária do ministério do interior. barbara não revelou à
sra. howe nada que ela mesma não pudesse ter ficado a saber se fizesse mais do
que ocupar o tempo a seguir os movimentos do sr. harvie em londres e a arreliar a
secretária do gabinete da constituinte, uma senhora já idosa. no entanto, comunicou-
lhe tudo num tom confidencial, com um ar de seulement entre nous, darling,
aparentemente convincente o suficiente para que a presidente da constituinte se
decidisse a retribuir, partilhando com ela algumas pérolas de informação.

a sra. howe não simpatizava muito com o sr. harvie, conforme barbara cedo
descobriu. - É demasiado insinuante com as senhoras. contudo sabia lidar com o
eleitorado e conseguira sair vitorioso de dois desafios lançados pelos democratas
liberais, pelo que merecia que lhe dedicassem alguma lealdade.
nascera em warminster. frequentara a escola em winchester e, mais tarde,
ingressara na universidade em exeter. estudara economia, gerira com sucesso
vários investimentos no barclay’s bank de salisbury, trabalhara duramente para o
partido e, aos vinte e nove anos de idade, acabara por se apresentar como potencial
candidato ao parlamento. há treze anos que conservava o seu assento no
parlamento.

estava casado com a mesma mulher havia dezoito anos. tinham os dois filhos
politicamente requeridos, um rapaz e uma rapariga, que quando não estavam no
colégio onde obviamente se encontravam agora viviam com a mãe mesmo à saída
de salisbury, numa aldeola chamada ford. a quinta da família...

- quinta? - interrompeu barbara. - harvie é proprietário rural? julguei ouvi-la dizer que
ele tinha sido banqueiro.

- a quinta fora herdada pela mulher, um legado dos pais dela. os harvie viviam na
casa da propriedade, mas os terrenos eram cultivados por um rendeiro. porquê? -
queria saber a sra. howe. o nariz dela estremeceu. - a quinta era importante?

barbara não dispunha de uma resposta conclusiva para essa pergunta, nem mesmo
quando viu a quinta cerca de quarenta e cinco minutos mais tarde. estava situada
precisamente na extremidade de ford e quando barbara parou o carro no pátio da
quinta, em forma de trapézio, as únicas criaturas que vieram saudar a chegada do
seu mini foram seis gansos brancos extremamente bem alimentados. os seus
grasnidos clamorosos produziram uma algazarra que teria alertado quem se
encontrasse nas imediações. quando viu que ninguém saía do celeiro com paredes
cobertas de aço armado com a providencial forquilha, nem da imponente casa de
tijolo e telhado coberto de telhas, equipado com um agressivo rolo da massa,
barbara concluiu que tinha o pátio da quinta, se não também os campos e pastagens
que o rodeavam, só para si.

dentro do carro, com os gansos grasnando ameaçadoramente e de modo


ensurdecedor, barbara curvou-se um pouco para avaliar a cena.

o pátio da quinta englobava a casa, o celeiro, um antigo alpendre em pedra e um


pombal ainda mais antigo construído em tijolo. este último atraiu a sua atenção.
tinha uma forma cilíndrica, coberto por um telhado de ardósia e uma clarabóia em
abóbada sem vidros que permitia às aves ter acesso ao interior da construção. um
dos lados estava coberto por hera. algumas aberturas no telhado assinalavam os
pontos onde as telhas tinham sido removidas ou se tinham partido. a porta, com um
vão muito pronunciado, estava cheia de lascas e desgastada pelo tempo, enrijecida
pelos líquenes e tinha aspecto de não ter sido aberta nos últimos vinte anos.

no entanto, algo nela ativou a sua memória. catalogou os pormenores tentando


decidir o que era: o telhado de ardósia, a clarabóia em forma de abóbada, a espessa
cobertura de hera, a porta gasta... algo que o sargento stanley dissera, que o
patologista referira, ou robin, ou lynley...

não havia nada a fazer. não conseguia lembrar-se do que era. contudo, o pombal
perturbou barbara o suficiente para forçá-la a abrir a porta do mini e a enfrentar os
bicos dos gansos zangados.

os grasnidos subiram de tom e tornaram-se um ruído agudo e frenético. eram piores


do que cães de guarda. barbara abriu o porta-luvas e remexeu no seu interior,
procurando algo comestível que pudesse entretê-los enquanto ela dava uma vista de
olhos pelo local. encontrou um saco meio cheio de aperitivos de sal e vinagre que
ela própria lamentava agora não ter descoberto na noite anterior quando ficara presa
no trânsito sem um só restaurante à vista. provou-os. sabiam ligeiramente a mofo,
mas que diabo. colocou o braço do lado de fora da janela aberta e espalhou os
aperitivos pelo chão, em jeito de oferenda para com as divindades de aviário. os
gansos comprimiram-se de imediato, uns contra os outros. o problema estava
resolvido, pelo menos temporariamente.

barbara cumpriu as formalidades tocando à campainha da casa. continuou,


espreitando para dentro do celeiro e chamando alegremente «há alguém?».
percorreu todo o pátio, caminhando finalmente em passo lento até ao pombal, como
se a inspeção do mesmo fosse o culminar natural das suas deambulações.

a maçaneta da porta estava solta e chocalhava de encontro à superfície de madeira


da porta. estava cheia de ferrugem. não rodava, mas quando barbara empurrou a
madeira com o ombro, a porta entreabriu-se com um rangido antes que os
movimentos dela fossem contrariados pelo estado da própria porta: inchada pela
chuva e um remendo irregular no velho chão de pedra. um súbito batimento de asas
indicou a barbara que o pombal estava ativo, pelo menos parcialmente. conseguiu
entrar à força, comprimindo o corpo, no momento em que a última ave escapava
pela clarabóia abobadada.

a luz, densamente povoada por partículas de poeira que se elevavam no ar,


penetrava através da clarabóia e das aberturas no telhado. iluminava as caixas que
serviam de ninhos para as aves e se elevavam em prateleiras sucessivas, um chão
de pedra grumoso devido ao guano de odor acre que o cobria, e ao centro uma
escada de mão com três degraus partidos, outrora utilizada para recolher os ovos
nos dias em que os pombos e as pombas eram criados como aves de capoeira.

barbara tentou desviar-se o melhor que pôde dos excrementos de ave ainda frescos
e brilhantes. aproximou-se da escada. reparou que embora esta estivesse presa no
topo a um mastro colocado em posição vertical por intermédio de um degrau
prolongado não estava destinada a permanecer fixa ao mesmo local. antes, fora
concebida para ser deslocada em volta do pombal, proporcionando à pessoa
encarregada de recolher os ovos um acesso fácil a todos os ninhos que se
alinhavam ao longo do edifício em forma de circunferência, desde uma altura de seis
metros a partir do solo ao nível do telhado, cerca de trinta metros acima.

barbara descobriu que a escada ainda estava móvel apesar da idade e do estado de
conservação. quando a empurrou, rangeu, vacilou e depois moveu-se.
acompanhava a curvatura das paredes de tijolo do pombal, movimento esse que era
executado através do mastro vertical. encaixado num dispositivo formado por uma
engrenagem ligada a uma roda dentada colocada na clarabóia, o mastro girava e
fazia rodar a escada.

barbara olhou da escada para o mastro. depois do mastro para os ninhos. nos sítios
onde alguns dos ninhos tinham sido destruídos pelo tempo sem terem sido
substituídos, podia ver as paredes de tijolo inacabadas do pombal atrás deles.
tinham um aspecto áspero, aquelas paredes, e nos locais onde não estavam
salpicadas por excrementos de pombo pareciam, naquela luz reduzida, adquirir um
tom mais avermelhado do que quando as vira do lado de fora, banhadas pelo sol.
estranho, aquele vermelho. era quase como se não fossem tijolos. quase como se...

lembrou-se de súbito. «eram tijolos», pensou barbara. tijolos e um mastro. conseguia


ouvir a voz gravada de charlotte, quando lynley lhe dera a ouvir a gravação por
telefone. há tijolos e um mastro, dissera a garota.

barbara sentiu os pêlos da nuca eriçarem-se quando olhou dos tijolos para o mastro,
no centro da divisão. «macacos me mordam», pensou, «santo deus, é isto.»
esboçou um movimento na direção da porta, quando se apercebeu que, lá fora, os
gansos estavam no mais completo silêncio. apurou o ouvido para captar o mais
pequeno ruído, nem que fosse um grasnido meio-saciado. mas nada se ouvia. não
era possível que ainda estivessem a comer os aperitivos, pois não? não havia assim
tantos como isso.

a idéia fê-la pensar que alguém teria espalhado uma mão-cheia adicional de comida
no momento em que barbara entrara no pombal. isto, por sua vez, sugeriu-lhe que
talvez já não estivesse sozinha na quinta. o que, por seu turno indicava que caso
não estivesse sozinha e que se quem quer que estivesse lá fora estivesse tão
decidido a manter silêncio quanto ela, então quem quer que estivesse lá fora movia-
se vagarosa e silenciosamente, naquele preciso momento, do celeiro para a casa e
para o alpendre. teria uma forquilha em riste, ou talvez um trinchante, o olhar um
pouco tresloucado, anthony perkins aproximando-se para retalhar janet leigh. só que
janet leigh estava no duche, não num pombal. e pensava que estava em segurança,
enquanto barbara sabia muito bem que o mesmo não se passava consigo.
sobretudo num lugar como este, onde a localização, a estrutura, os tijolos e o mastro
apelavam à sua capacidade dedutiva, parecendo ao mesmo tempo fechar-se sobre
ela, de forma que a qualquer momento com os intestinos soltos e as palmas das
mãos suadas...
raios partam isto, pensou barbara. controla-te, ouviste? domina-te, que diabo.

era preciso que a equipe de peritos passasse o edifício a pente fino, na esperança
de encontrar qualquer elemento que remetesse para a presença de charlotte
naquele lugar. a gordura do eixo, um fio de cabelo dela, uma fibra das suas roupas,
impressões digitais, uma gota do seu sangue caída do golpe no joelho. era isso que
tinha de ser feito, e as providências necessárias exigiriam uma certa sutileza
inegável, tanto junto do sargento stanley, que muito provavelmente não acolheria a
diretiva dela com a alegria dos recém-convertidos, como junto da sra. alistair harvie,
que era quase certo, pegaria no telefone e ligaria para o marido, a fim de o alertar
para o fato.

primeiro lidaria com stanley. não havia razão para perseguir a sra. harvie e confundi-
la antes que isso fosse realmente necessário.

no exterior descobriu que o silêncio dos gansos se ficava a dever à posição do carro.
estacionara-o de tal forma que o sol, ao refletir-se no guarda-lamas ferrugento
projetava uma mancha de calor sobre o solo, e era nesse calor que as aves se
aqueciam satisfeitas, rodeados pelo que restava dos aperitivos de sal e de vinagre
oferecidos por barbara.

caminhou em bicos de pés até ao mini, olhando alternadamente para as aves, o


celeiro, os campos que ficavam para além dele e finalmente para a casa. no entanto,
não se via vivalma. uma vaca mugia na distância e um avião sobrevoava a zona,
mas à parte isso, nada nem ninguém se mexia.

deslizou para o interior do carro tão silenciosamente quanto possível.

- desculpem lá, camaradas - disse para os gansos e ligou o motor. as aves reagiram
com um salto, grasnando, sibilando e batendo as asas como se fosse uma visita das
fúrias. perseguiram o carro de barbara desde o pátio da quinta até ela entrar na
alameda. aí carregou no acelerador, atravessou disparada a aldeola de ford e seguiu
na direção de amesford, direita ao sargento stanley que a esperava de braços
abertos.

o sargento ocupava o seu trono na sala de operações, recebendo homenagens em


forma de relatórios apresentados por duas das equipes de agentes policiais que
tinham estado em ação, esquadrinhando o campo ao longo das últimas trinta e duas
horas nas respectivas seções segundo a grelha feita pelo sargento stanley. os
homens da seção número 13, a faixa devizes-até-melksham, não tinham nada a
relatar à exceção de um encontro com o proprietário de uma caravana que, ao que
tudo indicava, dirigia um negócio próspero onde havia de tudo, desde marijuana a
granadeiros.

- faz negócio no parque de estacionamento de melksham - disse um dos agentes


com uma expressão incrédula. - mesmo por detrás da rua principal, acreditam? está
na choça, agora.

a equipe da seção número 5, da faixa chippenham-até calne, pouco mais tinham


descoberto. no entanto, procediam a uma explicação minuciosa de todos os seus
movimentos perante o sargento stanley. barbara preparava-se para os arrancar às
cadeiras onde estavam sentados e mandá-los de novo para a rua, a fim de fazer
com que as coisas andassem para a frente e para que ela providenciasse o envio de
uma equipe de peritos para a quinta dos harvie quando um dos agentes da seção 14
irrompeu pelas portas giratórias da sala de operações, anunciando:

- apanhamo-lo.

as suas palavras mobilizaram toda a gente, incluindo barbara. como verdadeiro teste
à sua paciência tentara retribuir um telefonema de robin payne que parecia ter sido
feito a partir da cabina telefônica de uma casa de chá, em marlborough, a avaliar
pela empregada algo idiota que atendera o telefonema de barbara ao
quinquagésimo quinto sinal de chamada e pedira a uma agente que investigasse o
passado escolar de alistair harvie em winchester. agora, porém, parecia que a grelha
idealizada pelo sargento stanley começava a dar os seus frutos.

com um gesto, stanley ordenou aos presentes que fizessem silêncio. estivera
sentado a uma mesa redonda, compondo com um conjunto de palitos as paredes
entrecruzadas de uma cabana, enquanto escutava os relatórios. nesse momento,
porém, estava de pé.

- dispara, frank - disse.

- certo - respondeu frank. não perdeu tempo com preliminares, limitando-se a


anunciar com alguma excitação: - apanhamo-lo, sargento. está na sala de
interrogatórios número três.

barbara teve uma visão horrorizada de alistair harvie em grilhetas, sem direito a
fiança ou a advogado. - apanharam quem? perguntou ela.

- o gajo que raptou a miúda - replicou frank com um olhar de superioridade na


direção dela. - É um mecânico de coate, trabalha com tratores numa garagem perto
de spaniel’s bridge. precisamente a uma milha de distância do canal.

a sala entrou em erupção. barbara fazia parte do grupo que tomou de assalto o
mapa militar. frank apontou para o local com o dedo indicador, sob cuja unha podia
ver-se um arco de mostarda entranhado.

- aqui mesmo - o agente policial assinalou uma curva apertada na alameda que saía
da aldeola de coate para norte, na direção da aldeia de bishop’s canning. seguindo
pelo canal, três milhas e meia separavam spaniel’s bridge do local onde o corpo de
charlotte fora abandonado, que ficava a uma milha e meia caso o acesso fosse feito
através de alamedas, carreiros e trilhos pedestres em vez de acompanhar a auto-
estrada sinuosa. - o patife alega que não sabe nada, mas temos as coisas deles e
está pronto para ser interrogado.

- muito bem - o sargento stanley esfregou as mãos como se estivesse pronto para
fazer as honras da casa. - sala número quê, disseste tu?

- três - acrescentou frank com desdém. - o gajo treme que nem varas verdes,
sargento. dê-lhe um cheirinho de músculo e ele abre-se todo. juro.

o sargento stanley endireitou os ombros, preparando-se para executar a tarefa.

- que coisas? perguntou barbara.

a sua pergunta foi ignorada. stanley encaminhou-se para a porta. barbara sentiu as
entranhas fervilharem. não era assim que o jogo iria ser jogado.

- espere aí, reg - disse rispidamente, dirigindo-se a stanley, e quando o sargento


executou uma pirueta deliberadamente lenta na direção dela, acrescentou: - frank,
você disse que tem as coisas deste tipo... como é que ele se chama afinal?

- short, howard.

- muito bem. então quais são as coisas que tem sobre howard short?

frank olhou para o sargento stanley, procurando instruções. stanley ergueu o queixo
de forma quase imperceptível, em resposta. o fato de frank precisar da permissão de
stanley enfureceu barbara, que no entanto optou por ignorar o gesto e esperar pela
resposta dele.

- o uniforme da escola disse o polícia. este gajo, o short, tinha-o na garagem.


planejava usá-lo para fazer trapos, segundo diz. mas o apelido da garota, bowen,
está cozido numa etiqueta, e em letras grandes.

o sargento stanley despachou a equipe de peritos para a garagem de howard short,


à saída de coate. dirigiu-se depois à sala de interrogatórios número três, com
barbara no seu encalço. ela alcançou-o e disse: - quero destacar outra equipe para
ford. há um pombal com...

- um pombal? - stanley deteve-se. - um maldito pombal, foi o que disse?

- temos uma cassete com a voz da garota - disse-lhe ela, - feita um ou dois dias
antes de ter morrido. nela, ela fala do sítio onde está presa. o pombal corresponde à
descrição dela. quero uma equipe de recolha de provas lá. agora.

stanley inclinou-se para ela. pela primeira vez apercebeu-se que ele era de fato um
homem feio. próximos um do outro como estavam podia ver os pêlos encravados do
pescoço e as marcas deixadas pela varíola em torno da boca dele.

- esclareça isto com o seu chefe - disse ele, - não estou para enviar equipes de
peritagem por esses campos fora só porque você sente uma comichãozinha e quer
que a cocem.

- o senhor fará o que eu lhe disser - disse barbara. - caso contrário...

- o quê? desata a vomitar para cima dos meus sapatos? - ela agarrou-o pela
gravata.
- não tenho nada contra os seus sapatos - disse-lhe. - mas não posso prometer nada
quanto ao estado dos seus tomates. agora, estamos esclarecidos em relação a
quem vai fazer o quê?

ele respirou para cima dela, exalando um hálito bafiento a tabaco.

- acalme-se - disse suavemente.

- vá levar no cu e que lhe faça muito bom proveito - replicou ela. largou a gravata
dele com um gesto brusco. - escute um pequeno conselho, reg. esta é uma batalha
que você não tem hipóteses de ganhar. use a cabecinha para perceber isso antes
que eu o ponha fora do caso.

ele acendeu um cigarro com o isqueiro em forma de traseiro de mulher.

- tenho um interrogatório para fazer. - falou com a segurança de um homem que


ocupava uma posição dominante há demasiado tempo. - quer assistir? - caminhou
ao longo do corredor, dizendo: - traz-nos café, sala três - para uma recepcionista que
passava, apressada, com um dossier na mão.

barbara controlou a raiva que a invadira. a sua vontade era ir à cara bexigosa de
stanley, mas não ganhava nada em lidar com ele taco a taco.

era óbvio que ele estava decidido a não pestanejar desde que o adversário fosse
uma mulher. teria de recorrer a outros meios para neutralizar aquele sacanazinho.

ele começou a falar antes mesmo que stanley ou barbara tivessem oportunidade de
fazer qualquer comentário.

- isto é por causa daquela miudita, não é? - disse. eu sei que é. percebi tudo, mal
aquele gajo remexeu no meu saco dos trapos e encontrou-o.

- o quê? - perguntou stanley. sentou-se numa cadeira, de pernas escarranchadas, e


ofereceu um cigarro a short.

howard abanou a cabeça. agarrou-se ao estômago com força redobrada.

- Úlcera.

- o quê?

- o meu estômago.

- enterra-o. o que é que eles encontraram no saco, howard?

o rapaz olhou para barbara como se procurasse assegurar-se de que podia contar
com o apoio de alguém.

- o que é que estava dentro do saco, sr. short? - perguntou ela.


- isso - disse. - aquilo que eles encontraram. o uniforme - balouçou-se, sentado na
cadeira, e queixou-se: - não sei nada sobre a miudita. só comprei...

- porque é que a raptaste? - perguntou stanley.

- não raptei.

- onde é que a escondeste? na garagem?

- não escondi ninguém... nenhuma miúda... vi a notícia na televisão, como toda a


gente. mas juro que nunca a vi. nem uma vez só a vi.

- mas gostaste de a despir. sentiste-o saltar quando a puseste nua?

- nunca! nunca fiz isso!

- não me digas que és virgem, howard? ou larilas? qual das duas? não gostas de
raparigas?

- eu gosto de raparigas, sim senhor. só estou a dizer...

- das novinhas? gostas delas novinhas também?

- não raptei aquela miúda.

- mas sabes que ela foi raptada? como é que sabes isso?

- pelas notícias. os jornais. toda a gente sabe. mas eu não tive nada a ver com isso.
só arranjei o uniforme dela...

- então sabias que era dela - interrompeu-o stanley. - desde o princípio. É ou não é?

- não!

- desembucha, vá lá. será mais fácil se disseres a verdade.

- estou a tentar. estou a dizer-lhe que o trapo...

- o uniforme, queres tu dizer. o uniforme escolar de uma rapariguinha. o uniforme de


uma rapariguinha que está morta, howard. vives apenas a uma milha de distância do
canal, não é, howard?

- não fiz nada, nunca - disse howard. inclinou-se para a frente, rodeando o corpo
com os braços e apertando ainda mais o estômago. - dói que se farta - gemeu.

- não brinques conosco - disse stanley.

- por favor, pode dar-me um pouco de água para tomar os comprimidos? - howard
aliviou ligeiramente a pressão de um dos braços sobre o estômago, procurou dentro
do fato-macaco e tirou uma caixa de comprimidos em plástico que tinha o formato de
uma chave de fendas.

- primeiro falas, os comprimidos tomas depois - disse stanley.

barbara abriu a porta da sala de interrogatórios com um movimento seco e brusco e


pediu que lhe trouxessem um pouco de água. a recepcionista a quem stanley pedira
o café estava parada em frente à porta, segurando duas chávenas de plástico.
barbara sorriu para ela. - obrigadíssima - disse com muita sinceridade e entregou ao
mecânico a que lhe era destinada.

- aqui tem - disse. - use isto para tomar os comprimidos, sr. short - e puxou uma
cadeira que colocou junto do jovem assustado. - pode dizer-nos onde arranjou o
uniforme? - perguntou num tom de voz firme.

howard enfiou dois comprimidos na boca e engoliu-os com o café. a posição da


cadeira onde barbara estava sentada obrigava o rapaz a virar a sua, oferecendo
apenas o perfil a stanley. em pensamento, barbara deu a si própria uma palmadinha
nas costas por ter conseguido alterar o equilíbrio de forças de forma tão hábil.

- na barraca de coisas em segunda mão - disse howard.

- que barraca de segunda mão?

- na festa da igreja. temos uma festa da igreja todas as primaveras e a deste ano
calhou no domingo. fui com a minha avó, porque ela tinha de trabalhar na barraca do
chá durante uma hora. não valia a pena levá-la à festa, ir para casa e depois voltar,
por isso deixei-me ficar por ali. foi nessa altura que fui aos trapos. estavam a vendê-
los nas barracas das coisas em segunda mão. sacos de plástico cheios de trapos. a
uma libra e cinquenta cada. comprei três porque me sirvo deles para o trabalho. foi
por uma boa causa. - falava agora com uma expressão séria. - eles estão a juntar
dinheiro para restaurar uma das janelas do coro.

- onde? - perguntou barbara. - em que igreja, sr. short?

- em stanton st. bernard. É lá que vive a minha avó. - olhou alternadamente para
barbara e para o sargento stanley. - estou a dizer a verdade - disse. - não sabia nada
sobre esse uniforme. nem sequer sabia que ele estava dentro do saco até a polícia o
ter esvaziado no chão. nem sequer tinha aberto o saco. juro.

- quem estava a trabalhar na barraca? - interpôs stanley de forma abrupta.

howard passou a língua pelos lábios, olhou para stanley, depois para barbara. - uma
rapariga. loura.

- tua namorada?

- não a conhecia.

- não meteste conversa com ela? não apanhaste o nome dela?


- só lhe comprei os trapos.

- não te atiraste a ela? não pensaste em qual seria a sensação de ir para a cama
com ela?

- não.

- porque não? demasiado velha para ti? gostas delas novinhas?

- eu não a conhecia, tá bem? só comprei os trapos como disse, na barraca de coisas


em segunda mão. não sei como é que eles foram lá parar. não sei o nome da miúda
que mos vendeu. e mesmo que soubesse, ela também não deve saber como é que
eles foram lá parar. ela só estava a trabalhar na barraca, juntando dinheiro e
entregando os sacos. se precisa de saber mais coisas, devia perguntar...

- estás a defendê-la? - perguntou stanley. - o que é que se passa, howard?

- estou a tentar ajudar-vos! - gritou short.

- aposto que estás. da mesma maneira que aposto em como tiraste o uniforme da
miúda e misturaste-o com os trapos depois de os teres comprado na festa.

- nunca fiz tal coisa!

- aposto também em como a raptaste, a drogaste e a afogaste.

- não!

- aposto...

barbara levantou-se. tocou o ombro de short.

- obrigada pela ajuda que nos deu - disse com firmeza. - vamos confirmar tudo
aquilo que nos disse, sr. short. sargento stanley? - inclinou a cabeça para a porta e
saiu da sala de interrogatórios.

stanley seguiu-a até ao corredor. ouviu-o dizer: «merda. se aquela cretinazinha


pensa...»

virou-se para enfrentá-lo.

- aquela cretinazinha uma ova. comece a pensar. intimide uma testemunha daquela
maneira e corremos o risco de acabar no escuro, que foi o que por pouco não
aconteceu com este miúdo.

- você acredita naquelas tretas sobre barracas de chá e miúdas louras? - resmoneou
stanley. - ele está tão sujo como óleo de motores.

- se estiver sujo havemos de o apanhar. mas fá-lo-emos de forma legítima ou então


não o faremos de todo. percebido? - não esperou por uma resposta. - nesse caso
mande aquele uniforme para os médicos-legistas, reg. examine cada centímetro.
quero cabelos, pele, quero sangue, quero marcas de sujidade, quero gordura, quero
sémen. quero merda de cão, de vaca, de cavalo, e tudo o mais que possa estar
colado a ele. certo?

o lábio superior do sargento curvou-se numa expressão de desagrado.

- não desperdice os meus recursos humanos, scotland yard. sabemos que ele
pertence à garota. se precisarmos de confirmação mostramo-lo à mãe dela.

barbara colocou-se a escassos centímetros do rosto dele.

- exatamente. sabemos, sabemos que é o uniforme dela. mas não sabemos quem a
matou, pois não, reg? por isso vamos pegar naquele uniforme, e vamos passá-lo a
pente fino, com fita adesiva, fibra óptica, laser, e fazer tudo o que tivermos de fazer
para extrair dele o que quer que seja que nos coloque na pista do assassino. quer
ele seja howard short ou o príncipe de gales. faço-me entender, ou tenho de pedir ao
seu oficial superior que lhe soletre tudo por escrito.

stanley chupou lentamente um dos lados da bochecha.

- está certo - disse e, em voz baixa, acrescentou: - vá-se foder, chefe.

- isso queria você - disse barbara. virou-se e voltou a entrar na sala de


interrogatórios. onde diabo, perguntou a si própria, ficaria stanton st. bernard?

embora um funcionário do serviço de manutenção estivesse em vias de pendurar as


fotografias do comissário-adjunto, sir david hillier, este não desejava adiar o
momento do relatório diário. tão-pouco manifestara vontade de querer transferi-lo
para um espaço de onde não lhe fosse possível supervisionar a colocação
adequada da sua história fotográfica. lynley vira-se por isso forçado a apresentar o
seu relatório num tom sussurrante, junto à janela, sujeitando-se às interrupções de
hillier. estas nada tinham a ver com ele. antes eram motivadas pela atuação do
funcionário da manutenção, que tentava pendurar as fotografias de forma que o
vidro não refletisse o sol vespertino. a luz solar não só empalidecia as fotografias
como também obscurecia o protagonista das mesmas, colocando-o fora do alcance
da admiração de todo aquele que entrasse no gabinete. isso era inaceitável.

lynley concluiu o relatório e aguardou os comentários do comissário. hillier


contemplava a vista mundana de victoria street e puxava o queixo enquanto refletia
no que ouvira. quando finalmente falou, os seus lábios mal se mexeram, respeitando
a necessidade de confidencialidade.

- tenho uma conferência de imprensa dentro de meia hora - disse. - preciso de lhes
dar algo com que se entretenham até amanhã - falou como se ponderasse sobre o
tipo de isco que deveria atirar aos tubarões. - e quanto ao mecânico que havers tem
em wiltshire? como é que ele se chamava?

- o sargento havers acha que ele não está implicado. ela está a realizar testes ao
uniforme da miúda bowen que poderão dar-nos algumas pistas. no entanto, segundo
ela, isso não implica que as informações fornecidas pelo uniforme estabeleçam uma
ligação entre charlotte bowen e o mecânico.

- no entanto... - disse hillier. - É agradável poder dizer que alguém está em campo,
ajudando a polícia a levar a cabo a sua investigação. ela está a verificar os
antecedentes dele?

- estamos a verificar os antecedentes de toda a gente.

- e?

lynley mostrou alguma relutância em partilhar os dados de que dispunha. hillier tinha
uma inclinação para o exibicionismo quando falava à imprensa, algo que fazia em
nome da proficiência da yard. todavia, os jornais já sabiam de mais e o que os movia
não era o interesse em fazer justiça, mas sim a garantia de que divulgariam uma
história mais rapidamente do que a concorrência.

- estamos à procura de um elo de ligação. blackpool-bowen luxford-wiltshire.

- procurar elos de ligação não vai fazer-nos brilhar junto da imprensa e do público,
inspetor.

- temos o so4 a trabalhar nas impressões digitais de marylebone e temos um retrato


de um possível suspeito. diga-lhes que estamos a analisar as provas. e depois
divulgue o retrato. isso deverá ser suficiente.

hillier escrutinou o rosto dele com uma expressão especulativa.

- mas sabem mais coisas, não sabem?

- nada sólido - disse lynley.

- julguei que tinha deixado a minha posição muito clara quando lhe entreguei o caso.
não quero que retenha informações nos relatórios.

- não há razão nenhuma para que eu torne as águas turvas com conjecturas - disse,
acrescentando um «senhor» como forma de verter óleo no sítio onde as águas não
estavam tanto turvas, mas antes agitadas.

- hum. - hillier sabia que o fato de lynley o tratar por senhor não significava
exatamente que estivesse a censurá-lo. parecia prestes a responder com uma
diretiva que os colocaria em conflito um com o outro. no entanto, uma pancada na
porta do seu gabinete anunciou a intromissão da sua secretária pessoal, que disse
do outro lado da porta:

- sir david? pediu-me que o avisasse quando faltassem trinta minutos para a
conferência de imprensa. tenho aqui o maquilhador.

lynley conteve uma observação sarcástica ao imaginar hillier cheio de base e rímel,
frente às câmaras dos serviços noticiosos televisivos.

- não o empato mais, nesse caso - disse, aproveitando a oportunidade para escapar.

de volta ao seu gabinete encontrou nkata sentado à secretária, telefone encostado


ao ouvido.

- agente winston nkata... dizia, nkata, mulher... nkata. n-k-a-t-a. diga-lhe que temos
de falar. está bem? - desligou o telefone. viu lynley à entrada do gabinete e fez
menção de se levantar.

com um gesto, lynley fez sinal para que voltasse a sentar-se e instalou-se na cadeira
em frente à sua secretária, onde havers costumava sentar-se.

- e então? - disse.

- algumas ligações bowen-blackpool - replicou nkata. - o presidente da constituinte


de bowen estava presente no congresso do partido conservador. um tipo chamado
coronel julian woodward. conhece-lo? eu e ele tivemos uma conversinha agradável
em marylebone, logo depois de eu o ter deixado nas casas abandonadas.

o coronel woodward, ficou a saber por nkata, era um militar na reserva com cerca de
setenta anos. antigo docente de história militar, reformara-se aos sessenta e cinco
anos e mudara-se para londres para estar mais próximo do filho.

- o menino dos olhos dele, aquele joel - disse nkata, referindo-se ao filho do coronel.
- fiquei com a impressão de que o coronel faria qualquer coisa por ele. conseguiu-
lhe o emprego com eve bowen, sabe. e levou-o com ele a blackpool, para o
congresso do partido conservador.

- joel woodward estava lá? que idade tinha ele na altura?

- dezenove acabados de fazer. matriculara-se na ucl à data e preparava-se para tirar


ciência política. continua lá. tem estado a trabalhar no doutoramento a tempo parcial
desde os vinte e dois anos. É lá que está neste momento, segundo informações
dadas pelo gabinete de bowen. era o próximo na minha lista de conversas, mas não
consegui localizá-lo. estou a tentar desde o meio-dia.

- alguma ligação a wiltshire? alguma razão para que um dos woodward queira
destruir eve bowen?

- ainda estou a trabalhar sobre wiltshire. mas devo dizer que o coronel tem planos
para joel. planos na política e não se importa que se saiba.

- parlamento?

- nem mais. e também não é fã de miss bowen.

- o coronel woodward, - prosseguiu nkata, - acreditava convictamente no lugar da


mulher. e não era na política. o próprio coronel fora casado, tendo enviuvado três
vezes, e nenhuma das suas esposas sentira necessidade de dar provas da sua
capacidade noutra área que não fosse o lar conjugal. embora reconheça que eve
bowen tem «mais tomates do que o nosso estimado primeiro-ministro» não se coíbe
de confessar que não nutre grande afeto por ela. todavia, foi cínico o suficiente para
perceber que a permanência do partido conservador no poder dependia da escolha
do melhor candidato possível às eleições por parte da constituinte, e o melhor
candidato possível podia não ser uma pessoa com quem ele estivesse em sintonia.

- está a pensar substituí-la? - perguntou lynley.

- adoraria poder substituí-la pelo seu rapaz - disse nkata. mas isso só acontecerá se
alguém ou alguma coisa a obrigar a afastar-se do poder.

intrigante, pensou lynley. e consentâneo com o que a própria eve bowen dissera por
palavras ligeiramente diferentes: «na política, os nossos piores inimigos vestem a
pele dos amigos.»

- e quanto a alistair harvie? perguntou nkata.

- escorregadio e sinuoso.

- É um político, meu.

- não me pareceu que soubesse o que se passava entre bowen e luxford, em


blackpool, e afirmou desconhecer que bowen assistira ao congresso.

- acredita nele?

- acreditei, para ser sincero. foi então que havers telefonou.

lynley pôs nkata ao corrente das informações fornecidas pelo sargento havers,
concluindo:

- além disso, ela conseguiu saber algumas coisas sobre os anos que harvie passou
em winchester. no seu currículo de atividades escolares aparece quase tudo o que
seria de esperar. há uma que se destaca, contudo. esteve envolvido em atividades
ecológicas e em caminhadas pelo campo durante os últimos dois anos que passou
na escola. e a maior parte dos passeios foram realizados em wiltshire, na planície de
salisbury.

- ele conhece bem a zona, então.

lynley inclinou-se sobre a secretária para pegar num monte de mensagens


telefônicas presas por um clip, que fora deixado junto do telefone. pôs os óculos e
percorreu as mensagens, folha a folha, enquanto perguntava:

- algo de novo sobre o vagabundo?

- nem um pio. mas ainda é cedo para isso. ainda estamos a tentar localizar todos os
especiais de wigmore street para que vejam o retrato. e nenhum dos gajos que
estão a verificar os albergues locais contatou.

lynley atirou as mensagens para cima da secretária, tirou os óculos e esfregou os


olhos.

- É como se andássemos a passo de caracol.

- hillier? - perguntou nkata sensatamente.

- o costume. queria que tudo estivesse concluído em vinte e quatro horas, tudo para
glória da yard. no entanto conhece as probabilidades e não vai discutir o fato de
estarmos em tremenda desvantagem. - lynley pensou nos repórteres que vira em
casa de eve bowen na noite anterior, pensou nos quiosques de jornais que vira
nessa manhã e nos títulos investigação policial em curso e deputada diz não à
polícia, escarrapachados nos escaparates que anunciavam a história do dia. -
malditos sejam - murmurou.

- quem? - perguntou nkata.

- bowen e luxford. amanhã faz uma semana que ocorreu o rapto. se nos tivessem
contactado uma hora depois do rapto já teríamos resolvido esta confusão toda.
agora, no pé em que as coisas estão estamos a tentar aquecer um rasto que já está
frio, interrogando testemunhas potenciais, sem qualquer interesse pelo assunto e
que nada têm a perder, tentando fazer com que se lembrem de qualquer coisa que
possam ter visto seis dias depois dos fatos terem ocorrido. É de loucos. estamos
dependentes da sorte e não gosto muito disso.

- mas o que acontece na maior parte das vezes é termos sorte - nkata reclinou-se na
cadeira de lynley. era notável como o lugar ideal para ele parecia ser atrás de uma
secretária. esticou os braços e entrelaçou os dedos atrás do pescoço. sorria.

e foi o sorriso que alertou lynley.

- sabes mais alguma coisa.

- sei, pois. oh, se sei.

- e?

- É wiltshire.

- wiltshire está relacionado com quem?

- bom, aí é que as coisas se tornam realmente intrigantes.

o trânsito reteve-os, tanto em whitehall como no strand, mas a marcha lenta e as


paragens proporcionaram a lynley a oportunidade de ler o artigo publicado na revista
do sunday times, que nkata desencantara no dia que reservara para vasculhar o
passado dos suspeitos. o artigo, que tinha já seis semanas, intitulava-se «como
reconverter um tablóide» e tinha como figura central dennis luxford.

- sete páginas inteiras - comentou nkata, enquanto lynley passava os olhos por ele e
estudava minuciosamente cada parágrafo. - a família feliz em casa, no trabalho, em
horas de lazer. incluindo o passado de todos eles, preto no branco. adorável, huh?

- isto - disse lynley, - poderá ser a oportunidade de que estamos à procura.

- foi isso exatamente que eu pensei - concordou nkata.

no the source, o distintivo policial de lynley causou fraca impressão junto da


recepcionista que, olhando-o, comentou: - já vi tipos como o senhor, antes. -
telefonou para o andar superior e limitou-se a dizer - polícia. scotland yard -, falando
para o bocal miniatura acoplado ao conjunto de auscultadores. - acertaste, querida -
acrescentou, com uma gargalhada grosseira. preencheu os cartões de visitantes
com uma caligrafia arredondada e infantil e enfiou-os em invólucros de plástico. -
décimo primeiro andar - disse. usem o elevador, e nada de meter o nariz onde não
devem, entendido?

quando as portas do elevador se abriram no andar em questão foram recebidos por


uma mulher de cabelo grisalho. tinha os ombros ligeiramente descaídos, como se
acusasse o peso dos anos passados inclinada sobre arquivadores, máquinas de
escrever e processadores de texto, e apresentou-se a si própria como miss wallace,
secretária confidencial, particular e pessoal do editor do the source, sr. dennis
luxford.

- não se importam que confirme a vossa identificação pessoalmente? - disse, e as


suas faces mirradas estremeceram perante o desaforo da pergunta. - todo o cuidado
é pouco quando se trata de visitantes. concorrência entre jornais. saberão talvez ao
que me refiro?

lynley mostrou uma vez mais a sua identificação. nkata imitou-o. miss wallace
escrutinou os dois cartões diligentemente, antes de murmurar - muito bem - e de os
conduzir ao gabinete do editor. aquele era obviamente um negócio implacável, o de
pôr na rua os escândalos da nação. os tablóides mais sensatos confiam no fato de
que todos são suspeitos no que se refere à autoria de uma história, mesmo as
pessoas que afirmam ser da polícia.

luxford encontrava-se sentado à mesa de reuniões do seu gabinete, acompanhado


por outros dois homens que pareciam ser os responsáveis pela tiragem e pela
publicidade, a avaliar pelos gráficos, tabelas e maquetas do tablóide espalhados
sobre a mesa. quando miss wallace os interrompera pela primeira vez, abrindo a
porta e dizendo: «peço desculpa, sr. luxford», a reação do editor foi um cortante:
«que diabo, wallace, julguei que tinha sido muito claro sobre a questão das
interrupções.» a voz soava cansada. atrás da secretária, lynley via que a sua
aparência não era melhor.

- são da scotland yard, sr. luxford - disse miss wallace.

a publicidade e a tiragem entreolharam-se, transformando-se na personificação do


interesse perante esta viragem dos acontecimentos.

- veremos isto mais tarde - disse-lhes luxford sem sair da posição que ocupava à
cabeça da mesa de reuniões até que eles e miss wallace tivessem saído da sala. até
quando se levantou permaneceu junto dos gráficos, das tabelas, quadros e
maquetas das páginas do tablóide, espalhadas à sua frente.

- a notícia circulará pela sala de redação em quarenta e cinco minutos - disse,


rispidamente. - não podiam ter telefonado antes?

- reunião de tiragens? - perguntou lynley. - como é que vão os números nos dias que
correm?

- não vieram até aqui para discutir os nossos números, parece-me.

- mesmo assim estou interessado.

- porquê?

- as tiragens são fundamentais para um jornal, não é?

- julgo que sabe isso. os rendimentos da publicidade dependem das tiragens.

- e as tiragens dependem da qualidade das histórias? da sua veracidade, do seu


conteúdo, da sua profundidade? - lynley tornou a identificar-se, e enquanto luxford
confirmava os elementos, ele próprio aproveitava para estudá-lo. o outro estava
vestido de forma elegante, embora as suas cores fizessem pensar que sofria de
icterícia. as córneas dos seus olhos não tinham melhor aspecto do que a coloração
da sua pele. - estava convencido que um dos primeiros aspectos que um editor tem
em consideração são as tiragens do seu jornal - continuou lynley.

- o senhor tem-se revelado empenhado em trabalhar as suas tiragens, de acordo


com o que acabei de ler na revista do sunday times. sem dúvida há-de querer
continuar a fazê-lo.

luxford devolveu a identificação, que lynley guardou no bolso. nkata deambulara até
à parede próxima da mesa de reuniões. nela estavam penduradas primeiras páginas
emolduradas. lynley leu os títulos: um deles referia-se a um deputado conservador
que tinha quatro amantes, uma segunda especulava sobre a vida amorosa da
princesa de gales e uma terceira focava três estrelas de televisão, protagonistas de
uma série edificante e familiar do pós-guerra, surpreendidos vivendo um ménage à
trois. «uma leitura sã para acompanhar um pequeno-almoço igualmente são,
composto por cereais», pensou lynley.

- onde pretende chegar com esta conversa, inspetor? - perguntou luxford. - como
pode ver estou ocupado. será que podemos ir direitos ao assunto?

- charlotte bowen é o assunto.

o olhar de luxford passou de lynley para nkata, como uma flecha. não era estúpido, e
não lhes revelaria a mais pequena informação até conhecer os dados que eles
dispunham.

- sabemos quem é o pai da criança - disse lynley. - miss bowen confirmou-nos isso
ontem à noite.

- como é que ela está? - luxford pegou numa das tabelas, mas não olhou para ela.
em vez disso, observou lynley. - telefonei-lhe, mas ela não retribuiu nenhum dos
meus telefonemas. não falo com ela desde domingo à noite.

- imagino que esteja a tentar superar o choque - disse lynley. - não esperava que as
coisas evoluíssem neste sentido.

- tenho a história escrita - luxford comunicou-lhes. - tê-la-ia publicado, se ela me


tivesse dado luz verde.

- sem dúvida - disse lynley.

perante o tom seco das palavras dele, luxford olhou-o sagazmente.

- o que é que os traz aqui?

- baverstock.

- baverstock? em nome de deus, o que...? - luxford olhou para nkata, como se


esperasse que fosse ele a responder-lhe. nkata limitou-se a puxar uma cadeira e a
sentar-se. meteu a mão no bolso e tirou um bloco-notas e um lápis. ambos os
utensílios estavam a postos para registrar o depoimento de luxford.

- o senhor entrou para a baverstock school for boys aos onze anos de idade - disse
lynley. - continuou lá até aos dezassete. como interno.

- e depois? que tem isso que ver com charlotte? disse-me que tinha vindo para falar
de charlotte.

- ao longo desses anos fez parte de um grupo chamado exploradores, um clube


arqueológico amador. correto?

- gostava de esgaravatar a terra. a maioria dos rapazes gosta. não vejo qual a
importância que isso possa ter para a sua investigação.

- este clube, os exploradores, tinha um vasto leque de interesses, não tinha? o


estudo de túmulos, aterros, círculos de pedras e coisas afins? aprender a conhecer
e a familiarizar-se com as configurações do terreno?

- e se assim fosse? não consigo perceber de que modo é que tudo isso se relaciona
com o resto.

- e o senhor foi o presidente deste clube durante os dois últimos anos que passou
em baverstock, não foi?
- fui também editor do bavernian biannual e do oracle. e para completar o seu retrato
dos meus tempos de escola, inspetor, falhei rotundamente todas as minhas
tentativas para fazer os primeiros onze pontos no críquete. agora, diga-me, por
favor. esqueci-me de alguma coisa?

- um pequeno pormenor, apenas - disse lynley. - a localização da escola.

as sobrancelhas de luxford juntaram-se por momentos. no seu olhar havia uma


expressão especulativa.

- wiltshire - disse lynley, - baverstock school fica em wiltshire, sr. luxford.

- existem muitas coisas em wiltshire - disse luxford. - e a maioria delas são muito
mais dignas de nota do que baverstock.

- não me atreveria a discordar. no entanto, não beneficiam da vantagem de


baverstock, pois não?

- que vantagem é essa?

- a vantagem de estar situada a menos de sete milhas do sítio onde o corpo de


charlotte bowen foi encontrado.

lentamente, luxford pousou o gráfico que segurava entre os dedos, juntando-os aos
que estavam sobre a mesa. acolheu a revelação feita por lenley com um silêncio
absoluto. no exterior do edifício, onze pisos abaixo deles, uma ambulância fez soar o
seu aviso vibrante, destinado a descongestionar o trânsito na rua.

- uma coincidência muito oportuna, não lhe parece? – perguntou lynley.

- não é nada mais do que isso e o senhor sabe disso, inspetor.

- sinto alguma relutância em acreditar nas suas palavras.

- não é possível que acredite que eu tive alguma coisa a ver com o que sucedeu
com charlotte. É uma idéia maluca.

- que parte da idéia? o seu envolvimento no rapto de charlotte ou o seu


envolvimento na morte dela.

- qualquer uma delas. por quem me toma?

- por um homem preocupado com as tiragens do seu jornal. e, em consequência, por


um homem à procura de uma história que mais ninguém tem.

apesar dos seus protestos e de tudo o que estivesse a tentar esconder de lynley, a
atenção de luxford recaiu por breves instantes sobre os gráficos e tabelas sobre a
mesa, o sangue vital do seu jornal e do seu emprego. aquele único relancear
continha mais informação do que qualquer coisa que ele pudesse ter dito.
- a determinada altura - continuou lynley, - charlotte teve de ser transportada para
fora de londres, num veículo.

- não tive nada a ver com isso.

- mesmo assim gostaria de dar uma espreitadela ao seu carro. está estacionado
aqui perto?

- quero um advogado.

- com certeza.

luxford atravessou a sala dirigindo-se à sua secretária. revolveu ruidosamente


alguns papéis e tirou uma lista telefônica encadernada em pele, que abriu com uma
das mãos enquanto, com a outra, segurava o telefone. tinha discado com gestos
bruscos dois dígitos quando lynley voltou a falar.

- o agente nkata e eu teremos de aguardar a sua chegada, claro. e isso poderá


demorar algum tempo. por isso, se está preocupado com a interpretação que a sala
de redação poderá dar à nossa visita, talvez seja melhor considerar o que pensarão
quando nos virem aguardar pacientemente, à porta do seu gabinete, a chegada do
seu advogado.

o editor discou mais quatro números. a mão ficou suspensa no ar antes de chegar
ao sétimo. lynley esperou que ele tomasse uma decisão. viu uma veia latejando na
têmpora do outro homem.

luxford pousou com violência o auscultador sobre o descanso.

- está bem. - disse. - vou conduzi-los até ao carro.

o carro era um porsche. estava parado num parque de estacionamento coberto


impregnado por um odor intenso a urina e a gasolina, situado a menos de cinco
minutos de caminho do edifício onde estava instalado o the source. entraram em
silêncio, luxford caminhando alguns passos à frente deles. parara apenas para vestir
o casaco e para avisar miss wallace de que iria estar ausente durante um quarto de
hora. não olhara nem para a direita, nem para a esquerda enquanto os conduzia até
ao elevador, e quando um homem de barba vestido com um casaco de caqui
chamara «den, podia dar-te uma palavrinha?», perfilhado à porta de um gabinete no
extremo mais distante da sala de redação, luxford ignorara-o. tal como ignorara
todas as outras pessoas presentes.

o carro estava estacionado no quinto nível do parque de estacionamento, encolhido


entre um range rover sujo e uma carrinha branca com uma inscrição lateral que dizia
gourmet a caminho. quando se aproximavam dele, luxford tirou do bolso um controle
remoto, que usou para desativar o sistema de alarme do porsche. o sinal sonoro
ecoou pela estrutura de betão como um pássaro com um ataque de soluços.

o agente nkata não esperou até ser convidado. calçou um par de luvas, abriu a porta
do lado do pendura e deslizou para o interior do automóvel. explorou os conteúdos
do porta-luvas e do compartimento entre os dois assentos da frente. levantou os
tapetes, tanto do lado do pendura como do lado do condutor. enfiou as mãos dentro
dos compartimentos reentrantes das portas. saiu do carro e empurrou os assentos
para a frente para poder entrar no espaço traseiro.

luxford observava todos os movimentos sem proferir palavra. o som de passos


enérgicos ressoou algures ali perto. no entanto, ele não olhou para verificar se
alguém estava a observar a busca efetuada por nkata. o seu rosto não traía
qualquer emoção. era impossível perceber o que se estaria a passar sob a sua
aparência fleumática.

os pés de nkata arrastavam pelo betão enquanto ele movimentava a sua silhueta
esbelta dentro do carro. soltou um grunhido, que provocou uma reação por parte de
luxford.

- não está com certeza à espera de encontrar nada que esteja remotamente
relacionado com a investigação no meu carro. se eu quisesse transportar uma
criança de dez anos para fora da cidade, seria pouco provável que fosse usar o meu
carro, não é? não sou estúpido. e a idéia de esconder charlotte num porsche é
absurda. num porsche, por amor de deus. nem sequer há espaço suficiente no
interior para...

- inspetor - interrompeu nkata. - há aqui qualquer coisa. por baixo do assento.

tornou a sair do carro. segurava um objeto dentro do punho fechado.

- não pode ser nada que tivesse pertencido a charlotte – disse luxford.

enganava-se, porém. nkata endireitou-se e mostrou a lynley o que encontrara.


tratava-se de um par de óculos. redondos e com uma armação em tartaruga,
praticamente idênticos aos óculos que eve bowen usava. a única diferença residia
no fato de este par ter sido feito para criança.

- em nome de deus, o que...? - luxford parecia espantado. - de quem são esses


óculos? como é que vieram parar ao meu carro?

nkata colocou os óculos no lenço que lynley lhe apresentava, aberto na palma da
sua mão.

- parece-me que em breve descobriremos que pertenciam a charlotte bowen - disse


lynley. fez um aceno de cabeça na direção de nkata e acrescentou: - sr. agente,
quando quiser.

nkata recitou a advertência. ao contrário de havers, que nunca deixava de retirar


algum prazer do dramatismo criado por uma leitura cerimoniosa do texto escrito nas
costas do bloco-notas, nkata limitava-se a repeti-lo de cor e sem qualquer inflexão.
todavia, o rosto de luxford alterou-se. o maxilar distendeu-se. os seus olhos
dilataram-se. engoliu em seco e quando nkata terminou começou a falar.
- será que estão ambos completamente doidos? - perguntou. - os senhores sabem
que não tive nada a ver com isto.

- talvez agora queira telefonar ao seu advogado - disse lynley. - ele poderá
encontrar-se conosco na yard.

- alguém pôs esses óculos no carro - insistiu luxford. - os senhores sabem que foi
isso que aconteceu. alguém que pretende fazer crer...

- toma as providências necessárias para que o carro seja confiscado - lynley disse a
nkata. - telefona para o laboratório e diz-lhes que estejam prontos para examiná-lo.

- certo - disse nkata. afastou-se para cumprir as instruções dadas, e as solas de


cabedal dos seus sapatos ressoaram quando embatiam no cimento de maneira
expedita, produzindo um ruído que ecoava pelo teto e pelas paredes.

- está a cair nas mãos dele, seja ele quem for - disse luxford a lynley. - foi ele quem
pôs esses óculos dentro do carro. tem estado à espera do momento em que os
senhores tropeçassem neles. ele sabia que os senhores acabariam por me contatar,
como aconteceu. não percebe? está a jogar o jogo segundo as regras dele.

- o carro estava trancado - observou lynley. - e o alarme estava ligado. foi o senhor
mesmo quem o desativou.

- nem sempre está trancado, santo deus.

lynley encaminhou-se até à porta do lado do pendura e fechou-a.

- o carro nem sempre está trancado - repetiu luxford com alguma agitação. - e o
alarme nem sempre está ligado. esses óculos poderiam ter sido lá colocados em
qualquer altura.

- quando, exatamente?

por momentos, o editor pareceu surpreendido. era evidente que nunca pensara que
o argumento que apresentara fosse aceito tão depressa.

- em que sítios é que o carro não está trancado nem tem o alarme ligado? -
perguntou lynley. - não deve ser muito difícil responder a uma pergunta como esta. É
um carro caro. não é um monte de metal que se possa estacionar na rua, aberto. ou
num parque de estacionamento coberto, ou noutro qualquer. em que alturas, então,
é que ele não está trancado nem tem o alarme ligado, sr. luxford?

a boca de luxford tentou formar as palavras, mas não as proferiu. vira a armadilha
instantes antes que ela lhe fosse armada, mas obviamente sabia que era demasiado
tarde para recuar e esquivar-se.

- onde? - perguntou lynley.

- em minha casa - disse luxford, por fim.


- está certo disso?

luxford acenou com a cabeça, paralisado.

- entendo. nesse caso julgo que será melhor ter uma conversa com a sua mulher.

a viagem de carro até highgate foi interminável. era um percurso em linha reta, indo
por holburn e bloomsbury, mas a estrada conduziu-os ao pior engarrafamento da
cidade, provocado nessa noite pelo incêndio de um automóvel a norte de russell
square. lynley vogava através do trânsito congestionado, tentando imaginar como é
que o sargento havers conseguia sobreviver ao percurso diário entre westminster e
o sítio onde residia em chalk farm, um dos bairros que atravessaram cerca de
quarenta minutos depois de terem iniciado a viagem.

luxford falou pouco. pediu para telefonar à mulher a fim de a prevenir que iria chegar
a casa na companhia de um detetive-inspetor da scotland yard, mas lynley não o
autorizou a fazê-lo. quando o jornalista explicou: «preciso de a preparar. ela não
sabe nada sobre isto. eve. charlotte. tenho de a preparar», lynley respondeu-lhe que
a mulher poderia muito bem saber mais do que ele pensava, razão pela qual iam
conversar com ela, aliás.

- isso é ridículo - declarou luxford. - se pretende sugerir com isso que fiona está de
alguma forma envolvida no que aconteceu com charlotte, está louco.

- diga-me uma coisa - retorquiu lynley, - estava casado com fiona na altura do
congresso do partido conservador, em blackpool?

- não, não estava.

- estava envolvido com ela?

luxford ficou calado durante alguns instantes. quando se decidiu a responder limitou-
se a dizer: «fiona e eu não éramos casados nessa época», como se esse fato
apenas o tivesse autorizado a correr atrás de eve bowen.

- mas fiona sabia que o senhor estava em blackpool? - perguntou lynley. luxford não
disse nada. lynley fitou-o e viu a palidez que se acumulara em torno da boca dele. -
sr. luxford, a sua mulher...

- pronto, está bem. ela sabia que eu estava em blackpool. mas não sabia mais nada
para além disso, é tudo o que sempre soube. ela não se interessa pela política,
nunca se interessou - alisou o cabelo com uma das mãos, num gesto nervoso.

- tanto quanto o senhor sabe, ela nunca acompanhou a realidade política.

- ela era modelo, santo deus. a sua vida, o seu mundo eram o seu corpo, o seu
rosto. nunca tivera sequer a preocupação de votar antes de eu a conhecer -
cansado, luxford descansou a cabeça no apoio do assento. - brilhante - disse, -
agora descrevi-a como uma parvinha - e rodou a cabeça para o lado olhando
inexpressivamente pela janela. passavam nesse momento por camden lock market,
onde um prestidigitador, parado na beira do passeio, exercia o seu ofício com pratos
de estanho antigos, que cintilavam à luz incerta do fim de tarde.

luxford não tornou a falar até chegarem a highgate. a sua casa ficava em millfield
lane. era uma moradia situada exatamente no lado oposto a dois dos lagos que
formavam a fronteira leste de hampstead heath. quando lynley virou para atravessar
os dois pilares de tijolo que assinalavam a alameda de acesso à residência do editor
do the source, luxford disse:

- ao menos deixe-me entrar primeiro e falar com fiona.

- lamento, mas isso não é possível.

- será que não tem um pingo de decência? - perguntou luxford. - o meu filho está em
casa. tem oito anos de idade. É completamente inocente. não está à espera que eu
o inclua neste espetáculo que o senhor está a planejar.

- terei cuidado com o que digo quando ele estiver presente. pode levá-lo para o
quarto dele.

- dificilmente...

- É o máximo que posso fazer, sr. luxford.

lynley estacionou o carro atrás de um mercedes-benz, último modelo, que estava


parado debaixo de um pórtico. este abria para o jardim fronteiriço da casa, que se
assemelhava mais a um reduto de vida selvagem do que ao tradicional conjunto de
relvado cuidadosamente aparado e canteiros repletos de rebentos de herbáceas.
quando luxford saiu do bentley caminhou até à entrada do jardim, onde um carreiro
lajeado desaparecia entre os arbustos.

- costumam estar a ver os pássaros a comerem a esta hora do dia disse. - chamou
pela mulher e depois pelo filho.

dado que nenhuma exclamação ecoou sob as árvores, como resposta, virou-se para
entrar em casa. a porta da frente estava fechada, mas não trancada. dava acesso a
um vestíbulo com chão revestido de mármore, do centro do qual saía uma escadaria
que conduzia ao primeiro andar da casa.

- fiona? - chamou luxford. a sua voz soou distorcida, em contato com o chão de
pedra e as paredes de estuque da entrada. de novo, ninguém respondeu.

lynley fechou a porta atrás deles. luxford atravessou uma arcada à esquerda. aí,
uma sala de estar era limitada por janelas salientes que proporcionavam um amplo
panorama dos lagos situados na charneca. continuou a chamar a mulher pelo nome.

a casa estava mergulhada no mais completo silêncio. luxford percorria sala após
sala ao longo da comprida moradia, mas ao fazê-lo tornava-se evidente aos olhos de
lynley que esta deslocação a highgate fora inútil. fortuitamente ou não, era óbvio que
fiona luxford não estava ali para responder às perguntas dele. quando o marido dela
desceu as escadas, lynley disse-lhe:

- É melhor telefonar ao seu advogado. ele poderá encontrar-se conosco na yard.

- eles deveriam estar aqui; - testa franzida, luxford desviou o olhar da sala de estar
onde lynley o aguardara para a entrada e para a pesada porta principal. - fiona não
sairia de casa sem fechar a porta da frente. eles deveriam estar aqui, inspetor.

- talvez julgasse que a tinha trancado.

- ela não julgaria. saberia. fecha-se com uma chave. - luxford voltou a aproximar-se
da porta e abriu-a. chamou a mulher pelo nome, quase gritando desta vez. chamou
o filho. caminhou a passos largos até ao declive da alameda de acesso dirigindo-se
à álea onde se via, dentro dos limites da sua propriedade, um edifício baixo e
branco. abrigava três garagens e, sob o olhar atento de lynley, luxford entrou no
edifício através de uma porta de madeira pintada de verde. talvez a justificação
apresentada por luxford para a presença dos óculos de charlotte no seu carro
tivesse algum fundamento.

lynley esperava no pórtico. passeou o olhar pelo jardim. estava a considerar a


hipótese de insistir com luxford para que trancasse a casa e voltasse a entrar no
bentley, a fim de iniciarem a viagem de regresso à scotland yard, quando os seus
olhos se detiveram no mercedes parado à sua frente. decidiu testar as declarações
do jornalista acerca dos locais e dos momentos em que o seu carro estava trancado.
experimentou a porta do lado do condutor. esta abriu-se. deslizou para o interior do
automóvel.

o seu joelho tocou um objeto pendente perto da barra da direção. ouviu o som
abafado de metal. as chaves do carro estavam penduradas na ignição presas por
um largo aro de latão.

no chão, no lado do assento do pendura, estava um saco a tiracolo de mulher. lynley


pegou nele. abriu-o, remexeu no interior ruidosamente e depois de encontrar uma
caixa de fond de teint, vários batons, uma escova de cabelo, um par de óculos
escuros e um livro de cheques tirou uma carteira em pele. continha cinquenta e
cinco libras, um cartão visa e uma carta de condução com a inscrição fiona howard
luxford.

sentiu uma inquietação despertar dentro dele, como se bem junto aos seus ouvidos
ouvisse o zumbido de um enxame de insetos. saía do carro, segurando o saco na
mão, quando luxford regressava pela alameda, apressado.

- Às vezes pegam nas bicicletas e vão até à charneca durante a tarde - disse ele. -
fiona gosta do passeio até kenwood house e leo adora ver os quadros. lembrei-me
que poderiam ter ido até lá, mas as bicicletas estão... - então, viu o saco a tiracolo.

- isto estava no carro - disse-lhe lynley. veja. são estas as chaves dela?

a expressão do rosto de luxford foi a resposta à pergunta de lynley. mal viu as


chaves, pousou as duas mãos sobre a capota, olhou para o jardim e disse:

- aconteceu alguma coisa.

lynley contornou o mercedes e foi até ao lado oposto. o pneu dianteiro estava em
baixo. agachou-se para ver mais de perto. passou os dedos pelos trilhos e
acompanhou a sua progressão com os olhos. encontrou o primeiro prego a um
quarto da zona superior do pneu. depois, um segundo e um terceiro pregos juntos,
cerca de quinze centímetros acima do primeiro.

- a sua mulher costuma estar em casa a esta hora do dia? - perguntou.

- sempre - respondeu luxford. - ela gosta de passar algum tempo com leo depois das
aulas.

- a que horas terminam as aulas?

luxford ergueu a cabeça. o seu olhar espelhava angústia.

- três e meia.

lynley consultou o seu relógio de bolso. passava das seis. a sua inquietação
aumentou, mas falou de forma razoável.

- podem ter saído juntos.

- ela não deixaria ficar o saco. não deixaria as chaves no carro. nem a porta da
frente aberta. não faria isso. alguma coisa aconteceu com eles.

- sem dúvida que há uma explicação simples - disse lynley. era isso que acontecia
habitualmente. alguém parecia ter desaparecido e, na maioria das vezes, descobria-
se que a pessoa estava ocupada na mais lógica das atividades, atividades de que o
cônjuge tomado de pânico se teria lembrado não fora o pânico o ter dominado.
lynley considerou quais poderiam ser as atividades de fiona luxford, procurando uma
justificação racional perante a apreensão cada vez maior de luxford.

- o pneu dianteiro está em baixo - disse a luxford. - ela pisou em três pregos.

- três?

- por isso pode ter saído a pé com o filho.

- alguém o esvaziou - disse luxford. - alguém esvaziou o pneu. está a ouvir o que lhe
digo? alguém esvaziou aquele pneu.

- não necessariamente. se ela estivesse a preparar-se para ir buscar o miúdo à


escola e tivesse encontrado o pneu em baixo...

- não o teria feito - luxford pressionou as pálpebras com os dedos. - não o faria, está
bem? não permito que ela o vá buscar.
- o quê?

- obrigo-o a vir a pé. obrigo-o a vir a pé da escola. É bom para ele. disse-lhe que era
bom para ele, torna-o mais robusto. oh, meu deus, onde estão eles?

- sr. luxford vamos para dentro e ver se ela deixou algum bilhete. - voltaram a entrar
em casa. mantendo a calma, lynley pediu a luxford que verificasse todos os sítios
onde a mulher pudesse ter-lhe deixado uma mensagem. seguiu-o enquanto ele
percorria o ginásio, na cave, até chegar a uma secretária no segundo andar. não
encontraram nada. em lado nenhum.

- o seu filho tinha algum compromisso para hoje? - perguntou lynley, enquanto
desciam as escadas. o rosto de luxford brilhava com a transpiração. - a sua mulher
tinha algum compromisso? uma consulta médica? dentista? um sítio onde ambos
pudessem ter ido de táxi ou de metro? autocarro?

- sem o saco? sem dinheiro? deixando ficar as chaves do carro? por amor de deus,
use a cabeça.

- vamos eliminar todas as hipóteses, sr. luxford.

- e enquanto eliminamos as malditas hipóteses, ela está algures lá fora... leo está
algures, lá fora... raios partam! - luxford golpeou o corrimão da escada com o punho.

- os pais dela vivem perto daqui? e os seus?

- não há ninguém nas proximidades. não há nada. nada.

- alguns amigos que ela poderia ter ido visitar com o filho? colegas? se ela descobriu
a verdade sobre o que se passou entre o senhor e eve bowen, pode perfeitamente
ter decidido que ela e o filho...

- ela não descobriu a verdade! não há a mais remota hipótese de que ela tenha
descoberto a verdade. ela deveria estar cá em casa ou lá fora, no jardim, ou
passeando de bicicleta, e leo deveria estar com ela.

- ela tem algum diário que possamos...

a porta de entrada abriu-se. ambos se viraram na sua direção quando alguma coisa
do lado de fora a empurrou violentamente. voou até à parede e embateu contra ela.
uma mulher entrou em casa aos tropeções. alta, cabelos cor de mel em desalinho e
leggings cor de vinho raiados de lama, respirava de forma irregular e apertava o
peito como se estivesse a ter um ataque de coração.

- fiona! - gritou luxford, correndo escadas abaixo. - valha-me deus, o que...?

ela levantou a cabeça. lynley viu que ela estava pálida. gritou o nome do marido e
ele amparou-a nos seus braços.
- leo - disse ela. a voz dela soava descontrolada. - dennis, é leo. É leo. leo!

e ergueu as mãos fechadas até ao nível do rosto dele. abriu-as. o boné escolar de
um rapazinho caiu no chão.

a história saiu-lhe aos soluços, arrancada à sua respiração irregular. contava que leo
chegasse até às quatro horas. quando às cinco ele ainda não tinha chegado estava
de tal modo irritada com a falta de responsabilidade dele que decidiu sair à sua
procura, disposta a passar-lhe uma valente reprimenda quando o encontrasse. ele
estava cansado de saber que devia vir sempre diretamente para casa depois da
escola. no entanto, quando tentou conduzir o mercedes através da alameda
descobriu que tinha um pneu em baixo. decidiu então ir a pé.

- percorri todas as estradas que ele poderia ter tomado - disse, enumerando-as para
o marido, como se quisesse comprovar o que dizia. sentou-se na beira de um dos
sofás da sala de estar, as mãos tremendo violentamente enquanto se fechavam
sobre um copo de uísque que luxford lhe servira. ele agachou-se em frente dela,
estabilizando as mãos que seguravam o copo e inclinando-se de vez em quando
para a frente para afastar o cabelo do rosto dela. - e depois de as ter calcorreado
todas, todas as estradas, voltei para casa ao longo do cemitério. e o boné... o boné
de leo... - levou o copo de uísque à boca. os seus dentes bateram no vidro
produzindo um som irregular.

luxford parecia saber o que ela estava a tentar traduzir em palavras.

- no cemitério? - perguntou. - encontraste o boné de leo? no cemitério?

os olhos dela encheram-se de lágrimas.

- mas leo sabe que não deve ir ao cemitério de highgate sozinho. - luxford parecia
perplexo. - eu avisei-o, fiona. avisei-o vezes sem conta.

- É claro que ele sabe, mas é apenas um rapazinho. um rapazinho. É curioso. e o


cemitério... sabes como é. cheio de vegetação, selvagem. um lugar de aventura. ele
passa por lá todos os dias. e terá pensado...

- meu deus, ele falou contigo sobre o fato de ir lá?

- se falou...? dennis, ele cresceu com aquele cemitério praticamente instalado no


jardim das traseiras. ele víu-o. interessa-se por túmulos e catacumbas. tem lido
sobre estátuas e...

luxford voltou a pôr-se de pé. enfiou as mãos nos bolsos e afastou-se dela.

- o quê? - perguntou. a voz dela denotou um aumento de pânico. - o quê? o quê?

virou-se para encará-la.

- incentivaste-o?
- a quê?

- a visitar os túmulos. as catacumbas. a aventurar-se naquele maldito cemitério.


encorajaste-o, fiona? foi por isso que ele lá foi?

- não! respondi-lhe. respondi às perguntas dele.

- que excitaram a curiosidade dele. que estimularam a sua imaginação.

- que é que querias que eu fizesse quando o meu filho me faz perguntas?

- que o levou a trepar o muro.

- estás a atribuir-me a responsabilidade? tu, que insististe para que ele viesse a pé
da escola, que exigiste que eu nunca o tratasse como um bebé com...

- o que, sem dúvida, o colocou no caminho de um depravado que decidiu que


precisava de mudar de ares e de uma tarde no cemitério de highgate, em vez do de
brompton.

- dennis!

lynley interveio rapidamente.

- o senhor está a antecipar-se, sr. luxford. pode haver uma explicação simples para
tudo isto.

- para o diabo com as suas explicações simples.

- temos de telefonar aos amigos do rapaz - prosseguiu lynley. - precisamos de falar


com o diretor da escola de leo e com o seu professor. passaram apenas duas horas
depois da hora a que ele era esperado em casa e é muito provável que estejam a
entrar em pânico sem razão.

como se pretendesse apoiar as palavras de lynley, o telefone soou. luxford


atravessou a sala em passos largos e levantou o auscultador. atendeu com um
cumprimento ríspido. do outro lado do fio alguém falou. segurava o auscultador com
a mão esquerda.

- leo! - disse. a mulher levantou-se de súbito. - onde diabo estás tu? fazes alguma
idéia do estado em que estamos por tua causa?

- onde está ele? dennis, deixa-me falar com ele.

luxford manteve a mão erguida para deter a mulher. ouviu em silêncio durante
menos de dez segundos. então disse:

- quem? leo, quem? raios partam isto. diz-me onde... leo! leo! - fiona agarrou o
telefone. gritou o nome do filho ao auscultador.
escutou, mas obviamente em vão. o telefone caiu-lhe da mão embatendo
ruidosamente no chão.

- onde está ele? - perguntou ao marido. - dennis, o que é que aconteceu? onde está
leo?

luxford virou o rosto para lynley. parecia esculpido em giz.

- levaram-no disse. alguém raptou o meu filho

terceira parte

- a mensagem era quase idêntica à que luxford recebeu acerca de charlotte - disse
lynley a st. james. - a única diferença é que desta vez foi a criança a transmiti-la
pessoalmente.

- reconhece o teu primogênito na primeira página? - perguntou st. james.

- uma pequena variação, apenas. de acordo com luxford, leo terá dito: «tens de
publicar a história na primeira página, papá. nessa altura ele deixará que eu vá
embora.» e é tudo.

- de acordo com luxford - repetiu st. james. - viu que lynley acompanhava o seu
raciocínio.

- quando a mulher de luxford agarrou no telefone, já tinham desligado do outro lado.


por isso a resposta é sim: ele foi a única pessoa que falou com o rapaz. - lynley
pegou no balão que st. james lhe servira, deixando-o ficar sobre a mesa de café do
seu escritório de cheyne row. contemplou, pensativo, o seu conteúdo, como se
esperasse encontrar a resposta que procurava flutuando à superfície. parecia
bastante cansado, notou st. james. a exaustão permanente era inseparável da sua
atividade profissional.

- não é uma idéia agradável, tommy.

- e ainda menos agradável se torna quando se sabe que a história que o nosso
suposto raptor pretende ver publicada na primeira página deverá sair, de fato, na
edição de amanhã do jornal de luxford. houve ainda tempo suficiente para alterar a
página e imprimi-la, depois de termos tido notícias de leo. tudo muito oportuno, não
te parece?

- o que é que fizeste?

- fizera aquilo que a situação exigira, - explicou lynley, apesar do desconforto e das
suspeitas crescentes que sentia em relação a dennis luxford. - alguns agentes
tinham sido destacados para o cemitério de highgate, em busca de provas do
desaparecimento do rapaz. outros patrulhavam os vários percursos que leo poderia
ter seguido depois de ter saído da escola que frequentava em chester road.
fotografias do rapaz tinham sido distribuídas à comunicação social, que deveria
difundi-las juntamente com os blocos noticiosos noturnos na tentativa de avivar a
memória de quem pudesse tê-lo visto. tinham sido ainda instaladas escutas
telefônicas, a fim de localizar todas as chamadas telefônicas recebidas por luxford.

- também extraímos os pregos dos pneus - concluiu lynley. - e analisamos o


mercedes à procura de impressões digitais, ainda que isso de pouco nos vá servir.

- e o porsche?

- os óculos pertenciam a charlotte. eve bowen confirmou-o.

- ela sabe onde eles foram encontrados?

- eu não lhe disse nada.

- ela pode ter tido razão desde o início. acerca de luxford. do seu envolvimento. das
suas motivações.

- pode, mas se assim é então é caso para dizer que estamos em presença de um
talento na arte da dissimulação que dificilmente poderá rivalizar com o de pessoas
como blunt lynley - rodopiou o brande dentro do copo antes de o beber. pousou o
copo na mesa de café e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos
joelhos. - o so4 forneceu-nos um relatório coincidente sobre as impressões digitais.
quem quer que tenha posto o polegar no interior do gravador deixou também uma
impressão digital na casa abandonada de george street. uma no rebordo do espelho
da casa de banho, outra no peitoril da janela. foi um bom trabalho, simon. não sei
quanto tempo teríamos demorado a chegar à casa abandonada, se é que alguma
vez lá teríamos chegado, se não tivesses chamado a nossa atenção para ela.

- tens de agradecer a helen e a deborah. foram elas que a descobriram a semana


passada. ambas insistiram comigo para que lhe desse uma vista de olhos.

ao ouvir estas palavras, lynley olhou fixamente para as mãos. nas suas costas, a
escuridão noturna fazia pressão de encontro às janelas, apenas trespassada por um
candeeiro de rua algumas portas abaixo da casa de st. james. no interior desta, o
silêncio entre os dois homens foi quebrado por algumas notas musicais, que
encheram o ar vindas do último andar da casa, da câmara escura onde deborah
trabalhava. st. james reconheceu a canção, sem conseguir disfarçar um ligeiro gesto
de desconforto: era a ode composta por eric clapton em homenagem ao filho que
perdera. lamentou imediatamente ter mencionado o nome de deborah.

lynley levantou a cabeça.

- o que é que eu fiz? helen disse-me que lhe desferi um golpe fatal. - st. james
percebeu a ironia involuntária sob estas palavras, como se na sua psique existisse
uma ferida muito subtil. sabia, no entanto, que não podia trair a confiança da mulher.

- ela é muito sensível no que diz respeito a crianças - disse. - ainda quer tê-las. e o
processo de adoção avança como moscas atravessando uma floresta de papel
mata-moscas.
- então ela associou o que eu disse acerca de matar crianças à dificuldade que tem
tido em engravidar.

a observação astuta de lynley indicava quão bem ele conhecia deborah. além disso
aproximava-se demasiado da verdade, o que desagradava a st. james. falou sem a
mágoa crua que, segundo julgava, esquecera havia pelo menos doze meses.

- não é tão simples quanto isso.

- não tinha intenção de magoá-la. ela deve saber isso. perdi as estribeiras sem
pensar. mas foi por causa de helen, não de deborah. posso pedir-lhe desculpa?

- transmitir-lhe-ei o que me disseste.

lynley pareceu querer discutir a questão. todavia, a amizade entre eles era
demarcada por certos limites que ele não se atreveria a transpor. este era um deles;
ambos sabiam disso. levantou-se, dizendo:

- a noite passada, deixei-me dominar pelo meu temperamento, simon. havers


preveniu-me e tentou dissuadir-me de vir até aqui, mas não lhe dei ouvidos. lamento
tudo o que se passou.

- não deixei o met assim há tanto tempo que já me tenha esquecido dos efeitos da
tensão - disse st. james. acompanhou lynley até à porta da frente e seguiu-o quando
ele saiu para a noite fria. sentiu a umidade do ar noturno impregnar-se-lhe na pele,
como se uma neblina se elevasse do tamisa, a pouca distância dali.

- hillier está encarregue da comunicação social - disse lynley. - pelo menos não
tenho esse peso em cima dos ombros.

- mas quem é que está encarregue de hillier?

riram, solidários. lynley tirou as chaves do carro do bolso.

- ele queria apresentar um suspeito à comunicação social esta tarde, um mecânico


que havers desencantou em wiltshire e que tinha o uniforme escolar de charlotte
bowen na garagem. era tudo o que tinha, aliás, tanto quanto sabemos. - examinou
as chaves que tinha na mão com uma expressão contemplativa. - o raio de ação é
demasiado abrangente, simon. de londres a wiltshire e só deus sabe quantos outros
pontos entre ambos. gostaria de me fixar em luxford, em harvie, em alguém, mas
começo a pensar que mais de uma pessoa está por detrás do que aconteceu.

- essa era a opinião de eve bowen.

- ela pode estar certa, embora não da maneira que supões. - contou a st. james as
afirmações do deputado alistair harvie acerca de bowen, do ira e dos potenciais
grupos dissidentes no seio do movimento. concluiu dizendo: - este nunca foi o modo
de operar do ira: raptar crianças e depois matá-las. quero recusar esta idéia
liminarmente, mas receio bem que não possa fazê-lo. por isso estamos a investigar
antecedentes, a ver se conseguimos descobrir alguma coisa.

- a governanta é irlandesa - sugeriu st. james. - damien chambers também. o


professor de música.

- a última pessoa que viu charlotte - notou lynley.

- tem pronúncia de belfast, se é que isso tem alguma importância. tem mais
potencial do que a governanta, julgo eu.

- porquê?

- estava acompanhado na noite em que eu e helen fomos visitá-lo, tinha alguém no


andar de cima. afirmou que se tratava de uma mulher e atribuiu o estado de
nervosismo em que se encontrava ao trauma da primeira noite: cenário preparado
para uma noite de sedução e eis que chegam dois estranhos para o interrogarem
sobre o desaparecimento de uma das suas alunas.

- não é uma reação despropositada.

- de modo nenhum. no entanto, existe um outro elo de ligação entre chambers e


aquilo que aconteceu com charlotte bowen. nunca tinha pensado realmente nisso
até teres mencionado o ira.

- que elo é esse?

- o nome. no bilhete enviado a bowen, charlotte é tratada por lottie. e de todas as


pessoas com quem falei acerca da garota, apenas damien chambers e as colegas
de escola se referiam a ela como lottie. por isso, no teu lugar, eu faria algumas
averiguações sobre chambers.

- É mais uma possibilidade - concordou lynley. despediu-se e caminhou até ao carro.


st. james viu o carro dele afastar-se antes de tornar a entrar em casa.

descobriu que deborah ainda não saíra da câmara escura, que ficava no último
andar da casa, embora tivesse desligado a música. terminara a sessão de revelação
e deixara a porta aberta, através da qual ele pôde ver que, apesar do adiantado da
hora, ela ainda não parara de trabalhar. estava inclinada sobre a mesa de trabalho e
observava qualquer coisa através de uma lupa. um dos seus velhos conjuntos de
provas, suspeitou ele. tinha por hábito avaliar o seu crescimento criativo
comparando constantemente o estádio em que se encontrava em dado momento
com as fases anteriores.

absorta na atividade que a prendia ao escritório, não o ouviu quando ele a chamou
pelo nome. ele entrou na câmara escura e, espreitando por cima do ombro dela,
ficou a conhecer o motivo da sua extrema concentração, decidindo de imediato que
não podia dizer-lhe que uma segunda criança havia sido raptada. ela não estava a
observar provas nenhumas. em vez disso, usava a lupa para examinar de perto a
fotografia do corpo de charlotte bowen, que lynley deixara cair sob os olhos dela, no
momento de raiva que o invadira na tarde do dia anterior. st. james esboçou um
gesto na direção da lupa. ela soltou um grito de sobressalto e deixou cair a lupa
sobre a fotografia.

- assustaste-me!

- tommy esteve cá, mas já saiu.

ela baixou as pálpebras. inquieta, passou os dedos pela orla da fotografia.

- pediu desculpa pelas coisas que te disse, deborah. foi a exaltação do momento.
não agiu de forma intencional. ele queria subir para falar contigo pessoalmente, mas
pensei que seria preferível ser eu a dar-te o recado. preferias tê-lo visto?

- o importante não é o que tommy queria dizer. ele disse a verdade. eu mato
crianças, simon. ambos sabemos isso. o que tommy não sabe é que charlotte bowen
não foi a primeira.

st. james sentiu o peso frio do desânimo sobre os ombros. a sua mente bradava:
«agora não, outra vez não.» o seu desejo era desaparecer dali e esperar até que
deborah superasse os terrores que a assaltavam, mas amando-a como amava
obrigou-se a si próprio a ficar, apelando à paciência e à razão.

- já passou muito tempo. de quantos anos precisarás ainda para te perdoares a ti


própria?

- não posso cumprir um prazo qualquer que tenhas estabelecido para mim - replicou
ela. - os sentimentos não são como as fórmulas científicas. não se trata
propriamente de juntar uma pitada de remorso ao entendimento para obter paz de
espírito. eu, pelo menos, não sou capaz de o fazer. aquilo que se passa dentro das
pessoas, dentro de mim, pelo menos, não é o mesmo que combinar moléculas,
simon.

- não estou a sugerir que seja.

- estás, pois. olhas para mim e pensas: muito bem, já passaram uns bons anos
desde que ela teve o aborto, o que de acordo com os meus cálculos deveria ser
tempo mais do que suficiente para que ela tivesse deitado tudo para trás das costas.
e, convenientemente, esqueces aquilo por que tenho passado desde essa altura.
quantas vezes tu e eu tentamos... tornamos a tentar e voltamos a falhar por minha
causa.

- já tivemos esta discussão antes, deborah. e nunca chegamos a lado nenhum. não
te culpo. nunca o fiz. então, porque é que insistes em culpabilizar-te?

- porque é o meu corpo. porque é o meu fracasso. pertence-me, é meu.

- e se fosse meu?

- o quê? - subitamente, fez um ar desconfiado.


- gostarias que me torturasse a mim próprio com recriminações? irias querer que eu
encarasse cada erro que cometesse, cada decisão errada que tomasse, como mais
uma consequência da incapacidade do meu corpo para se reproduzir? achas que
isto é racional?

conseguia senti-la distanciar-se da conversa. as feições dela tornavam-se mais


ausentes à medida que ela se refugiava dentro de si mesma.

- ora aí tens a origem dos nossos conflitos - disse, educadamente. - tu queres que
eu pense de forma racional.

- dificilmente poderás considerar que se trata de um desejo insensato.

- tu não queres que eu sinta.

- o que eu quero - disse ele, - é que tu penses sobre o que estás a sentir. e estás a
fugir ao que te perguntei, por isso responde à pergunta.

- qual delas?

- gostarias que eu me torturasse por causa de algo que o meu corpo é incapaz de
fazer? algo que eu próprio posso ter causado, mas também algo que neste momento
está completamente fora do meu controle? querias que me torturasse por isso?

ela ficou calada. baixou a cabeça e deixou escapar um suspiro descompassado.

- claro que não. como é que posso contra-argumentar em relação a isso? oh, claro
que não, claro que não, simon. perdoa-me.

- podemos então enterrar este assunto?

- podemos tentar. eu posso tentar. mas isto - tocou a curva da cabeça de charlotte
bowen, retratada na fotografia. soltou um suspiro profundo. - o que se passa é o
seguinte: fui eu que te pedi para interferires. tu não estavas disposto a isso. não
querias. no entanto, pedi-te e fizeste-o por mim.

ele inclinou-se e pegou na fotografia. rodeou os ombros dela com o braço e


empurrou-a para fora da câmara escura, conduzindo-a para o laboratório adjacente.
colocou a fotografia de charlotte bowen, virada para baixo, sobre a mesa de trabalho
mais próxima. quando falou, tinha o rosto muito próximo do cabelo de deborah.

- escuta-me, meu amor. o teu poder sobre o meu coração é absoluto. nunca te
contrariarei quanto a isso. mas quem controla a minha mente e a minha vontade sou
eu. tu podes ter-me pedido que me ocupasse do desaparecimento de charlotte
bowen, mas o simples fato de pedires não faz de ti responsável. sobretudo quando a
decisão final foi minha. estamos esclarecidos sobre isso, agora?

ela virou-se e facilmente se aninhou nos braços dele.

- É por causa de quem és e do que és - sussurrou ela, em resposta à pergunta que


ele não formulara. - quero tanto fazer um filho contigo por causa da pessoa que és e
daquilo que és. se fosses um homem menos nobre, acho que nem o fato de
fracassar me incomodaria.

ele apertou-a ainda mais contra si. abriu por completo o seu coração sem se
importar com as consequências, fossem elas quais fossem, como era próprio do
sentimento amoroso.

- deborah, acredita em mim - retorquiu, - o mais fácil é fazer uma criança.

dennis luxford encontrou a mulher na casa de banho. a mulher-polícia que estava na


cozinha limitara-se a informá-lo de que antes de subir fiona pedira para que a
deixassem ficar sozinha, pelo que o primeiro sítio onde luxford a procurou, depois de
regressar do the source, foi no quarto de leo. este, porém, estava vazio. hirto, virou
costas ao livro de arte, aberto sobre a secretária de leo, e desviou o olhar de um
esboço inacabado da virgem de giotto, amparando o corpo do seu filho. teve a
sensação de que coágulos de sangue lhe obstruíam o peito e descobriu que
precisava de parar um pouco no limiar até conseguir voltar a respirar sem esforço.

espreitava para dentro de todos os quartos à medida que ia passando por eles.
chamava suavemente pela mulher, porque a suavidade parecia ser a escolha certa
para o momento, e mesmo que assim não fosse não seria capaz de agir de outra
forma. percorreu o escritório, a sala de costura, os quartos de arrumações e o quarto
deles. quando a descobriu, deu com ela sentada no chão da casa de banho, luzes
apagadas, com a testa apoiada nos joelhos e a cabeça coberta pelos braços. a
claridade da lua, filtrada pelas folhas das árvores do lado de fora da janela da casa
de banho criava uma penumbra que se projetava sobre o mármore. sobre este jazia
o celofane amarfanhado de uma enorme embalagem de biscoitos com compota, ao
lado da qual se via também um pacote de leite vazio. luxford sentia o odor
desagradável a vomitado, que se espalhava pelo ar sempre que a mulher expirava.

levantou do chão a embalagem de biscoitos vazia e colocou-a no caixote de lixo,


juntamente com o pacote de leite. reparou nos pãezinhos com figos ainda intatos
que estavam ao lado de fiona e colocou-os de igual modo no lixo, cobertos com o
papel de celofane dos outros biscoitos, na esperança de que ela não viesse a
descobri-los mais tarde.

agachou-se em frente da mulher. quando ela ergueu a cabeça viu o suor que cobria
o rosto dela, apesar da claridade difusa que os envolvia.

- não comeces a fazer isto a ti própria outra vez - pediu luxford. - ele estará em casa
amanhã. prometo-te.

os olhos dela tinham um brilho inexpressivo. apática, tentou alcançar os pãezinhos e


viu que tinham desaparecido.

- quero saber, e quero saber agora.

teria saído sem dizer uma palavra. em resposta às súplicas angustiadas que ela lhe
lançaria, perguntando: o que é que se está a passar, onde está ele, o que é que
estás a fazer, onde vais, gritaria apenas que ela precisava de se controlar, que
precisava de se acalmar, que precisava de deixá-lo voltar para o jornal onde poderia
publicar a história que traria o filho deles de volta. ela protestaria, que história? que é
que se está a passar? onde está leo? que tem leo a ver com uma história? e
agarrar-se-ia a ele tentando impedir que ele a deixasse sozinha. ele, no entanto,
libertar-se-ia dela com um puxão violento e acabaria mesmo por deixá-la,
regressando a holborn de táxi, dilacerado e amaldiçoando a polícia por ter-lhe
confiscado o porsche com o qual poderia ter encurtado o percurso até ao emprego,
em vez de ter de se sujeitar à marcha lenta do pesado austin e à companhia do seu
motorista fumador.

baixou-se. esforçou-se por encontrar uma forma de lhe contar tudo o que tinha
sucedido nos últimos seis dias, bem como os fatos ocorridos há perto de onze anos
e que constituíam a história dos últimos seis dias. apercebeu-se de que deveria ter
trazido para casa a história do the source, para que ela pudesse lê-la. teria sido mais
simples do que procurar inutilmente uma forma de introduzir o assunto que
atenuasse o impacte daquilo que tinha para lhe contar acerca da mentira em que
vivia havia mais de uma década,

- fiona - começou ele, - engravidei uma mulher durante o congresso de um partido


político, há onze anos atrás. a criança, uma rapariga chamada charlotte bowen, foi
raptada na passada quarta-feira. o raptor queria que eu confessasse que era o pai
dela na primeira página do jornal. não o fiz. ela foi encontrada morta no domingo à
noite. o mesmo homem, aquele que raptou charlotte, tem agora leo. quer que a
história seja publicada no jornal, o que vou fazer amanhã.

fiona entreabriu os lábios para falar, mas não disse nada. então, lentamente, os seus
olhos fecharam-se e ela desviou a cabeça para o outro lado,

- fi - disse ele, - foi só uma coisa passageira que aconteceu entre mim e essa outra
mulher. não estávamos apaixonados, não teve qualquer significado. houve apenas
uma atração física entre nós e nenhum dos dois a evitou.

- por favor - disse ela.

- tu e eu não éramos casados - disse ele, ansioso para que tudo ficasse esclarecido
entre ambos. - já nos conhecíamos, mas não estávamos envolvidos um com o outro.
tu tinhas dito que ainda não estavas preparada para isso. lembras-te?

ela ergueu a mão e manteve-a cerrada, no espaço entre os dois seios.

- foi sexo, fiona. não houve mais nada entre nós senão sexo. foi apenas sexo.
descuidado. desprovido de afeto. uma coisa que aconteceu e que depois foi
esquecida pelos dois. - estava a falar demais, mas não conseguia parar. precisava
de encontrar as palavras adequadas, para que, ao ouvi-las, ela fosse compelida a
reagir e a dar-lhe um sinal de que compreendia, ou pelo menos que lhe perdoava. -
não significamos nada um para o outro. fomos apenas corpos numa cama. fomos...
não sei. fomos, é só.
ela virou de novo o rosto para ele, num movimento apático. perscrutou as feições
dele, como se nelas procurasse ler a verdade e falou, numa voz inexpressiva:

- sabias da existência da criança? essa mulher contou-te? soubeste desde o início?

ele pensou em mentir. não conseguiu fazê-lo, porém.

- ela contou-me.

- quando?

- tenho conhecimento da existência de charlotte desde o início.

- desde o início - a frase foi dita num sussurro, como se ela meditasse sobre o seu
significado. repetiu-a. depois tentou alcançar uma toalha verde e felpuda, que estava
pendurada num suporte. puxou-a para baixo e enfiou-a, feita numa bola, entre os
braços. começou a chorar.

num estado deplorável, luxford fez menção de a agarrar. ela encolheu-se.

- desculpa - disse ele.

- tudo isto foi uma mentira.

- o quê?

- a nossa vida. o que somos um para o outro.

- isso não é verdade.

- eu não te escondi nada. mas isso não teve qualquer significado, porque durante
todo este tempo, tu... quem realmente eras... quero o meu filho - chorou. - agora.
quero leo. quero o meu filho.

- trá-lo-ei, amanhã. juro-te, fi. pela minha vida, juro-te.

- não podes - choramingou. - não tens poder para isso. ele vai fazer com ele o
mesmo que fez com a outra criança.

- não vai, não. não vai acontecer nada com leo. eu estou a fazer o que ele me pediu.
não o fiz por charlotte, mas vou fazê-lo agora.

- mas ela está morta. está morta. ele é um assassino agora, para além de ser um
raptor. como podes pensar que com um homicídio a pesar-lhe sobre os ombros, ele
vai deixar que leo...

ele segurou-a pelos braços.

- escuta-me. seja quem for que está a manter leo preso não tem quaisquer razões
para magoá-lo, porque não tem qualquer desavença comigo. aquilo que aconteceu,
aconteceu porque alguém estava interessado em destruir a mãe de charlotte e
descobriu uma forma de o fazer. ela é membro do governo. É ministra. alguém
investigou o passado dela e descobriu o que aconteceu comigo. o escândalo, quem
eu sou, quem ela é, o que aconteceu entre nós, o modo como ela fingiu ao longo de
todos estes anos, o escândalo acabará com ela. e é essa a explicação para tudo
isto: destruir eve bowen. ela escolheu manter-se em silêncio quando charlotte
desapareceu. persuadiu-me a fazer o mesmo. agora, porém, que leo foi raptado, não
estou disposto a ficar calado. a situação é outra. e ninguém vai fazer mal a leo.

ela tinha a toalha na boca. observava-o por cima dela. os olhos enormes refletiam
uma expressão assustada. parecia um animal encurralado, enfrentando a morte que
lhe estava destinada.

- fiona, confia em mim - disse-lhe. - prefiro morrer a deixar que alguém faça mal ao
meu filho.

ouviu o que acabara de dizer antes que o silêncio tivesse tido oportunidade de se
instalar no seguimento das suas palavras. podia ler no rosto dela que ela também
ouvira. aliviou a pressão sobre os braços dela. sentiu que as suas afirmações e a
condenação implícita do seu comportamento o esmagavam.

disse aquilo que sabia que a mulher estava a pensar. era melhor para ele traduzi-lo
por palavras do que ter de a ouvir dizê-lo.

- ela também era minha filha. não fiz nada. e era minha filha. - uma angústia súbita
brotou dentro dele. era a mesma angústia que ele refreava desde que vira as
notícias e receara o pior, no domingo à noite. agora, porém, era amplificada pela
culpa de ter abdicado da sua responsabilidade para com uma vida em cuja criação
participara, e aprofundada pela consciência de que a sua inação ao longo dos
últimos seis dias culminara no rapto do seu filho. afastou-se da mulher, incapaz de
enfrentar a expressão do rosto dela.

- deus me perdoe - disse ele. - o que é que eu fiz? - ficaram os dois sentados no
escuro. estavam a escassos centímetros de distância um do outro, mas não se
tocaram, um deles não se atrevendo a isso, o outro não querendo fazê-lo. luxford
sabia o que a mulher estava a pensar: carne da sua carne, charlotte fora filha dele,
tanto quanto leo era, e ele não se apressara independentemente das consequências
a ir em seu socorro. o que ele desconhecia eram as conclusões a que ela chegara
sobre o que a sua inação revelava acerca do homem a quem ela estava ligada por
dez anos de casamento. queria chorar, mas há muito que perdera a habilidade de se
autodepurar por intermédio da emoção. não era possível ter trilhado o caminho que
escolhera tantos anos antes, quando chegara a londres, continuando a ser uma
criatura sensível. se não o sabia antes, agora via que isso era impossível. nunca se
sentira tão perdido.

- não posso dizer que não tiveste culpa - murmurou fiona. - quero dizê-lo, den, mas
não posso.

- não espero que o digas. eu poderia ter feito qualquer coisa. deixei-me conduzir. era
mais fácil, porque se tudo desse certo, tu e leo nunca ficariam a conhecer a verdade.
que era aquilo que eu queria.

- leo - fiona proferiu o nome dele, titubeante. - leo teria gostado de ter uma irmã mais
velha. teria gostado muito, penso eu. e eu... eu ter-te-ia perdoado tudo.

- exceto a mentira.

- talvez. não sei. não sou capaz de pensar nisso agora. só consigo pensar em leo,
naquilo por que ele está a passar, como deve estar assustado, como deve estar a
sentir-se sozinho e preocupado. apenas consigo pensar nisso. e no fato de que pode
ser já demasiado tarde.

- eu vou trazer leo de volta - disse luxford. - ele não vai fazer-lhe mal. não
conseguirá o que pretende, se o fizer. e amanhã de manhã, terá o que pretende.

fiona continuou como se o marido não tivesse falado.

- estive a pensar em como tudo isto poderá ter acontecido. a escola não é muito
distante, não fica sequer a uma milha daqui. as ruas são seguras ao longo de todo o
percurso. não há sítio onde alguém se possa esconder. se alguém o agarrou no
passeio, era impossível ter passado despercebido. mesmo que alguém o tivesse
atraído para o cemitério, qualquer outra pessoa ter-se-ia apercebido disso. e se
pudermos encontrar essa pessoa...

- a polícia está à procura.

- ... encontraremos leo. mas se ninguém viu... - tropeçou na palavra.

- não faças isso - disse luxford. ela prosseguiu, indiferente.

- se ninguém observou nada fora do comum, não vês o que isso significa?

- o quê?

- significa que a pessoa que levou leo é alguém que ele conhece. ele não seguiria
um desconhecido de sua livre vontade.

rodney aronson chamou mitch corsico com um aceno indiferente, no momento em


que este entrou no bar de holborn street. o repórter inclinou a cabeça para mostrar
que o reconhecera, parou para trocar algumas palavras com dois jornalistas rivais do
globe e atravessou a cortina de fumo com a confiança de um homem que sabe que
encontrou a história da sua vida. as botas de cowboy ressoavam no pavimento
polido com uma cadência bem timbrada. o seu rosto ostentava uma expressão
radiante. de fato, todo ele parecia estar prestes a entrar em levitação. como era tolo!

- obrigado por te encontrares comigo, rod - corsico tirou o chapéu e puxou uma
cadeira, virando-a de costas para a mesa. passou uma das pernas por cima dela e
sentou-se à maneira típica dos cowboys.
rodney inclinou a cabeça. espetou o garfo numa lula em forma de argola e engoliu-a
juntamente com um trago de chianti. acalentara a esperança de que a zurrapa lhe
provocasse um zumbido nos ouvidos, mas até esse momento o líquido limitara-se a
assentar imbecilmente no estômago, sem que no interior do seu cérebro ressoasse
o mais pequeno vestígio de um zunido.

corsico leu cuidadosamente a ementa e pô-la de lado. atirou - um moderno


cappuccino duplo, sem canela e uns biscoitos de chocolate - a um empregado que
passava por eles nesse momento e puxou do bloco-notas. lançou um olhar
cauteloso na direção dos repórteres do globe com quem acabara de falar e
prolongou o olhar pelas mesas vizinhas, a fim de detectar se havia alguém à escuta.
três mulheres obesas, com o tipo de corte de cabelo que rodney associava sempre
às feministas radicais e às fressureiras agressivas ocupavam a mesa mais próxima
da deles, e a avaliar pelos seus comentários acerca do «maldito movimento» e
«daqueles porcos do caraças». rodney não tinha dúvidas de que nenhuma delas
tinha o mínimo de interesse nas informações que corsico insistia em comunicar-lhe
num local seguro mas neutro. apesar de tudo decidiu conceder ao jovem repórter a
possibilidade de viver o seu momento de conjura, manteve-se calado quando corsico
se curvou para a frente e, inclinado sobre o bloco-notas e a mesa, arqueou os
ombros para proteger a informação que recolhera.

- merda, rod - disse. rodney reparou que ele falava pelo canto da boca: alec
guinness embrenhado numa conversa sub-reptícia em local público com um espião
influente. - descobri, e é escaldante. nem vais acreditar.

rodney espetou o garfo noutra lula. juntou um pouco de pimenta para aquecer um
pouco mais o molho, de si já picante. o vinho não estava a subir-lhe à cabeça tanto
quanto desejava, por isso talvez a pimenta atingisse pelo menos as cavidades.

- o que é?

- comecei pelo congresso do partido conservador, o de blackpool, percebes?

- percebo.

- vasculhei as histórias do telegraph sobre ele. as que ela enviou antes, durante e
depois. estás a acompanhar?

- já não pisamos este terreno antes, mitch? - depois de tudo o que ele descobrira
nas últimas duas horas, o fato de corsico estar a insistir num encontro clandestino
que não seria outra coisa a não ser uma nova versão daquilo que ele já sabia era
mais do que inquietante para rodney, era um insulto à sua inteligência. mastigou com
vigor.

- espera - disse corsico. - comparei essas histórias com o congresso propriamente


dito e depois com o que estava a acontecer na vida dos protagonistas dessas
mesmas histórias antes, durante e depois do congresso.

corsico arrancou as notas de cima da mesa quando o empregado apareceu com o


cappuccino duplo e os biscoitos de chocolate. a bebida vinha servida numa chávena
quase do tamanho de um lavatório. «À sua», disse o empregado, e corsico
mergulhou no líquido o que parecia ser um abaixa-língua coberto por nós de
plástico. «açúcar», explicou perante o olhar inquisidor de rodney. mexeu o pauzinho
para cima e para baixo como se fosse um piassaba. derrete-se no espresso.

- maravilha!

corsico levou o cappuccino aos lábios levantando-o com as duas mãos. o líquido
desenhou-lhe um bigode de espuma, que ele limpou à manga da camisa
axadrezada. era um bebedor sonoro, observou rodney com um arrepio. não havia
nada mais repugnante do que ouvir alguém sorvendo um líquido qualquer ao nosso
lado enquanto uma pessoa estava a tentar comer.

- pelas histórias que ela enviava do congresso até parecia que estava a cobrir o
acontecimento do século - continuou corsico. - era como se tivesse medo que
alguém fosse retirar-lhe as ajudas de custo, se não conseguisse justificar o bem-
bom que estava a viver em blackpool. escrevia entre um a três artigos por dia.
merda. acreditas nisto? e que seca que aquilo era! levei uma eternidade a ler tudo e
depois a compará-los com aspectos que me parecessem interessantes relacionados
com a vida dos principais intervenientes. mas consegui. - abriu o bloco-notas e em
seguida encaixou o biscoito de chocolate, que fazia lembrar um charuto, entre os
molares. mordeu. voaram migalhas.

rodney afastou uma num dos lados da sua taça.

- e? - disse.

- o primeiro-ministro - disse corsico. - claro que ele não era primeiro-ministro na


altura, mas isso piora ainda mais a situação, não é? faz com que ele tenha algo de
significativo a esconder, aqui e agora.

- como é que juntaste isso tudo? - perguntou rodney, curioso e mais uma vez
intrigado pelo intrincado mecanismo da imaginação humana.

- com muito trabalho de sapa, deixa-me que te diga - corsico chupou mais um pouco
de cappuccino e regressou às suas notas. - duas semanas depois do congresso de
blackpool, o primeiro-ministro e a mulher separaram-se.

- ah, sim?

corsico sorriu mostrando os dentes. tinha uma lasca de chocolate entalada entre
dois dentes.

- não sabias isso, pois não, espero? a separação durou nove meses e, tanto quanto
sabemos, não acabou em divórcio. no entanto, pensei que estes nove meses eram
um período de tempo interessante, vendo bem, não achas?

- nove meses faz-me pensar em todo o tipo de coisas - disse rodney. acabou de
comer as lulas e serviu-se de um último copo de vinho. - talvez queiras dizer-me que
tipo de coisas são essas.
- espera só até ouvires - feliz, corsico ajustou as nádegas na cadeira. - falei com
cinco criadas diferentes, que trabalharam no hotel onde decorreu o congresso. três
delas ainda lá trabalham. duas confirmaram que o primeiro-ministro estava
acompanhado de uma mulher, só à noite, vê lá tu, nada oficial, que não era a mulher
dele. agora, o que eu me proponho fazer amanhã é arranjar algumas fotografias de
bowen datadas da época de blackpool e ver se consigo que uma das criadas me
confirme que ela era a querida do primeiro-ministro. se qualquer das duas fizer
isso...

- que é que lhes ofereceste?

corsico pareceu confuso durante alguns instantes e mastigou ruidosamente


enquanto refletia sobre a pergunta.

- vamos pagar-lhes pela história ou damos-lhe só os quinze minutos a que têm


direito numa das páginas interiores do the source?

- ora, rod - protestou corsico, - se elas prestarem declarações hão-de querer ser
recompensadas pelo stress envolvido. foi assim que sempre agimos. certo?

- errado - suspirou rodney. limpou a boca ao guardanapo e pousou-o na mesa,


amarfanhado. perante o olhar confuso de corsico, claramente incapaz de
compreender a mudança súbita que se operara na filosofia de publicação do seu
próprio jornal, rodney meteu a mão dentro de uma das espaçosas algibeiras do seu
casaco de caqui e tirou a edição do dia seguinte, com as transformações
introduzidas na primeira página. esta atraíra a sua atenção graças a um telefonema
de um dos editores de atualidades, um homem cuja lealdade rodney lograra
conquistar em troca do seu silêncio relativamente à vida fora de horas que o outro
levava num dos antros mais aviltantes de soho. desdobrou-o na frente do repórter e
disse: - hás-de querer dar uma vista de olhos nisso. É escaldante, como se costuma
dizer, acabadinho de sair das malditas impressoras.

rodney observou corsico enquanto este lia o que ele próprio memorizara enquanto
aguardava a chegada do repórter. o título, composto a trezentos e trinta pontos e a
fotografia que o acompanhava eram bastante elucidativos: pai da filha de bowen dá
a cara era a justificação para a caneca de dennis luxford que decorava a primeira
página. quando corsico a viu, estendeu a mão às cegas para o cappuccino. lia e
sorvia com idêntica sofreguidão. deteve-se uma vez para dizer «raios me partam»,
mas retomou furiosamente a leitura do jornal sem exigir resposta. isso, rodney sabia-
o, era o que toda a gente iria fazer mal este jornal chegasse às ruas na manhã
seguinte. ultrapassaria as vendas do globe, do mirror e do sun, em pelo menos um
milhão de cópias. teria de haver uma continuação, e as edições em que a história
aparecesse superariam, por sua vez, as vendas do globe, do mirror e do sun.

rodney olhava, carrancudo, enquanto corsico realizando o sonho de todo o jornalista


acompanhava avidamente a história, procurando a página interior onde a mesma
continuava. quando chegou ao fim recostou-se na cadeira e fitou rodney.

- caramba - disse. - rodney. merda.


- exatamente - disse rodney.

- porque é que ele fez isto? isto é, em que é que ele se tornou agora, num homem
com consciência, ou coisa parecida?

ou coisa parecida, pensou rodney. ou decididamente coisa parecida. dobrou o jornal


e voltou a metê-lo no bolso.

- raios partam isto - disse corsico. - merda. que diabo. eu teria jurado que a minha
história sobre o primeiro-ministro era tão sólida quanto... - desviou o olhar para
rodney. - hei. espera um segundo. não acreditas que luxford esteja a encobrir
downing street, pois não? caramba, rod. será que ele é um conservador disfarçado?

- disfarçado é que ele não é - disse rodney, mas o homem mais jovem não percebeu
a ironia.

-É óbvio que agora os nossos números vão subir em flecha, não é verdade? - disse
corsico. - e o presidente vai pôr-lhe um par de patins. mas os números do jornal têm
vindo a subir de forma constante desde que luxford entrou a bordo. então porque é
que ele fez isto? que raio significa tudo isto?

- significa - disse rodney, afastando a cadeira da mesa e fazendo sinal ao


empregado para que lhe trouxesse a conta, - que o tiroteio está oficialmente
terminado. por agora.

corsico fitou-o com uma expressão vazia. rodney explicou.

- os chapéus pretos contra os chapéus brancos? dodge city? tombstone? o o.k.


corral? situa a coisa onde te apetecer, mitchell. vai tudo dar ao mesmo.

- o quê? - perguntou corsico.

rodney olhou para a conta e tirou o dinheiro. atirou as vinte libras para cima da
mesa, da mesma forma que decidira atirar a toalha ao chão.

- os tipos de chapéu preto ganharam - disse.

derreada, não era este o adjetivo mais adequado para descrever o modo como
barbara havers se sentia quando parou o mini no cimo da alameda que dava acesso
a lark’s haven. sentia-se cansada, esgotada, arrasada e exausta. escutou
apaticamente o gargarejar do motor do carro durante uns bons quinze segundos,
antes que ele sucumbisse por fim à falta de gasolina. quando aquele milagre da
mecânica moderna finalmente se concretizou, desligou os faróis e empurrou a porta.
contudo, não saiu.

o dia revelara-se em grande parte um fiasco. agora estava a tornar-se um imbróglio.


falara com lynley, que a pusera ao corrente do desaparecimento de leo luxford numa
conversa que consistira na concisa enumeração de fatos por lynley e nas suas
próprias exclamações. o quê? diabo! o quê?, proferidas com uma intensidade
crescente a cada nova revelação. não tinham uma única pista sobre o paradeiro do
garoto de oito anos, concluíra ele, e apenas podiam contar com a palavra do pai da
criança que garantia ter falado com o filho ao telefone.

- qual é a sua opinião, então? - perguntara barbara. - como é que anda o nosso
luxford nos dias que correm?

a resposta de lynley foi lacônica. - não podiam correr o risco de tratar o caso como
se fosse algo mais do que um rapto, - dissera ele. e era precisamente assim que ele
iria agir em londres, conjuntamente com a investigação do caso bowen. ela deveria
persistir na investigação do crime em wiltshire. não restavam dúvidas de que os dois
casos estavam relacionados.

- que é que conseguiu? - quis ele saber.

foi forçada a confessar o pior. depois do seu último confronto com o sargento stanley
a propósito do destacamento de uma equipe de peritagem, exercera a sua influência
junto do departamento de investigação criminal de amesford. irritara o sargento
stanley e tivera uma altercação moderada com o oficial superior do sargento acerca
da falta de cooperação de stanley. não mencionou, nem o isqueiro do sargento nem
a atitude dele em relação a ela. lynley ter-se-ia mostrado muito pouco solidário para
com ela e teria opinado que se era sua intenção singrar num mundo que era acima
de tudo território masculino teria de aprender a desempoeirar-se e a não deixar-se
ficar à espera que o seu oficial superior da scotland yard solucionasse as questões
no seu lugar.

- ah - dissera ele. - a rotina do costume, então?

ela prosseguiu com as outras informações que incluíam o seu triste relatório daquele
dia. conseguira que a equipe de peritos fosse destacada para ford, a fim de
examinar o pombal da quinta de alistair harvie, que parecera tão promissor. a mulher
de harvie, numa atitude muito cooperante, permitira que a equipe examinasse o
edifício, mas isso não convencera barbara da inocência total do deputado na
questão do desaparecimento da garota. em vez disso, barbara concluíra que a
mulher de harvie, ou era uma excelente atriz ou desconhecia por completo o
comportamento perverso que o marido assumia nas suas costas. e embora fosse
difícil acreditar que uma garota de dez anos de idade pudesse ter sido mantida
fechada num pombal situado a uns escassos trinta metros da casa da quinta sem
que a sra. harvie tivesse conhecimento do fato, não era menos certo que as
circunstâncias desesperadas apelam a conclusões igualmente desesperadas: desde
que houvesse uma possibilidade de charlotte ter estado no pombal, barbara exigiria
que este fosse examinado.

não lucrou nada com o exercício, a não ser a antipatia categórica da equipe de
peritos. o que não era nada, quando comparado com o que as pombas sentiram.

a única luz ao fundo do túnel de desilusões que fora aquele dia fora a informação
fornecida pelos médicos-legistas de que os componentes da gordura encontrados
nas unhas de charlotte bowen coincidiam na perfeição com os componentes de
gordura encontrados na garagem de howard short, em coate. no entanto, as duas
amostras de gordura pertenciam a uma marca de gordura de eixo muito conhecida,
e barbara era forçada a admitir que o fato de se descobrir este tipo de gordura nas
unhas de quem quer que fosse ou onde quer que fosse, numa comunidade agrícola,
era um fato tão arrasador como encontrar escamas de peixe nas solas dos sapatos
de alguém que trabalhasse em billingsgate market.

a sua única esperança de conseguir uma pista consistente, nesta fase dos
acontecimentos, estavam inteiramente depositadas no agente payne. recebera
quatro mensagens telefônicas dele ao longo do dia, cada uma delas assinalando os
seus progressos pela região. a primeira fora feita de marlborough. as seguintes de
swindon, chippenham e warminter. tinham finalmente conseguido falar um com o
outro por ocasião do último telefonema dele, já o dia ia muito adiantado, no
momento em que barbara regressava à esquadra de amesford, vinda da incursão
menos que vitoriosa ao pombal de harvie.

- pareces abatida - comentou robin.

barbara fez-lhe um resumo dos acontecimentos do dia, começando com a autópsia


e terminando com o desperdício de tempo e de recursos humanos no pombal. ele
escutou tudo em silêncio, a partir da cabina telefônica onde se encontrava - ouvia-se
o estridor produzido pelos caminhões que circulavam por perto - e quando ela se
calou, disse com astúcia: - e o sargento stanley também está armado em estúpido,
não está? - não lhe deu tempo para responder, prosseguindo: - É o feitio dele,
barbara. não é nada pessoal. ele tenta esse jogo com toda a gente.

- muito bem. bom - barbara tirou um cigarro do maço e acendeu-o.

- não estamos completamente secos em matéria de pistas, aqui deste lado. - e


informou-o sobre o uniforme de charlotte bowen, o sítio onde tinha sido encontrado e
o lugar onde howard short, o mecânico, afirmava tê-lo adquirido.

- também tenho as minhas pistas - dissera robin. - as esquadras locais têm fornecido
respostas para algumas questões que o sargento stanley nunca se lembrou de
perguntar.

não adiantara mais do que isto. todavia, a sua voz denunciava uma excitação que
parecia ansioso por controlar, como se não fosse apropriado para um agente deixar-
se dominar por este tipo de emoção.

- tenho ainda mais algumas investigações a fazer aqui por estes lados - limitou-se a
acrescentar. - se for sólido serás a primeira a saber.

barbara sentia-se grata pela consideração demonstrada pelo agente. já fizera


estragos suficientes com stanley e com o oficial superior deste, durante o dia que
agora terminava. seria agradável obter qualquer coisa - uma pista capaz, uma prova,
uma testemunha ocular fosse lá do que fosse - que pudesse anular os danos que
infligira à sua credibilidade, depois da deslocação infrutífera da equipe de
investigadores ao pombal.
passara o resto do dia e uma boa parte da noite reunindo os relatórios dos agentes
que ainda trabalhavam incansavelmente segundo a grelha organizada pelo sargento
stanley. para além do mecânico, que tinha em seu poder o uniforme escolar de
charlotte não tinham encontrado mais nada. mal acabara de falar com lynley, e
depois de ter ficado a saber do desaparecimento de leo luxford, voltara a reunir as
equipes no gabinete, pondo-as ao corrente do segundo rapto e distribuindo a
fotografia do rapazinho, assim como algumas estatísticas vitais.

agora, saía a custo de dentro do mini e arrastava-se pesadamente através da


escuridão em direção à casa, armando-se de uma capa de insensibilidade para mais
uma imersão no pesadelo laura ashley que era lark’s haven. corinne payne dera-lhe
uma chave da porta principal, pelo que barbara se encaminhou para lá, em vez de
entrar pela cozinha como acontecera na noite do dia anterior, quando chegara com
robin.

as luzes da sala de estar estavam acesas, e no momento em que fez girar a chave
na fechadura e abriu a porta ouviu a voz arquejante e asmática de corinne, que
chamava: - robbie? anda cá ver uma surpresa, meu querido.

o tom de comando obrigou barbara a deter-se. um arrepio percorreu-lhe o corpo.


demasiadas vezes ela própria tivera de ouvir um chamamento quase idêntico àquele
barbie? barbie? És tu, barbie? anda cá ver, anda cá ver e demasiadas vezes,
também, respondera e dera com a mãe deambulando sem destino no vasto
descampado da sua demência galopante: planeando talvez umas férias num destino
que ela nunca chegaria a conhecer, ou acariciando e dobrando as roupas de um
irmão, morto havia já duas décadas, ou sentada de pernas afastadas no chão da
cozinha fazendo biscoitos com farinha, açúcar e compota, diretamente sobre o
linóleo amarelo e sujo.

- robbie? - corinne arfava, como se precisasse de dedicar alguns minutos ao


inalador. - És tu, querido? o meu sammy acabou de sair, mas ainda temos uma visita
conosco e eu insisti para que ela não mexesse nem um dedo até que chegasses a
casa. parece-me que vais querer vê-la de imediato.

- sou eu, sra. payne - disse barbara. - robin ainda está a trabalhar.

corinne soltou um oh eloquente. É só a lesma, parecia querer dizer. estava sentada


a uma mesa de jogo, que tinha sido armada no centro da sala. em curso estava um
jogo de scrabble, e corinne tinha como adversária uma mulher jovem, atraente, de
rosto sardento e uma cabeleira cor de champanhe penteada num estilo moderno.
atrás delas, nas prateleiras encaixadas na parede, um canal de televisão, sem som,
exibia um filme antigo de elizabeth taylor. barbara observou o filme. taylor envolta
em chiffon, peter finch em traje de cerimônia, integrados num cenário representando
uma uivante selva artificial e um carrancudo mordomo nativo. elephant walk,
concluiu. sempre adorara a cena climática em que os paquidermes finalmente
desfaziam a moradia de peter finch em mil pedaços.

uma terceira cadeira estava posicionada junto à mesa de jogo, e o pequeno suporte
para segurar as letras do scrabble estava ainda de pé, assinalando o lugar onde
sam corey estivera sentado. corinne viu o olhar de barbara colar-se a este terceiro
lugar e, casualmente, removeu o suporte extra, não fosse barbara decidir deixar-se
cair pesadamente na cadeira disposta a fazer várias tentativas para obter
pontuações duplas e triplas formando palavras. ela era, afinal, o diabo em pessoa e
corinne devia ter-se apercebido disso instintivamente.

- esta é célia - corinne apresentou a companheira. - já devo ter mencionado que ela
é a...

- oh, por favor, sra. payne. não diga isso - célia falou no meio de uma gargalhada
embaraçada e as faces redondas tingiram-se de um intenso rubor. tinha uma figura
roliça sem ser gorda, era o tipo de mulher que se via confortavelmente nua e
reclinada em sofás sumtuosos, em pinturas intituladas odalisca. «era esta, então, a
futura nora», pensou barbara. por alguma razão sentia uma certa satisfação ao
perceber que robin não era o tipo de homem que precisasse de uma mulher com um
corpo esquelético.

barbara estendeu a mão por cima da mesa e disse: - barbara havers. scotland yard,
departamento de investigação criminal. - depois sentiu-se intrigada, sem saber por
que razão acrescentara esta última informação, era como se não tivesse outra
identidade.

- está cá por causa daquela miudita, não é? - perguntou célia. - que coisa terrível.

- todos os homicídios geralmente são.

- bom, o nosso robin vai deslindar tudo - disse corinne, em tom resoluto. - não
tenham dúvidas quanto a isso. - colocou duas letras no tabuleiro: um c e um a antes
de um f. contou meticulosamente a pontuação obtida.

- está a trabalhar com rob? - quis saber célia. serviu-se de um biscoito digestivo que
retirou de uma coroa de outros biscoitos, dispostos num prato florido, num dos lados
da mesa. mordeu-o com gestos femininos. barbara tê-la-ia enfiado na boca de uma
só vez, triturando-a com vontade e engolindo-a com a ajuda de um líquido qualquer
que estivesse imediatamente disponível. neste caso era chá, que enchia um bule
aconchegado sob um abafador. este como tudo o resto que havia na casa era uma
criação ashley. barbara reparou que corinne não se apressou a afastá-lo para
oferecer-lhe uma chávena de chá.

sabia que era tempo de se retirar de cena, pela esquerda. mesmo que o oh de
corinne não lho tivesse comunicado, a presente falha de hospitalidade só vieram
confirmá-lo.

- robbie está a trabalhar para o sargento - esclareceu corinne. - e ela está feliz por
isso, não está, barbara?

- É um bom polícia - disse barbara.

- É, de fato. primeiro da turma naquela escola de detetives. nem dois dias tinham
passado depois de ele ter acabado o curso e já estava metido num caso. não é
verdade, barbara? - lançou a barbara um olhar perspicaz, claramente destinado a
avaliar a reação dela, uma reação que pudesse confirmar as suas afirmações sobre
as capacidades de robin.

as faces redondas de célia arredondaram-se ainda mais e o brilho dos seus olhos
azuis intensificou-se, ao pensar talvez na ascensão do seu amado a uma posição
proeminente no campo profissional que escolhera.

- eu sabia que ele seria bem sucedido no departamento de investigação criminal.


disse-lhe isso antes de ele partir para frequentar o curso.

- e olha que não é um caso qualquer - disse corinne, como se célia não tivesse
falado, - mas sim este caso em particular. este caso da scotland yard. e este caso,
minha querida - deu uma palmadinha na mão de célia, - vai ser a grande
oportunidade do nosso robbie.

célia esboçou um sorriso atraente, pressionando os dentes contra o lábio inferior,


como se assim pretendesse controlar o prazer que sentia. entretanto, na televisão,
os elefantes estavam a ficar inquietos. um touro particularmente possante arrastava-
se pesadamente na direção da parede exterior da propriedade, percorrendo o velho
caminho até à água que o pai de peter finch bloqueara de forma tão arrogante
quando construíra a sua impressionante vivenda. «vinte e dois minutos,
aproximadamente, até à caminhada dos elefantes», pensou barbara. vira aquele
filme pelo menos dez vezes.

- vou desejar-vos boa-noite - disse. - se robin voltar durante a próxima meia hora,
pode dizer-lhe que passe pelo meu quarto? temos de apurar alguns fatos.

- digo-lhe com certeza, mas suspeito que o nosso robbie irá estar um pouco
ocupado cá em baixo - disse corinne com um aceno de cabeça significativo na
direção de célia, que estudava as suas peças. - ele só está à espera de assentar no
novo trabalho. logo que saiba para que lado é que as coisas pendem fará grandes
mudanças na sua vida. mudanças permanentes. não é verdade, querida? mais uma
palmadinha na mão de célia. - célia sorriu.

- pois. bom, parabéns então. desejo-lhe as maiores felicidades - disse barbara,


sentindo-se um pouco tola.

- obrigada - disse célia, e gentilmente colocou cinco peças no tabuleiro de scrabble.


barbara olhou para a palavra.

a catam, a palavra formada por corinne, célia acrescentou catamito. corinne franziu
o sobrolho, algo confusa, e pegou no dicionário, perguntando - tens a certeza,
querida?

barbara viu os olhos dela dilatarem-se enquanto lia a definição. surpreendeu uma
expressão divertida no rosto de célia, rapidamente reprimida quando corinne fechou
o dicionário e a fitou.

- É qualquer coisa relacionada com a formação de rochas, não é? - perguntou célia


com falsa inocência.
- meu deus - disse corinne, levando a mão ao peito. - meu deus... preciso... oh, meu
deus... um pouco de ar... - a expressão de célia alterou-se. levantou-se da cadeira. -
de repente... minha querida - disse corinne, ofegante. - onde é que pus... onde está
o meu ar milagroso? será que sammy... será que ele o pôs noutro sítio?

célia descobriu rapidamente o inalador, junto do aparelho de televisão. apressou-se


a dá-lo a corinne e pousou uma mão firme no ombro dela, enquanto a mulher mais
velha o bombeava vigorosamente para dentro da boca. célia olhou, arrependida,
para a palavra catamite, a causa óbvia da aflição de corinne.

interessante, pensou barbara. assim seria, provavelmente, a relação deles durante


os próximos trinta anos ou mais. perguntou a si própria se célia teria compreendido
esse fato.

barbara ouviu a porta da cozinha abrir e depois fechar-se enquanto célia retomava o
seu lugar à mesa. passos rápidos soaram cada vez mais perto e a voz de robin
chamou com urgência.

- mãe? estás em casa? barbara já chegou?

não era a pergunta mais oportuna, conforme barbara pôde ler na expressão de
corinne. no entanto foi também uma pergunta que não precisou de resposta, pois
logo depois robin alcançou a sala de estar e ficou parado na umbreira. estava sujo
da cabeça aos pés e tinha teias de aranha enredadas nos cabelos. no entanto, riu
abertamente para barbara e disse:

- cá estás tu. espera só até ouvires o que tenho para te dizer. stanley vai dar saltos
quando souber.

- robbie, querido? - a voz de corinne, enrolada e cansada, desviou a atenção de


barbara para a mesa de jogo. célia levantou-se.

- olá, rob - disse.

- célia - disse ele. o seu olhar oscilou entre a noiva e barbara, revelando alguma
confusão.

- ia subir agora mesmo - disse barbara. - se me dão licença...

- não podes! - robin lançou-lhe um olhar suplicante. depois, dirigiu-se a célia: - estou
no meio de uma coisa. desculpa, mas agora não posso interrompê-la. - e a sua
expressão telegrafava uma mensagem silenciosa pedindo que alguém viesse
resgatá-lo daquela situação embaraçosa.

era óbvio que corinne não tencionava fazê-lo e que célia não queria tomar a
iniciativa. e embora barbara pudesse ter realizado o seu desejo de salvação, movida
por um simples sentimento de amizade, não sabia como fazê-lo. este tipo de
malabarismos de conversação fazia parte do conjunto de atributos de mulheres
como helen clyde.
- célia está à tua espera desde as oito e meia, robbie - disse corinne. - tivemos a
mais encantadora das visitas. disse-lhe que já tinha passado demasiado tempo
desde a última vez que a tínhamos visto aqui em lark’s haven, e eu sei que tu
pretendes corrigir isso, agora que estás a trabalhar com o departamento de
investigação criminal. um destes dias, disse-lhe eu, robbie vai enfiar uma coisa
especial no teu dedo. espera e verás.

robin tinha um ar angustiado. célia parecia mortificada. barbara sentiu o suor


acumular-se-lhe na nuca.

- bem... - disse, num tom cordial e, com um movimento decidido, virou-se na direção
das escadas. - boa-noite, então. robin, tu e eu podemos...

- não! - seguiu-a.

- robbie! - chamou corinne.

- rob! - exclamou célia.

robin, porém, estava já no encalço de barbara. ela ouviu-o vir atrás dela, chamando-
a com urgência. alcançou-a junto da porta do quarto e agarrou-a pelo braço, que
largou rapidamente quando ela se virou para encará-lo.

- olha - disse ela, - isto está a ficar um pouco confuso, robin. eu posso perfeitamente
ficar em amesford e depois do que se passou esta noite julgo que será até
preferível.

- depois do que se passou esta noite? - ele olhou na direção das escadas. - porquê?
aquilo? estás a referir-te a célia? À minha mãe? a tudo aquilo? esquece, não tem
importância.

- acho que nem célia nem a tua mãe concordariam contigo.

- para o diabo com as duas. não são importantes. agora não, pelo menos. não esta
noite. - passou o braço ao longo da testa, deixando um rasto de fuligem. - encontrei,
barbara. andei por aí fora todo o dia. espreitei em todos os buracos que fui capaz de
me lembrar. e encontrei o maldito.

- o quê? - perguntou ela.

o seu rosto sujo evidenciava uma expressão de triunfo.

- o sítio onde charlotte bowen esteve presa.

alexander stone observou a mulher quando ela pousou o auscultador no descanso.


a sua expressão era indecifrável.

da conversa telefônica ouvira apenas as palavras dela. estas haviam consistido em:
«não me telefones. nunca mais me telefones. o que é que queres?» as palavras que
se seguiram soaram como se tivessem ficado presas algures na garganta dela. «ele
o quê?... quando?... seu miserável... não te atrevas a tentar fazer-me acreditar...
patife.» a última palavra foi proferida num tom de voz mais elevado, como se fosse
um grito. tapou a boca com um punho cerrado disposta a sufocá-lo. ele conseguiu
ouvir uma voz masculina que continuava a falar com ardor, quando eve pousou o
telefone. estava rígida, mas tremia, como se todo o seu corpo estivesse a ser
percorrido por uma descarga elétrica que não a deixava sair do mesmo lugar.

- o que foi? - perguntou-lhe alex.

tinham ido deitar-se. eve insistira nisso. dissera que ele parecia exausto, que ela
própria se sentia esgotada e que ambos precisavam de algum repouso, se fizessem
tenções de sobreviver aos dias que se avizinhavam e às obrigações relacionadas
com o funeral. no entanto, a subida até ao quarto fora menos motivada pelo sono,
como ficara claro para ele, do que pela necessidade de encontrar uma forma de
evitar o diálogo. no escuro, um deles, ou ambos, podiam ficar deitados, imóveis,
respirar profundamente, fingir que dormiam e esquivar-se. no entanto, ainda não
tinham apagado a luz quando o telefone tocou.

eve levantou-se da cama. enfiou o robe e apertou o cinto. o nó que deu, contudo,
consistiu num violento puxão na fita de cetim, e foi esse gesto que a denunciou.

- o que é que aconteceu? - repetiu alex.

caminhou até ao conjunto de guarda-vestidos encostados à parede. abriu as portas.


atirou um vestido-casaco preto para cima da cama, voltou ao guarda-vestidos e
deixou cair no chão um par de sapatos.

alex saiu da cama. tocou-lhe num dos ombros. ela afastou-o com um movimento
seco e brusco.

- diabos te levem, eve. perguntei...

- ele vai publicar a história.

- o quê?

- ouviste o que eu disse. aquela baratinha miserável vai publicar a história. na


primeira página. amanhã. ele pensou... - e nesse momento as feições dela
contraíram-se numa expressão de azedume - ele pensou que eu gostaria de ser
prevenida com antecedência. para que pudesse preparar-me para enfrentar os
outros jornalistas.

alex olhou para o telefone.

- era luxford, então?

- e quem mais podia ser? - dirigiu-se à cômoda e puxou uma gaveta. esta encravou
e ela puxou-a com violência debaixo de protestos. escolheu roupa interior, uma
combinação, meias e atirou-as para cima da cama, para junto do vestido. - tomou-
me por parva desde o princípio, e hoje pensa que conseguiu destruir-me. mas eu
ainda não estou morta. nem de longe. como ele terá oportunidade de comprovar.

alex tentava encaixar as várias peças umas nas outras, mas era óbvio que faltava
uma.

- a história? - repetiu. - sobre vocês dois? blackpool?

- por amor de deus, que outra história poderia ser, alex? - começou a vestir a roupa
interior com gestos bruscos.

- mas charlie...

- não se trata de charlotte. nunca se tratou de charlotte. porque é que não és capaz
de perceber isso? agora afirma que o infeliz do filho dele foi raptado e que o raptor
está a fazer o mesmo tipo de exigências. muito oportuno, não é? - caminhou até à
cama com passos zangados. enfiou os braços pelas mangas do vestido-casaco,
ajustou os ombros protegidos por enchumaces e procurou, desajeitadamente, os
botões dourados.

alex observava-a, aturdido.

- o filho de luxford? raptado? quando? onde?

- que interesse tem isso? luxford encafuou-o algures e agora está a usá-lo,
precisamente da mesma forma que planeava servir-se de charlotte.

- o que é que estás a fazer, então?

- o que é que te parece que estou a fazer? vou impedir que o faça.

- como?

enfiou os pés dentro dos sapatos e enfrentou-o.

- não cedi quando ele raptou charlotte. agora, ele tenciona tirar o maior partido
desse fato. vai usar a história para fazer passar uma imagem bárbara da minha
pessoa: o desaparecimento de charlotte, a exigência de publicação da história, a
minha recusa em colaborar perante os apelos desesperados e sentidos de luxford
para que o fizesse. e, por oposição ao meu barbarismo, temos a santidade de
luxford: para ter o filho de volta, ele fará aquilo que eu não fiz para salvar a minha
filha. percebes agora, ou queres que te explique tudo mais claramente? ele vai
parecer são cristóvão com o deus-menino aos ombros e eu vou ser comparada com
a medeia. se não fizer nada para detê-lo. agora.

- temos de telefonar para a scotland yard alex - fez menção de o fazer. - temos de
confirmar esta história, isto é, se o rapaz foi realmente raptado...

- ele não foi raptado! e de nada nos adiantará telefonar para a polícia, pois pode
estar certo de que luxford não descurou nenhum pormenor desta vez. escondeu o
monstrozinho num sítio qualquer bem remoto. telefonou à polícia e representou o
drama. e enquanto tu e eu estamos aqui, desperdiçando tempo precioso com a
nossa conversinha sobre o que ele estará a arquitetar e porquê, ele já tem a história
escrita, já a meteu nas impressoras e dentro de sete horas estará nas ruas. a não
ser que eu faça qualquer coisa. que é exatamente o que tenciono fazer. está bem?
estamos entendidos?

alex entendeu. viu-o nos contornos duros do maxilar, no porte rígido do corpo dela à
altura dos ombros e na zona da coluna vertebral, na expressão empedernida dos
olhos. entendeu tudo. o que não compreendia acerca de si próprio, acerca dela era
o que o impedira de entender tudo mais cedo.

sentiu-se à deriva. a vastidão do espaço parecia envolvê-lo. vinda de um lugar muito


distante ouviu a sua própria voz, que perguntava:

- onde vais, eve? que vais fazer?

- vou servir-me dos canais oficiais - entrou na casa de banho, onde podia vê-la
aplicando rapidamente uma fina camada de maquilhagem no rosto. não fez uso da
precisão que lhe era tão característica, limitou-se a fustigar as faces com blush, a
agredir as pestanas com rímel e a castigar os lábios com batom. feito isso passou
uma escova pelos cabelos e pegou nos óculos que estavam na prateleira por cima
do lavatório, no sítio onde os colocava todas as noites.

regressou ao quarto.

- ele cometeu um erro, à parte o que sucedeu com charlotte - disse. - partiu do
princípio que eu sou impotente. partiu do princípio que não saberei a quem recorrer
e quando devo fazê-lo. está enganado, e poderá comprová-lo dentro de algumas
horas. se tudo correr a meu favor, e assim vai acontecer, conseguirei uma injunção
de tal modo eficaz que ele não poderá imprimir uma só palavra daquela história, ou
de qualquer outra, durante os próximos cinquenta anos. e isso há-de acabar com ele
da forma como merece.

- percebo - disse alex, e embora a pergunta fosse inútil, uma necessidade inexorável
de ouvi-la proferir pelo menos uma forma da verdade impeliu-o a colocá-la. - e
quanto a charlie?

- o que é que tem charlotte? está morta. foi uma vítima desta trapalhada. e a única
forma de conferir algum sentido à sua morte é assegurarmo-nos de que ela não
aconteceu em vão. que é o que acontecerá se eu não detiver o pai dela e se não o
fizer agora.

- por ti própria? - disse alex. - pela tua carreira. pelo teu futuro. mas não exatamente
por charlie.

- pronto. está bem. claro. pelo meu futuro. ou estavas à espera que eu rastejasse
para dentro de um buraco, fazendo aquilo que luxford quer que eu faça, porque ela
morreu? era isso que querias que eu fizesse?
- não - disse ele. - não era isso que eu queria. apenas, pensei eu, um período de
luto.

ela deu um passo ameaçador na direção dele.

- não comeces com isso. não me digas o que sinto e o que não sinto. não me digas
quem sou.

ele levantou as duas mãos num gesto de capitulação.

- não faria isso. não agora.

foi até à mesa de cabeceira e pegou no saco a tiracolo.

- falamos mais tarde - disse e saiu do quarto.

alex ouviu os passos dela ecoando pelas escadas abaixo. ouviu o deslizar do
ferrolho da porta principal. momentos depois ouviu o som do motor do carro dela. os
jornalistas tinham dispersado àquela hora, pelo que ela não teria qualquer
dificuldade em sair da rua. fosse o que fosse que estivesse a tentar fazer, não havia
ninguém para segui-la.

baixou-se, deixando-se deslizar ao longo de um dos lados da cama. segurando a


cabeça entre as mãos, fitou a carpete, os seus próprios pés tão brancos e inúteis
assentes nessa mesma carpete. o seu coração estava tão vazio da presença da
mulher quanto o quarto e o resto da casa. sentiu o vazio imenso que alastrava
dentro dele e perguntou a si próprio como poderia ter-se iludido durante tanto tempo.

inventara desculpas para todos os sinais de advertência que ela lhe enviara. dentro
de alguns anos, pensara ele, ela sentir-se-á suficientemente confiante para abrir o
seu coração. era desconfiada, só isso, e essa desconfiança era apenas a
consequência lógica da carreira que ela escolhera. o tempo, porém, faria com que
ela se libertasse de medos e hesitações e, então, o espírito dela elevar-se-ia para se
reunir ao dele. quando isso acontecesse construiriam uma relação com base na
união dos espíritos de ambos. e essa construção seria uma família, um futuro e
amor. precisava apenas de ter paciência, dissera para si mesmo. precisava apenas
de lhe provar como a sua devoção era profunda e inabalável. quando fosse capaz
de fazer isso, as vidas de ambos seriam imbuídas de uma ordem nova e mais rica,
definida por crianças irmãos e irmãs de charlie para quem ele e eve seriam uma
presença firme, uma fonte de riqueza para as vidas deles.

era tudo mentira. era o conto de fadas que ele contara a si próprio quando não tinha
querido ver a realidade que se desdobrava à sua frente. as pessoas não mudavam
realmente. apenas tiravam as suas máscaras quando consideravam que era seguro
fazê-lo, ou quando as circunstâncias penosas obrigavam as suas capas exteriores a
estilhaçarem-se, tal como acontecia com as crenças mais queridas da infância. a
eve que ele amara não era, de fato, diferente do pai natal, da fada sininho, do papão
ou da bruxa má. alex era uma criatura fantástica. e ao desempenhar o papel que
idealizara para ela, eve fora tão fantástica como ele quisera que fosse. por isso a
mentira pertencia-lhe. tal como as suas consequências.
pôs-se de pé com esforço. tal como a mulher, momentos antes, dirigiu-se ao guarda-
vestidos e começou a vestir-se.

robin payne ia ao volante. seguia para oeste por burbage road a uma velocidade
vertiginosa. falava rapidamente, revivendo as suas andanças pelo campo nesse dia.

- foram os tijolos e o mastro, - dissera ele a barbara. - quando ouvira falar neles
tivera uma idéia, mas as possibilidades eram tantas que ele quisera verificá-las uma
a uma, antes de apresentar uma delas como o sítio onde charlotte bowen tinha
estado presa. afinal, estávamos numa zona agrícola, - disse ele clarificando de
forma nada clara a idéia que estava a tentar expor. - o trigo era a sua principal
produção.

- o que é que o trigo tem que ver com charlotte bowen? - perguntou bowen. - na
autópsia não havia nada...

- espera, - pediu-lhe robin. esta era nitidamente a sua hora de glória e ele queria
saboreá-la à sua maneira. - andara por todo o lado, - explicou. - fora bem para
oeste, até freshford e para sul até shaftsbury. no entanto, uma vez que possuía uma
idéia clara daquilo que procuravam, graças aos tijolos e ao mastro que a miúda
mencionara já para não falar no trigo a busca estendeu-se por uma vasta extensão
de território, mas não por um número igualmente imenso de sítios. apesar de tudo
restavam-lhe ainda dúzias de lugares a explorar, o que explicava o estado de
desalinho em que se encontrava.

- para onde vamos? - perguntou barbara. deslocavam-se com ruído através da


escuridão, por uma estrada sem iluminação, ladeada por um denso arvoredo que se
estendia até à berma.

- já estamos perto - foi a única resposta que barbara conseguiu obter.

quando atravessavam uma aldeia de tijolos e colmo, informou-o sobre o que


ocorrera em londres, fornecendo-lhe todos os pormenores que lynley lhe transmitira
antes. depois de ter mencionado tudo, desde as impressões digitais coincidentes às
operações de busca ao vagabundo, concluiu com o desaparecimento de leo luxford.

robin payne agarrou o volante com força.

- outro? - perguntou. - um rapazinho desta vez? que diabo se está a passar?

- ele pode estar em wiltshire, tal como charlotte.

- a que horas foi o desaparecimento?

- esta tarde, depois das quatro.

viu-o franzir a testa, sinal de que tinha alguma coisa em mente.


- o que é? - perguntou.

- estava só a pensar... - robin mudou para uma velocidade mais baixa quando
viraram à esquerda, seguindo agora para norte numa estrada mais estreita,
identificada como great bedwyn. - os tempos não batem certo, mas se ele... como é
que ele se chama?

- leo.

- se leo foi raptado por volta das quatro, estava a pensar que poderia estar
escondido aqui também. no mesmo sítio onde charlotte esteve. só que o raptor já o
teria transferido para a região muito antes de eu ter chegado ao local, não era? e eu
próprio o teria encontrado, algures por aí - fez um gesto na direção da escuridão,
indicando a paisagem do outro lado do pára-brisas. - mas não o encontrei - soltou
um suspiro. - raios partam. então, este pode não ser o sítio certo, e nesse caso
arrastei-te para uma perseguição inútil a meio da noite.

- não seria a primeira perseguição inútil da minha vida - disse barbara. - mas desta
vez, pelo menos, a companhia é agradável, por isso vamos até ao fim.

a estrada começou a estreitar-se, formando uma vereda. os faróis dianteiros


iluminavam apenas a faixa de rodagem, as árvores adornadas de folhas de hera que
a bordejavam e os limites dos terrenos cultivados que começavam logo atrás das
árvores. os campos estavam integralmente semeados nesta zona, tal como os que
ficavam perto de allington. todavia, ao contrário de allington, aqui a forragem
substituía o trigo.

À medida que se aproximavam de outra aldeia, a vereda tornou-se ainda mais


estreita. as bermas tornaram-se declives, onde algumas casas dispersas tinham sido
construídas mesmo à beira da estrada. as casas multiplicavam-se e formavam mais
uma aldeia de tijolos e colmo. aqui, os patos-bravos dormitavam nas margens de um
lago e um pub chamado the swan fechava as suas portas por essa noite. as últimas
luzes no seu interior extinguiram-se quando robin e barbara passaram por ele,
continuando para norte.

robin abrandou o andamento do seu escort cerca de meia milha depois da última
aldeia. quando virou à direita, entrou num caminho tão estreito e arborizado que
barbara teve a certeza que teria sido incapaz de distingui-lo do resto da paisagem
envolvida num manto de escuridão, caso estivesse sozinha. o caminho por onde
seguiam elevava-se rapidamente para leste, limitado num dos lados pelo brilho de
uma vedação de arame farpado e, no outro, por uma fileira de bétulas prateadas. a
faixa de rodagem estava pejada de crateras, e o campo do outro lado da vedação
estava semeado com cizânia.

chegaram a uma abertura entre as bétulas, e robin virou para passar entre elas e
entrar num carreiro por onde avançaram aos solavancos sobre seixos e entre
sulcos. aqui, as árvores eram frondosas, ainda que modeladas por várias gerações
de ventos. elevavam-se sobre o carreiro como marinheiros vergados sob o peso de
uma tempestade.
o carreiro terminava numa vedação de arame e postes. À direita deles via-se um
velho portão inclinado para um dos lados, como se fosse um barco com um rombo, e
foi para lá que robin guiou barbara, depois de ter vasculhado o porta-bagagem do
escort até encontrar uma lanterna, que lhe entregou a ela. ele próprio tirou um
candeeiro a gás, próprio para campismo, e enfiou-o no braço dizendo:

- por aqui.

por aqui significava transpor o velho portão, que robin empurrou rudemente na
direção de um montículo de lama ressequida. o portão delimitava um cercado, no
centro do qual uma enorme forma co nica se elevava em direção ao céu,
assemelhando-se na escuridão a uma nave espacial que acabara de aterrar. esta
estrutura situava-se na zona mais elevada das redondezas e, a partir dela, vários
terrenos desdobravam-se noite dentro em três lados enquanto no quarto a cerca de
quarenta e cinco metros de distância, talvez os contornos vagos de uma construção
em ruínas perto da estrada por onde tinham vindo indicavam que em tempos existira
ali uma casa de habitação.

a noite estava absolutamente silenciosa. o ar estava frio. o odor intenso a terra


molhada e a esterco de ovelha envolvia-os como uma nuvem prestes a rebentar.
barbara fez uma careta e desejou que pelo menos se tivesse lembrado de trazer um
casaco para se proteger do frio. quanto ao odor do lugar, não lhe restava outra
alternativa senão suportá-lo.

atravessaram um denso emaranhado de ervas antes de chegarem ao edifício.


quando o alcançaram, barbara elevou a lanterna para iluminar o seu exterior. viu os
tijolos. elevavam-se até desaparecerem na escuridão e eram encimados por um
telhado de metal branco. apontando para cima e para baixo, a partir do beiral circular
desse telhado, viam-se os destroços de quatro longos braços de madeira que
outrora tinham estado cobertos em todo o seu comprimento por aquilo que pareciam
ser persianas. agora, esses mesmos braços exibiam aberturas desiguais, nos sítios
onde, ao longo dos anos, a fúria de intempéries sucessivas arrancara as persianas
aos locais onde estavam encaixadas. no entanto, o que restava da forma original era
suficiente para que barbara percebesse de imediato a natureza do que observava,
mal dirigiu o foco de luz para lá.

- um moinho de vento - disse.

- para o trigo - robin virou o seu candeeiro ainda apagado, esboçando um gesto que
abarcava não só o declive dos campos que se estendiam para sul, leste e oeste do
sítio onde se encontravam, mas também a casa desabitada instalada a norte, mais
perto da estrada. - em tempos havia moinhos ao longo do rio bedwyn, antes de o
curso de água ter sido desviado para fazer o canal. nessa altura, lugares como este
apareceram subitamente e espalharam-se por todo o lado. tudo correu de vento em
popa até ao aparecimento das indústrias de moagem. agora estão a degradar-se e
acabarão por ficar em ruínas, se ninguém manifestar interesse em salvá-los. este
está vago há uns bons dez anos. a casa também. a que está junto à estrada.

- conheces este sítio?


- conheço, claro - riu por entre dentes. - e todos os outros sítios num raio de vinte
milhas a partir de minha casa, para onde um vigoroso sujeito de dezassete anos
costumava levar a namorada favorita durante as noites de verão. faz tudo parte dos
hábitos de crescer no campo, barbara. toda a gente sabe onde deve ir quando quer
um pouco de animação. julgo que na cidade também é assim, não é?

ela dificilmente saberia. nem as carícias à luz da lua, nem os beijos debaixo de
nevoeiro tinham alguma vez feito parte do seu rol de atividades regulares. no
entanto respondeu: - absolutamente. claro.

robin esboçou um daqueles sorrisos que indicam que uma série de informações
relativas a um passado mútuo acabou de ser partilhada, esculpindo assim mais um
entalhe na vara da amizade. se ele soubesse a verdade sobre a sua triste vida
amorosa, pensou barbara, classificá-la-ia como a anomalia do século e não olharia
para ela como se ambos tivessem uma história comum de apalpadelas e
agarradelas, apenas diferenciada pelos locais de encontro. não apalpara nem
agarrara ninguém quando era adolescente e o que fizera, já adulta, estava de tal
modo soterrado nas regiões profundas da sua memória que nem conseguia
recordar-se com quem vivera esses momentos arrebatadores. seria alguém
chamado michael? martin? mick? não se lembrava. apenas conseguia recordar-se
de uma grande quantidade de vinho barato, uma cortina de fumo suficientemente
densa para poluir uma cidade pequena, uma música ensurdecedora que parecia um
tema de jími hendrix tocado sob o efeito de speed que provavelmente era jimi
hendrix no seu normal, agora que pensava nisso e um soalho partilhado por outros
seis casais, todos eles embrenhados nos seus próprios momentos arrebatadores.
ah, as saudosas alegrias dos vinte anos.

seguiu atrás de robin, caminhando por baixo de uma frágil galeria que rodeava o
exterior do moinho, à altura do primeiro andar. passaram por duas mós gastas,
pousadas no chão, criando líquenes, e pararam junto a uma porta de madeira, em
arco. robin começou a abri-la levantando a mão para empurrar a madeira mas
barbara deteve-o. dirigiu o foco da lanterna para a porta, estudou as velhas
almofadas de cima a baixo e em seguida virou a luz para o ferrolho que se elevava à
altura do ombro. era feito de bronze, estava novo e nada desgastado pelo clima.
sentiu um nó no estômago perante esta visão e ao pensar no seu possível
significado, por oposição ao estado de ruína em que o moinho se encontrava e à
casa onde haviam residido os seus proprietários.

- foi isso mesmo que pensei - disse robin, em resposta à sua especulação
silenciosa. - quando o vi, depois de ter calcorreado azenhas, serrações e todos os
outros moinhos de vento da região, tive de ir urinar rapidamente ou teria ficado todo
molhado aqui mesmo. há mais lá dentro.

barbara meteu a mão dentro do saco a tiracolo e tirou um par de luvas.

- tens?... - perguntou ela.

- estas - replicou, tirando umas luvas de trabalho amarrotadas de dentro do bolso do


casaco. depois de ter protegido as mãos, barbara inclinou a cabeça na direção da
porta e robin abriu-a com um empurrão, dado que na ocasião o ferrolho não estava
corrido. entraram.

era uma divisão com o pavimento e as paredes em tijolo. não havia janelas. fria e
úmida como um túmulo, lá dentro cheirava a mofo, a excrementos de rato e a fruta
podre.

barbara arrepiou-se ao sentir a atmosfera glacial.

- queres o meu casaco? - ofereceu robin.

recusou enquanto ele se baixava para acender o candeeiro que trouxera com ele.
rodou um botão para aumentar a intensidade da luz até ao máximo. com aquele
brilho intenso furando a escuridão não havia necessidade da outra lanterna. barbara
desligou-a e pousou-a sobre umas grades de madeira que se encontravam no
extremo mais afastado da divisão circular. as grades estavam na origem do odor a
fruta podre. barbara levantou uma das ripas. dúzias de maçãs engelhadas,
pertencentes a alguém e há muito esquecidas, acumulavam-se no interior.

outro odor, mais sutil, impregnava também o ar, e barbara tentou identificar e
localizar a sua origem, enquanto robin se afastava na direção de um estreito lance
de escadas que conduzia a um alçapão no teto. baixou-se para olhar de perto um
dos degraus e observou-o por momentos, antes de dizer:

- são excreções.

- o quê?

- o outro cheiro. são excreções.

- de onde é que vem?

com uma inclinação de cabeça indicou o outro lado das grades de madeira.

- pareceu-me que alguém deve ter... - encolheu os ombros e clareou a garganta,


talvez por se sentir insatisfeito com este momento de fraca objetividade. - não há
aqui nenhum sanitário, barbara. só aquilo.

aquilo era um balde de plástico amarelo. barbara viu o triste montículo de fezes no
seu interior. estava depositado no meio de uma poça de líquido de onde exalava o
odor acre a urina.

barbara suspirou quando falou.

- muito bem, muito bem.

em seguida olhou em volta, perscrutando o solo.

descobriu o sangue no centro, num tijolo ligeiramente desalinhado em relação aos


outros, e quando levantou a cabeça desviando os olhos das gotas de sangue para
olhar para robin, viu que também ele descobrira o sangue na sua visita anterior.
- que mais? - perguntou.

- as grades - disse ele. - dá uma olhadela ao lado direito. a terceira a contar do


fundo. deves precisar de mais luz.

usou a lanterna e viu o que ele tinha visto. um conjunto de três fibras tinham ficado
presas numa farpa, na beira de uma das grades. inclinou-se na direção delas,
aproximando o foco de luz. não podia ter certezas devido às sombras que estavam
atrás das grades, por isso tirou um lenço de papel de dentro do saco a tiracolo e
colocou-o por detrás das fibras para fazer contraste. eram verdes, do mesmo verde-
escuro do uniforme escolar de charlotte.

sentiu a sua pulsação acelerar-se, mas disse para si própria que não devia contar já
os ovos todos. depois do caso do pombal, em ford, e da garagem, em coate, não
estava disposta a tomar decisões precipitadas. voltou a olhar para robin.

- na gravação - disse ela, - ela mencionou um mastro.

- segue-me. traz a lanterna.

subiu pelas escadas e empurrou o alçapão que havia no teto. quando barbara o
seguiu estendeu a mão e puxou-a atrás de si, para a divisão que havia no primeiro
andar do moinho.

barbara olhou em volta, reprimindo um espirro. os olhos encheram-se de lágrimas,


reagindo à quantidade de pó que havia naquele espaço. secou-as na manga da
camisola. quando robin disse: - É possível que eu tenha comprometido uma parte
das provas.

ela apontou o foco ao longo da linha do braço dele e viu as pegadas: pequenas e
grandes, de criança e de adulto. apareciam sobrepostas e esbatiam-se umas às
outras. em resultado disso era impossível decidir se fora uma criança ou dez ou um
adulto ou dez que tinham estado ali.

- fiquei excitado quando vi as fibras e o sangue lá em baixo e corri até cá acima de


imediato. não pensei no chão, a não ser quando já era tarde demais. desculpa.

barbara notou que as tábuas de madeira que cobriam o chão estavam tão
deformadas que nenhuma delas deixava ver uma pegada realmente decente. era
possível distinguir os contornos de umas solas de sapatos, mas as linhas não eram
visíveis.

- não te preocupes com isto. não parecem ter grande utilidade - disse ela.

dirigiu o foco de luz do chão para a parede circular. À esquerda do alçapão havia
uma única janela que fora entaipada. por baixo dela estava uma pilha de
ferramentas velhas, de um formato que barbara nunca vira antes. algumas eram
feitas de metal, outras de madeira. - eram as velhas ferramentas de amanho, - disse
robin. - eram usadas nas mós, que estavam um nível acima deles. era aí que se
efetuava a moagem.

alguns dentes de roda cobertos de poeira repousavam junto das ferramentas, tal
como duas roldanas de madeira e uma corda enrolada. acima deles, a parede de
tijolo estava salpicada de líquenes brancos e a umidade parecia colar-se ao ar. À
altura do telhado, não muito longe das cabeças deles, aparecia uma enorme roda
dentada, suspensa num dos lados. parte do mecanismo necessário para pôr o
moinho a funcionar, tratava-se da grande roda dentada, instalada entre duas outras
engrenagens semelhantes. passando através de um buraco que havia na roda,
desde o nível do chão que eles pisavam e atravessando o teto para continuar,
presumivelmente, para o cimo do moinho de vento, via-se um grosso pilar de ferro,
coberto por nós de ferrugem.

- o mastro de charlotte - disse barbara, enquanto o iluminava com a lanterna.

- foi isso que pensei - disse robin. - É o eixo principal. olha para cima.

puxou-a pelo braço e colocou-a diretamente por baixo da grande roda dentada.
fechou a sua mão sobre a dela e, com um gesto firme, apontou a luz para um dos
dentes da roda. barbara podia ver que estava revestida de uma substância com um
aspecto gelatinoso que fazia lembrar mel gelado.

- gordura - disse robin. depois de se certificar de que ela a tinha visto baixou o braço
dela e orientou a luz para o sítio onde o eixo principal estava preso ao chão. a
mesma substância envernizava aquele ponto de junção. enquanto robin se baixava
junto dele e indicava um segmento específico, barbara viu o que o tinha feito correr
até casa para ir ter com ela, o que o tinha feito ignorar a eloquente troca de palavras
com a mãe acerca da sua futura noiva. isto era mais importante do que uma futura
noiva. havia impressões digitais na gordura que rodeava a base do eixo principal. e
pertenciam a uma criança.

- diabos me levem - murmurou barbara.

robin ficou de pé. os seus olhos colaram-se, ansiosos, ao rosto dela.

- acho que conseguiste, robin - disse. e deu-se de conta de que pela primeira vez
naquele dia estava a sorrir. - raios partam tudo isto. acho que conseguiste, seu
peste.

robin sorriu, mas o elogio pareceu deixá-lo desconcertado. mesmo assim disse-lhe,
ansiosamente: - consegui? achas que sim?

- sem sombra de dúvidas. - apertou o braço dele e permitiu-se a si própria um rápido


assobio de excitação. muito bem, londres - exultou, - é isto. - robin riu ao ver a
alegria dela, e ela juntou o seu riso ao dele erguendo um punho fechado no ar.
depois moderou-se e retomou o seu papel como chefe da equipe. - vamos precisar
dos rapazes da equipe de peritagem. esta noite.

- três vezes num só dia? eles não vão ficar satisfeitos com isso, barbara.
- que se lixem. sinto-me a mais feliz das mulheres. e tu?

- que se lixem - concordou robin.

desceram as escadas. por baixo deles, barbara viu um cobertor azul amarrotado.
examinou-o. tirou-o de debaixo das escadas e, ao sacudi-lo, qualquer coisa se
soltou e caiu no chão com um ruído seco.

- espera aí - disse ela, e baixou-se para inspecionar o pequeno objeto que caíra num
tabuleiro de argamassa entre dois tijolos. era uma figurinha, um ouriço-cacheiro
minúsculo, com o dorso coberto de arestas em espinha e um focinho pontiagudo.
ocupava um sexto do tamanho da sua mão, o tamanho ideal para caber numa
mãozinha de criança.

barbara pegou nele e mostrou-o a robin. - temos de confirmar se a mãe pode


identificar isto.

tornou a examinar o cobertor. o material grosseiro estava úmido, notou, mais ainda
do que estaria em resultado da umidade que impregnava o local. e a idéia de
umidade e de água acalmou a sua excitação, trazendo-lhe à memória a recordação
do modo como charlotte bowen morrera. uma das peças do puzzle continuava a
escapar-lhes.

- Água - virou-se para robin.

- o que é que tem?

- ela morreu afogada. há água aqui perto?

- o canal não fica longe e o rio...

- ela morreu afogada em água canalizada, robin. uma banheira. uma tina. uma
sanita. estamos à procura de água canalizada - barbara pensou em tudo o que
tinham visto até ali. - e a casa? a que fica junto à estrada. está muito degradada? há
lá água?

- suponho que já deve ter sido cortada há muito tempo.

- mas havia água canalizada no tempo em que estava habitada, não?

- isso foi há anos atrás - descalçou as luvas de trabalho e guardou-as no bolso do


casaco.

- por isso podia ter sido ligada de novo mesmo por um período curto se alguém
descobrisse a válvula principal na propriedade.

- pode ter sido, mas o mais certo é tratar-se de água vinda de um poço, tendo em
conta a distância da aldeia. isso não se distinguiria da água canalizada?

- claro que sim, claro que distinguiria. - e a presença daquela maldita água
canalizada no corpo de charlotte bowen só vinha complicar ainda mais o caso. - não
há canalizações aqui, nesse caso?

- no moinho? - ele disse que não com a cabeça.

- raios - resmoneou barbara. como teria o raptor agido?, perguntava a si própria. se


este era o sítio onde charlotte bowen estivera presa, era quase certo que durante
todo o tempo que permaneceu aqui ainda estava viva. as fezes, a urina, o sangue e
as impressões digitais eram um testemunho silencioso desse fato. e mesmo que as
provas putativas da sua presença ali pudessem ser explicadas por outros meios,
mesmo que a criança estivesse morta no momento em que fora trazida até este
local, que vantagem haveria em correr o risco de ser visto enquanto o corpo era
levado para dentro do moinho para aí permanecer escondido durante alguns dias?
não, não. ela estava viva enquanto aqui permaneceu. talvez dias, talvez apenas por
uma hora. mas estava viva. e nesse caso, algures perto dali havia uma fonte de
água canalizada que fora usada para afogar a garota. - vai até à aldeia, robin - disse
barbara. - havia uma cabina telefônica à entrada do pub, não havia? telefona à
equipe de peritagem e diz-lhes que tragam luzes, lanternas, e o restante material. eu
espero aqui.

ele olhou para a porta e para a escuridão que se estendia para além dela.

- esse plano não me agrada - disse. - não gosto de te deixar aqui sozinha. se há um
assassino à solta por aí...

- eu arranjo-me - disse ela. - vai lá. faz a chamada.

- vem comigo.

- tenho de ficar a guardar o local. a porta estava aberta. qualquer um pode entrar
aqui e...

- É exatamente a isso que me refiro. não é seguro. e tu não estás armada, pois não?

ele sabia que ela não tinha nenhuma arma consigo. nenhum detetive andava
armado. ele próprio não estava.

- eu fico bem - disse ela. - seja quem for que levou charlotte, tem leo neste
momento. e uma vez que leo não está aqui, julgo que será seguro presumir que o
assassino de charlotte também cá não está. por isso vai lá fazer o telefonema e volta
depressa.

ficou a remoer nestas palavras. quando ela se preparava para dar-lhe um leve
empurrão na direção da porta, ele disse: - muito bem, então. mantém o candeeiro
aceso. dá-me a lanterna. se ouvires alguém...

- vou buscar uma das ferramentas de moagem e bato-lhe com elas. e mantê-lo-ei
atado até chegares.

ele riu abertamente. dirigiu-se para a porta. deteve-se por momentos, antes de virar
as costas para ela.

- isto vai soar um pouco descabido, suponho, mas... - disse.

- o quê? - ficou imediatamente alerta. já lhe bastavam as atitudes descabidas do


sargento stanley, não precisava que robin payne seguisse o mesmo exemplo. no
entanto, as palavras do agente, e a forma como as proferiu, surpreenderam-na.

- É só que... tu não és exatamente igual às outras mulheres, pois não?

há já algum tempo que sabia que não era igual às outras mulheres. sabia também
que aquilo que era não atraía particularmente os homens. por isso lançou-lhe um
olhar avaliador, tentando imaginar onde ele quereria chegar, sem que tivesse a
certeza de querer esclarecer a questão.

- o que eu quero dizer é que és bastante especial, não és?

não tão especial como célia foi a resposta que de imediato se impôs ao espírito de
barbara. todavia, o que saiu dos seus lábios foi: - sim, e tu também.

ele fitou-a do sítio onde se encontrava, no lado oposto do moinho. ela engoliu em
seco tentando sufocar um súbito acesso de medo. recusava-se a pensar na razão
desse temor inesperado. não queria pensar no porquê desse temor.

- vai fazer o telefonema - disse. - está a fazer-se tarde e temos muitas horas de
trabalho pela frente, aqui no moinho.

- certo - retorquiu robin. contudo, hesitou por longos instantes à porta, antes de se
virar e de caminhar até ao carro.

o frio invadiu o interior do moinho. depois da saída de robin pareceu-lhe que o ar


gelado se libertava das paredes. barbara rodeou o corpo com os braços e deu
palmadinhas nos ombros. apercebeu-se de que a sua respiração se tornara irregular
e saiu para o exterior para inspirar o ar da noite.

não penses nisso, disse para consigo mesma. mantém o controle. deslinda este
caso, elimina as pontas soltas e volta para londres o mais depressa possível. mas
não não te deixes levar por uma fantasia inútil.

Água, essa sim era a questão fulcral. Água vulgar. Água canalizada. nos pulmões de
charlotte bowen. era nisso que devia estar a pensar agora e era isso que estava
decidida a fazer.

onde teria a garota sido afogada? numa banheira, numa tina, na pia de uma
cozinha, numa sanita. mas que pia? que sanita? que banheira? onde? se todas as
pistas que tinham descoberto estavam ligadas a londres, então a água canalizada
estaria de igual modo relacionada com londres, se não em termos geográficos pelo
menos em termos pessoais. a pessoa que tinha usado a água canalizada para
afogar charlotte, fosse ela quem fosse, estava também relacionada com londres,
com o sítio de onde ela desaparecera. os protagonistas eram a mãe da criança e a
construção do estabelecimento prisional em wiltshire e alistair harvie que tinha aqui
o seu círculo eleitoral. harvie, no entanto, era um beco sem saída. não podia ser
outra coisa. quanto à mãe... que tipo de monstro planejaria o rapto e assassinato de
uma filha única? além disso, segundo lynley, eve bowen estava à beira de perder
tudo, agora que luxford se preparava para publicar a história. e luxford...

a respiração de barbara acelerou-se um pouco quando de repente se lembrou de um


dos muitos fatos que lynley lhe transmitira pelo telefone algumas horas antes.
afastou-se do moinho e encaminhou-se para o cercado. colocou-se fora do alcance
do tapete de luz que jorrava através da porta do moinho. «claro», pensou, «dennis
luxford.»

rodeada pela escuridão, mal conseguia distinguir o declive descendente dos campos
que se estendiam para sul do moinho e, para lá dos seus limites, perdida na
distância, uma nova elevação de terreno sobre a qual aparecia suspenso um manto
salpicado de estrelas brilhantes. para oeste, as luzes dispersas de uma aldeia das
redondezas rompia o escuro. a norte ficavam os terrenos semeados com cizânia que
tinham atravessado no trajeto para o sítio onde se encontrava nesse momento. e
algures, perto dali, sabia-o, acreditava nisso e tencionava prová-lo a si própria logo
que robin regressasse situava-se a baverstock school for boys.

era esta a relação que procurava. era esta a ligação entre londres e wiltshire. era
esta, ainda, o elo inquebrável entre dennis luxford e a morte desta criança.

lynley só percebeu o quanto helen passara a fazer parte do tecido da sua vida
quando se sentou para tomar o pequeno-almoço sozinho, nessa manhã. não comera
absolutamente nada na manhã do dia anterior, evitando assim um encontro
prolongado e solitário com os ovos e a torrada. no entanto, uma vez que também
não jantara sentira-se um pouco fraco por volta da meia-noite. uma refeição leve ter-
lhe-ia caído bem nesse momento, mas não estava com disposição para grandes
atividades culinárias. em vez disso decidiu afundar-se na cama e tratar do seu
sustento de manhã. deixou, pois, um bilhete na cozinha, onde se podia ler
«pequeno-almoço. para um», e denton obedecera ao seu pedido com a dedicação
que habitualmente dispensava à nutrição de lynley.

meia dúzia de pratos de servir alinhavam-se sobre o aparador da sala de jantar.


havia dois jarros preparados com dois tipos de sumo diferentes. cornflakes, weetabix
e muesli perfilhavam-se ao lado de uma taça e de outro jarro com leite. a maior
qualidade de denton consistia no fato de nunca deixar de seguir as orientações que
lhe eram dadas. a sua maior fraqueza era não saber quando devia parar. lynley não
conseguia decidir se o homem mais jovem era um ator frustrado ou um cenógrafo
ainda mais frustrado.

depois de ter comido uma taça de cereais optara pelo weetabix tomou de assalto os
pratos de servir e escolheu ovos, tomates grelhados, cogumelos e salsichas. foi
somente no momento em que se sentou para comer o segundo prato que se
apercebeu do silêncio desconfortável que invadia toda a casa. ignorou a ilusão de
claustrofobia produzida pelo silêncio. concentrou a sua atenção no the times.
progredia lentamente ao longo da página editorial duas colunas e sete cartas sobre
a hipocrisia do projeto de lei sobre os valores britânicos fundamentais, apresentado
pelo partido conservador, refletida no caso recente entre o deputado de east norfolk
e o prostituto de paddington quando se deu conta de que tinha lido o mesmo
parágrafo punitivo três vezes, sem que tivesse a mais pequena idéia do seu
conteúdo.

pôs o jornal de lado. haveria muito mais para ler quando pusesse as mãos na edição
matutina do the source. levantou a cabeça e fixou os olhos naquilo que evitava
desde que entrara na sala de jantar: a cadeira vazia de helen.

não lhe telefonara na noite anterior. poderia tê-lo feito. poderia ter usado como
desculpa o fato de ter estado com st. james e de ter apresentado as suas desculpas
pela discussão que provocara entre todos eles, na tarde de segunda-feira. todavia,
emoções fortes estavam subjacentes à atividade a que helen se entregara na
segunda-feira a noite toda aquela seleção absolutamente inútil de roupas para
enviar aos pobres de África e se falasse com ela tinha quase a certeza de que ficaria
a conhecer a natureza exata dessas emoções. uma vez que a sua atual disposição
de espírito e de coração derivara obviamente dos insultos que ele lhe dirigira, a ela e
aos amigos dele, lynley sabia que contactá-la neste momento significaria correr o
risco de ouvir coisas que não desejava ouvir.

evitá-la era pura cobardia emocional, e ele sabia-o. esforçava-se por fingir que tudo
estava bem no seu mundo, na esperança de que esse fingimento tornasse o seu
desejo realidade. não tomar pequeno-almoço no dia anterior fizera parte desse
fingimento. era preferível sair apressado, com a mente ocupada com pormenores
relativos à investigação do que encarar o seu coração turvado pelo medo de, com a
sua estupidez obstinada, ter perdido, ou pelo menos ter infligido danos irreparáveis
naquilo que mais estimava. ter dotado as suas criações humanas da capacidade de
amar não pode ter sido outra coisa senão o mais engenhoso dos atos de
divertimento inventados pela divindade, pensou lynley. deixem-nos apaixonar-se uns
pelos outros e depois enlouquecerem-se uns aos outros, terá ele arquitectado. como
será divertido observar o caos que se espalha sempre que acerto em cheio na
química entre um homem e uma mulher.

o caos tinha-se de fato instalado na sua vida, admitiu lynley. a partir do momento em
que, dezoito meses antes, se apercebera de que começara a amar helen, passou a
sentir-se como a personagem de crane, um homem que corria atrás do horizonte.
quanto mais se esforçava por chegar ao seu destino, mais infinitamente remoto ele
lhe parecia.

afastou a cadeira da mesa de jantar e amarrotou o guardanapo de linho no momento


em que denton entrava na sala.

- estava a contar com os micawber para o pequeno-almoço? - perguntou lynley, com


bonomia.

como sempre o outro não percebeu a alusão. tudo o que não tivesse sido criado por
andrew lloyd webber para ser consumido no west end, pura e simplesmente não
existia.
- como disse? - foi a resposta de denton.

- nada - retorquiu lynley.

- jantar esta noite, então?

lynley inclinou a cabeça na direção do aparador.

- aqueça aquilo.

fez-se luz no cérebro de denton.

- fiz demasiada comida? foi só porque não tinha bem a certeza se um significava
realmente um. - olhou, cauteloso, para a cadeira de helen. - quero dizer, li o bilhete
que me deixou, mas pensei que lady helen pudesse efetivamente... - ele conseguia,
sabe-se lá como, parecer sincero, pesaroso e simultaneamente preocupado. - o
senhor sabe. mulheres.

- pelos vistos não as conheço tão bem como você - disse lynley. deixou denton a
braços com a arrumação da sala e rumou à new scotland yard.

havers telefonou enquanto ele tentava desenvencilhar-se entre trabalhadores


suburbanos, viajantes atolados em bagagens e camionetas de turismo de dois
andares que obstruíam todas as artérias nas imediações de victoria station. tinham
encontrado o local provável onde charlotte bowen fora mantida prisioneira, informara
ela num tom de voz que se esforçava por fazer soar casual, mas sem conseguir
abafar os vestígios do orgulho pelo feito que acabava de concretizar. era um moinho
de vento, perto de great bedwyn e, mais importante do que isso, ficava a menos de
uma milha de distância do canal do kennet e do avon. todavia, não era o mesmo
local, nas margens do canal, onde o corpo fora abandonado. mas com a ajuda de
um barco fluvial, alugado de propósito para o efeito, o assassino podia ter escondido
o corpo por baixo do convés, seguir alegremente para allington, largá-la no meio do
canavial e continuar em frente. ou, pelo contrário, poderia tê-la transportado para lá
de carro, já que a distância não era assim tanta, e robin chamara a atenção...

- robin? - perguntou lynley. travou para evitar atropelar um rapaz com cabelo à
moliawk, uma argola enfiada no mamilo esquerdo e um carrinho de bebé
curiosamente revestido com uma rede preta.

- robin payne. lembra-se? o agente com quem estou a trabalhar? estou hospedada
na...?

- oh, sim, claro. esse robin. - já não se lembrava. estivera demasiado absorvido com
os seus próprios problemas. agora, porém, estava recordado. e a avaliar pela
cadência que detetava na voz de havers, deu consigo a tentar imaginar que outras
coisas, para além da identidade de um assassino, estariam em vias de ser
detectadas em wiltshire.

ela prosseguiu, comunicando-lhe que a equipe de peritagem estava nesse momento


a inspecionar o moinho. voltaria para lá logo que tivesse comido qualquer coisa.
ainda não o fizera porque chegara a casa muito tarde, e como não dormira muito na
noite anterior achara que merecia descansar um pouco mais, por isso...

- havers - lynley interrompeu-a, - continue. está a ir bem.

desejou poder dizer o mesmo em relação a si mesmo.

na new scotland yard, dorothea harriman transmitiu-lhe, generosamente e de


passagem, a notícia de que hillier, o comissário-adjunto, andava à espreita, pelo que
talvez fosse melhor se o inspetor-detetive lynley cultivasse um pouco de discrição
até que aparecesse outra coisa, que não o caso bowen, para monopolizar a atenção
do comissário-adjunto.

- você sabe em que é que estou a trabalhar, dee? - disse lynley, sentindo-se curioso.
- pensei que tudo isto fosse confidencial.

ao que ela respondeu, serenamente: - não há segredos na casa de banho das


senhoras.

brilhante, pensou ele.

o tampo da sua secretária era uma desordem de informação que crescia a olhos
vistos. ocupando um lugar central entre pastas de arquivo, relatórios, faxes e
mensagens telefônicas estava uma cópia da edição dessa manhã do the source.
apensa a ela estava um bilhete escrito na caligrafia microscópica de winston nkata.
lynley pôs os óculos e leu-a: preparado para o embate? desprendeu o bilhete e
observou a primeira página do tablóide. pelos vistos, dennis luxford cumprira à letra
as instruções dadas pelo raptor, escrevendo o artigo sem poupar nem a sua pessoa,
nem a de eve bowen. acrescentava datas importantes e enquadramentos temporais.
além disso associava tudo ao rapto e assassínio da filha de eve bowen. falava em
assumir a responsabilidade pela morte de charlotte, que ocorrera em virtude da sua
relutância em revelar a verdade antes do momento presente, mas não fazia qualquer
referência à razão que o impelira a escrever a história: o rapto do seu filho. estava a
fazer tudo o que estava ao seu alcance para garantir a segurança do rapazinho. pelo
menos assim parecia.

esta notícia iria com certeza aumentar o frenesi que tomara conta da comunicação
social a partir do caso eve bowen. catapultava luxford para a ribalta, é certo, mas o
interesse que os tablóides poderiam ter por ele em nada se comparava com o seu
desejo de a ter a ela. esta circunstância o que eve bowen teria de enfrentar e o fato
de ela o ter adivinhado com tanta perspicácia deixava lynley inquieto. pôs de lado o
exemplar do the source e dispôs-se a organizar o material que tinha sobre a
secretária.

examinou o relatório da autópsia que havers lhe enviara por fax desde wiltshire. leu
aquilo que já sabia: o afogamento não fora acidental. a criança ficara inconsciente,
primeiro, para que morresse sem opor resistência. a substância utilizada para drogá-
la era um derivado de benzodiazepina chamado diazepam. a sua designação vulgar
era valium.
um medicamento vendido mediante receita médica era por vezes utilizada como
sedativo, outras vezes como tranquilizante. em qualquer dos casos, uma dose
excessiva na corrente sanguínea produzia o mesmo efeito: inconsciência.

lynley destacou a identificação do medicamento no relatório e pôs o fax de lado.


«valium», pensou, e procurou entre a restante papelada que tinha à sua frente o
relatório do médico-legista que mandara fazer no dia anterior à casa abandonada de
marylebone. encontrou-o preso a uma mensagem onde lhe era pedido que
telefonasse para alguém chamado figaro do so7, o laboratório de medicina legal que
ficava no outro lado do rio. enquanto discava o número leu o relatório enviado pela
divisão de química do laboratório. tinham concluído a análise da pequena lasca azul,
que lynley encontrara na cozinha da casa abandonada de george street. tal como
suspeitara tratava-se de fato de um medicamento. e era diazepam, concluíam eles,
um derivado de benzodiazepina vulgarmente designado por valium. «bingo», pensou
lynley.

uma voz feminina soou no outro extremo da linha, anunciando bruscamente,


«figaro», e quando lynley se identificou prosseguiu.

- quais são exatamente os cordelinhos que o senhor anda a puxar por aí, inspetor
lynley? temos o trabalho de seis semanas atrasado, à espera de ser despachado, e
quando o material tirado do porsche chegou ao laboratório ontem foi-nos dito que
devíamos pô-lo no topo da lista. tive pessoas a trabalhar a noite inteira naquilo.

- o secretário do interior está interessado - disse lynley.

- hepton? - soltou uma gargalhada sardónica. - faria melhor se estivesse interessado


no aumento da criminalidade, não é verdade? os cretinos da frente nacional viraram
tudo do avesso à saída da casa da minha mãe, ontem à noite. em spitalfields.

- se o vir, não me esquecerei de mencionar isso - disse lynley. na esperança que ela
fosse direita ao assunto, acrescentou: - estou a ligar-lhe, miss...

- doutora - disse ela.

- peço desculpa. doutora figaro.

- muito bem. ora, vejamos - ouvia o som produzido por revistas de capas
escorregadias caindo umas sobre as outras, seguido do ruído de papéis enrugados
sendo folheados. - porsche - murmurou. - onde é que... aqui está... deixe-me só...

lynley suspirou, tirou os óculos e esfregou os olhos. já os sentia cansados e o seu


dia ainda mal começara. só deus sabia o estado em que estariam daí a quinze
horas.

enquanto a dr.a figaro continuava a fazer ruge-ruge no outro extremo do fio, winston
nkata apareceu à entrada do gabinete. mostrou-lhe o polegar levantado para cima
referindo-se, aparentemente, ao que quer que estivesse contido no bloco-notas
forrado a pele, que tinha aberto na palma da mão e lynley fez-lhe sinal para que se
sentasse numa cadeira. figaro disse-lhe ao ouvido:
- muito bem. os cabelos condizem.

- os cabelos? perguntou lynley.

- que estavam no porsche, inspetor. queria que o varrêssemos, não queria? bom,
isso foi feito e encontramos alguns cabelos na parte de trás. temos louro e castanho.
e o castanho condiz com o cabelo da casa de bowen.

- que cabelo da casa de bowen? - nkata ergueu a mão.

- da miúda. fui eu que o tirei - informou em voz baixa.

- que cabelo...? - a voz de figaro soava indignada. - quem é que comanda as tropas
desse lado agora? puxamos pela cabeça até às duas da madrugada por vossa
causa e agora diz-me...

lynley interrompeu-a com o que esperava ser uma explicação adequada para o fato
de o cabelo lhe ter escapado por instantes. figaro pareceu parcialmente aplacada, o
que para ele era suficiente. desligou e disse para nkata: - boa iniciativa, winston.
mais uma vez.

- o nosso objetivo é, de fato, agradar - disse o agente. - os cabelos da miúda


condizem, então? os que estavam no carro de luxford?

- exato.

- isso torna as coisas interessantes. acha que foram lá postos por alguém?
juntamente com os óculos?

era uma possibilidade concreta. no entanto, lynley não gostava de pensar na direção
em que dennis luxford insistira que pensasse no dia anterior.

- vamos manter as nossas opções em aberto - indicou o bloco-notas com um aceno


de cabeça. o que é que tens?

- as melhores notícias que pode haver.

- quais são?

- uma chamada de bayswater. recebi-a agora mesmo.

- bayswater? nada mais improvável do que bayswater para fornecer as melhores


notícias do dia. o que é que se passa?

nkata sorriu. - que diz a uma palestrazinha com o nosso vagabundo?

contrariamente às especulações de st. james acerca do vagabundo, não tinha


havido qualquer disfarce. o homem, tal como fora descrito e retratado, era
absolutamente real. chamava-se jack beard, e quando lynley e nkata se
aproximaram dele não o encontraram nada satisfeito com o fato de estar detido na
esquadra mais próxima do sítio onde era distribuída a sopa dos pobres, em
bayswater, e para onde se dirigira a fim de comer a refeição da manhã. o seu
paradeiro fora descoberto a partir de um albergue em paddington, onde a mera
contemplação do retrato, nas mãos de um agente, levara à sua rápida identificação
por um recepcionista ansioso por libertar o edifício da presença perniciosa da
polícia.

- ora, pois se é o velho jack beard - dissera, passando a enumerar tudo o que sabia
sobre a rotina diária de jack. esta consistia, aparentemente, em passar em revista
todos os caixotes de lixo, em busca de objetos vendíveis, e em aparecer em
organizações beneméritas para se alimentar.

na sala de interrogatórios da esquadra, as primeiras palavras que jack beard dirigiu


a lynley foram: - na fiz nada a ninguém. pr’a que é isto tudo, então? quem é o
senhor, senhor janota? preciso d’um cigarro.

nkata pediu três cigarros ao sargento de serviço e entregou-os ao homem. jack


inalou o fumo com uma expressão zangada, mantendo o cigarro nos lábios,
comprimido entre um dedo indicador sarnento e um polegar com a unha negra,
como se alguém tivesse intenção de lho roubar. olhava, desconfiado, de lynley para
nkata, espreitando por debaixo de uma franja de cabelo grisalho e oleoso.

- lutei pl’a rainha e pl’a pátria - disse. - os da vossa laia não podem dizer o mesmo.
qu’é que me querem?

- disseram-nos que costuma vasculhar os caixotes de lixo - disse lynley.

- tudo o que ’teja num caixote de lixo é pr’a deitar fora. posso muito bem guardar o
qu’encontro. não há lei que diga que não posso. há doze anos que ando a mexer em
caixotes. nunca arranjei sarilhos. nunca tirei nada se não o que ’tava dentro dos
caixotes.

- não temos dúvidas quanto a isso. não está metido em nenhum sarilho, jack.

os olhos de jack passearam alternadamente entre os dois polícias.

- qu’é isto, então? tenho coisas a fazer. tenho que fazer o caminho do costume.

- e o caminho do costume implica passar por marylebone? - nkata abriu o bloco-


notas.

jack parecia receoso. fumava o cigarro de forma quase intermitente.

- e se passar? não há lei que me proíba de espreitar para dentro de um caixote, em


qualquer sítio onde ele ’teja. mostre-me a lei que diz qu’eu não posso espreitar pr’a
donde m’apetece.

- e cross keys close? - perguntou lynley. - também costuma inspecionar os caixotes


de lixo dessa zona?
- cross keys o quê? na conheço esse lugar.

nkata desdobrou uma das cópias do retrato de jack beard que a polícia tinha feito.
colocou-o sobre a mesa na frente do homem.

- há um tipo que é escritor e que vive em cross keys close que diz que o jack passou
por lá - disse. - na quarta-feira passada, diz ele, andava a vasculhar os caixotes de
lixo. viu-o suficientemente bem para fornecer uma descrição sua ao nosso retratista.
este aqui é parecido consigo, meu. o que é que acha?

- na conheço o lugar. ’tou-lhe a dizer, honestamente. na conheço lugar nenhum


chamado cross keys. na fiz nada. tem de me deixar sair.

lynley viu a confusão espelhada no rosto do velho vagabundo. o odor intenso do


medo estava entranhado nele.

- jack, você não está metido em sarilhos - tornou a dizer. - isto não lhe diz respeito a
si. - uma garotita foi raptada perto de cross keys close, na quarta-feira passada,
pouco tempo depois de você ter por lá passado. nós...

- eu não levei garota nenhuma! - jack esmagou o cigarro no tampo da mesa.


arrancou o filtro de um segundo cigarro e acendeu-o. engoliu o fumo, e os seus
olhos, amarelos onde em tempos deviam ter sido brancos, ficaram subitamente
rasos de água. - cumpri o meu tempo disse. cinco anos. desde essa altura que estou
limpo.

- esteve preso?

- assalto e arrombamento. cinco anos na choça. mas aprendi a minha lição. nunca
mais voltei. mas a minha cabeça não está boa e eu esqueço-me facilmente, por isso
nunca arranjei muito trabalho. agora faço os caixotes de lixo. É só isso que faço.

lynley reviu com cuidado o que ele dissera e encontrou o elemento de persuasão.
disse para nkata: - senhor agente descreva cross keys close a jack, por favor.

nkata parecia ter-se apercebido do mesmo problema. retirou o retrato e enquanto o


enfiava dentro do bolso do casaco, foi dizendo: - É um conjunto de vielas tortuosas,
este lugar de que estamos a falar. fica talvez a cerca de dez metros de distância de
marylebone high street, perto de marylebone lane, perto de uma casa que vende
batatas fritas e peixe frito chamada golden hind. há uma rua nas redondezas, um
beco sem saída, onde as traseiras dos prédios de escritórios dão para um pub. este
fica na esquina onde começam as vielas, um lugar chamado prince albert. tem umas
mesas de piquenique no passeio. e os caixotes de lixo...

- prince albert, diz o senhor? - perguntou jack beard. - disse prince albert? sei onde
é.

- então esteve lá? - perguntou lynley. - na última quarta-feira?


- talvez.

lynley refletiu sobre os fatos de que dispunham, procurando qualquer coisa que
avivasse a memória do vagabundo.

- o homem que nos deu a sua descrição disse que o senhor tinha sido expulso da
zona por um polícia, provavelmente um polícia das forças especiais - disse. - isto
ajuda?

ajudava. o rosto de jack revelava ressentimento.

- nunca ninguém me tinha expulsado antes - declarou. - nem aqui. nem em lado
nenhum. nem uma só vez.

- costuma passar por lá muitas vezes?

- claro que sim. faz parte do meu caminho habitual, aquele lugar. não faço barulho
nenhum. mantenho o lixo bem arrumado. nunca incomodo ninguém. levo os meus
sacos e quando encontro alguma coisa em qualquer lado que possa pôr no prego...

lynley interrompeu-o. as maquinações econômicas diárias do vagabundo não o


interessavam. os acontecimentos daquela quarta-feira, pelo contrário, sim. mostrou
uma fotografia de charlotte e disse: - esta é a rapariga que foi raptada. viu-a na
última quarta-feira, jack?

jack olhou para a fotografia com os olhos semicerrados. tirou-a das mãos de lynley e
segurou-a um pouco afastada de si. estudou-a durante trinta segundos, sem nunca
deixar de fumar o cigarro sem filtro.

- na me lembro dela - disse. agora que tinha a certeza que estava livre de suspeitas
e que a polícia não estava interessada nele tornava-se mais expansivo. - nunca tiro
muita coisa dos caixotes nesse sítio. apenas uma coisa aqui e ali. um garfo partido.
uma colher partida. um vaso velho com uma racha. uma estátua pequena e coisas
assim. o tipo de lixo que normalmente precisa de ser arranjado antes de eu poder
pô-lo no prego. mas vou lá sempre, porque gosto de dar sempre as minhas voltas
todos os dias, como o carteiro, e nunca incomodo ninguém, nem nunca tenho ar de
quem queira fazer mal a alguém. nunca tive problemas lá antes.

- só esta quarta-feira.

- inxatamente, inxatamente. era como... - jack levou o dedo ao nariz enquanto


procurava a metáfora apropriada. tirou uma lasca de tabaco da língua, fitou-a colada
na ponta da unha e tornou a metê-la entre as gengivas. - era como se alguém me
quisesse dali pr’a fora. como se alguém tivesse chamado a polícia para me enxotar
dali pr’a fora, só para ter a certeza que eu ia desaparecer antes que acontecesse
alguma coisa de esquisito.

lynley e nkata observavam o polícia, enquanto este fechava a porta do panda e


conduzia velozmente jack beard de volta à sua interrompida refeição matutina em
bayswater, onde, segundo lhes dissera o vagabundo, era esperado para «ajudar na
lavagem da louça, como pagamento pl’a paparoca, ’tá a ver».

- não é o nosso homem - disse nkata. - não quis ficar com as dedadas dele, só para
nos certificarmos?

- não precisamos das impressões digitais dele - retorquiu lynley. - ele cumpriu pena.
estão arquivadas. se tivéssemos encontrado alguma impressão digital coincidente
com as dele já teríamos sido informados.

lynley refletiu sobre o que o velho lhes dissera. se alguém tinha telefonado à polícia
no intuito de mandar expulsá-lo de cross keys close, antes do rapto de charlotte
bowen, tinha de ser alguém que tivesse estado a vigiar a zona, que se tivesse
demorado por lá, ou que lá vivesse. percebeu qual dessas possibilidades era a mais
viável e recordou o que st. james lhe dissera, na noite anterior, sobre o diminutivo de
charlotte e sobre quem o usava.

- winston - disse, - quais são as notícias de belfast? o ruc já enviou algum relatório?

- ainda não. acha que devo dar-lhes um abanão?

- acho - disse lynley. - mas faz isso a partir do carro. precisamos de fazer uma visita
a marylebone.

a localização da baverstock school for boys acabou por não ser o elemento fulcral da
investigação, ao contrário do que barbara esperava. ficava nas redondezas, era
verdade. no entanto, os seus terrenos não faziam fronteira com os terrenos onde
estava o moinho, contrariando assim as suas especulações. em vez disso, estava
situada logo à saída de wootton cross cobrindo uma enorme extensão de vários
hectares de terreno, que outrora fora propriedade de um barão do trigo.

robin elucidara-a sobre o assunto, no dia anterior, durante a viagem de regresso a


wootton cross, a altas horas da madrugada. iam passar precisamente em frente dos
portões de baverstock, dissera ele, indicando-os mais tarde enormes estruturas em
ferro forjado, que estavam sempre abertas, entre dois pilares de tijolo encimados por
dois falcões quando passaram por eles.

- como é que baverstock encaixa em tudo isto? - perguntara ele.

- não sei - ela suspirou e acendeu um cigarro. - pensei... um dos nossos suspeitos
de londres é um antigo aluno de baverstock. luxford, o jornalista.

- nesse caso é um ricalhaço - dissera robin. - só entra em baverstock quem tem uma
bolsa ou o tipo sanguíneo certo.

ele dava voz ao que ela costumava pensar sobre sítios como aquele.

- o teu não era, presumo? - disse ela.

- frequentei a escola primária da aldeia e depois mudei para a secundária de


marlborough.

- não há antigos alunos de baverstock na tua árvore genealógica?

fitou-a e disse simplesmente: - não há absolutamente ninguém na minha árvore,


barbara. se é que percebes ao que me refiro.

percebia, de fato. não podia ter vivido em inglaterra durante toda a vida sem saber
ao que ele se referia. as suas próprias relações eram tão importantes em termos
sociais como um grão de poeira, embora não tão numerosas.

- a minha família remonta ao tempo da magna carta, e mais para trás até - disse ela,
- mas não de uma forma que mereça qualquer destaque especial. ninguém pôde
subir a pulso em coisa nenhuma, porque ninguém usou botas até ao virar do século.

robin riu baixinho e tornou a olhá-la. era difícil ignorar a admiração espelhada nos
olhos dele.

- falas como se o fato de não se ser ninguém não tivesse qualquer importância para
ti.

- da maneira como eu vejo as coisas, só é ninguém quem julga que é ninguém.

separaram-se em lark’s haven. robin foi para a sala, onde era aguardado pela mãe
apesar do adiantado da hora, e barbara subiu as escadas pronta para cair na cama.
antes disso, porém, ainda ouviu corinne dizer: - robbie, célia só esteve aqui esta
noite porque..., no que foi interrompida por robin com um: - não quero conversas
sobre célia. concentra as tuas idéias em sam corey e deixa-me em paz.

a isto, corinne contrapôs, com voz trêmula: - mas, querido janota... , ao que robin
reagiu secamente: - esse é sam, mãe, não é?

barbara adormeceu pensando no quanto robin devia abençoar a libertação que o


noivado de sam corey com a mãe dele fazia prever. refletia ainda sobre isso na
manhã seguinte, quando deu por concluído o telefonema para lynley e encontrou os
três: sam corey, corinne e robin na sala de jantar.

corinne e sam tinham as cabeças juntas e enfiadas num tablóide. corinne dizia:
«imagina só, sammy. santo deus. santo deus» na sua voz asmática. sam segurava-
lhe numa das mãos, acariciando as costas da mesma como se desse modo
quisesse ajudá-la a respirar melhor. durante todo o tempo ela não deixava de abanar
a cabeça melancolicamente ao ler as revelações do tablóide. tratava-se do the
source, notou barbara. sam e corinne estavam a ler a história que dennis luxford
escrevera para salvar o filho.

robin arrumava a louça do pequeno-almoço num tabuleiro. quando o levou para a


cozinha, barbara seguiu-o. era melhor comer perto do lava-louça, se necessário, do
que ter de engolir o pequeno-almoço na presença de dois apaixonados que
provavelmente prefeririam que os deixassem sozinhos.
robin estava junto do fogão e pusera uma frigideira ao lume, presumivelmente para
fazer ovos para ela. o seu rosto, observou barbara, ostentava uma expressão
fechada e distante, em tudo diferente da noite anterior, enquanto trocavam
confidências. as suas palavras pareceram explicar a mudança que se operara nele.

- ele sempre publicou a história, então. aquele tipo de londres, luxford. achas que
isso será suficiente para libertar o rapazinho?

- não sei - admitiu barbara.

cortou uma lasca de manteiga e deixou-a cair dentro da frigideira. barbara


tencionara comer apenas uma taça de flocos de cereais; tinha quase duas horas de
atraso por ter ficado na cama até mais tarde mas era bastante agradável observar
robin preparando o pequeno-almoço para ela. mudou de planos e decidiu
compensar o tempo perdido mastigando a comida rapidamente.

robin aumentou a chama e ficou a ver a manteiga derreter-se.

- continuamos a procurar o rapaz?- perguntou.- ou suspendemos as buscas e


vemos o que acontece em seguida?

- quero dar uma vista de olhos pelo moinho à luz do dia.

- queres companhia? isto é, agora já sabes onde fica o moinho, mas eu podia... -
completou a frase esboçando um gesto com a espátula dos ovos. barbara perguntou
a si própria como poderia ter terminado aquela frase. eu podia mostrar-te as
redondezas? eu podia ficar por perto? podia estar ao teu lado se precisasses de
mim? mas ela não precisava dele. há anos que conseguia sobreviver de forma
bastante razoável sem precisar de ninguém. e disse para si própria que gostaria
muito que as coisas se mantivessem assim. ele pareceu ler isso no rosto dela,
porque, numa atitude misericordiosa, ofereceu-lhe a possibilidade de continuar a
evitar o assunto indefinidamente.

- ou então podia começar a investigar os alugueles de barcos fluviais. se ele


transportou a miúda desde o moinho até allington pelo canal, deve ter precisado de
um barco.

- isso é outra coisa que é preciso fazer - disse barbara.

- eu encarrego-me disso, nesse caso. - partiu dois ovos para dentro da frigideira e
temperou-os com sal e pimenta. baixou a chama do queimador e enfiou duas fatias
de pão na torradeira. parecia, barbara pensou, insensível ao seu desejo silencioso
de enfrentar sozinha o dia de trabalho que tinha pela frente, e ela surpreendeu
dentro de si um tênue mas insidioso vestígio de desapontamento que tentava colar-
se à sua pele. afastou-o. havia trabalho a fazer. uma criança tinha morrido e outra
estava desaparecida. as suas fantasias vinham por isso em segundo lugar.

deixou-o ocupado a lavar a louça. ele perguntara-lhe se ela precisava que ele lhe
refrescasse a memória a respeito do caminho para o moinho, mas tinha a certeza de
que era capaz de encontrá-lo sem orientações escritas. contudo, induzida por um
sentimento de curiosidade, fez um pequeno desvio no percurso e transpôs os
portões da baverstock school for boys. baverstock, percebia à medida que avançava
sob a ampla abóbada de bétulas que ladeavam a alameda de acesso, era
provavelmente a principal fonte de emprego da aldeia de wootton cross. a escola era
enorme e, para dirigi-la, seria necessário uma equipe igualmente numerosa. não só
professores, mas também encarregados dos campos desportivos, guardas,
cozinheiros, lavadeiras, governantas e tudo mais. enquanto observava a disposição
agradável dos edifícios, dos campos de jogos, dos arbustos e jardins, barbara tornou
a aperceber-se de uma teimosa advertência do seu instinto, que lhe dizia que esta
escola estava de algum modo envolvida no que acontecera a charlotte bowen e a
leo luxford. era demasiada coincidência que baverstock a antiga escola do próprio
dennis luxford se situasse a uma distância tão conveniente do sítio onde a filha dele
fora mantida prisioneira.

decidiu que era tempo de mudar um pouco de orientação. estacionou o carro perto
de um edifício construído com pedras irregulares e com um telhado elevado, que
deduziu ser a capela. no lado oposto a um imaculado caminho de gravilha, uma
pequena tabuleta de madeira pintada indicava a direção para o gabinete do reitor.
serve perfeitamente, pensou barbara.

as aulas deveriam estar a decorrer nesse momento, já que nem um rapaz estava
visível, à exceção de um jovem solitário, envolto numa capa preta, que saiu do
gabinete do reitor no instante em que barbara se preparava para entrar. comprimia
os livros escolares debaixo do braço e depois de um educado «peço desculpa»,
dirigiu-se apressado para uma porta baixa do outro lado do pátio quadrangular,
através da qual barbara conseguia ouvir um coro de vozes pouco entusiásticas
entoando os múltiplos de nove.

o reitor não podia receber o sargento-detetive de londres, barbara foi informada pela
secretária. na verdade, o reitor não se encontrava nas instalações da escola. estaria
fora a maior parte do dia, pelo que se o sargento-detetive de londres desejasse
marcar uma hora para o final da semana... a secretária colocou um lápis em posição
sobre a página da agenda de compromissos do reitor e ficou à espera da resposta
de barbara.

barbara não estava muito certa da resposta que devia dar-lhe, já que para começo
de conversa tão-pouco estava muito certa da razão que a trouxera a baverstock, à
parte uma sensação vaga e inquietante que lhe dizia que a escola estava de algum
modo ligada ao caso. pela primeira vez desde a sua chegada a wiltshire, desejou por
breves momentos que o inspetor lynley estivesse ali com ela. ele dava a impressão
de nunca ter quaisquer sensações vagas e inquietantes a não ser em relação a
helen clyde, e neste caso não demonstrava sentir outra coisa a não ser sentimentos
vagos e inquietantes e, agora cara a cara com a secretária do reitor, barbara tomava
consciência que um bom conciliábulo de inspetor-para-sargento lhe teria sido muito
útil, antes de ter decidido caminhar até este gabinete sem a mais pequena idéia
quanto ao que iria fazer quando cá chegasse.

como estratégia de abertura optou por um «estou a investigar o homicídio de


charlotte bowen, a garota que foi encontrada no canal, no domingo», sentindo-se
satisfeita ao ver que conquistara de imediato a total atenção da secretária. o lápis
baixou e aproximou-se ainda mais da página da agenda de compromissos, e a
funcionária o distintivo que trazia ao peito ostentava apenas um lacónico portly, uma
imprecisão flagrante já que ela era esquelética e teria pelo menos setenta anos de
idade transformou-se na atenção personificada.

- a garota era filha de um dos vossos antigos alunos - continuou barbara. - um tipo
chamado dennis luxford.

- dennis? - portly colocou grande ênfase na primeira sílaba. barbara interpretou isso
como uma indicação de que o nome soara familiar.

- ele deve ter cá estado há cerca de trinta anos atrás - acrescentou barbara.

- trinta anos atrás, que disparate - disse portly. - ele esteve cá o mês passado.

quando ouviu o som de passos escada acima, st. james ergueu a cabeça e desviou
os olhos do conjunto de fotografias de um local de crime, que examinava a fim de
refrescar a memória antes de participar numa sessão no tribunal de old bailey.
distinguiu a voz de helen, que dizia a cotter: «estou a precisar de um café, e
abençoado seja, cotter, por mo ter perguntado. dormi até tarde e saltei o pequeno-
almoço, por isso tudo o que possa ajudar-me a sobreviver até à hora de almoço...» a
voz de cotter, no andar de baixo, anunciou que lhe levaria o café de imediato.

helen entrou no laboratório. curioso, st. james olhou para o relógio de parede.

- já sei reagiu ela. há séculos que estás à minha espera. desculpa.

- uma noite difícil?

- não houve noite. não consegui dormir, por isso não programei o despertador. achei
que não iria precisar dele, já que não estava a conseguir fazer muito mais do que
olhar para o teto - pousou o saco a tiracolo sobre uma das mesas de trabalho e
descalçou de imediato os sapatos. andou calmamente até junto dele. - só que isto
não é exatamente verdade, pois não? liguei de fato o despertador, a princípio. mas
quando às três da manhã ainda não tinha pregado olho, pura e simplesmente
desliguei-o. por razões psicológicas. em que é que estamos a trabalhar?

- no caso pancord.

- aquela criatura terrível que matou a avó?

- alegadamente, helen. estamos do lado da defesa.

- aquela criança órfã, oriunda de um meio social desfavorecido, injustamente


acusada de ter destruído a martelo o crânio de uma mulher de oitenta anos.

- o caso pancord, sim - st. james retomou a observação das fotografias, desta vez
com a ajuda de uma lupa. - que razões psicológicas? - perguntou.
- hmmm? - helen tinha começado a percorrer uma pilha de relatórios e de
correspondência, preparando-se para organizar os primeiros e responder à segunda.
- para desligar o alarme, queres dizer? supostamente deveria libertar o meu espírito
da ansiedade de saber que tinha de adormecer no espaço de um determinado
período de tempo, para que pudesse descansar o suficiente antes que o despertador
tocasse. uma vez que a ansiedade mantém uma pessoa acordada, pensei que se
me livrasse de pelo menos uma fonte de ansiedade conseguiria adormecer. o que
aconteceu, de fato. só que não acordei.

- nesse caso, o método tem méritos dúbios.

- simon, querido, não tem quaisquer méritos. mesmo assim não consegui adormecer
antes das cinco. e a essa hora, como é óbvio, seria demais para o meu corpo pedir-
lhe que acordasse por si mesmo às sete e meia.

st. james pousou a lupa junto da cópia da análise de adn realizada a uma amostra
de sémen recolhida no local do crime. as perspectivas não eram animadoras para o
sr. pancord.

- quais são as tuas outras fontes? - perguntou.

- o quê? - helen levantou os olhos da correspondência. os seus cabelos macios


descaíram para trás dos ombros com o movimento, e st. james pôde ver que a pele
sob os olhos parecia inchada.

- desligar o alarme devia supostamente anular uma fonte de ansiedade - disse ele. -
mas há outras, não há?

- oh, nada mais do que a habitual neurite psíquica e a neuralgia do costume - o


comentário foi feito com a desenvoltura necessária, mas não era em vão que a
conhecia há mais de quinze anos.

- tommy esteve cá em casa ontem à noite, helen - disse.

- sim - falou em tom declarativo. concentrou a sua atenção numa carta escrita em
papel velino. leu-a antes de erguer os olhos e de comentar o conteúdo da mesma. -
um simpósio em praga, simon. aceitas? É só em dezembro, mas o intervalo de
tempo não é muito grande, caso queiras preparar uma comunicação.

- tommy veio apresentar as suas desculpas - disse st. james com firmeza, indiferente
às tentativas dela para desviar o tema de conversa. - a mim, quero eu dizer. queria
falar com deborah, mas achei melhor ser eu a dizer-lhe.

- onde está deborah, agora por isso?

- em st. botolph’s church. está a tirar mais fotografias - observou helen, enquanto ela
se dirigia para o computador, ligando-o e acedendo a um ficheiro. - o filho de luxford
foi raptado, helen - continuou. - com a mesma mensagem enviada pelo raptor. e isso
caiu de igual modo sobre os ombros de tommy. ele está a pisar terreno minado,
neste momento. embora eu tenha consciência de que isso não explica...
- como podes tu perdoá-lo sempre, sempre, tão facilmente? - perguntou helen. - será
que tommy nunca fez nada que te levasse a acreditar que era tempo de impor
limites à vossa amizade? - tinha as mãos pousadas no colo e falava virada para o
monitor do computador, em vez de olhar para ele.

st. james refletiu sobre as perguntas dela. eram sensatas, quanto a isso não
restavam dúvidas, tendo em conta a história atribulada que o ligava a lynley. um
desastroso acidente de viação e uma antiga relação amorosa com a própria esposa
de st. james constavam do diário da amizade entre ambos. no entanto, há muito que
aceitara o papel que ele próprio desempenhara em qualquer uma das duas
situações. e embora nenhuma delas o deixasse satisfeito, estava igualmente ciente
de que remoer constantemente no seu estado mental e emocional no que dizia
respeito ao passado seria amplamente contraprodutivo. o que acontecera pertencia
agora ao passado, e era tudo.

- ele tem uma profissão desagradável, helen - disse. - É um rude teste à alma, mais
do que qualquer um de nós pode imaginar. quando se passa demasiado tempo a
contemplar o lado sórdido e desagradável da vida acaba-se por se ter de escolher
entre duas direções: ou nos tornamos duros e insensíveis é só mais um homicídio
desagradável para investigar ou cedemos à raiva. a insensibilidade funciona melhor
porque nos mantém a funcionar. quanto à raiva, não podemos deixar que ela
interfira, por isso pômo-la de lado tanto quanto podemos. no entanto, mais dia
menos dia, acontece qualquer coisa que nos faz explodir. dizemos coisas que não
sentimos, fazemos coisas que noutras circunstâncias não faríamos.

ela baixou a cabeça. com o polegar acariciava a pele que cobria os nós dos dedos
da mão dobrada.

- É precisamente isso - disse. - a raiva. a raiva dele. está sempre presente, mesmo
por baixo da superfície. está em tudo o que ele faz. há anos que é assim.

- a raiva resulta da profissão dele. nada tem que ver contigo.

- eu sei. o que não sei é se serei capaz de viver com isso. estará sempre presente, a
raiva de tommy, como um convidado inesperado para o jantar, justamente quando
não há comida suficiente.

- ama-lo, helen?

ela soltou uma gargalhada breve, triste e infeliz.

- amá-lo e ser capaz de passar a minha vida com ele são duas coisas inteiramente
distintas. estou certa quanto a uma, mas não no que diz respeito à outra. e sempre
que penso que as minhas dúvidas desapareceram alguma coisa acontece que as
traz de novo à superfície.

- o casamento não é lugar para as pessoas que pretendem encontrar paz de espírito
- disse st. james.
- não? - perguntou ela. - não tem sido? para ti?

- para mim? de modo nenhum. tem sido uma exposição prolongada a um campo de
batalha.

- como é que consegues suportá-lo?

- odeio sentir-me aborrecido.

helen riu penosamente. os passos pesados de cotter soaram nas escadas. instantes
depois apareceu à entrada com um tabuleiro nas mãos.

- café para todos - disse. - trouxe também uns biscoitos para si, lady helen. tem ar
de quem está mesmo precisada de uma dentadinha num biscoito de chocolate.

- preciso mesmo - disse helen e afastou-se do computador para ir ter com cotter, que
parara junto da mesa de trabalho mais próxima da porta. fez deslizar o tabuleiro
sobre o tampo da mesa, desalojando uma fotografia que rodopiou até ao chão.

helen baixou-se para apanhá-la. virou-o para cima enquanto cotter servia o café.
suspirou e disse: - oh, santo deus. não há maneira de fugir a isto - falou com
desânimo.

st. james viu o que ela segurava. era a fotografia do corpo afogado de charlotte
bowen que ele tirara das mãos de deborah, na noite anterior, a mesma fotografia
que lynley arremessara para cima da mesa da cozinha dois dias antes, como quem
lança um desafio. - deveria tê-la deitado fora a noite passada, - apercebeu-se st.
james. aquela maldita fotografia já provocara estragos suficientes.

- dá-me isso, helen - pediu. ela continuou a segurá-la.

- talvez ele tivesse razão - disse. - talvez sejamos responsáveis. oh, não da forma a
que ele se referia. mas de uma forma mais global. porque pensamos que podíamos
mudar as coisas quando a verdade é que ninguém pode, em lado nenhum.

- acreditas nisso tanto como eu - disse st. james. - dá-me a fotografia.

cotter pegou numa das chávenas de café. tirou a fotografia presa entre os dedos de
helen e entregou-a a st. james, que a colocou virada para baixo no meio das
fotografias que examinara momentos antes. aceitou o café das mãos de cotter e não
disse mais nada até o outro homem os ter deixado de novo a sós. nessa altura falou:
- helen, acho que precisas de tomar uma decisão em relação a tommy de uma vez
por todas. no entanto, também acho que não podes usar charlotte bowen como
desculpa para fugires aos teus medos.

- não tenho medo.

- todos nós temos medo. todavia, tentar iludir o medo que sentimos ao pensar que
podemos cometer um erro... - as suas palavras esmoreceram à medida que o seu
pensamento se diluiu. estivera ocupado a colocar a chávena de café sobre a mesa
de trabalho enquanto falava, e o seu olhar recaiu sobre a fotografia que acabara de
pousar sobre a mesa.

- o que é, simon, o que é que se passa? - perguntou helen, quando o viu tatear, às
cegas, procurando a lupa.

- meu deus, - compreendia agora, a informação estivera sempre ali com ele. esta
fotografia estava em sua casa havia mais de vinte e quatro horas e, assim, havia
mais de vinte e quatro horas que a verdade estava ao seu alcance. percebeu tudo
isto no espaço de segundos e com um sentimento de horror que despontava.
todavia, percebeu também que não fora capaz de reconhecer a verdade, porque
tinha a mente ocupada com os insultos que tommy lhes dirigira. se tivesse estado
menos preocupado em manter as suas reações sob um controle férreo, poderia
também ter explodido, dando vazão à sua própria raiva e, uma vez liberto de toda a
raiva, regressar ao seu estado normal. nessa altura teria ficado a saber.

teria visto. tinha de acreditar nisso, porque tinha de acreditar que em circunstâncias
normais teria reparado naquilo que tinha debaixo dos seus próprios olhos naquele
preciso momento.

serviu-se da lupa. estudou os contornos. estudou as formas. tornou a dizer para si


próprio que em circunstâncias diferentes teria reconhecido jurou-o perante si
mesmo, acreditava nisso, sabia-o com uma certeza absoluta aquilo que deveria ter
visto na fotografia desde o primeiro momento.

quando tudo ficou dito e feito, e enquanto percorria o caminho que a levaria de volta
a burbage road, barbara havers concluiu que a decisão de dar rédea solta à
inspiração do momento fora... uma atitude decididamente inspirada. acompanhada
por uma chávena de chá, que tirara de dentro de um samovar que teria feito justiça
ao vigésimo aniversário de irina prozorov, portly saciara integralmente o seu desejo
por uma boa conversa sobre assuntos vulgares e limpara a alma com um rol de
mexericos que, guiado pelas perguntas incisivas de barbara acabara por tocar no
assunto pretendido: dennis luxford.

uma vez que portly era funcionária da baverstock school desde tempos imemoriais
ou pelo menos assim parecia, a avaliar pela quantidade de alunos de que se
recordava barbara foi presenteada com um sem-número das histórias favoritas da
secretária. algumas delas eram de caráter geral: incluíam tudo, desde uma
travessura envolvendo mostarda seca e papel higiênico que tivera como alvo o
conselho diretivo, num certo feriado, quarenta anos antes, ao banho inaugural do
reitor na nova piscina, no outono passado. outras eram mais específicas: desde
dickie wintersby hoje com cinquenta anos de idade e um proeminente banqueiro
londrino que fora castigado por fazer propostas indecentes a um aterrorizado colega
do terceiro ano, a charlie o’donnell quarenta e dois anos e atualmente membro do
conselho da rainha e membro do conselho diretivo que fora apanhado na quinta da
escola pelo professor encarregue do internato, fazendo propostas ainda mais
indecentes a um carneiro. não passou muito tempo até barbara descobrir que a
memória específica de portly tendia a selecionar os casos de comportamentos mais
lúbricos. era capaz de se lembrar do rapaz que fora chamado à pedra por
masturbação a solo, masturbação mútua, sexo anal, bestialidade, fellatio e coito
(interrompido ou outro), e fazia-o com entusiasmo. as suas recordações tornavam-se
um pouco vagas nos casos de rapazes que, aparentemente, se mantinham virados
para si próprios.

era o que sucedia com dennis luxford, embora portly se alongasse durante uns bons
cinco minutos sobre dezesseis outros rapazes do mesmo ano de dennis luxford, que
tinham sido castigados durante um período inteiro depois de ter sido tornado público
que mantinham relações sexuais regulares com uma rapariga da aldeia, que
cobrava duas libras por cada encontro.

- desta vez não se tratava apenas de beijinhos e carícias, - declarou portly, - mas da
coisa em si, que tinha lugar na antiga câmara frigorífica. a rapariga acabara por ficar
grávida, e se o sargento quisesse ver o sítio onde estes históticos acontecimentos
tinham ocorrido...

barbara levou-a de volta ao assunto escolhido, dizendo:

- e quanto ao sr. luxford...? e, para dizer a verdade, interessa-me muito mais a sua
visita recente, embora esse material seja bastante interessante e se tivesse mais
tempo disponível... sabe como é. o dever e tudo o resto.

portly parecia decepcionada pelo fato de as suas histórias sobre as exuberâncias de


um grupo de adolescentes irrequietos não lhe terem agradado. afirmou, no entanto,
que o dever era a sua palavra de ordem quando não era libertinagem e curvou os
lábios enquanto a sua mente lutava com as lembranças da visita recente que dennis
luxford fizera a baverstock.

- fora por causa do filho, - revelou finalmente. - viera para discutir com o reitor a
possibilidade de matricular o filho, no outono. o rapazinho era filho único, um filho
único bastante obstinado, se a memória de portly não a traía e o sr. luxford pensava
que ele podia retirar grandes vantagens de um contato com os rigores e as alegrias
da vida em baverstock. encontrara-se, então, com o reitor e depois da reunião os
dois homens tinham dado uma volta pela escola, para que o sr. luxford pudesse ver
como ela mudara desde os tempos em que ali fora aluno.

- uma volta? - barbara sentiu um formigueiro na ponta dos dedos ao pensar nas
implicações. um bom passeio pelo recinto, tendo como pretexto aparente o desejo
de inspecionar a escola antes de decidir matricular o filho, podia muito bem ser a
forma que luxford encontrara para se familiarizar com o ambiente local. que tipo de
volta?

- vira as salas de aula, os dormitórios, o refeitório, o ginásio... vira tudo, - tanto


quanto portly se recordava.

- também vira os terrenos em volta da escola? - quis saber barbara. - os campos de


jogos, a zona agrícola e o que ficava para além desta?

portly julgava que sim, mas não estava certa disso, e para incentivar a sua memória,
conduziu barbara até ao gabinete do reitor, onde um mapa pintado da baverstock
school for boys estava pendurado na parede. a rodeá-lo apareciam dúzias de
fotografias de bavernianos ao longo das décadas, e enquanto portly estudava o
mapa procurando ajuda visual para a sua memória, barbara observava as
fotografias. nelas estavam retratados bavernianos em todas as situações
imagináveis: em salas de aula, na capela, servindo refeições no refeitório,
caminhando vestidos com trajes acadêmicos pretos, discursando, nadando,
praticando canoagem, passeando de bicicleta, escalando rochas, velejando,
praticando desportos vários. barbara passava os olhos por elas, perguntando a si
própria quanto cacau teria uma família de largar para enviar o pequeno herdeiro
para um lugar como baverstock, quando a sua atenção recaiu numa fotografia onde
aparecia um pequeno grupo de caminhantes, mochilas às costas e varas nas mãos.
os caminhantes pouco interessavam barbara, ao contrário do lugar onde tinham
posado para a fotografia. estavam reunidos em frente a um moinho. e barbara
estava disposta a apostar que era o mesmo moinho onde charlotte bowen estivera
presa na semana anterior.

- este moinho fica nos terrenos de baverstock? - disse, indicando a fotografia.

- claro que não, - disse portly. - aquele era o velho moinho perto de great bedwyn. o
clube de arqueologia fazia uma caminhada até lá todos os anos.

ao ouvir as palavras clube de arqueologia, barbara folheou as páginas do bloco-


notas, procurando os rabiscos que fizera durante a sua conversa telefônica com o
inspetor lynley. encontrou-os, leu-os e localizou a informação de que precisava no
fundo da página: os tempos de escola de dennis luxford tal como tinham sido fiel e
meticulosamente relatados por winston nkata. tal como suspeitara, o editor do the
source tinha sido membro do clube de arqueologia. os exploradores, era como se
chamava.

barbara despediu-se o mais depressa que conseguiu e caminhou, disparada, até ao


carro. as coisas estavam a compor-se.

lembrava-se da estrada que levava ao moinho e percorreu-a sem outros desvios.


uma fita de marcação da polícia assinalava o carreiro que ia dar ao moinho. parou o
carro logo depois da fita, numa orla densamente povoada por flores silvestres cor de
púrpura e brancas. baixou-se para passar por baixo da fita de marcação e caminhou
em direção ao moinho. notou que graças às bétulas que cresciam na orla da estrada
e às outras que bordejavam o trilho que ela percorria nesse momento, o moinho
ficava pelo menos parcialmente escondido. e ainda que assim não fosse, não havia
vivalma nas redondezas. era o sítio ideal para um raptor com uma criança a reboque
ou para um assassino que quisesse remover o corpo dessa mesma criança.

o moinho fora selado na noite anterior, mas barbara não precisava de entrar lá
dentro. estivera presente durante a recolha, classificação e acondicionamento das
provas, e a busca pormenorizada efetuada pela equipe de peritagem afastara todas
as suas dúvidas quanto à competência dos seus elementos. a escuridão, porém,
impedira-a de observar o moinho enquanto elemento integrante de uma paisagem
mais abrangente, e fora para observar esta paisagem que barbara regressara ao
local.
empurrou o velho portão e continuou a caminhar abandonando a proteção oferecida
pelas bétulas. uma vez dentro do cercado percebeu a razão por que o moinho fora
construído naquele exato local. a noite passada o tempo estivera ameno, mas hoje
soprava uma brisa fria. sob o seu efeito, os braços do velho moinho rangiam. se o
edifício ainda estivesse em funcionamento, as velas girariam e as mós estariam em
vias de moer trigo.

a luz do dia expunha os campos em redor do moinho. estes sucediam-se desde o


moinho, plantados com forragem, milho e trigo. À exceção da casa do moinho em
ruínas, a habitação mais próxima dali situava-se a cerca de meia milha de distância.
e as criaturas vivas mais próximas eram um grupo de carneiros que pastava a leste
do moinho, por detrás de uma vedação feita de arame. perdido na distância, um
agricultor deslocava-se com ruído no seu trator, ao longo dos limites de um campo
de cultivo, enquanto uma outra alfaia se virava para planar as pontas verdes de
qualquer coisa que crescia por debaixo dele. todavia, se por acaso tivesse havido
alguma testemunha capaz de relatar o que acontecera no sítio onde barbara se
encontrava no moinho de vento essa testemunha balia no meio de um rebanho de
carneiros.

barbara caminhou até ao cercado onde estes se encontravam, mastigando


ruidosamente, indiferentes à presença dela.

- vá lá, carneiros - disse. - vamos lá, deitem tudo cá para fora. vocês viram-no, não
foi? - eles, porém, continuaram a mastigar.

um dos carneiros afastou-se dos outros e aproximou-se de barbara. por momentos


ocorreu-lhe a idéia absurda de que o animal prestara realmente atenção às palavras
dela e se aproximava disposto a comunicar, até que percebeu que o destino dele
não era a sua pessoa, mas sim uma gamela baixa e estreita perto da vedação, na
qual lambeu um pouco de água.

- Água? - foi investigar. escondida num abrigo feito com três paredes de tijolo, no
extremo mais afastado da gamela, uma torneira saía do chão. estava enferrujada
graças aos efeitos deixados pela passagem do tempo, mas quando barbara calçou
uma luva e tentou rodá-la, não encontrou qualquer resistência provocada pela
ferrugem ou pela corrosão. a água correu, cristalina e doce.

recordou-se das palavras de robin. a esta distância da aldeia mais próxima, o mais
provável era que fosse água vinda de um poço. tinha de se certificar.

regressou à aldeia. o the swan estava aberto para receber os clientes da hora de
almoço e barbara estacionou o mini entre um trator incrustado de lama e uma
verdadeira antiguidade que dava pelo nome de humber. a sua entrada foi acolhida
com o habitual silêncio momentâneo com que um estranho se confronta sempre que
entra num pub rural. no entanto, quando cumprimentou os presentes com um aceno
de cabeça e parou para fazer uma festa na cabeça de um cão pastor shetland, as
conversas foram retomadas. aproximou-se do balcão.

pediu uma limonada, um pacote de batatas fritas com sal e vinagre e uma fatia da
tarte do dia: alho francês e brócolos. e quando o empregado lhe apresentou a
refeição, mostrou-lhe o distintivo juntamente com as três libras e setenta e cinco.

- já teria ele ouvido falar, - perguntou-lhe ela, - da descoberta recente do corpo de


uma criança no canal do kennet e do avon?

aparentemente, porém, os mexericos locais tornavam desnecessário qualquer


preâmbulo. o empregado respondeu: - então toda aquela desordem no cimo da
colina, ontem à noite, era por causa disso.

ele próprio não vira pessoalmente a desordem, confessou, mas o velho george
tomley o tipo que era dono da quinta a sul do moinho estivera acordado,
atormentado pela ciática, até muito depois da meia-noite. george vira a grande
quantidade de luzes e a ciática pode ser tramada decidira investigar. podia ver que
era um caso de polícia qualquer, mas presumira que mais uma vez se tratava de
tropelias de miúdos.

ao ouvir estas palavras, barbara percebeu que obviamente não havia necessidade
de dissimular, enredar ou usar de subterfúgios. informou o empregado do pub que o
moinho fora o local onde a garota fora mantida prisioneira antes de ter sido afogada.
e fora afogada com água canalizada. havia uma torneira na propriedade e o que
barbara pretendia saber era se a água dessa torneira provinha de algum poço.

o homem declarou que não fazia a mais pequena idéia de onde provinha a água do
moinho, mas o velho george tomley o mesmo velho george tomley sabia quase tudo
sobre a propriedade e os terrenos que a rodeavam, e se o sargento quisesse falar
com ele o velho george estava sentado mesmo ao lado do alvo do jogo de dardos.

barbara pegou na tarte, nas batatas fritas e na limonada e levou-as de imediato para
junto de george. este estava entretido massajando a anca afetada pela ciática com
os nós dos dedos da mão direita, enquanto com a esquerda folheava um exemplar
da playboy. À sua frente estavam os restos do seu almoço. também ele comera o
prato do dia.

- Água? - quis saber. - Água de quem?

barbara explicou. george escutou-a. os seus dedos continuavam a massajar e os


seus olhos oscilavam entre as páginas da revista e barbara, como se fizessem uma
comparação desfavorável.

todavia, não tardou a fornecer as informações. - não havia nenhum poço nas
imediações da propriedade, - disse o velhote depois de ela ter concluído as suas
explicações. - era tudo água canalizada, bombeada a partir da aldeia e armazenada
num tanque que estava enterrado no terreno junto ao moinho. era o ponto mais
elevado, aquele terreno, - disse ele, - e a água corria devido à força da gravidade.

- mas é água canalizada? - insistiu barbara.

- como sempre fora, - respondeu ele.

brilhante, pensou barbara. as peças começavam a encaixar-se. tinha a visita recente


de luxford. tinha luxford no moinho durante a sua juventude. agora só precisava de
colocar o uniforme escolar de charlotte nas mãos dele. e tinha a sensação de que já
sabia como iria consegui-lo.

aos olhos de lynley, cross keys close surgia como uma visão fantasmagórica de bill
sikes. entretecidas num estreito desfiladeiro de edifícios nas imediações de
marylebone lane, as suas vielas estreitas não apresentavam quaisquer vestígios de
presença humana e eram virtualmente impermeáveis à luz do sol. quando lynley e
nkata entraram na zona, depois de terem deixado o bentley estacionado em
bulstrode place, lynley interrogou-se sobre o que teria levado eve bowen a permitir
que a filha deambulasse sozinha por aquelas paragens. teria ela alguma vez andado
por ali? perguntava-se.

- este lugar põe-me nervoso - nkata ecoou os pensamentos de lynley com estas
palavras. - o que é que uma miudita como charlotte andava a fazer por aqui?

- eis a questão do momento - admitiu lynley.

- que diabo, no inverno ela seria obrigada a andar por aqui já depois do escurecer -
nkata soava profundamente desgostoso. - e isso é praticamente um convite a... -
vacilou e depois estacou. olhou para lynley, que parou três passos à frente dele. -
um convite a sarilhos - concluiu, pensativo, antes de continuar: - acha que bowen
estava ao corrente do que se passava com chambers, inspetor? ela podia tê-lo
investigado pessoalmente no ministério do interior e ter descoberto o mesmo que
nós descobrimos sobre o tipo. podia ter mandado a miúda vir ter com ele para ter as
lições e planeado tudo ela mesmo, sabendo que nós acabaríamos por chegar aos
antecedentes dele. e quando isso acontecesse, que foi o que aconteceu,
centraríamos as nossas atenções nele e esquecer-nos-íamos dela.

- o cenário funciona - disse lynley, - mas não vamos chegar ao mercado primeiro que
a nossa montada, winston.

as alusões literárias, por mais adequadas que fossem, passavam sempre


despercebidas a nkata.

- chegar onde antes de quem?- perguntou.

- vamos falar com chambers. st. james ficou com a impressão de que ele estava a
esconder qualquer coisa na quarta-feira à noite, e os instintos de st. james
costumam ser seguros. por isso vamos ver de que é que se trata.

não tinham concedido a damien chambers o benefício de ficar a saber


antecipadamente da visita deles. fosse como fosse, ele estava em casa. podiam
ouvir os sons produzidos por um teclado electrônico, que passava através das
paredes da casa minúscula. todavia, a música cessou abruptamente e um compasso
foi interrompido quando lynley fez soar o batente de latão em forma de clave de sol.

um cortinado mole, suspenso por detrás de uma janela, tremeu quando alguém, no
interior da casa, espreitou para confirmar a presença dos visitantes. instantes
depois, a porta abriu-se apenas o suficiente para deixar ver um rosto jovem e pálido.
este era magro e emoldurado por cabelos finos que desciam até ao peito.

lynley exibiu a sua identificação perguntando: - sr. chambers?

chambers pareceu fazer um esforço para não olhar para o cartão de identificação
que lynley lhe mostrava.

- sim.

- inspetor-detetive thomas lynley. scotland yard, departamento de investigação


criminal lynley - apresentou nkata. podemos falar consigo, por favor?

chambers não pareceu satisfeito, mas afastou-se e abriu mais a porta.

- estava a trabalhar.

um gravador estava ligado e a voz melíflua e inconfundível de um ator de formação


clássica entoava: «a tempestade continuou a rugir, indomável, pela noite fora. e,
deitada na cama, pensando em tudo o que tinham significado um para o outro
compreendeu que não seria capaz de esquecê-lo...»

chambers silenciou o aparelho.

- livros lidos, em versão condensada. estou a compor os trechos musicais entre as


cenas - disse em tom explicativo e esfregou as mãos ao longo das calças de ganga,
como se tivesse intenção de limpar o suor que se acumulara nelas. começou a tirar
algumas pautas que estavam em cima das cadeiras e afastou dois suportes de
partituras. - podem sentar-se, se quiserem - disse, desaparecendo pela porta que
dava acesso à cozinha onde pôs água a correr. regressou com um copo cheio de
líquido, dentro do qual flutuava uma rodela de limão. pousou-o na beira do teclado
eletrônico e sentou-se atrás dele, como se tencionasse continuar a trabalhar. tocou
um único acorde e depois colocou as mãos sobre o colo. - estão aqui por causa de
lottie, não é? - perguntou. - já estava à espera que isso acontecesse. achei que o
tipo que esteve cá a semana passada não seria o único a aparecer por cá, se ela
não desse notícias.

- estava à espera que ela desse notícias?

- não tinha razões para pensar o contrário. ela sempre gostou de fazer traquinices.
quando me disseram que ela tinha desaparecido...

- disseram?

- o tipo que esteve cá na quarta-feira à noite. a semana passada. veio acompanhado


por uma mulher.

- sr. st. james?

- não me lembro do nome dele. estavam a trabalhar para eve bowen e estavam à
procura de lottie - bebeu um pouco de água. - quando li a história no jornal, o que
tinha acontecido com lottie, quero dizer, pensei que alguém iria aparecer mais cedo
ou mais tarde. É por isso que estão aqui, não é? - fez a pergunta num tom casual,
mas a sua expressão era moderadamente ansiosa, como se procurasse
tranquilidade e não informações da parte deles.

sem responder diretamente, lynley disse: - a que horas é que charlotte bowen saiu
daqui na quarta-feira?

- a que horas? - chambers olhou para o relógio. estava preso ao pulso delgado com
uma correia feita de fios entrelaçados. uma bracelete em pele entrançada
acompanhava-a. - depois das cinco, acho eu. demorou-se um pouco na conversa,
tinha o hábito de fazer isso, mas mandei-a embora pouco depois de a lição ter
terminado.

- havia alguém na viela quando ela saiu?

- não vi ninguém a rondar lá fora, se é a isso que se refere.

- nesse caso, não havia ninguém lá fora que pudesse tê-la visto sair. - lentamente,
os pés do músico encolheram-se debaixo da cadeira.

- onde está a querer chegar? - perguntou.

- acabou de dizer que não havia ninguém na viela que pudesse ter visto charlotte
sair daqui às cinco e um quarto. certo?

- foi isso que eu disse, sim.

- daqui se pode concluir, nesse caso, que também não havia ninguém na viela em
condições de confirmar, ou refutar, aliás, se ela saiu efetivamente da sua casa.

a língua de chambers tornou-se visível e percorreu-lhe os lábios, e quando tornou a


falar a sua origem belfastiana impregnava as suas palavras, proferidas numa
cadência urgente e denotando uma preocupação crescente.

- o que é que os senhores pretendem, então?

- conhece a mãe de charlotte?

- claro que a conheço.

- então sabe que ela é deputada ao parlamento, não sabe? e que ocupa também um
cargo importante no ministério do interior?

- parece-me que sim. mas não vejo o que é...

- e com algum esforço da sua parte, que não seria muito grande, visto que é um dos
seus constituintes, poderia ter descoberto qual é exatamente a posição dela em
relação a certos assuntos controversos.
- a política não me interessa - foi a resposta imediata de chambers, mas a postura
inerte do seu corpo cada nervo sujeito a um controle férreo não fosse ele trair-se de
alguma maneira desmentia o significado das suas palavras.

lynley confirmou que a mera presença da sua pessoa na casa de chambers


constituía um pesadelo para qualquer irlandês católico. o espectro dos seis de
birmingham e dos quatro de guilford enchia por completo a pequena divisão onde se
encontravam, já de si superlotada pela proximidade sinistra de lynley e de nkata,
ambos ingleses, protestantes, mais de um metro e oitenta de altura, na primavera da
vida, um deles portador do tipo de cicatrizes faciais que deixava entrever que a
violência fizera outrora parte da sua vida. e ambos polícias. lynley conseguia sentir o
medo do irlandês.

- tivemos uma conversa com o ruc, (royal ulster constabulary) sr. chambers - disse.
chambers ficou calado. esfregava os pés um no outro e escondera as mãos debaixo
das axilas, mas à parte estes sinais, continuava calmo.

- deve ter sido uma conversa bem monótona.

- o senhor estava cotado como desordeiro. não propriamente como um amiguinho


do ira, mas como alguém que convinha trazer debaixo de olho. onde é que acha que
eles terão ido buscar essa idéia?

- se pretende saber se fui simpatizante do sinn fein, a resposta é sim - disse


chambers. - tal como metade da população de kilburn. por isso, porque é que não
vão até lá e os chateiam a todos? não há nenhuma lei que nos proíba de tomar
partido por um lado ou outro, pois não? e além disso, que importância tem isso
agora? as coisas acalmaram.

- o que é importante não é o fato de se tomar um partido. tomar uma posição, sim. e,
segundo o ruc, o senhor tem tomado posições desde o dia do seu décimo
aniversário. pergunto-me se estará a preparar-se para assumir mais posições?
sente-se insatisfeito com o processo de paz? talvez pense que o sinn fein entregou
os pontos.

chambers pôs-se de pé. nkata imitou-o como se tivesse intenção de o interceptar. o


homem de cor era pelo menos vinte e cinco centímetros mais alto do que o músico e
uns bons quarenta e cinco quilos mais pesado. ao confrontar-se com ele, chambers
disse:

- calma aí, está bem? só quero uma bebida. qualquer coisa mais forte do que água.
a garrafa está na cozinha.

nkata olhou para lynley à espera de instruções. lynley indicou a cozinha com uma
inclinação de cabeça. nkata regressou com um copo e uma garrafa de john
jameson.

chambers serviu-se de uma dose de uísque. bebeu-a de um trago e voltou a fechar


a garrafa. demorou os dedos sobre a tampa da garrafa durante alguns instantes,
uma posição que sugeria que estava a considerar as opções que se lhe
apresentavam. por fim, afastou os longos cabelos do rosto e tornou a sentar-se.
nkata fez o mesmo. chambers, agora aparentemente fortalecido e preparado para
fazer revelações, disse:

- se falaram com o ruc sabem o que eu fiz: o mesmo que todos os outros garotos
católicos de belfast faziam. atirei pedras aos soldados ingleses. atirei garrafas, fiz
barulho com tampas dos caixotes de lixo, incendiei pneus. É verdade, a polícia deu-
me alguns puxões de orelhas por causa disso, e fizeram o mesmo com os meus
companheiros. mas ultrapassei a fase em que o que mais queria era fazer com que
a tropa passasse um mau bocado e entrei na universidade, para estudar música.
não tenho quaisquer ligações com o ira.

- porque é que decidiu vir ensinar música aqui?

- e porque não?

- por vezes deve parecer um ambiente hostil.

- pois é, mas eu não saio muito.

- quando é que esteve em belfast pela última vez?

- há três anos atrás. não, quatro. no casamento da minha irmã. tirou uma fotografia
emoldurada num caixilho de cartão, que estava em cima de uma pilha de revistas e
de papel de música, colocada sobre um enorme altifalante stereo. estendeu-a na
direção deles.

era a fotografia de uma família numerosa reunida em torno de uma noiva e do


respectivo noivo. lynley contou oito irmãos e viu chambers numa das pontas, com
um ar embaraçado e ligeiramente afastado do grupo que, à parte ele, aparecia unido
num abraço coletivo.

- quatro anos - notou lynley. - É um período de tempo considerável. nenhum dos


seus familiares vive em londres atualmente?

- não.

- e não voltou a vê-los?

- não.

- curioso - lynley devolveu a fotografia.

- porquê? só porque somos irlandeses é de esperar que vivamos todos debaixo das
saias uns dos outros?

- existe algum conflito entre você e eles?

- perdi a fé.
- porquê?

chambers voltou a empurrar o cabelo para trás das orelhas. pressionou algumas
teclas no teclado eletrônico. ouviu-se um acorde dissonante.

- ouça, inspetor, o senhor veio até aqui para falar de lottie bowen. disse-lhe tudo o
que sei. ela veio ter a lição. depois conversamos e, em seguida, ela foi-se embora.

- e ninguém a viu.

- não posso fazer nada contra isso. não sou responsável por isso. se eu soubesse
que ela iria ser raptada tê-la-ia acompanhado até casa. mas não tinha razões para
acreditar que este fosse um local perigoso. não há assaltos, nem a casas nem a
pessoas. não há tráfico de droga. por isso deixei-a ir embora sozinha, algo se
passou com ela, algo que me deixa consternado, mas em que não estou envolvido.

- temo que vá precisar de alguém que corrobore o que está a dizer.

- e como é que vou fazer isso?

- suponho que junto da pessoa que estava consigo, no primeiro andar, quando o sr.
st. james cá esteve, na quarta-feira. se é que alguém, para além de charlotte bowen,
obviamente, estava de fato aqui consigo. pode dar-nos o nome e a morada dessa
pessoa, por favor?

o queixo de chambers encheu-se de covinhas quando ele começou a chupar,


nervosamente, o interior do lábio inferior. os seus olhos pareciam distantes, como se
perscrutasse alguma coisa que mais ninguém podia ver. era o olhar de um homem
que sabia algo que valia a pena esconder.

- sr. chambers - disse lynley, - não preciso de lhe lembrar quão delicada é a situação
em que o senhor se encontra. o senhor tem um passado com ligações marginais ao
ira. nós temos a filha de uma deputada, conhecida pelas suas posições de aberta
hostilidade em relação ao ira, que começa por desaparecer e acaba por ser
assassinada. o senhor é a última pessoa a vê-la. se existe alguém que possa
assegurar-nos que não teve nada que ver com o desaparecimento de charlotte
bowen sugiro que nos revele imediatamente a sua identidade.

chambers voltou a tocar nas teclas negras do teclado eletrônico. as notas soaram
desordenadas. num sussurro deixou escapar uma palavra que lynley não percebeu,
até que, finalmente, disse em voz baixa e sem olhar para nenhum dos dois outros
homens presentes: - está bem, vou dizer-vos. mas não pode saber-se. se a história
chega aos ouvidos dos tablóides será o fim de tudo. e eu não seria capaz de
suportar uma coisa dessas.

lynley pensou que a menos que o músico mantivesse um romance clandestino com
um dos membros da família real ou com a esposa do primeiro-ministro, a sua
história dificilmente atrairia a atenção dos tablóides. no entanto, quando falou disse:
- não falo com jornalistas, dos tablóides ou de qualquer outro tipo de jornal. isso fica
geralmente a cargo do gabinete de imprensa da polícia.

isso foi, aparentemente, o suficiente para tranquilizar chambers, embora ele


precisasse de outra dose de john jameson antes de tornar a falar.

- não era uma mulher que estava com ele, na quarta-feira à noite, - disse-lhes,
mantendo o olhar desviado. - era um homem. o seu nome era russell majewski,
embora o inspetor talvez o reconhecesse mais facilmente pelo seu nome
profissional, russell mane.

- É um tipo da televisão nkata - informou lynley. - faz de polícia.

- interpretava o papel de um detetive obcecado por sexo, - disse-lhes chambers, -


que operava na área de west farley street, era assim que se chamava a série, um
drama realista sobre crime, investigação e punição de criminosos passado na zona
sul de londres. era presentemente um dos maiores sucessos da tv, e o papel
catapultara russell mane se não para a estratosfera do mundo do espetáculo pelo
menos para uma posição de notoriedade junto do público. era este o maior anseio
de qualquer ator, ver reconhecido o seu talento. esse reconhecimento, porém, era
indissociável de um conjunto de expectativas que ditavam que o ator em questão
devia ser na vida real um pouco como a personagem que interpretava no ecrã. ora,
sucedia que russell não se assemelhava de modo algum à personagem a que dava
corpo. nunca sequer estivera com uma mulher sem ser na tela. por essa razão é que
eles russell e damien se esforçavam tanto para manter o seu relacionamento no
maior segredo.

- estamos juntos há três anos, quase quatro - olhava para todos os lados, exceto
para nkata ou lynley. - tomamos as nossas precauções, porque as pessoas são
dadas a fobias, não é verdade? e só quem é incapaz de ver as coisas claramente
julgará que isso não acontece.

- russell vivia naquela casa, - concluiu chambers. - estava a filmar naquele momento
e só estaria de volta pelas nove, dez horas da noite. no entanto, se a polícia
precisasse de falar com ele...

lynley entregou-lhe um dos seus cartões.

- diga ao sr. mane que me telefone - disse.

quando se encontraram de novo na viela, depois de terem ouvido a porta fechar-se


nas suas costas e a música brotar de novo do interior da casa, nkata disse:

- acha que ele sabe que os tipos da divisão especial o têm debaixo de olho?

- se não sabe - disse lynley - começará a pensar nisso a partir de agora.

caminharam na direção de marylebone lane. lynley passou em revista o que sabiam


até ao momento. estavam em vias de recolher uma quantidade apreciável de
informação e de provas, desde impressões digitais a um medicamento
comercializado sob receita médica, passando por um uniforme escolar resgatado em
wiltshire e um par de óculos encontrados dentro de um automóvel, em londres. tinha
de haver uma maneira lógica de ligar todos estes elementos que tinham conseguido
reunir. precisavam apenas da clarividência necessária para detectar um padrão. em
última análise, todos os dados que possuíam e tudo o que sabiam tinha
forçosamente de estar relacionado com uma pessoa. e era essa pessoa que detinha
o conhecimento sobre a paternidade de charlotte bowen, a ingenuidade para levar a
bom termo dois raptos e a audácia para operar em plena luz do dia.

que tipo de pessoa seria essa, então? interrogava-se lynley. parecia-lhe que havia
apenas uma única resposta razoável a esta pergunta. o autor tinha de ser alguém
que mesmo sendo visto na companhia de uma criança sabia que o fato de ser visto
não implicava necessariamente que fosse apanhado.

piranhas, Pensou eve bowen. pensara em chacais, antes, mas estes eram por
natureza devoradores de carne putrefacta, enquanto as piranhas perseguiam a
carne viva em sangue, de preferência. o grupo de repórteres avolumara-se ao longo
de todo o dia, tanto no exterior do gabinete do seu círculo eleitoral e do ministério do
interior como em frente a one parliament square. chegavam acompanhados dos
seus pares uma legião de paparazzi e de repórteres fotográficos e, todos juntos,
formavam um grupo que circulava no passeio, bebendo café, fumando cigarros,
comendo donuts com recheio de compota e pacotes de batatas fritas e agitando-se
em torno de todos os que pudessem fornecer-lhes um verdadeiro petisco em termos
informativos relativamente ao destino, ao estado de espírito ou à reação de eve
bowen perante as revelações feitas por dennis luxford, na edição do dia do the
source. enquanto revoluteavam iam disparando perguntas e tirando fotografias. e
pobre daquele que, vítima das suas atenções, tentasse ostentar um rosto impassível
ou fugir a um interrogatório com uma réplica ríspida e incisiva.

para eve, a noite anterior fora um inferno. todavia, sempre que a porta principal da
sede da constituinte se abria para deixar entrar o murmúrio de vozes e o clarão das
luzes das câmaras compreendia que as horas que haviam mediado entre o
telefonema de dennis luxford e o momento em que finalmente percebera que nada
poderia fazer para impedir a publicação do seu artigo não tinham sido mais do que o
purgatório.

fizera tudo o que pudera. recorrera a todos os favores que lhe deviam, a todos os
canais oficiais, passara horas sentada de auscultador comprimido contra o ouvido à
medida que ia contactando juizes, conselheiros da rainha e todos os aliados políticos
que conquistara ao longo dos anos. todos os telefonemas tinham um único objetivo
suspender a publicação do artigo do the source que, segundo luxford, iria salvar a
vida do filho dele. todos os telefonemas conheceram o mesmo desfecho não seria
possível proibir a publicação do artigo.

ao longo de toda a noite ouvira as mais variadas versões explicando-lhe as razões


por que a obtenção de um embargo judicial estava fora do âmbito dos seus poderes,
a despeito da sua posição influente no seio do executivo.

será que o artigo em questão decidira não revelar pormenores exatos a nenhum dos
seus interlocutores telefônicos constituía de fato difamação? não? o que ele escreve
é então verdade? nesse caso, minha cara, receio bem que não haja aqui nenhum
caso. claro, tenho consciência de que certos pormenores do nosso passado podem
por vezes revelar-se embaraçosos para o nosso presente e para o nosso futuro, mas
se esses pormenores contiverem elementos verdadeiros... bom, a única coisa que
nos resta fazer é mantermo-nos firmes, de cabeça erguida e deixar que as nossas
ações do momento falem por nós, não é verdade?

não estamos propriamente a falar de um jornal conservador, pois não, eve? isto é,
podia-se sempre pedir ao primeiro-ministro que fizesse um telefonema a puxar um
ou outro cordelinho, caso se verificasse que o editor do sunday times ou do daily
mail ou até, quem sabe, do telegraph, estava a planejar publicar um artigo
seriamente prejudicial para um jovem membro do executivo. mas o the source era
simpatizante dos trabalhistas. e não seria razoável esperar que um pequena
pressãozinha fosse capaz de produzir um acordo no sentido da não publicação de
uma história anticonservadora por um tablóide trabalhista. para falar verdade, se
alguém sequer tentasse exercer qualquer tipo de pressão sobre dennis luxford o
mais provável é que o fato fosse imediatamente desmascarado num editorial, no
mesmo dia em que a história fosse publicada. e que imagem é que uma situação
dessas projetaria? em que situação ficaria o primeiro-ministro depois disso?

esta última pergunta era um incitamento quase óbvio à ação. a verdadeira questão
que lhe estava subjacente era de que modo é que o artigo do the source iria, em
última análise, refletir-se sobre o primeiro-ministro, que conduzira ele próprio eve
bowen à posição de poder que ela gozava nesse preciso momento. o que nela
estava realmente implícito era a necessidade de implementar um conjunto de
medidas, caso essa mesma notícia tivesse potencial para denegrir ainda mais a
imagem de um homem que já tivera de suportar a humilhação de ver um dos seus
colegas de partido ser surpreendido em atitudes pouco recomendáveis com um
prostituto, no interior de um automóvel, uns escassos doze dias antes. a proposta de
lei sobre os valores britânicos fundamentais fora já severamente atingida, era a
mensagem transmitida a eve. se miss bowen que não só era deputada, mas que, ao
contrário de larnsey, desempenhava funções governativas estava certa de que havia
a mais remota das hipóteses de o artigo do the source poder vir a causar mais
embaraços ao primeiro-ministro... bem, nesse caso, miss bowen sabia certamente
como deveria atuar.

claro que sabia. o que se esperava era que ela se sacrificasse. no entanto, não
estava nos seus horizontes soçobrar sem opor resistência.

reunira com o secretário do interior nessa manhã. chegara a westminster ainda


noite, muito antes de os exemplares do the source terem invadido as ruas e horas
antes da hora a que costumava apresentar-se no seu gabinete. conseguiu, assim,
iludir a perseguição da imprensa. sir richard hepton encontrara-se com ela no
gabinete dele. aparentemente vestira a primeira indumentária que lhe viera parar às
mãos, logo depois de ter recebido o telefonema de eve, às três e quarenta e cinco
da madrugada. trazia uma camisa branca amarrotada e as calças de um fato. não
vestira casaco, nem pusera gravata, apenas um casaco de malha. tão-pouco se
barbeara. eve sabia que esta fora a forma que ele encontrara para lhe fazer sentir
que o encontro entre ambos seria necessariamente breve. era óbvio que ele teria de
regressar a casa a tempo de tomar um duche, mudar de roupa e preparar-se para
cumprir mais um dia de trabalho.

era quase evidente que ele pensava que o telefonema dela era consequência de
dois dias de sofrimento pela morte da filha dela. julgava que ela se encontrava ali
para exigir que a polícia intensificasse as suas diligências, e ele viera ao encontro
dela para apaziguá-la da melhor forma que pudesse. não fazia a mais pequena idéia
do que estava por detrás do desaparecimento de charlotte. apesar da sua
experiência governativa, que poderia ter-lhe ensinado o contrário, partia do princípio
que as coisas, pelo menos no que dizia respeito aos seus jovens ministros, eram o
que pareciam ser.

- nancy e eu recebemos a mensagem relativa ao funeral, eve - disse. - É evidente


que estaremos presentes. como é que está a reagir? - evidenciava uma expressão
atenta enquanto fazia a pergunta, acrescentando - os próximos dias não vão ser
fáceis. tem descansado o suficiente?

À semelhança da maioria dos políticos, sir richard hepton colocava questões que
eram, na realidade, referências a um outro tópico inteiramente diferente. aquilo que
queria saber era a razão que a levara a telefonar-lhe a meio da noite, o motivo por
que insistira num encontro imediato e, acima de tudo, porque é que ela revelava um
inquietante potencial para agir como uma histérica, a característica menos desejável
num membro do governo. era seu desejo dar-lhe espaço de manobra, pois sofrera
uma perda monstruosa, mas não queria que a imensidade dessa perda minasse a
sua capacidade de lidar com as situações.

- o the source vai publicar uma notícia amanhã - disse ela, - esta manhã, para ser
mais exata, sobre a qual gostaria de o prevenir com antecedência.

- o the source?- hepton fitou-a, impassível. não conhecia ninguém que jogasse
melhor póquer político do que ele. - que tipo de notícia, eve?

- uma notícia sobre mim, sobre a minha filha. uma notícia, creio eu, sobre o que terá
estado na origem da sua morte.

- percebo - apoiou o cotovelo no braço da cadeira. o cabedal rangeu, enfatizando


assim a calma que envolvia todo o ministério do interior, bem como o silêncio que
descia sobre as ruas, lá fora. - havia... - deteve-se, cauteloso, e o seu rosto parecia
pensativo. dava mostras de estar a proceder a uma seleção entre um conjunto de
várias conclusões possíveis. - eve, havia problemas entre si e a sua filha?

- problemas?

- disse que a notícia seria sobre o que estivera na origem da morte dela.

- isto não é um caso de maus tratos infantis, se é a isso que se refere - esclareceu
eve. - charlotte não era vítima de maus tratos. e a causa da sua morte nada tem que
ver comigo. pelo menos, não nesse sentido.

- nesse caso, talvez seja melhor dizer-me qual é exatamente o seu envolvimento.
- quis pô-lo ao corrente de tudo, porque em muitas situações passadas o governo
tem sido apanhado completamente de surpresa, quando os tablóides se lançam
sobre uma figura política, seja ela qual for - começou por dizer. - não quis que fosse
este o caso. vou ser totalmente franca, para que possamos pensar no que iremos
fazer em seguida.

- o conhecimento prévio é uma arma útil - reconheceu hepton. - o fato de o possuir


sempre me permitiu ver tudo com muito mais clareza.

não passou despercebido a eve o fato de ele ter falado no singular. do mesmo modo
que não pôde deixar de reparar na ausência de quaisquer palavras ou sons guturais
que pudesse interpretar como tranquilizadores. sir richard hepton sabia que algo de
desagradável pairava no ar, e quando um odor penetrava na sua casa asseada era
um homem que sabia como abrir as janelas para deixar entrar o ar puro.

começou a falar. não havia de fato maneira de dourar a história para torná-la menos
feia. hepton escutou-a com as mãos em cruz sobre o tampo da secretária e, no
rosto, a mesma máscara impassível que ela tantas vezes o vira usar em reuniões.
quando concluiu a exposição de todos os fatos relevantes sobre a aventura de fim-
de-semana que mantivera com dennis luxford bem como todos os pormenores
relativos ao desaparecimento de charlotte que culminara com a sua morte percebeu
que uma rigidez extrema tomara conta do seu corpo. podia sentir a tensão nervosa
na contração espasmódica dos músculos, desde o pescoço à base da coluna
vertebral. tentou relaxar o corpo, mas não conseguiu enganá-lo, convencendo-o de
que o seu destino político não estava dependente da interpretação que aquele
homem que tinha na sua frente daria ao seu comportamento onze anos antes.

quando ela se calou, hepton fez deslizar a sua cadeira de pele afastando-a da
secretária e inclinando-a, lentamente, para um dos lados. ergueu a cabeça e
pareceu escrutinar os retratos de três monarcas e dois primeiros-ministros,
pendurados na parede oposta. passava o polegar ao longo da maxila, e o seu
silêncio era de tal modo profundo que eve podia ouvir distintamente o som do
polegar roçando nas patilhas, à medida que deslizava sobre a sua superfície
granulosa.

- devo dizer que luxford está a operar com duas motivações: tiragens e danos
políticos - disse. - o objetivo dele é ultrapassar o globe em termos de vendas e
agredir o governo. esta história permite-lhe matar dois coelhos de uma só cajadada.

- talvez sim, talvez não - parecia pensativo. eve percebia, pelo tom da voz dele, que
o secretário do interior avaliava as possíveis reações a esta história. era crucial
restringir eventuais danos.

- tenho a certeza de que tudo isto pode ser virado contra luxford, richard - disse ela. -
se eu for apresentada como uma hipócrita, o que será ele exatamente? e quando a
polícia o desmascarar como sendo o cérebro que está por detrás do rapto de
charlotte...

hepton ergueu o dedo indicador para detê-la. continuava a pensar. o fato de ele
estar a considerar um conjunto de opções sem lhe atribuir qualquer papel nas suas
deliberações não passou despercebido a eve. ela sabia que ficar calada só lhe traria
as maiores vantagens, mas não conseguiu conter uma última tentativa de salvação.

- deixe-me falar com o primeiro-ministro. estou certa de que se ele estiver


devidamente informado sobre o que levou dennis luxford a escrever esta história...

- sem dúvida - disse hepton lentamente. - o primeiro-ministro tem de ser informado


sem demora sobre o que se está a passar.

invadida por uma enorme sensação de alívio, ela replicou,

- posso ir a downing street imediatamente. ele não hesitará em receber-me logo, se


souber a natureza do que está em jogo. e é preferível que eu lá vá agora, enquanto
está escuro e antes que os jornais cheguem à rua, do que esperar até que a história
saia e os repórteres comecem a juntar-se.

- ele tem uma interpelação ao governo agendada para amanhã, nos comuns -
continuou hepton, num tom de voz contemplativo.

- mais uma razão por que precisa de tomar conhecimento deste caso com luxford
agora.

- a oposição, já para não falar, na imprensa, irá comê-lo vivo, se não agirmos com
prudência. por isso ele não poderá enfrentar a interpelação sem que este assunto
esteja inteiramente resolvido.

- resolvido - repetiu eve. havia só uma maneira de resolver o assunto no intervalo de


tempo que hepton definira. prosseguiu, sentindo-se desesperada: - deixe-me falar
com ele. deixe-me tentar explicar-lhe. se eu não conseguir persuadi-lo a...

hepton interrompeu, mantendo o mesmo tom de voz contemplativo. eve tomou


consciência de que isso lhe permitia distanciar-se dela. era o mesmo tom de voz que
um monarca teria usado ao pronunciar, relutantemente, uma sentença de morte a
aplicar a um ente querido.

- depois do fracasso de larnsey, o primeiro-ministro tem de projetar uma imagem de


firmeza, eve. as atitudes conciliatórias estão absolutamente fora de questão. -
depois, fitando-a por fim. - consegue perceber isso, não consegue? consegue
perceber?

sentiu-se desfazer por dentro à medida que via o seu futuro como tivesse estado
contido nos seus músculos, nos seus órgãos e no seu sangue começar a diluir-se.
anos de planos cuidadosos, anos de esforço, anos de maquinações políticas, todos
eles se esvaíam em escassos segundos. fosse o que fosse que viesse a criar nos
tempos que se avizinhavam, sabia que não estaria a criar uma figura de peso no
palácio de westminster.

sir richard hepton deu mostras de ler isto no rosto dela.


- sei que a demissão é um rude golpe - disse, - mas ela não significa que não tenha
ainda muitas coisas pela frente. poderá ser reabilitada. veja o caso de john profumo.
quem teria imaginado que um homem caído em desgraça como ele seria capaz de
dar a volta por cima?

- não faço tenções de ser uma assistente social mendigante.

hepton inclinou a cabeça e adotou uma pose paternalista.

- não pretendo sugerir isso, eve. além do mais, a sua posição no governo não está
destruída por completo. ainda lhe resta o seu assento nos comuns. a demissão do
cargo ministerial não significa que tudo esteja perdido para si.

não. apenas quase tudo, pensou eve.

escrevera, então, a carta que o secretário do interior lhe solicitara que escrevesse.
queria pensar que o primeiro-ministro iria recusar-se a aceitar o seu pedido de
demissão, mas sabia que nada disso aconteceria. as pessoas depositavam a sua
confiança nos líderes que elegiam, salmodiaria ele, religiosamente, nos degraus do
número dez. quando essa confiança se esboroava, os líderes eleitos eram forçados
a retirar-se.

percorrera a curta distância que separava o ministério do interior de parliament


square. estava lá quando o seu assistente chegou. pela rapidez com que desviou os
seus olhos dos dela, eve percebeu que joel woodward já tivera conhecimento dos
títulos dos jornais. naturalmente. a notícia devia ter sido divulgada no boletim
noticioso da manhã, e joel via sempre as notícias enquanto engolia a sua tigela de
cereais.

em breve se tornou evidente que todos os ocupantes do edifício de parliament


square estavam ao corrente do artigo de dennis luxford. ninguém lhe dirigiu a
palavra, as pessoas faziam-lhe um cumprimento rápido com a cabeça e desviavam
o olhar ainda mais rapidamente, e, pelo seu gabinete ecoavam sussurros, como se
todos tivessem vivido um encontro em primeiro grau com a morte.

os repórteres começaram a ligar assim que as linhas telefônicas foram


desimpedidas. o «sem comentários» não os satisfazia. queriam saber se a deputada
por marylebone iria contestar as afirmações do the source. «num caso como este
não há ”sem comentários”», dissera um deles, segundo contou joel com cuidado.
«ou é verdade ou é mentira, e se ela não está a pensar em processar o jornal por
difamação, suponho que todos sabemos para que lado sopram os ventos.»

joel queria que ela negasse as alegações do jornal. era incapaz de acreditar que o
objeto dos seus sonhos eróticos conservadores possuía uma faceta que não casava
muito bem com as convicções estabelecidas do partido.

não teve notícias do pai de joel até meio da manhã. e nessa ocasião soube dele
apenas por intermédio de nuala, que lhe telefonou desde o gabinete da constituinte
para informá-la que o coronel woodward tinha convocado uma reunião do órgão
dirigente. nuala enumerou os convocados e a hora da reunião. em seguida baixou a
voz e disse, simpática.

- sente-se bem, miss bowen? isto aqui está um verdadeiro inferno. quando vier tente
a entrada das traseiras. os repórteres ocupam quase todo o passeio.

ocupavam-no por inteiro quando ela chegou. agora, no interior do gabinete da


constituinte, eve preparava-se para o pior. o órgão dirigente não solicitara a
presença dela durante a discussão preliminar. o coronel woodward limitara-se a
espreitar à porta do gabinete dela exigindo que ela lhe dissesse o nome do pai da
sua filha. não fez a pergunta num tom amigável, tão-pouco se esforçou por revesti-la
de um eufemismo. vociferou-a, como se fosse uma ordem militar e, ao fazê-lo, deu-
lhe a conhecer, incondicionalmente, os contornos exatos da paisagem política.

tentou despachar os assuntos do dia, mas não havia muito que fazer. normalmente,
só passava pela sede da constituinte às sextas-feiras, por isso para além do correio
nada mais havia para resolver. não havia ninguém à espera para falar com a sua
representante parlamentar, a não ser os repórteres e, quanto a estes, seria uma
loucura dar-lhes uma palavra de encorajamento. dedicou-se então a ler cartas e a
responder-lhes e, nos momentos em que não estava a fazer nem uma coisa nem
outra entretinha-se a passear de cá para lá.

duas horas depois do início da reunião com os dirigentes, o coronel woodward veio
ter com ela.

- estão a chamá-la agora - disse, virando-se em seguida e caminhando na direção


da sala de reuniões. enquanto avançava para lá passava as mãos pelos ombros do
casaco com um padrão em espinha, numa tentativa de afastar a caspa, que
produzia em generosas quantidades.

os membros dirigentes da constituinte estavam sentados em torno de uma mesa de


mogno retangular. bules de café, chávenas usadas, blocos de notas amarelos e lápis
acumulavam-se sobre o tampo. a divisão estava bastante sobreaquecida quer pelos
corpos dos seus ocupantes quer por duas horas de acalorada discussão e eve
pensou em pedir a alguém que abrisse uma janela. no entanto, a proximidade dos
repórteres, agrupados no exterior, obrigou-a pôr a idéia de lado. ocupou o lugar
vazio num dos extremos da mesa e ficou à espera que o coronel woodward
ocupasse o seu assento no topo da mesma.

- luxford - disse ele. poderia perfeitamente ter dito merda de cão. e fitou-a com o seu
olhar encimado por um par de sobrancelhas farfalhudas para que ela pudesse ler a
força do seu, e de todos os restantes membros dirigentes, mais completo
desagrado. - não sabemos o que fazer com isto, eve. um caso com um
antimonárquico. um boateiro, amador de escândalos. um apoiante dos trabalhistas.
tanto quanto sabemos, um comunista ou trotsquista, ou seja lá o que for que essa
gente chama a si própria. não podia ter feito uma escolha mais abominável.

- foi há muito tempo atrás.

- está a sugerir que, nessa altura, ele não correspondia à descrição que acabei de
fazer?
- antes pelo contrário, estou a sugerir que, à época, eu não era o que sou hoje.

- graças a deus por isso - disse o coronel woodward. houve uma agitação em torno
da mesa. eve aproveitou a ocasião para olhar diretamente os membros dirigentes,
um por um. a sua disponibilidade ou relutância em corresponder ao olhar dela
traduzia a posição de cada um deles em relação ao futuro dela. a maioria, ao que
parecia, estava do lado do coronel woodward.

- cometi um erro no passado - disse, dirigindo-se a todos. - paguei por ele um preço
mais elevado do que jamais alguma personalidade pública teve de pagar por um ato
de indiscrição: perdi a minha filha.

ouviu-se um murmúrio generalizado de reconhecimento e expressões de


solidariedade provenientes de três das mulheres presentes. o coronel woodward
apressou-se a agir no sentido de sufocar qualquer acesso de condolências que
pudessem crescer e transformar-se numa onda de apoio, dizendo:

- cometeu mais do que um erro no seu passado. também mentiu perante esta
comissão, miss bowen.

- não creio...

- mentiras por omissão, menina. mentiras derivadas de subterfúgios e hipocrisias.

- agi a pensar nos interesses dos meus constituintes, coronel woodward. dediquei-
me por inteiro ao meu círculo eleitoral, dei-lhe toda a minha atenção e esforço. se for
capaz de encontrar uma área que eu tenha descurado no que diz respeito aos
interesses dos cidadãos de marylebone, talvez seja útil referi-la.

- a sua eficácia política não está em discussão - disse o coronel woodward. -


asseguramos o seu assento parlamentar nas primeiras eleições com uma escassa
maioria de oitocentos votos.

- margem essa que eu aumentei para mil e duzentos da última vez - replicou eve. -
disse-lhe desde o primeiro momento que o tipo de maioria que o senhor tem em
mente leva anos a construir. se me der margem de manobra para...

- margem de manobra para quê? - perguntou o coronel woodward. - certamente que


não está a referir-se a margem de manobra para manter o seu atual assento no
parlamento?

- É exatamente a isso que me refiro. se eu me afastar agora ficará a braços com


eleições antecipadas. no clima atual, que resultado espera obter nessas
circunstâncias?

- e se não se afastar, se permitirmos que volte a candidatar-se ao parlamento depois


desta história com luxford vamos acabar por perder a favor dos trabalhistas. porque,
a despeito do que possa pensar acerca da sua habilidade para conseguir uma
absolvição da parte do eleitorado, nenhum eleitor, miss bowen, irá provavelmente
esquecer o abismo entre a imagem que a senhora projetou de si mesma e aquilo
que na realidade é. e ainda que os eleitores tivessem uma memória assim tão curta,
a oposição não se fará rogada para trazer à luz do dia todos os pormenores
escabrosos do seu passado, caso seja a nossa candidata para as próximas
eleições.

as palavras pormenores escabrosos pareciam ressoar em toda a sala. eve viu os


dirigentes fixarem o olhar nos blocos de notas amarelos, nos lápis e nas chávenas
de café. exalavam embaraço em ondas quase visíveis. nenhum deles pretendera
que a reunião se transformasse numa luta de galos. todavia, se esperavam que ela
se vergasse ao peso da sua vontade coletiva, então teriam de deixar isso bem claro.
ela não avançaria com um pedido de demissão imediato, que a obrigaria a ceder o
seu assento à oposição.

- coronel woodward - disse calmamente, - todos nós levamos a peito os interesses


do partido. eu, pelo menos, presumo que assim seja. o que é que gostariam que eu
fizesse?

ele lançou-lhe um olhar perscrutador e desconfiado. foi a segunda frase que ela
proferiu que o enervou.

- eu não gosto de si, menina - disse ele. - não gosto daquilo que é, daquilo que fez e
da forma como tentou camuflá-lo. todavia, o partido é mais importante do que o fato
de não gostar de si.

eve compreendeu que ele precisava de a punir. precisava de fazê-lo num local tão
público quanto lhe fosse permitido pela situação e pelo interesse mútuo em controlar
os danos sofridos. podia sentir o sangue enfurecido latejar-lhe nas veias, mas
manteve-se imóvel, sentada na cadeira.

- concordo inteiramente no que diz respeito à importância do partido, coronel


woodward - disse, acrescentando em seguida - o que é que gostariam que eu
fizesse?

- só nos resta uma opção. terá de manter o seu assento no parlamento até que o
primeiro-ministro convoque eleições gerais.

- e depois?

- depois não queremos ter mais nada que ver consigo. a senhora desligar-se-á por
completo do parlamento. demitir-se-á a favor do candidato que nós escolhermos.

olhou em volta. podia ver que este plano era uma solução de compromisso, o
casamento infeliz entre a exigência da sua demissão imediata e a permissão para
que ela mantivesse o seu lugar indefinidamente.

permitia-lhe ganhar tempo, tanto quanto aquele que o primeiro-ministro demorasse a


convocar eleições gerais, pressionado pelos ventos de mudanças políticas que
vinham crescendo desde há meses. quando essa decisão fosse tomada, a sua
carreira estaria acabada. estava acabada a partir deste momento, aliás. manteria o
seu assento na casa dos comuns durante algum tempo, mas todos os que estavam
sentados na sala de reuniões sabiam quem, entre eles, estaria a exercer o
verdadeiro poder.

- o senhor nunca gostou de mim, não é verdade? - perguntou ela ao coronel


woodward.

- tinha boas razões para isso - retorquiu o coronel.

barbara havers pressentiu que estava cada vez mais próximo da verdade assim que
localizou stanton st. bernard. a aldeia consistia num aglomerado de quintas, celeiros
e casas pequenas alinhados ao longo de uma encruzilhada formada por cinco
veredas e caminhos estreitos. havia uma nascente, um poço, uma estação de
correios que de tão minúscula fazia lembrar uma caixa de sapatos e a igreja
modesta, que apadrinhara a festa, em cuja quermesse fora encontrado o saco de
trapos contendo o uniforme escolar de charlotte bowen. todavia, não era a existência
da igreja que espicaçava o interesse de barbara. era a localização da aldeia em si
mesma. a uma escassa meia milha de distância para sul, o canal do kennet e do
avon atravessava campos de trigo e milharais, correndo tranquilamente na direção
de allington, que ficava a pouco mais de duas milhas para oeste. antes de se
encaminhar para a igreja, barbara fez um breve périplo pela aldeia, a fim de verificar
estes pormenores. no momento em que estacionou o mini e se apeou, aspirando o
ar impregnado do odor a adubo teve a certeza de que estava na pista de um
assassino.

encontrou o pároco e a mulher no jardim de uma casa de janelas estreitas,


identificada por uma tabuleta onde se podia ler the rectory. estavam ambos
ajoelhados em frente a um canteiro abundantemente plantado e, por momentos,
barbara pensou que estavam a rezar. deteve-se junto ao portão, mantendo o que lhe
pareceu ser uma distância suficientemente respeitosa. foi então que as vozes deles
chegaram até ao local onde se encontrava.

- vamos ter uma bela coleção de ranúnculos, minha querida, se o tempo colaborar -
dizia o pároco.

- em contrapartida, já não temos de nos preocupar com os ornithogalum, não é


verdade? - retorquia a mulher. - tens de arrancá-los todos. o chá da comissão
feminina está à porta e eu tenho de ter o jardim em ordem, querido.

ao escutar esta troca de palavras que nada tinham de teológico, barbara elevou o
tom de voz numa saudação e empurrou o portão, abrindo-o. o pároco e a mulher
endireitaram-se, apoiando o corpo nos calcanhares.

estavam ajoelhados sobre um tapete de automóvel de padrão axadrezado, e quando


barbara se aproximou reparou que uma das meias pretas do pároco estava rota na
zona dos tornozelos.

ao que parecia preparavam-se para lançar mãos ao trabalho, pois tinham espalhado
junto dos joelhos uma grande quantidade de antigos utensílios de jardinagem. estes
estavam dispostos sobre um amplo quadrado de papel de embrulho, onde alguém
desenhara o que parecia ser um plano geral de ordenamento do jardim. o papel
estava profusamente manchado e repleto de inúmeras anotações. a avaliar pelas
aparências, o pároco e a mulher pareciam dedicar à terra uma paixão extrema.

barbara apresentou-se e exibiu a sua identificação. o pároco esfregou as mãos uma


na outra e pôs-se de pé. ajudou a mulher a levantar-se e, enquanto ela se
compunha de alto a baixo, desde a saia de ganga até ao cabelo grisalho, ele
apresentou-se a si próprio como sendo o reverendo matheson e identificou a mulher
como «rose, a minha noiva».

a mulher esboçou um sorriso tímido perante esta designação e enfiou o seu braço
no do marido. deixou deslizar a mão até que os dedos de ambos se tocassem,
entrelaçando-se.

- em que é que podemos ajudá-la, minha querida - perguntou o pároco a barbara.

barbara disse-lhes que viera até ali para conversar sobre a festa que a igreja
apadrinhara havia pouco tempo, e rose sugeriu que a conversa prosseguisse
enquanto ela e o pároco continuavam a tratar do jardim.

- É extremamente difícil conseguir que o sr. matheson roube uma hora aos seus
afazeres diários para cuidar das nossas plantas - confiou ela, - em particular porque
ele tudo faz para se esquivar a um pouco de trabalho árduo em volta dos canteiros.
por isso, agora que consegui arrastá-lo até aqui, tenho de malhar o ferro enquanto
está quente.

o sr. matheson fez um ar consternado.

- não tenho jeito nenhum para a jardinagem, rose. deus não achou por bem incluir a
botânica no rol dos meus talentos, como sabes.

- se sei - disse rose, com veemência.

- não me importo nada de ajudar enquanto conversamos - disse barbara.

- a sério que não se importa? - a sugestão pareceu deixar rose deliciada. tornou a
ajoelhar-se sobre o tapete. barbara julgou que ela estivesse a preparar-se para
agradecer ao senhor a graça de lhe ter enviado uma ajudante. em vez disso
escolheu um ancinho entre os vários utensílios e passou-o a barbara, dizendo: -
primeiro trabalhamos a terra. revolvemo-la em primeiro lugar, e em segundo pomos
o fertilizante. É assim que se faz com que as coisas cresçam.

- muito bem - disse barbara. não tinha coragem de confessar que os seus talentos
para a jardinagem eram mais do que reduzidos. os portões do paraíso estariam sem
dúvida decorados com as centenas de plantas que ela se encarregara de entregar
ao criador ao longo dos anos.

o sr. matheson fez-lhes companhia sobre o tapete. começou a arrancar o


ornithogalum, atirando para o relvado o que dele restava. enquanto trabalhava,
ladeando barbara, o casal tagarelava amigavelmente sobre a festa. tratava-se de um
acontecimento anual, a avaliar pelo entusiasmo de um e de outro de que se serviam
como forma de angariar dinheiro para substituir as janelas da igreja.

- queremos voltar a colocar vitrais - explicou o sr. matheson. - É claro que alguns dos
mordomos me acusam de ter gostos demasiado próximos dos da alta igreja por
causa das janelas...

- acusam-te de papismo - disse rose, com uma gargalhada suave. o sr. matheson
descartou a acusação atirando o caule oscilante de um ornithogalum por cima do
ombro.

- mas quando eu tiver colocado as janelas pensarão de maneira diferente; espera e


verás. É tudo uma questão de hábito. e quando os nossos thomas, hoje tão
reticentes, se tiverem habituado às variações de luminosidade, ao modo como a
contemplação e a devoção são absoluta e irrevocavelmente alteradas quando
rodeadas por uma luz mais suave... uma luz diferente de tudo o que já lhes foi dado
ver... a menos que, é claro, tenham visitado chartres ou notre dame...

- sim, querido - disse rose, em tom firme.

as palavras dela trouxeram o pároco de volta à realidade. pestanejou e depois riu de


satisfação.

- entusiasmo-me, não é?

- É bom sentir amor por alguma coisa - disse barbara.

rose arrancava, diligentemente, as ervas daninhas entre os ranúnculos.

- É, de fato - disse e puxou um dente-de-leão dotado de umas raízes particularmente


resistentes. - no entanto, por vezes seria preferível que os amores do sr. matheson
tivessem, na sua generalidade, um caráter mais anglicano. ainda há duas semanas
atrás discorreu com um arrebatamento tal sobre a fachada oeste da catedral de
reims na presença do arcediago, que cheguei a pensar que o pobre homem ia ter
uma apoplexia. a sua voz soou mais carregada: m-m-mas, meu caro matheson,
essa é uma construção papista. que cena que o sr. matheson provocou.

barbara fez os ruídos de aquiescência adequados à situação e depois fê-los voltar


ao assunto da festa. - estava interessada na quermesse, - explicou. - uma peça de
vestuário, um uniforme escolar relacionado com uma investigação de homicídio, fora
encontrado dentro de um saco de trapos que fora vendido nessa quermesse.

o sr. matheson suspendeu os seus esforços junto do ornithogalum. incrédulo, disse:


- investigação de um homicídio?- , enquanto a mulher optava por - uniforme
escolar?, com idêntica incredulidade.

- a garota que foi encontrada no canal, no domingo à noite. em allington. não


ouviram falar no caso?
- claro que sim. quem não tinha? allington ficava ali mesmo ao lado, e o lugarejo
fazia parte da paróquia do sr. matheson.

- pois - disse barbara. - bem, foi o uniforme dela que foi encontrado entre os trapos.

pensativa, rose arrancou uma erva daninha que, aos olhos de barbara, não diferia
muito das plantas que cresciam ao seu lado. franziu as sobrancelhas e abanou a
cabeça.

- tem a certeza que era o uniforme dela?

- o nome dela estava cozido no tecido.

- e estava inteiro?

barbara fitou-a, confusa, presumindo que ela estaria a referir-se ao nome de


charlotte.

- como? - disse.

- se o uniforme estava inteiro, - era isso que a sra. matheson pretendia saber. -
porque, - passou a explicar, - os trapos não estariam. trapos eram por definição...
bem, trapos. todas as peças de roupa consideradas impróprias para serem vendidas
como roupas eram cortadas em quadrados, metidas em sacos e depois oferecidas à
quermesse para serem vendidas como trapos durante a festa. no entanto, seria
impossível haver peças de roupa inteiras misturadas com os trapos dela, - disse a
sra. matheson. - antes da festa, ela e a filha a quem se referia como «a jovem miss
matheson», uma designação muito ao estilo de jane austen - tinham passado em
revista todas as peças, uma por uma, e elas próprias as tinham cortado em
quadrados.

- para não ofender nenhum dos paroquianos - confessou rose. - se eles soubessem
que um dos vizinhos poderia passar um juízo de valor acerca da adequação da
oferta... ora, o mais provável era deixarem de dar fosse o que fosse de uma vez por
todas, não era? por isso fazemo-lo nós mesmas. sempre o fizemos. assim sendo, -
concluiu, atacando com energia um molho de trevos, - um uniforme escolar em bom
estado de conservação era coisa que não lhes teria passado pelas mãos para
acabar perdido no meio dos trapos. e se estivesse em mau estado teria sido cortado
em quadrados como as restantes peças de vestuário impróprias para venda.

esta era uma viragem interessante no rumo dos acontecimentos, pensou barbara.
cavou em volta de uma planta com a ajuda do ancinho e ruminou sobre a
informação.

- quando é que foi a festa, exatamente? - perguntou.

- sábado passado - respondeu rose.

- e onde?
- precisamente no recinto da igreja, - informaram-na. - e todos os artigos destinados
à quermesse tinham sido entregues em caixas de cartão, no vestíbulo da igreja ao
longo de um período de quatro semanas. a sra. matheson e a filha a já mencionada
miss matheson tinham supervisionado a atividade todos os domingos à noite, ali
mesmo na cripta da igreja.

- era nessa altura que cortávamos as roupas - disse a sra. matheson. - É mais fácil
fazê-lo semana a semana do que esperar até ao fim e fazer tudo ao mesmo tempo.

- a organização é o segredo do sucesso de uma festa - confidenciou o sr. matheson.


- fizemos trezentas e cinquenta e oito libras e sessenta e quatro pence no sábado,
não foi, rose?

- exatamente. no entanto, devo dizer que talvez houvesse um poucochinho de


gordura a mais nos pratos para o jogo das moedas. não saíram prêmios suficientes
nesta barraca e as pessoas ficaram um pouco irritadas com isso.

- disparate - zombou o marido. - É tudo em nome de uma causa justa. com aquelas
janelas no seu devido lugar, a congregação verá...

- nós sabemos, querido - disse a sra. matheson.

- supondo que o uniforme não se encontrava entre os donativos originalmente


inspecionados pela sra. matheson, - barbara quis saber - quem tinha acesso às
roupas depois de estas terem sido escolhidas, cortadas e metidas em sacos.

a sra. matheson rastejou para dentro do canteiro no encalço de uma erva daninha
salpicada de minúsculas flores amarelas.

- acesso aos donativos? ninguém, presumo eu - disse ela. - guardámo-los na cripta,


que não está fechada à chave.

- tal como a igreja - acrescentou o sr. matheson. - não tolero semelhante coisa.
qualquer lugar de oração deverá estar em condições de acolher o penitente, o
mendigo, o infeliz e todos os que sofrem a qualquer hora do dia ou da noite. É um
absurdo total querer subordinar as horas de devoção dos fiéis aos horários do seu
pároco, não acha?

barbara disse-lhe que sim, que achava. e antes que o pároco tivesse oportunidade
de tecer ainda mais considerações sobre a sua filosofia religiosa o que, segundo ela
podia ver, se preparava para fazer, dado que tinha abandonado o ornithogalum e
esfregava agora as mãos uma na outra apressou-se a perguntar se, nos dias
anteriores à festa, eles se tinham apercebido da presença de estranhos nas
redondezas. ou até, acrescentou, na manhã desse dia festivo.

os matheson entreolharam-se. abanaram as cabeças num gesto negativo. - claro, -


acrescentou o sr. matheson, - na festa propriamente dita era costume ver-se
pessoas que não se conhecia, já que se tratava de um acontecimento publicitado em
todos os lugarejos e aldeias da região, já para não falar de marlborough, wootton
cross e devizes. pois se esse era um dos desígnios de uma festa, ou não seria?
para além da angariação de fundos, havia sempre a esperança de voltar a colocar
mais uma alma sob a proteção do senhor. e que melhor forma de o fazer do que
encorajar as almas perdidas a misturarem-se com as que já tinham ganho a
salvação.

isso complicava o caso, compreendeu barbara. pior ainda, deixava tudo em aberto.

- nesse caso - disse - qualquer pessoa poderia ter tido acesso aos sacos de trapos,
ter aberto um deles e escondido o uniforme lá dentro. quer na cripta, antes da festa,
quer em determinado momento durante os festejos.

- durante a festa, era pouco provável que isso tivesse acontecido, - disse a sra.
matheson. - porque havia gente na barraca e, se um estranho tivesse aberto um dos
sacos, certamente que alguém o teria visto.

- e era ela mesma quem se encarregava da barraca, então? - perguntou barbara.

- era, sim, - replicou a sra. matheson. - e quando lá não estava, a jovem miss
matheson ocupava o seu lugar. gostaria o sargento de falar com miss matheson?

barbara gostaria, sim, desde que não tivesse de dobrar a língua mais do que uma
vez com aquele «jovem miss matheson». todavia, durante essa conversa queria ter
consigo uma fotografia de dennis luxford. se luxford se tivesse deslocado a wilthire
mais recentemente do que parecia indicar a visita que há um mês atrás fizera à
baverstock school se tivesse andado a deambular por stanton st. bernard na semana
anterior alguém poderia tê-lo visto, algures. e que melhor lugar para começar a
procurar essa pessoa do que este?

informou o pároco e a mulher deste que regressaria para lhes mostrar uma
fotografia. disse-lhes que queria que a filha deles a visse também. a que horas é que
a jovem miss matheson acabava as aulas?

os matheson riram à socapa. explicaram a sua reação informando-a de que a jovem


miss matheson já não andava na escola, mas eles agradeciam-lhe na mesma pelo
fato de os achar com um aspecto suficientemente juvenil para ter uma filha em idade
escolar. ninguém deveria vangloriar-se da sua aparência, mas o sargento não era a
primeira pessoa a notar a espantosa juventude deste casal que havia dedicado a
sua vida a deus. a verdade era que quando se dedicava a vida ao serviço do senhor
e se gozava de uma boa dose de ar fresco, como eles estavam a fazer naquele
momento...

- certo - disse barbara. - onde posso encontrá-la?

- no barclay’s, em wootton cross, - disse rose. - se o sargento quisesse que a jovem


miss matheson visse a fotografia antes que ela terminasse o seu dia de trabalho
poderia deslocar-se até ao banco.

- basta perguntar por miss matheson da seção abertura de contas - disse a sra.
matheson, com orgulho. - É um emprego bastante respeitável.
ao que o pároco acrescentou com um ar sério:

- ela tem até secretária própria.

nkata atendeu a chamada telefônica do sargento havers, pelo que lynley conseguia
seguir apenas uma das partes da conversa, que, na sua maior parte se resumia a
«certo... brilhante, essa jogada, sargento... ele esteve em baverstock quando?...
ooooh, lindo, isso... e o que há de novo acerca dos barcos fluviais?» quando a
conversa terminou, o agente disse a lynley: - ela precisa que lhe enviemos uma
fotografia de luxford, por fax, para o departamento de investigação criminal de
amesford. diz que tem uma corda em volta do pescoço dele, que está cada vez mais
apertada.

lynley virou à esquerda na primeira oportunidade que lhe surgiu e iniciou o percurso
serpenteante para norte, na direção de highgate e da casa de luxford. enquanto
conduzia, nkata punha-o ao corrente dos passos do sargento, em wiltshire. em jeito
de conclusão referiu:

- interessante, o fato de luxford nunca nos ter dito que tinha estado em wiltshire o
mês passado, não acha?

- É uma omissão de peso - concordou lynley.

- se pudermos ligá-lo ao aluguel de um barco, e é nisto, aliás, que o querido do


sargento está a trabalhar neste momento, então...

- o querido do sargento? - inquiriu lynley.

- o tipo com quem ela está a trabalhar. não reparou ainda na efervescência que toma
conta da voz dela de cada vez que diz o nome dele?

lynley tentou imaginar como soaria uma voz efervescente.

- não me apercebi de nenhuma efervescência na voz - disse.

- então é porque anda a usar tampões nos ouvidos. aqueles dois estão caídinhos um
pelo outro, meu. ouça o que lhe digo.

- e é o som da voz do sargento que te leva a concluir isso?

- exatamente. e é natural que isso aconteça. sabe como é quando se trabalha de


perto com alguém.

- não estou tão certo disso - disse lynley. - tu e eu já estamos juntos há alguns dias,
mas ainda não sinto nenhum desejo especial por ti.

o outro riu.

- tudo a seu tempo.


em highgate, millfield lane transformara-se num acampamento de jornalistas. estes
grudavam-se à fachada da residência de luxford como uma constelação de
imperturbáveis más recordações, acompanhados por unidades móveis, operadores
de câmara, projetores e ainda por três cães da vizinhança que, rosnando,
disputavam entre si a posse dos restos de refeições abandonados pelos jornalistas.
do outro lado da rua viam-se transeuntes, vizinhos e mirones vários que se tinham
reunido na zona leste dos lagos de highgate. e à medida que o bentley de lynley ia
dividindo em dois a multidão que se congregara em frente da alameda que dava
acesso à casa dos luxford, três ciclistas e dois patinadores sobre rodas pararam,
hesitantes, e juntaram-se à confusão.

até ao momento, a presença de forças policiais ao fundo da alameda apenas


conseguira impedir a aproximação dos representantes da imprensa. no entanto,
quando um dos agentes policiais afastou a barreira para um dos lados, um repórter
passou por ele seguido de perto por dois fotógrafos. os três correram em direção à
casa situada no cimo do declive.

levando os dedos ao puxador da porta, nkata perguntou:

- quer que acalme os ânimos àqueles três?

lynley viu-os precipitarem-se na direção do pórtico. um dos fotógrafos desatou a


fotografar o jardim.

- não conseguirão nada de útil - disse. - É quase certo que luxford não virá ver quem
está a bater-lhe à porta.

- está a ter a conta dele, com todos estes tubarões infestando as águas desta
maneira.

- bela ironia - admitiu lynley, - para quem gosta desse tipo de coisas.

parou o carro atrás do mercedes. quando bateu à porta, foram recebidos por um
polícia. o repórter passou por lynley, gritando:

- sr. luxford! não quer responder a algumas perguntas para o sun? qual foi a reação
da sua mulher ao artigo desta manhã...

lynley agarrou o homem pela parte detrás do colarinho. empurrou-o na direção de


nkata que, com um prazer evidente, enxotou o repórter para a rua. no meio de
clamores sobre a «maldita brutalidade policial» entraram dentro de casa.

- recebeu a nossa mensagem? - perguntou o polícia, lapidarmente.

- que mensagem? estávamos no carro. winston esteve a falar ao telefone.

- as coisas estão tensas - disse o polícia em voz baixa. - houve outro telefonema.

- do raptor? quando?
- ainda nem há cinco minutos - conduziu-os até à sala de estar. os cortinados tinham
sido corridos para manter os luxford fora do alcance das teleobjetivas e as janelas
estavam fechadas, para que estivessem a salvo de ouvidos intrometidos. o
resultado, porém, era uma atmosfera sufocante e tenebrosa que, ainda que
quebrada pela iluminação irradiada pelos candeeiros de mesa, não deixava de ser
sepulcral e forçadamente calma. restos de refeições quase intactas apareciam
espalhados sobre mesas, otomanas e assentos de cadeiras. chávenas de chá, onde
viera depositar-se uma fina película baça, e cinzeiros cuspindo beatas e saturados
de cinza povoavam o tampo de um piano de cauda, onde se via um exemplar
desdobrado da última edição do the source, algumas páginas do qual tinham
deslizado para o chão.

dennis luxford estava sentado, com a cabeça entre as mãos, numa poltrona perto do
telefone. quando a polícia atravessou a sala ao seu encontro ergueu a cabeça.
nesse instante, o inspetor-detetive john stewart um dos colegas de divisão de lynley,
na yard, e o homem ideal para qualquer trabalho que exigisse uma atenção
meticulosa aos pormenores entrou na sala de estar, vindo da direção oposta. trazia
uns auscultadores em torno do pescoço esguio e falava para um telefone sem fios.
cumprimentou lynley com um aceno de cabeça e continuou a falar ao telefone:
«sim... sim... maldito. tentaremos melhorar da próxima vez... certo...» depois, para
luxford: «nada, sr. luxford. deu o seu melhor, mas não tivemos tempo suficiente» e,
finalmente, para lynley: «já sabes?»

- puseram-me ao corrente agora mesmo. o que é que se passou?

- fizemos uma gravação. - guiou lynley até à cozinha. no espaço entre uma das
bancadas e um fogão em aço inoxidável fora montado um sistema de escuta. este
consistia num gravador, meia dúzia de rolos de fita adesiva, auscultadores, fios e
uma instalação elétrica que parecia partir em todas as direções.

o inspetor stewart puxou a fita para trás e carregou no botão para voltar a pôr no ar a
gravação. ouviram duas vozes, ambas manifestamente masculinas, uma das quais
era a de luxford. a outra soava como se alguém falasse a partir da garganta e com
os dentes completamente cerrados. era um processo eficaz de distorcer e disfarçar
a voz.

a mensagem era breve, demasiado breve para que a chamada pudesse ser
localizada:

- luxford?

- onde está o meu filho? onde está leo? deixe-me falar com ele.

- percebeste tudo ao contrário, meu cretino.

- percebi tudo ao contrário, o quê? de que é que está a falar? por amor de deus...

- cala-te e ouve bem o que te digo. quero a verdade. a história. o miúdo morre, se
não contares a verdade.
- escrevi-a! não leu o jornal? está na primeira página! fiz o que me pediu,
exatamente como me pediu. agora, devolva-me o meu filho ou...

- escreveste a história errada, cretino. não julgues que não sei. escreve a coisa certa
amanhã, ou então leo morre. tal como lottie. percebeste? amanhã, ou ele morre.

- mas o que é que...

a gravação chegou ao fim quando o telefone ficou mudo.

- É isto - disse stewart. - não tivemos tempo de a localizar.

- e agora, inspetor?

lynley virou-se na direção da voz. luxford viera até à porta da cozinha. tinha a barba
por fazer, parecia não ter tomado banho e as roupas que vestia eram as mesmas do
dia anterior. os punhos e o colarinho desapertado da camisa branca estavam sujos
do corpo transpirado.

- percebeste tudo ao contrário - disse lynley. - que significa isto?

- não sei - respondeu luxford. - juro por deus que não sei. fiz aquilo que ele me
pediu, cumpri tudo à letra. não sei que mais poderia ter feito. veja - trazia com ele
um exemplar da edição matutina do the source e estendeu-a a lynley. pestanejou
rapidamente, tinha as pálpebras vermelhas e os olhos raiados de sangue.

lynley observou o jornal com mais atenção do que a que lhe prestara ao princípio da
manhã. o título e a fotografia que o acompanhava correspondiam a tudo o que o
raptor tinha esperanças de ver publicado. o leitor quase não precisava de consumir a
história que ambos ilustravam, e bastava que um indivíduo possuísse as
competências de leitura de uma criança de sete anos para compreender a prosa que
luxford usara para construir o artigo, pelo menos no que dizia respeito à seção
publicada na primeira página. lynley passou os olhos pelo texto, percebendo desde
logo que o primeiro parágrafo só por si continha as respostas a questões tão
pertinentes como quem, onde, quando, porquê e como. interrompeu a leitura quando
chegou ao fim do relato apresentado na primeira página.

- foi assim que as coisas se passaram, tanto quanto me lembro - disse luxford. -
posso ter-me enganado num pormenor ou outro, posso ter deixado alguma coisa de
fora, só deus sabe que nem me lembro do número do quarto do hotel, mas tudo
aquilo de que consegui lembrar-me está aí nessa história.

- no entanto percebeu tudo ao contrário. que quererá ele dizer com isso?

- não sei, já lho disse.

- reconheceu a voz?

- quem diabo poderia ter reconhecido aquela maldita voz? parecia que estava a falar
com uma mordaça na boca.

lynley olhou para além de luxford, na direção da sala de estar.

- onde está a sua mulher, sr. luxford?

- lá em cima, deitada.

- ficou perturbada há uma hora atrás - acrescentou stewart. - tomou um comprimido


e foi deitar-se para descansar.

lynley fez um sinal de cabeça a nkata, que perguntou:

- ela está lá em cima, sr. luxford?

luxford deu mostras de ter percebido a intenção subjacente à pergunta, já que


exclamou:

- será que não podem deixá-la em paz? ela tem de ficar a saber disto agora? se ela
tiver finalmente conseguido adormecer...

- ela pode não estar a dormir - disse lynley. - que tipo de comprimidos é que ela
tomou?

- tranquilizantes.

- de que tipo?

- não sei. porquê? a que propósito vem tudo isto? escute. santo deus. não a acorde
para lhe contar o que se passou.

- ela pode já estar ao corrente.

- já? como? - nesse momento, luxford pareceu compreender tudo, e disse


rapidamente: - não é possível que ainda esteja a pensar que fiona tem algo a ver
com tudo isto. viu-a ontem, viu o estado em que ela estava. ela não é nenhuma atriz.

- vai vê-la - disse lynley, e nkata afastou-se para obedecer ao seu pedido. - preciso
de uma fotografia sua, sr. luxford. queria também uma da sua mulher.

- para quê?

- para a minha colega que está em wiltshire. não mencionou que tinha estado em
wiltshire recentemente.

- quando diabo estive eu em wiltshire?

- será que a palavra baverstock é suficiente para avivar-lhe a memória?

- baverstock? está a referir-se à altura em que me desloquei ao colégio? por que


haveria eu de ter mencionado uma visita a baverstock? nada tinha a ver com o que
se estava a passar. fui tratar da matrícula de leo. - aparentemente, luxford procurava
ler no rosto de lynley uma confirmação de culpa ou de inocência. parecia, de igual
modo, tirar inferências dessa confirmação, pois continuou: - meu deus, que é que se
passa? como é que pode ficar aí, olhando-me como se estivesse à espera que a
minha carne começasse a borbulhar? ele vai matar o meu filho. ouviu-o, não ouviu?
vai matá-lo amanhã, se eu não fizer o que ele quer. então por que diabo vai o senhor
perder tempo a interrogar a minha mulher quando podia muito bem estar lá fora,
fazendo alguma coisa, fosse o que fosse, para salvar a vida do meu filho? juro por
deus, se alguma coisa acontecer com leo depois disto... - pareceu tomar consciência
da sua respiração irregular e continuou num tom inexpressivo: - meu deus, não sei o
que fazer.

o inspetor-detetive stewart, pelo contrário, sabia. abriu um armário, encontrou uma


garrafa de xerez para tempero e encheu um copo com o líquido.

- beba isto - disse a luxford.

enquanto luxford o fazia, nkata regressou acompanhado da mulher do jornalista.

caso lynley tivesse pensado que fiona luxford estava envolvida na morte de charlotte
bowen e no subsequente rapto do filho, caso tivesse considerado a hipótese de ter
sido ela própria a fazer o último telefonema a partir do seu telefone celular, algures
dentro de casa, esses pensamentos foram imediatamente postos de lado quando
contemplou a aparência da mulher. o cabelo tinha perdido o brilho, o rosto estava
inchado e os lábios gretados. trazia vestida uma camisa amarrotada excessivamente
grande e umas calças de malha justas à perna. a camisa estava manchada à frente,
como se ela tivesse vomitado para cima dela. de fato, ela exalava um intenso odor
nauseabundo e segurava com força um cobertor em volta dos ombros, mais como
forma de proteção do que como fonte de calor. quando viu lynley vacilou. em
seguida viu o marido e foi como se tivesse visto a tragédia estampada no rosto dele.
o seu próprio rosto enrugou-se.

- não, ele não está. não está - disse, com um temor cada vez mais intenso.

luxford abraçou-a. stewart serviu mais xerez. lynley conduziu o grupo de volta à sala
de estar.

luxford obrigou a mulher a sentar-se no sofá com gentileza. ela tremia


violentamente, pelo que ele aconchegou o cobertor em volta dela e passou um dos
braços em torno dos seus ombros.

- leo não está morto. ele não está morto, está bem? - disse.

fraca, apoiou-se no peito dele. puxando pela camisa dele, disse:- ele deve estar tão
assustado. só tem oito... - e fechava os olhos com força.

luxford empurrava a cabeça dela de encontro a si. - havemos de encontrá-lo - disse.


havemos de o trazer de volta. o olhar que dirigiu a lynley continha a pergunta não
formulada: - como é capaz de acreditar que esta é a mulher que engendrou e
arquitetou o rapto do seu próprio filho?

lynley viu-se forçado a admitir que a culpabilidade dela era algo pouco provável. a
avaliar pelo que vira de fiona luxford desde que ela chegara a casa na tarde do dia
anterior, agarrando com força o boné escolar do filho, ela ainda não dera um passo
em falso. seria preciso mais do que uma simples boa atriz para personificar de forma
convincente a ansiedade extenuada que ele vira estampada naquela mulher. seria
preciso que ela fosse uma sociopata. e a sua intenção dizia-lhe que a mãe de leo
luxford não era uma sociopata. era apenas a mãe de leo.

esta conclusão, no entanto, não exonerava dennis luxford. havia ainda a considerar
o fato de a revista ao seu porsche ter tido como resultado a descoberta dos óculos
de charlotte e dos fios de cabelo dela. e embora pudessem ter sido lá colocadas
para incriminar o jornalista, lynley não podia deixar de considerá-lo como suspeito.
observou-o atentamente e disse: - temos de estudar a notícia do jornal, sr. luxford.
se de fato percebeu tudo ao contrário, temos de saber porquê.

luxford olhou-o como se estivesse prestes a protestar, a argumentar que o tempo e a


energia deles podia ser mais bem empregue passando as ruas a pente fino na
tentativa de descobrir o paradeiro do filho do que analisando minuciosamente os
últimos escritos que ele publicara, tentando encontrar um erro que pudesse ser
corrigido, e assim aplacar de algum modo um homicídio. lynley respondeu ao apelo
silencioso do outro:

- a investigação está a avançar em wiltshire e aqui, em londres, também fizemos


progressos.

- que tipo de progressos?

- entre outras coisas, uma identificação positiva nos copos encontrados. nos cabelos
da garota também. no mesmo sítio. - não acrescentou o resto: o sr. luxford pisava
terreno muito pouco firme, pelo que seria do seu interesse cooperar o mais possível.

luxford percebeu a mensagem. não era nenhum idiota. no entanto, a sua reação foi:
- não sei que mais poderia ter escrito. e não estou a ver onde tudo isto poderá levar-
nos.

as suas dúvidas tinham uma razão de ser.

- pode ter acontecido qualquer coisa durante a semana que o senhor e eve bowen
passaram juntos em blackpool, algo de que se tenha esquecido entretanto. esse
incidente, uma observação casual, um encontro mal combinado, um compromisso
ou entrevista que tenha cancelado ou a que não tenha comparecido, poderá ser a
chave que nos permitirá deslindar o que se terá passado com charlotte e com o seu
filho. se conseguirmos pôr a descoberto aquilo que deixou ficar de fora na história
que escreveu, poderemos encontrar um elo de ligação com alguém, uma ligação
que neste momento está para além da nossa compreensão.

- precisamos de eve para isso - disse luxford. quando a mulher levantou a cabeça
continuou: - não temos outra alternativa, fi. escrevi tudo aquilo que consigo recordar
neste momento. se alguma coisa ficou de fora, ela é a única pessoa que poderá
dizer-mo. tenho de vê-la.

fiona virou a cabeça. o seu olhar era vazio.

- sim - disse. a palavra, porém, soou inexpressiva.

- mas aqui não - disse luxford a lynley, - com os abutres rondando lá fora. aqui não.
por favor.

lynley entregou as suas chaves a nkata, dizendo: - vai buscar miss bowen e leva-a
para a yard. encontramo-nos lá. - nkata saiu. lynley olhou atentamente para fiona
luxford. - terá de ser forte durante as próximas horas, sra. luxford - disse-lhe. - o
inspetor-detetive stewart estará aqui consigo, tal como todos os outros agentes. se o
raptor telefonar, tem de tentar prolongar a conversa para que possamos localizar a
chamada. ele pode ser um assassino, mas se o seu filho for o último trunfo de que
ele dispõe, não irá fazer-lhe mal enquanto lhe restar uma possibilidade de obter o
que pretende. compreende?

acenou com a cabeça, mas não se moveu. luxford tocou os cabelos dela e chamou-
a pelo nome. ela retraiu-se, apertando o cobertor contra o peito. tornou a acenar
com a cabeça. os seus olhos ficaram toldados por uma cortina de lágrimas
transparentes, mas não verteu nenhuma.

- vou precisar do teu carro, john - disse lynley ao outro inspetor.

stewart atirou-lhe as chaves, dizendo: - passa por cima de alguns daqueles patifes
que estão ao fundo da alameda, quando saires.

- ficas bem? - luxford perguntou à mulher. - queres que telefone a alguém antes de
sair e peça para vir ficar contigo?

- vai - disse ela, tornando claro que o seu espírito estava perfeitamente lúcido, pelo
menos relativamente a um assunto. - a única coisa que interessa é leo.

lynley decidira já que não haveria grandes vantagens em que o encontro entre
dennis luxford e eve bowen se realizasse numa sala de interrogatórios. ambos
poderiam sentir-se desconcertados pela presença de um gravador, pela inexistência
de janelas e pelo sistema de iluminação, especialmente concebido para dar à pele
uma tonalidade amarelada e para pôr os nervos de qualquer um em franja. de fato,
nesta fase dos acontecimentos era menos importante abalar a autoconfiança de um
e de outro do que obter a sua cooperação. assim conduziu luxford diretamente para
o seu gabinete, onde ficaram a aguardar o regresso de nkata, que viria
acompanhado pela deputada de marylebone.

dorothea harriman estendeu uma rima de recados na direção de lynley, no momento


em que passavam pela secretária dela. referindo-se, aparentemente, às mensagens
disse: - relatório do so7 sobre a casa abandonada de george street. do so4 sobre as
impressões digitais de jack beard. de wigmore street sobre os agentes especiais.
dois repórteres, um do the source e outro do mirror...

- como é que eles descobriram o meu nome?

- há sempre alguém disposto a dar com a língua nos dentes, inspetor-detetive lynley.
veja só o que se passa com a família real.

- esses dão com a língua nos dentes sobre eles próprios - assinalou lynley.

- como os tempos mudaram. - voltou a referir-se aos recados. - sir david duas vezes.
o seu irmão uma, diz-lhe que não é preciso telefonar-lhe, era só para dizer que o
problema na vacaria trefalwyn estava resolvido. isso faz algum sentido para si? - não
esperou pela resposta dele. - o seu alfaiate uma vez. o sr. st. james três. pede que
lhe telefone logo que lhe seja possível, aliás. e sir david diz que quer o relatório
entregue sem demora.

- sir david quer sempre o relatório entregue sem demora - lynley pegou nos recados
e enfiou-os no bolso do casaco. - por aqui - disse para luxford e acomodou o
jornalista no seu gabinete. telefonou para o so4 e para o so7 para ouvir o que tinham
para lhe dizer acerca de jack beard e da casa abandonada. as informações eram
exaustivas, mas nem por isso úteis. o fingerprint office tinha confirmado o cadastro
de jack beard, mas as suas impressões digitais não coincidiam com as outras que
eles tinham encontrado. a carpete retirada da casa abandonada tinha sido analisada
e seria preciso pelo menos mais uma semana para pôr em ordem todos os
elementos detectados: cabelos, sémen, sangue, urina e manchas de comida em
número suficiente para manter um bando de pombos entretidos durante horas.

quando nkata chegou com eve bowen, lynley passou as outras mensagens ao
agente, juntamente com a fotografia de dennis luxford que lhes tinha sido fornecida
pelo editor do the source. depois de o agente ter saído, apressado, a fim de enviar a
fotografia para havers, em wiltshire, despachar o resto das mensagens e escrever o
relatório que deixaria o comissário-adjunto satisfeito durante mais um dia, lynley
fechou a porta do gabinete e virou-se para eve bowen e para o homem que fora o
pai da filha dela.

- isto era realmente necessário, inspetor lynley? - perguntou a deputada. - o senhor


faz idéia do número de fotógrafos que aguardava o momento ideal para registrar a
hora inoportuna que o seu agente escolheu para vir buscar-me?

- poderíamos ter aparecido no seu gabinete - retorquiu lynley, - mas duvido que isso
tivesse sido do seu agrado. os mesmos fotógrafos que a surpreenderam saindo na
companhia do agente nkata teriam ganho o dia registrando a chegada do sr. luxford.

ela ainda não dera mostras de ter reparado na presença de luxford. tão-pouco o fez
nesse momento. limitou-se a atravessar a sala e a caminhar até uma das duas
cadeiras que estavam em frente da secretária de lynley, sentando-se na beira,
costas direitas como uma seta. vestia um vestido-casaco preto assertoado, fechado
com seis botões dourados. era uma peça de vestuário característica de uma figura
política, sem dúvida, mas parecia inusitadamente amarrotado. além disso, um fio
puxado nas meias pretas, na zona do tornozelo, ameaçava querer subir perna fora,
deixando atrás de si um rasto branco.

- apresentei a minha demissão do ministério do interior, dennis - disse ela numa voz
controlada, sem olhar para ele. - e a minha carreira em marylebone terminou. estás
feliz agora? realizado? satisfeito?

- evelyn, nunca pretendi...

- perdi praticamente tudo - interrompeu ela. - mas ainda nos resta alguma
esperança, segundo o secretário do interior. daqui a vinte anos, se me portar bem,
poderei transformar-me num john profumo. admirada, mesmo que não consiga ser
nem respeitada nem temida. É uma perspectiva animadora, não achas? - soltou uma
pequena gargalhada que soou a falso.

- não tive qualquer participação nisso - disse luxford. - depois de tudo o que se
passou, como é que ainda podes pensar que estive por detrás deste horror?

- porque todas as peças se encaixam na perfeição: uma, duas, três, quatro. charlotte
é raptada, é feita uma ameaça, eu recuso-me a capitular, charlotte morre. isso
bastou para que todas as atenções se concentrassem na minha pessoa, exatamente
como querias e abriu o caminho para a peça número cinco.

- que é? - perguntou luxford.

- o desaparecimento do teu filho e a subsequente necessidade de me arruinares. -


olhou finalmente para ele. - diz-me uma coisa, dennis. que tal vão as tiragens do
jornal? conseguiste finalmente ultrapassar o sun?

luxford desviou os olhos do rosto dela, com um lamento: - santo deus.

lynley foi até à secretária. sentou-se atrás dela, de frente para ambos. luxford
afundara-se na cadeira onde estava sentado, rosto por barbear, cabelo sujo e
bastante despenteado, pele emaciada. bowen mantinha a sua posição inflexível, o
rosto parecia uma máscara pintada sobre a carne. lynley perguntou a si próprio o
que seria preciso para assegurar a colaboração dela.

- miss bowen - começou, - já morreu uma criança e outra poderá vir a morrer, se não
agirmos com rapidez - pegou no exemplar do the source que trouxera de casa de
luxford e colocou-o virado ao contrário sobre a secretária, para que a notícia
principal ficasse de frente para os outros dois. eve bowen lançou-lhe um olhar de
desgosto e depois desviou os olhos. - É sobre isto que temos de falar - continuou
lynley. - há um dado que está incorreto ou ausente. precisamos de saber o que é. e
precisamos da sua ajuda para o descobrir.

- porquê? será que o sr. luxford está à procura de um título para amanhã? não é
capaz de o desenvolver sozinho? tem conseguido fazê-lo até agora.

- leu esta história?

- eu não chafurdo na lama.


- nesse caso vou pedir-lhe que a leia agora.

- e se eu recusar?

- não posso conceber que a sua consciência consiga suportar o peso da morte de
uma criança de oito anos de idade. não, quando ela acontece logo após o
assassínio de charlotte. não, se puder fazer qualquer coisa para impedir que uma
coisa semelhante torne a acontecer. no entanto, essa morte sobrevirá, não tenha
dúvidas quanto a isso, se não agirmos de imediato. leia a história, por favor.

- não me tome por parva. o sr. luxford conseguiu o que queria. já publicou o seu
artigozinho de primeira página. destruiu-me. poderá passar dias e dias vasculhando
entre o que resta da minha vida em busca de mais histórias, e estou certa de que o
fará. no entanto, nesta fase dos acontecimentos, aquilo que ele não fará será
assassinar o seu próprio filho.

luxford precipitou-se para a frente e agarrou no jornal.

- lê-o! - ordenou ele, com rispidez. - lê a maldita história. acredita naquilo que
quiseres, pensa como quiseres, mas lê a maldita história, ou deus me ajude se
não...

- o quê? - perguntou ela. - deixas de ser um assassino de caracteres para passar a


vias de fato? serias capaz disso? conseguirias cravar o punhal? puxar o gatilho? ou
limitar-te-ias a recorrer uma vez mais a um dos teus homens de confiança para
executar o serviço?

luxford atirou o jornal para o colo dela.

- tu fabricas a realidade à medida que vais avançando. desisto de tentar fazer-te ver
a verdade. lê a história, evelyn. não quiseste agir para salvar a nossa filha e não
tenho poderes suficientes para alterar esse fato. no entanto, se...

- como te atreves a referires-te a ela como nossa filha? como te atreves sequer a
sugerir que eu...

- mas se - luxford elevou a voz, - se pensas que vou ficar sentado à espera que o
meu filho se transforme na segunda vítima de um psicopata estás completamente
enganada a meu respeito. e agora lê o maldito artigo, lê-o com atenção e diz-me o
que é que está mal para que eu possa salvar a vida de leo. porque se leo morrer... -
a voz de luxford sumiu-se. levantou-se, caminhou até à janela e, de rosto virado para
a vidraça, acrescentou: - tens todos os motivos para me odiar, mas não te vingues
no meu filho.

eve bowen observava-o da mesma forma que um cientista estuda um espécime a


partir do qual pretende inferir determinado tipo de informações empíricas. depois de
ter feito carreira desconfiando de tudo e de todos, dissimulando as suas opiniões
pessoais e mantendo os olhos bem abertos, não fora algum obscuro camarada de
partido tentar apunhalá-la pelas costas, não estava preparada para aceitar a
credibilidade fosse de quem fosse. um sentimento de desconfiança profundamente
enraizado causa de perdição e, ao mesmo tempo, uma necessidade da vida política
precipitara-a para a situação em que agora se encontrava, arrastando na voragem
não só a posição que ocupava mas também, a mais terrível das atrocidades, a vida
da sua filha. lynley viu claramente que a mesma desconfiança, combinada com a
sua animosidade em relação ao homem que a engravidara, a impediam de dar o
passo que lhe permitiria ajudá-los.

aqui estava algo que ele não podia aceitar.

- miss bowen - disse, tivemos notícias do raptor, hoje. - ele disse que mataria o
garoto, se o sr. luxford não corrigisse os fatos que supostamente estão incorretos.
ora, não é necessário que acredite na palavra do sr. luxford, mas vou pedir-lhe que
acredite na minha. eu ouvi a gravação do telefonema, feita por um dos meus colegas
do departamento de investigação criminal que estava presente no momento do
telefonema.

- isso não tem qualquer significado - disse eve bowen, embora estas palavras
soassem agora menos firmes do que as suas primeiras afirmações.

- É certo que não. existe um sem-número de formas diferentes de falsificar de modo


inteligente uma chamada telefônica. no entanto, partindo do princípio que a
chamada foi legítima, está disposta a guardar dentro da sua alma mais uma morte?

- não guardei a primeira. fiz o que tinha de fazer. agi corretamente. não sou
responsável pelo que aconteceu. ele... - ergueu a mão e fez um gesto na direção de
luxford. pela primeira vez, a mão denunciava um ligeiro tremor. ela pareceu
aperceber-se desse fato e deixou tombar a mão no colo, onde repousava o tablóide.
- ele... não eu... - engoliu em seco, fixou o olhar no vazio e disse, por fim - não eu.

lynley aguardava. luxford afastou-se da janela. começou a dizer qualquer coisa, mas
lynley fez-lhe sinal e abanou a cabeça. do lado de fora do gabinete de lynley, ouvia o
som de telefones a tocar e conseguia distinguir a voz de dorothea harriman. no
interior do gabinete, continha a respiração, pensando: «vá lá, vá lá. que diabo,
mulher. vá lá.-»

ela dobrava as margens do tablóide. ajustou os óculos no nariz e começou a ler.

o telefone tocou. lynley estendeu a mão rapidamente para o atender. a secretária de


sir david hillier surgiu na linha. - para quando é que o senhor comissário-adjunto
poderia esperar uma atualização sobre a investigação, por parte do seu oficial
subordinado? - quando estiver escrita, - foi a resposta de lynley e desligou o
telefone.

eve bowen procurou a página interior, onde o artigo continuava. luxford permaneceu
no sítio onde estava. quando terminou a leitura ficou sentada durante alguns
momentos, uma das mãos encobrindo o papel de jornal e a cabeça inclinada o
suficiente para que o seu olhar se detivesse na beira da secretária de lynley.

- ele disse que eu entendi mal as coisas - luxford disse calmamente. - disse que
tenho de escrever tudo como deve ser, na edição de amanhã, caso contrário matará
leo. mas não sei o que hei-de mudar.

- não entendeste - recusava-se a fitá-lo e falava em surdina - não entendeste mal as


coisas.

- ter-se-á esquecido de alguma coisa? - perguntou lynley. ela alisou o papel.

- quarto 710 - disse. - papel de parede amarelo. uma aguarela de mykonos,


pendurada na parede sobre a cama. um minibar onde havia um champanhe
péssimo, por isso decidimos beber um pouco do uísque e todo o gin que havia -
pigarreou. continuava a fixar a beira da secretária. - por duas vezes, encontramo-nos
para um jantar tardio. numa dessas noites fomos a um sítio chamado lê chateau, na
outra optamos por um restaurante italiano, san filippo. havia um violinista que não
desistiu de tocar junto à nossa mesa senão quando lhe deste cinco libras.

luxford parecia incapaz de tirar os olhos dela. a expressão do seu rosto inspirava
tristeza.

- separávamo-nos sempre muito antes do pequeno-almoço, porque essa era a


atitude mais prudente - continuou ela. - na última manhã, porém, isso não
aconteceu. estava tudo acabado, mas queríamos prolongar aqueles momentos
antes que cada um partisse para seu lado. por isso ligamos para o serviço de
quartos, que demorou a responder. estava frio. tu tiraste a rosa da jarra e... - tirou os
óculos e dobrou-os.

- evelyn, lamento muito - disse luxford.

- lamentas o quê? - levantou a cabeça.

- disseste que não querias nada de mim, que não me aceitarias ao teu lado. tudo o
que restava, então, era depositar dinheiro no banco para ela, e isso fi-lo, uma vez
por mês, todos os meses, numa conta só dela, para que se eu morresse, se ela
alguma vez precisasse de alguma coisa... - pareceu compreender quão
inconsequente e patético fora esse assumir de responsabilidades, quando
comparado com a imensidão e com a simples atrocidade dos acontecimentos da
semana anterior. - não sei, nunca pensei que... - disse ele.

- o quê? - perguntou ela, ríspida. - nunca pensaste o quê?

- que aquela semana pudesse ter significado mais para ti do que me apercebi
naquela altura.

- não significou nada para mim. tu não significaste nada para mim. não significas
nada para mim.

- claro que não - disse ele. - sei disso. claro que não.

- lembra-se de mais algum pormenor? - inquiriu lynley. ela tornou a colocar os


óculos.
- o que eu comi, o que ele comeu. quantas posições experimentamos. que diferença
faz isso? - devolveu o tablóide a lynley. - no que diz respeito àquele fim-de-semana
em blackpool, nada mais há a acrescentar que possa interessar seja a quem for,
inspetor. o pormenor interessante já foi divulgado: durante quase uma semana, eve
bowen foi para a cama com o editor esquerdista deste pedaço de papel vil e imundo.
e passou os onze anos seguintes a fingir o contrário.

lynley dirigiu a sua atenção para luxford. meditou sobre as palavras que ouvira na
conversa gravada. parecia, de fato, não haver mais nada a publicar que pudesse
arruinar a deputada mais do que ela já estava. isto deixava-os perante uma única
possibilidade, por mais improvável que ela se lhes afigurasse: o raptor nunca tivera
intenção de atingir a deputada.

começou a percorrer atentamente as pastas de arquivo e os relatórios que estavam


em cima da sua secretária. quase no fundo da pilha de material acumulado
encontrou as fotocópias das duas primeiras notas de rapto. os originais estavam
ainda na posse do so7, cujo laboratório procedia à morosa tarefa de fazer o
levantamento das impressões digitais contidas no papel.

leu a nota que fora enviada a luxford, primeiro para si e depois em voz alta.

- reconhece o teu primogênito na primeira página, e lottie será libertada.

- foi isso que fiz, reconheci-a - disse luxford. - declarei-a como minha filha, admiti-o.
que outra coisa posso fazer?

- se fez tudo isso e mesmo assim não entendeu o que lhe era pedido, então só há
uma explicação possível para isso - disse lynley. - charlotte bowen não era a sua
primogénita.

- que diz? - interrogou-o luxford.

- julgo que é bastante óbvio. o senhor tem outro filho, sr. luxford. e alguém sabe
quem ele é.

barbara havers regressou a wootton cross perto da hora do chá, acompanhada da


fotografia de dennis luxford que nkata lhe enviara por fax para o departamento de
investigação criminal de amesford. era granulosa, grão esse que não registrou
muitas melhoras ao fim de várias fotocópias mas mesmo assim teria de servir.

em amesford fizera tudo o que estava ao seu alcance para evitar qualquer encontro
com o sargento-detetive reg stanley. este estava entrincheirado na sala de
operações, atrás de uma fortaleza constituída por listas telefônicas. além disso,
como tinha o auscultador do telefone encostado ao ouvido e vociferava para dentro
do bocal enquanto acendia um cigarro com o seu desagradável isqueiro em forma
de traseiro de mulher, barbara limitara-se a fazer-lhe um cumprimento formal, sem
qualquer outro significado, partindo logo de seguida no encalço do fax que lhe
tinham enviado de londres. logo que o encontrou e depois de o ter fotocopiado
procurou robin, que entretanto terminara a ronda pelos pontos de aluguel de barcos
fluviais. descobrira três possibilidades e parecia disposto a discuti-las com ela, mas
barbara disse-lhe apenas:

- brilhante. bom trabalho, robin. agora volta aos locais possíveis e mostra isto -
entregou-lhe a fotocópia da fotografia de dennis luxford.

robin fitara-a e perguntara. - luxford?

- luxford - replicou barbara. - o nosso mais forte candidato a inimigo público número
um.

robin examinara a fotografia durante alguns instantes, antes de dizer: - muito bem,
então. vou tentar saber se alguém o reconhece na zona dos barcos. e tu?

informou-o de que iria continuar a seguir a pista do uniforme escolar de charlotte


bowen.

- se foi dennis luxford quem enfiou o uniforme para dentro do saco de trapos
destinado à quermesse de stanton st. bernard, alguém deve tê-lo visto. e é isso que
eu pretendo saber.

deixou robin ocupado com uma revigorante chávena de chá. caminhou com esforço
até ao mini e seguiu para norte. agora contornava a estátua do rei alfredo, situada
no centro do cruzamento de wootton cross, e passava em frente da minúscula
esquadra de polícia onde encontrara robin pela primeira vez pensando, enquanto
guiava: «ter-se-iam passado apenas duas noites desde então?» descobriu o
barclay’s bank na rua principal, entre o buli e o china shop (o primeiro e segundo
estabelecimentos) e os deliciosos bolos do mr. parsloe (bolos frescos todos os dias).

o barclay’s vivia uma tarde tranquila. o lugar estava mergulhado em silêncio,


assemelhando-se mais a uma igreja do que a um banco. no extremo mais afastado,
um corrimão de metal delimitava a área reservada aos funcionários mais
importantes. nesta seção, uma série de cubículos tinham sido dispostos em frente a
uma fileira de gabinetes. quando barbara perguntou por miss matheson do balcão
abertura de contas, um homem de cabeça avermelhada e dono de uma infeliz
dentadura, encaminhou-a para o cubículo que ficava mais próximo de um gabinete,
com uma tabuleta onde se lia gerente. talvez, pensou barbara, fosse por esta
proximidade com semelhante grandeza que os pais da jovem miss matheson tanto
se orgulhavam do emprego da filha.

miss matheson estava sentada à secretária, de costas viradas para barbara e o


rosto fixo num computador. introduzia com rapidez dados contidos em folhas de
papel, usando uma das mãos para passar as folhas uma a uma e a outra para
volutear com competência pelo teclado. possuía, conforme reparou barbara, uma
cadeira ergodinâmica, e a sua postura constituía uma homenagem a um antigo
professor de datilografia. aqui estava uma mulher que não iria sofrer de inflamações
carpianas, pescoço deformado ou curvatura da coluna vertebral. ao olhar para ela,
barbara compôs o seu porte desleixado adotando a posição ereta que estava certa
de conseguir manter durante pelo menos trinta segundos.
- miss matheson? - disse. - scotland yard, departamento de investigação criminal.
podemos conversar?

enquanto falava, a outra mulher fez rodar a cadeira giratória. o «podemos


conversar» de barbara esmoreceu até não ser mais do que um murmúrio, e a sua
postura admirável desmoronou-se como um castelo de cartas varrido pelo vento. ela
própria e «miss matheson» fitaram-se mutuamente. esta última disse «barbara?» e
barbara perguntou «célia?», enquanto tentava imaginar por que razão a pista do
uniforme de charlotte bowen a teria conduzido até à noiva de robin payne.

uma vez ultrapassada a confusão gerada pelo encontro entre ambas em local tão
inesperado, célia levou barbara até ao andar superior, onde ficava a sala de convívio
dos funcionários, dizendo: - de qualquer forma está na hora da minha pausa.
suponho que não veio até aqui com a intenção de abrir uma conta, pois não?

a sala ficava no topo de um lance de escadas cobertas por uma carpete de tom
acastanhado. situada paredes meias com uma arrecadação e com um lavabo
unisexo, nela havia duas mesas e algumas cadeiras em plástico nada
ergodinâmicas que, durante o quarto de hora que durava a pausa laboral, anulariam
muito provavelmente todos os benefícios proporcionados pelas respectivas antíteses
durante o resto do dia. havia uma chaleira elétrica sobre uma bancada em formica
cor de laranja, rodeada por chávenas e caixas de chá. célia ligou a chaleira e
perguntou por cima do ombro,

- typhoo?

barbara viu a caixa de chá a tempo de evitar fazer uma figura triste e depois de dizer
para si própria gesundheit, respondeu: - está ótimo.

quando o chá ficou pronto, célia aproximou-se da mesa trazendo duas canecas.
serviu-se de um pacote de adoçante artificial. barbara optou sem hesitar pelo
veneno genuíno. mexiam o líquido e bebericavam-no como se fossem dois lutadores
cansados e vencidos quando barbara divulgou a razão da sua visita.

pôs célia ao corrente da descoberta do uniforme escolar de charlotte bowen o sítio


onde tinha sido encontrado, por quem e os artigos com os quais estava misturado e
apercebeu-se de que a expressão da jovem passou da reserva à surpresa. tirou a
fotografia de dennis luxford de dentro do saco enquanto concluía o relato e
acrescentou: - o que queremos saber é se este tipo lhe é familiar. lembra-se de o ter
visto na festa paroquial? ou nas imediações da igreja antes da festa?

passou a fotografia. célia pousou a caneca de chá sobre a mesa e alisou a


fotografia, segurando-a com uma mão de cada lado. observou-a com atenção e
abanou a cabeça, dizendo: - isto aqui no queixo dele é uma cicatriz?

a própria barbara não se tinha apercebido desse pormenor, pelo que tornou a olhar
para a fotografia. célia tinha razão.

- eu diria que sim.


- eu ter-me-ia lembrado da cicatriz - disse célia. - tenho uma memória razoável para
caras. para nós é mais vantajoso poder tratar os clientes pelos nomes. costumo
recorrer a mnemónicas para me ajudar a lembrar e teria usado esta cicatriz para
isso.

barbara não queria saber o que célia teria usado para ela. no entanto achou
preferível submetê-la a um teste de memória. tirou uma fotografia de howard short,
da qual se apoderara quando entrara no gabinete do departamento. perguntou a
célia se o reconhecia.

desta vez, a reação foi positiva e imediata.

- ele esteve no bazar da quermesse - disse ela e, numa cativante demonstração de


honestidade que teria, sem dúvida, agradado aos pais, acrescentou: - mas eu tê-lo-
ia reconhecido de qualquer maneira. É howard short. a avó dele frequenta a nossa
igreja. - bebeu um gole de chá. barbara reparou que bebia sem fazer ruído, apesar
de o líquido estar quente. educação esmerada.

- É um rapaz muito agradável - notou célia, devolvendo a fotografia a barbara. -


espero que não se tenha metido em sarilhos.

barbara pensou que célia não podia ser muito mais velha do que howard short, e o
fato de referir-se a ele como «um rapaz muito agradável» soava um pouco
condescendente. no entanto disse: - ele parece estar limpo de momento, embora o
uniforme de charlotte bowen estivesse com ele.

- howard? - célia parecia incrédula. - oh, não é possível que ele esteja envolvido na
morte dela.

- É isso que ele afirma. diz que o uniforme estava apenas misturado com os trapos,
dentro de um saco que adquiriu no seu bazar.

célia confirmou a história do rapaz, dizendo que de fato lhe vendera o saco de
trapos, mas confirmou de igual modo a versão da mãe sobre o modo como os trapos
se transformavam em trapos. continuou, descrevendo o bazar da quermesse
propriamente dito: numa determinada zona havia cabides para pendurar roupas,
noutra mesas com os artigos dobrados e noutra, ainda, estava exposta uma série de
pares de sapatos.

- nunca vendemos muitos destes - admitiu. - quanto aos sacos de plástico iam para
uma grande caixa colocada no canto mais afastado da barraca. não era necessário
que estivessem sob o olhar vigilante de quem quer que fosse, porque afinal não
passavam de sacos cheios de trapos. a igreja não perderia grande coisa, em termos
monetários, se um deles fosse surripiado, embora causasse tristeza pensar que
alguém aproveitara um evento tão bem intencionado como era a festa anual de
stanton st. bernard para se descartar de um objeto relacionado com um crime.

- nesse caso, qualquer pessoa podia ter colocado o uniforme num dos sacos sem
que ninguém se tivesse apercebido disso? - perguntou barbara.
célia foi obrigada a admitir que sim, que era possível. - pouco provável, mas
possível. a quermesse era, afinal, um acontecimento popular da festa. a sra. ashley
havercombe de wyman hall, perto de bradford-on-avon, costumava doar peças do
seu vestuário pessoal em quantidades generosas, e às primeiras horas da manhã
havia sempre uma corrida frenética para adquiri-las, por isso durante esse período...
sim, era possível.

- mas a célia não viu este homem? tem a certeza?

célia não tinha dúvidas. no entanto, não estivera a tomar conta da quermesse
durante todo o dia, pelo que barbara faria bem se mostrasse a fotografia à mãe dela.

- ela não tem tão boa memória para caras como eu - disse célia, - mas gosta de
conversar com as pessoas. por isso, se ele lá esteve é possível que ela tenha
trocado algumas palavras com ele.

barbara duvidava que luxford tivesse sido estúpido ao ponto de esconder o uniforme
da filha no meio dos trapos e, em seguida, tivesse atraído as atenções sobre a sua
pessoa conversando com a mulher do pároco. contudo, a sua resposta foi: - vou
voltar a passar por stanton st. bernard depois de sair daqui.

- não vai para lark’s haven, então? - célia fez a pergunta em tom casual, enquanto
percorria os traços decorativos da sua caneca com a bonita unha do dedo polegar.
barbara fitou a caneca e estudou a decoração da mesma: tratava-se de um anafado
coração cor-de-rosa sobre o qual estava escrito feliz dia de são valentim. perguntou
a si própria, num exercício algo fútil, se teria sido uma oferta.

- neste momento? não - disse - tenho ainda demasiadas coisas a fazer - e afastou a
cadeira para trás, fazendo menção de voltar a meter as fotografias dentro do saco.

- a princípio fiquei apreensiva - disse célia. - nada disto é típico dele, para dizer a
verdade. mas ontem à noite percebi tudo.

- desculpe? - reagiu barbara e deixou-se ficar sentada, sem fala, a mão de onde
pendiam as fotografias suspensa no ar, como se tivesse esboçado um gesto de
oferta que tivesse sido rejeitada.

célia procedeu a um exame desnecessariamente escrupuloso do centro da mesa,


onde se erguia uma pilha de boletins informativos, dobrados nos cantos, com o título
barclay’s beat impresso em letras fuchsia. inspirou profundamente e tornou a falar,
com um sorriso esmorecido: - quando ele regressou a semana passada, depois de
ter concluído o curso, não consegui compreender o que acontecera para que as
coisas entre nós tivessem mudado. há seis semanas atrás éramos tudo um para o
outro e depois, de súbito, não éramos nada.

barbara tentou percorrer a distância que a separava do nível de compreensão


adequado à situação. ele devia ser robin. as coisas devia ser o relacionamento entre
ambos. o curso corresponderia certamente ao tempo que robin passara no curso de
detetives do departamento de investigação criminal. até aí tudo bem, mas as
afirmações introdutórias de célia sobre já ter percebido tudo continuavam a ser um
enigma para ela. optou então por dizer: - bem, o departamento não é pêra doce.
este é o primeiro caso em que robin participa, por isso é natural que ele se sinta um
pouco preocupado, pois quer que a investigação seja bem sucedida. não deve levar
muito a peito o fato de ele parecer um pouco distante. faz tudo parte da profissão.

célia, porém, não abdicava da sua linha de raciocínio. - de início pensei que pudesse
ser por causa do noivado entre corinne e sam. «sente-se inquieto, porque está
preocupado com o fato de a mãe não conhecer sam há tempo suficiente para aceitar
casar-se com ele», pensei eu. robbie é conservador nesse aspecto. e é muito ligado
à mãe. viveram sempre juntos. no entanto, nem mesmo isso me parecia ser um
motivo de peso para que ele não tivesse vontade de... bem, de estar comigo. se é
que me faço entender.

nessa altura concentrou a sua atenção em barbara. fitou-a com um olhar firme.
parecia aguardar uma espécie de resposta a uma pergunta não formulada.

barbara sentia-se totalmente impreparada para responder. a factura que os seus


colegas do departamento de investigação criminal tinham de pagar pela carreira que
tinham decidido abraçar era pesada, e ela pensou que a outra mulher não
encontraria grande consolo ficando a conhecer o rol de casamentos desfeitos e
relações falhadas que todos eles deixavam atrás de si. por isso disse: - ele tem de
se sentir bem em relação ao trabalho que faz. tem de encontrar o ponto de
equilíbrio, percebe o que eu quero dizer?

- o que ele encontrou não foi um ponto de equilíbrio. percebi isso quando vos vi
juntos ontem à noite, em lark’s haven. ele não estava à espera de me encontrar lá, e
quando me viu o cérebro dele nem sequer registrou a minha presença. isso diz tudo,
não acha?

- diz o quê?

- ele conheceu-a durante o curso, barbara. o curso de detetives. e foi aí que as


coisas começaram?

- as coisas? começaram? - barbara sentia a incredulidade espalhar-se dentro de si.


penetrou-lhe o cérebro quando, finalmente, compreendeu as insinuações de célia. -
está a pensar que robin e eu... - a idéia era de tal modo absurda que nem conseguiu
terminar a frase. gaguejando, continuou: - nós dois? ele? comigo? É isso que está a
pensar?

- É o que eu sei.

barbara remexeu dentro do saco à procura dos cigarros. sentia-se um pouco


aturdida. era difícil acreditar que aquela mulher jovem, com o seu corte de cabelo
moderno, as suas roupas elegantes e um rosto inegavelmente bonito, ainda que
ligeiramente bochechudo, pudesse olhar para ela como uma rival. a ela, barbara
havers, sobrancelhas por arranjar, cabelo tão desgrenhado que fazia lembrar um
ninho de ratos, calças castanhas e largas e camisola suficientemente grande para
camuflar um corpo de tal modo atarracado, que o último homem que olhara para ela
com desejo fizera-o numa década passada e sob a influência de tanto álcool...
«diabos me levem», pensou barbara. uma pessoa nunca deixa de se surpreender.

- pode ficar descansada, célia - disse. - não existe nada entre mim e robin. conheci-o
há apenas duas noites atrás. para falar com franqueza, atirei-o ao chão e como se
isso não bastasse ainda o magoei na mão... - riu abertamente. - sabe, aquilo que vê
como desejo é, provavelmente, a forma que robin encontrou para tentar perceber
qual será a melhor maneira de se vingar quando tiver oportunidade para isso.

célia não aderiu à jovialidade dela. pôs-se de pé e levou a caneca até à bancada. aí
pôs água a correr e colocou a caneca com extremo cuidado junto de outras que já lá
estavam, caoticamente empilhadas dentro de um lava-louça.

- isso não muda nada - disse ela.

- o que é que não muda nada?

- a altura em que o conheceu. ou como. ou até porquê. eu conheço robin, sabe.


consigo ler no rosto dele. está tudo terminado entre nós e a barbara é a razão para
que isso tenha acontecido - limpou os dedos numa toalha de cozinha e, em seguida,
esfregou as mãos uma na outra, como se com esse gesto quisesse livrar-se de
alguma poeira, de barbara e, mais propriamente, deste encontro entre ambas.
presenteou barbara com um sorriso formal. - há mais alguma coisa que queira
discutir comigo? - falou com a mesma voz que certamente usaria para atender
aqueles clientes do banco que simplesmente abominava.

barbara pôs-se igualmente de pé.

- acho que não - disse. e acrescentou enquanto célia caminhava em direção à porta:
- está enganada, sabe. está realmente enganada. não se passa nada.

- ainda não, talvez - disse célia e desceu as escadas.

o oficial negro com sotaque híbrido não estava disponível para levá-la a casa, pelo
que lynley desenvolveu as diligências necessárias para que uma viatura da polícia, à
paisana, fosse buscar eve bowen ao parque de estacionamento subterrâneo e a
transportasse sem demora pela rampa que desembocava na artéria comercial que
ficava por cima. eve pensou que a troca de viaturas do aparatoso bentley prateado
para este despretensioso golf bege, nada imaculado faria com que os caçadores de
notícias perdessem o rasto dela. mas estava enganada. o condutor do carro onde
seguia executou algumas manobras evasivas pela tothill street, a dartmouth street e
a old queen street. os seus adversários, porém, eram mestres na arte da
perseguição em automóvel. embora tenha logrado livrar-se de duas das viaturas,
cujos condutores cometeram o erro de presumir que ele se dirigia para o ministério
do interior, foi surpreendido por um terceiro carro quando rolavam velozmente para
norte, ao longo de st. james’s park. o condutor falava para um telefone instalado no
automóvel, o que fazia pensar que muito mais gente estaria certamente no encalço
de eve bowen, antes que ela chegasse às imediações de marylebone.
pouco passava do meio-dia quando o primeiro-ministro proferira o seu discurso-nos-
degraus-do-número-dez, aceitando o seu pedido de demissão com uma expressão
grave e recitando todos os sentimentos adequados a um homem obrigado a
caminhar em bicos de pés entre o opróbrio que seria de esperar de alguém que
fizera do projeto de lei sobre os valores britânicos fundamentais o seu cavalo de
batalha e o necessário reconhecimento, por parte de um camarada conservador, de
uma estimada jovem ministra que o servira de modo incansável e com distinção. o
primeiro-ministro conseguira encontrar a forma perfeita de comunicar a sua mágoa
enquanto, ao mesmo tempo, se distanciava dela. afinal, a equipe que lhe redigia os
discursos era formada por gente muito competente. quatro horas mais tarde, o
coronel woodward prestara declarações na fachada da sede da constituinte. a sua
intervenção fora concisa mas perfeita para funcionar como sound bite dos blocos
noticiosos noturnos: «elegemo-la e vamos mantê-la. por agora.» assim, desde que a
sua sorte fora ditada por estes dois oráculos, os repórteres não paravam de
persegui-la, desejosos de anotar a sua reação, por palavras ou fotografias. qualquer
uma das duas serviria.

não perguntou ao agente da polícia, ao volante do golf, se os repórteres sabiam que


dennis luxford se deslocara à scotland yard para se encontrar com ela. a esta altura
dos acontecimentos nada disso interessava. a sua ligação com luxford passara à
história no momento em que fora publicada pelo tablóide de luxford, para consumo
público. neste momento, os repórteres estavam apenas interessados em conseguir
um novo ponto de vista sobre toda aquela história. luxford adiantara-se em relação a
todos os jornais de londres e agora não havia um único editor que, desde kensington
até à ilha de dogs, não massacrasse as respectivas equipes para que elas não se
esquecessem deste fato. assim, a partir deste momento, e até que a próxima notícia
sensacionalista seduzisse a imaginação do público leitor, os repórteres não a
deixariam em paz tentando descobrir novas minúcias que fizessem vender jornais.
podia tentar ludibriá-los, mas não podia esperar que eles revelassem qualquer tipo
de compaixão para com ela.

já tinham material suficiente para amanhã, por cortesia do primeiro-ministro e do


presidente da sua constituinte. tinham o suficiente para tornar quase supérflua a
perseguição que nesse momento lhe moviam. no entanto, havia sempre a
possibilidade de poderem tropeçar em algo mais deleitável, e não iriam perder uma
oportunidade de ajudar a cavar ainda mais fundo a sepultura dela.

o agente de polícia continuava a tentar iludir a perseguição dos jornalistas. o seu


conhecimento das ruas de westminster era tão absoluto que eve perguntou a si
própria se ele já não teria sido taxista, em londres. todavia, não era um adversário à
altura do quarto poder. quando se tornou evidente que, por mais voltas que desse,
se dirigia para marylebone, os caçadores de notícias limitaram-se a telefonar para os
colegas que deambulavam em torno de devonshire place mews. no momento em
que eve e o golf viraram à direita, à entrada de marylebone high street, foram
saudados por uma falange de câmaras em movimento, blocos-notas em punho e
outros indivíduos aos gritos.

eve nunca excedera os limites considerados apropriados nas suas declarações


sobre a família real. enquanto membro do partido conservador era o que se
esperava dela. no entanto, apesar da sua íntima convicção, que não partilhava com
ninguém, de que a realeza não era mais do que um insensato sorvedoiro da
economia, descobriu que naquele momento desejava que um deles, um qualquer,
não importava qual tivesse feito qualquer coisa naquele dia que merecesse a
atenção furiosa da imprensa. qualquer coisa que os afastasse dela.

a rua continuava bloqueada, entregue à guarda de um polícia que garantia


inacessibilidade à casa dela. apesar da sua demissão e fossem quais fossem as
consequências dessa demissão durante os dias que se seguiriam, a rua
permaneceria isolada até que o furor acalmasse e morresse. sir richard hepton
prometera-lhe isso.

- não tenho por hábito lançar aos lobos os que estão sob a minha alçada - dissera
ele.

não, apenas os abandonava nas proximidades do sítio onde se encontravam os


lobos, concluiu eve. mas a política era assim mesmo.

o motorista perguntou-lhe se queria que ele a acompanhasse até ela entrar em casa.
para garantir a segurança das instalações, foi a expressão que ele utilizou. retorquiu
que não necessitava desse tipo de segurança. o marido esperava-a. sem dúvida que
já estaria ao corrente do pior. privacidade, era tudo o que desejava.

ouviu o ruído produzido pelos motores das máquinas fotográficas, que dispararam
no momento em que saiu do carro e se esgueirou até à porta de entrada. os
repórteres gritavam do outro lado de uma barreira, mas as suas perguntas formavam
uma algaraviada que se confundia com o ruído do trânsito, proveniente da rua
principal e com a animação dos convivas ébrios que bebiam cerveja a longos tragos,
à porta do devonshire arms. ignorou-os a todos. e depois de ter fechado a porta
atrás de si deixou de ouvir, de fato, quer uns quer outros.

correu o ferrolho. gritou «alex?» e encaminhou-se para a cozinha. o seu relógio


marcava cinco e vinte e oito, o período do dia posterior à hora do chá e anterior ao
jantar. todavia, não havia sinal que indicasse que uma refeição tivesse sido
consumida ou estivesse em vias de ser preparada. pouco importava. não tinha fome.

subiu as escadas que conduziam ao primeiro andar. pelas contas dela, há dezoito
horas que usava a mesma roupa, desde que as vestira antes de sair de casa na
noite anterior disposta a desenvolver esforços que haveriam de se revelar
infrutíferos para impedir o desastre. sentia o toque pegajoso do vestido colando-se
aos sovacos, enquanto a roupa interior, húmida de suor, se colava à pele. queria
tomar um banho, mergulhar longamente numa banheira de água quente saturada de
óleo perfumado e besuntar o rosto com uma máscara de beleza que retirasse a
sujidade que se impregnara na pele. depois disso queria um copo de vinho. branco e
fresco, com um travo almiscarado que lhe traria à memória piqueniques à base de
pão e queijo, em frança.

talvez fossem até lá, até que os ânimos acalmassem e ela tivesse deixado de ser o
alvo predileto dos comerciantes de escândalos de fleet street. iriam de avião até
paris e aí alugariam um carro. ela recostar-se-ia no seu assento, fecharia os olhos e
deixaria que alex a conduzisse para onde quisesse. far-lhe-ia bem ir para fora
durante algum tempo.

descalçou os sapatos quando entrou no quarto de dormir. tornou a chamar «alex?»,


mas não teve outra resposta a não ser o silêncio. começando a desabotoar o vestido
regressou ao corredor e chamou-o de novo. então lembrou-se das horas que eram e
percebeu que ele deveria estar num dos restaurantes, onde habitualmente se
deslocava todas as tardes. ela própria nunca estava em casa àquela hora. a casa,
que exalava uma tranquilidade tão sobrenatural, estava sem dúvida bastante
arrumada. todavia, havia uma quietude no ar, os quartos pareciam conter a
respiração, aguardando que ela descobrisse... o quê?, cismou ela. e de onde lhe
vinha aquela certeza de que havia algo que não estava bem?

eram os nervos, pensou. tinha vivido um verdadeiro inferno. precisava daquele


banho. precisava daquela bebida.

despiu o vestido, que deixou ficar amontoado no chão, e foi até ao armário onde
guardava o roupão. abriu as portas. e então viu. viu aquilo que o silêncio estivera a
tentar dizer-lhe.

as roupas dele tinham desaparecido: todas as camisas, todos os fatos, todos os


pares de calças e de sapatos. o seu desaparecimento era tão drástico que nem um
único fio de lã fora deixado para trás, como prova evidente de que outrora alguém
usara estes cabides agora vazios, esta fileira de prateleiras para guardar roupas e
sapatos.

a cômoda estava na mesma. tal como a mesa de cabeceira e, na casa de banho, o


estojo de toilette e o armário de medicamentos. não conseguia imaginar o tempo
que ele demorara a apagar cada vestígio da sua presença naquela casa. no entanto,
fora exatamente isso que o marido fizera.

certificou-se, inspecionando o escritório, a sala de estar e a cozinha. tudo aquilo que


assinalara a presença dele naquela casa e na vida dela desaparecera.

patife, patife, pensou. escolhera tão bem o momento. haveria melhor forma de
enterrar a espada na carne dela do que esperar até conseguir que a sua humilhação
pública fosse total. era quase certo que os devoradores de carne podre, que
esperavam em marylebone high street o tinham visto sair, num volvo quase a
rebentar pelas costuras. e agora esperavam a ocasião ideal para registrar a reação
dela a este momento final da obliteração da sua vida. patife, pensou de novo.
miserável patife. escolhera o caminho mais fácil, escapulindo-se daqui como um
adolescente choramingas, quando ela não estava presente para fazer perguntas ou
exigir respostas. fora tudo muito simples para ele: apenas tivera de fazer as malas e
deixá-la à mercê de um coro de perguntas. conseguia ouvi-los agora: trata-se de
uma separação formal? o fato do seu marido a ter deixado está de algum modo
relacionado com as revelações feitas por dennis luxford, esta manhã? ele tinha
conhecimento do seu caso com o sr. luxford antes de a história ter sido publicada
hoje, pelo the source? as suas posições relativamente ao caráter sagrado do
casamento sofreram alguma alteração ao longo das últimas doze horas? o divórcio é
iminente? quer fazer alguma declaração no que diz respeito a... oh, sim, pensou eve.
tinha muitas declarações a fazer. só que não as faria à imprensa.
voltou ao quarto e vestiu-se à pressa. retocou o batom, penteou o cabelo e alisou as
sobrancelhas com os dedos. dirigiu-se à cozinha, onde estava pendurado o
calendário. leu a palavra sceptre, no quadrado referente a quarta-feira, escrita na
caligrafia nítida de alex. muito oportuno, pensou. o restaurante ficava em mayfair, a
menos de dez minutos de carro.

viu os repórteres ocuparem posições do outro lado da barreira da polícia, quando


tirou o carro da garagem. verificou-se uma movimentação generalizada entre eles, à
medida que aqueles que tinham deixado os carros estacionados nas imediações
correram até onde os tinham deixado, dispostos a segui-la. junto à barreira, o agente
inclinou-se na direção do carro e disse:

- não me parece aconselhável que saia de casa sozinha, miss bowen. posso ter
alguém aqui dentro...

- afaste a barreira - disse ela.

- aquele grupo ali não a vai deixar em paz, nem por um minuto.

- afaste a barreira - repetiu ela. - imediatamente.

o seu olhar dizia maldita cabra estúpida, mas dos seus lábios saiu um «muito bem»,
e ele afastou para o lado a barreira de madeira permitindo-lhe o acesso a
marylebone high street. arrancou e virou rapidamente à esquerda, seguindo
disparada na direção de berkeley square. o sceptre estava escondido na esquina de
uma rua calcetada, a sudoeste da praça. era um bonito edifício feito de tijolo e
coberto de plantas trepadeiras, com uma profusão de plantas tropicais à entrada.

eve chegou muito antes dos repórteres, que tinham sido forçados a perder tempo
correndo apressadamente até aos respectivos carros e respeitando o código da
estrada, que ela própria ignorara. o restaurante ainda não abrira ao público, mas
sabia que o pessoal da cozinha já lá devia estar desde as duas horas ou até antes.
alex estaria com eles. dirigiu-se para a entrada lateral e bateu à porta, rispidamente,
com o porta-chaves de metal. entrou na arrecadação de alimentos secos e
encontrou-se frente a frente com o chefe-pasteleiro, antes que os repórteres que
seguiam no seu encalço tivessem sequer saído dos respectivos carros.

- onde está ele? - perguntou.

- a trabalhar num novo aioli - disse o chefe-pasteleiro. - o prato do dia é peixe-


espada e ele...

- poupe-me os pormenores - disse eve.

passou por ele e encaminhou-se para a cozinha, que ficava para além dos enormes
frigoríficos e de armários abertos à frente, onde um conjunto de tachos e panelas
reluzia sob as brilhantes luzes do teto.

alex e o chefe de cozinha estavam junto de uma bancada, conversando em torno de


um montículo de alho picado, de uma garrafa de azeite, de um montinho de
azeitonas cortadas, de um ramo de cheiros e de um conjunto de tomates, cebolas e
malaguetas, ainda intatos. em seu redor, os preparativos para os jantares dessa
noite estavam no auge, com os ajudantes fazendo sopa, preparando entradas e
lavando todo o tipo de vegetais. a combinação de cheiros teria sido intoxicante, caso
ela estivesse com fome. no entanto, comida era a última coisa que tinha em mente.

- alex - disse. ele ergueu os olhos. - quero falar contigo disse. - teve consciência de
um breve silêncio depois de ter falado, mas o mesmo foi rapidamente engolido pelo
recrudescer ainda mais intenso dos barulhos da cozinha. ficou à espera que ele
recorresse ao papel do adolescente choramingas pela segunda em vinte e quatro
horas: «não estás a ver que estou ocupado? isso terá de esperar.» mas não foi isso
que ele fez. limitou-se a virar-se para o chefe de cozinha, dizendo: «temos de
arranjar alguns nopalitos antes de amanhã», e depois dirigindo-se a eve, «no
escritório.»

a única cadeira que havia no escritório era ocupada pela contabilista. sentada a uma
secretária, ela debatia-se com uma rima de faturas. parecia estar em vias de os
colocar por ordem e, quando alex abriu a porta, levantou os olhos dos papéis.

- asseguro-te que aquele estabelecimento em smithfield voltou a cobrar-nos mais do


que devia, alex. temos de mudar de fornecedores ou tomar uma atitude... - de súbito
pareceu dar-se conta de que eve vinha logo atrás do marido. baixou a fatura a que
estivera a referir-se e olhou em volta como se procurasse um sítio para onde
pudesse retirar-se.

- cinco minutos, jill. se não te importas - disse alex.

- estou ansiosa por uma chávena de chá - disse. levantou-se da cadeira e passou
por eles, apressada. eve reparou que a outra mulher não olhou diretamente para ela.

alex fechou a porta. eve esperara encontrá-lo mortificado, embaraçado, arrependido,


ou até beligerante. do que não estava à espera era de ver estampada no rosto dele
uma desolação fria, que deixava marcas fundas nas suas feições.

- explica-te - disse ela.

- que gostarias que te dissesse?

- não gostaria que me dissesses nada em particular. quero saber o que se está a
passar. quero saber porquê. julgo que me deves ao menos isso.

- foste a casa, então.

- claro que fui a casa. o que é que pensaste? ou estavas à espera que fossem os
repórteres a informar-me que o meu marido me tinha deixado? deduzo que te tenhas
mudado mesmo debaixo dos narizes deles?

- mudei a maior parte das coisas ontem à noite e o resto hoje de manhã. os
repórteres ainda não tinham chegado.
- onde estás a ficar?

- isso não é importante.

- não é? porquê? - olhou na direção da porta. recordou a expressão que perpassara


o rosto da contabilista quando a vira de pé, no corredor, atrás de alex. - que
expressão fora aquela? alarme? medo? surpresa? o quê? quem é ela?

alex fechou os olhos, num gesto cansado. ter de abri-los novamente pareceu exigir
um grande esforço da parte dele.

- É essa a razão que pensas que está por detrás de tudo isto? outra mulher?

- estou aqui para compreender o que é que se passa.

- estou a ver que sim. no entanto, não sei se conseguirei explicar-te. não, isso não é
verdade. eu consigo explicar. consigo explicar e tornar a explicar até amanhã, se é
isso que pretendes.

- É um começo.

- só que o final da minha explicação será também o seu início. tu não vais
compreender. por isso é melhor para nós dois que nos afastemos um do outro, para
evitar mais sofrimentos e poupar a ambos o pior.

- queres o divórcio. É isso, não é? não. espera. não respondas ainda. quero ter a
certeza de que compreendo - caminhou até à secretária, pousou a mala sobre o
tampo da mesma e virou-se para enfrentá-lo. ele ficou onde estava, junto da porta. -
acabei de viver a pior semana da minha vida, e prevêem-se outros
desenvolvimentos. pediram-me que entregasse o meu pedido de demissão.
disseram-me que nas próximas eleições deveria pôr à disposição o meu assento no
parlamento. a minha vida privada está em vias de ser difamada em todos os
tablóides nacionais. e tu queres o divórcio.

os lábios dele separaram-se quando inspirou. olhava para ela, mas nada no seu
olhar traduzia qualquer tipo de reconhecimento. era como se ele se tivesse retirado
para outro mundo, cujos habitantes não se assemelhassem em nada à mulher que
naquele momento partilhava aquele escritório com ele.

- ouve-te a ti própria - disse num murmúrio exausto. - merda, eve. ouve por uma vez,
ao menos.

- o quê?

- aquilo que és.

o tom da voz dele não era frio, nem derrotado. no entanto, continha uma resignação
que ela nunca lhe ouvira antes. falava como um homem que chegara a uma
conclusão, mas para quem era indiferente se ela tinha ou não compreendido essa
conclusão. cruzou os braços e amparou os cotovelos com as mãos. enterrou as
unhas na carne.

- sei muito bem quem sou - disse. - sou a carne para canhão que neste momento
alimenta todos os jornais deste país. sou o alvo da troça universal. sou apenas mais
uma vítima da obsessão jornalística para moldar a opinião pública e impor
mudanças no governo. no entanto, sou também a tua mulher e como tua mulher
exijo respostas mais concretas. depois de seis anos de casamento deves-me algo
mais do que palavreado pseudopsicológico, alex. «ouve aquilo que és» dificilmente
serão fundamentos suficientes para outra coisa que não seja uma discussão
acalorada. e é para aí que isto poderá evoluir se não te explicares. fui clara?

- sempre foste clara - replicou o marido. - quem passava o tempo a fugir era eu. não
vi aquilo que tinha diante de mim, porque não o quis ver.

- estás a dizer disparates.

- para ti, sim. percebo que seriam, sim. antes desta semana que passou, também eu
teria pensado que eram disparates. tolices. parvoíces. uma idiotice completa. como
queiras. foi então que charlie desapareceu, e eu fui obrigado a olhar de frente para a
nossa vida. e quanto mais olhava para ela, mais repugnante ela se me afigurava.

eve ficou rígida. a distância que os separava parecia estar repleta não só de espaço
mas também de gelo.

- e o que é que esperavas exatamente que fosse a nossa vida depois do rapto de
charlotte? depois do assassínio de charlotte? com o seu nascimento e morte
transformados num motivo de excitação para todo o país?

- esperava que tu fosses diferente. esperava demasiado.

- ai sim? e o que é que esperavas de mim, alex? que perdesse a cabeça? que
cobrisse o rosto com cinza? que rasgasse as minhas roupas? ou cortasse o cabelo?
alguma espécie de expressão ritualística da dor que colhesse a tua aprovação? era
isso que querias?

ele abanou a cabeça. - queria que fosses uma mãe - disse. - mas vi que aquilo que
realmente sempre tinhas sido era alguém que, por engano, tinha dado à luz uma
criança.

sentiu uma raiva quente e violenta tomar conta dela. - como é que te atreves a
sugerir...

- o que aconteceu com charlie... - deteve-se. os olhos dele ficaram raiados de


vermelho. pigarreou bruscamente. - o que aconteceu com charlie teve de fato a ver
contigo desde o princípio. mesmo agora, que ela está morta, tem a ver contigo. o
fato de luxford ter publicado o artigo no jornal também. e isto eu, a minha decisão,
aquilo que fiz tem tudo a ver contigo, é mais uma mossa nas tuas aspirações
políticas, algo para ser explicado à imprensa. vives num mundo onde a imagem que
as coisas projetam se sobrepôs desde sempre ao que elas realmente são. eu fui
apenas demasiado estúpido para perceber isso até ao momento em que charlie foi
assassinada. - fez um movimento na direção do puxador da porta.

- alex, se me abandonares agora... - disse ela. mas não sabia como havia de
completar a ameaça.

ele virou-se para ela. - tenho a certeza de que arranjarás um eufemismo talvez até
uma metáfora, para explicar à imprensa o que se passou entre nós. chama-lhe o que
quiseres. É-me completamente indiferente, desde que dês o caso por encerrado.

abriu a porta. os sons vindos da cozinha do restaurante elevaram-se em torno dele.


fez menção de abandonar o escritório, depois hesitou e tornou a olhar para ela. ela
julgou que ele fosse dizer alguma coisa acerca da história de ambos, da vida deles
juntos, do futuro de cada um deles, agora fracassado, como marido e mulher. em
vez disso, porém, disse: - acho que o pior foi ter querido que fosses capaz de amar
e, por intermédio desse desejo, ter acreditado que eras.

- vais falar à imprensa? - perguntou-lhe ela.

ele respondeu com um sorriso glacial. - meu deus, eve - disse. - jesus. meu deus.

luxford encontrou-a no quarto de leo. estava a pôr em ordem os desenhos do filho,


juntando-os metodicamente em montinhos divididos por temas. aqui ficavam as suas
minuciosas reproduções dos anjos, madonnas e santos de giotto. ali, os esboços a
traço rápido de frágeis bailarinas e dançarinos de chapéu alto. ao lado destes
surgiam, empilhados, alguns animais, na sua maioria esquilos e arganazes. por fim,
isolado no centro da secretária estava o desenho de um rapazinho desalentado,
sentado num banco de três pernas, atrás das grades de uma prisão. parecia uma
ilustração tirada de um livro para crianças. luxford perguntou a si próprio se o filho a
teria copiado de dickens.

fiona parecia estudar com atenção este último desenho. apoiava uma das faces no
casaco do pijama de lã escocesa que pertencia a leo. sentada numa cadeira,
baloiçava-se suavemente, executando um movimento quase imperceptível sempre
com o rosto colado à flanela marcada pelo uso.

luxford não conseguia imaginar como iria ela resistir ao mais recente revés que tinha
para lhe contar. debatera-se com o seu passado e com a sua consciência durante
todo o percurso entre westminster e highgate. no entanto, não fora capaz de se
lembrar de uma maneira fácil de lhe transmitir as novas exigências do raptor.
porque, e era isso o mais terrível, não dispunha da informação que lhe era agora
exigida. além disso, revelara-se incapaz de inventar uma maneira de dizer à mulher
que a vida do filho de ambos estava suspensa num dos pratos de uma balança e
ele, luxford, nada tinha para colocar no outro.

- houve algumas chamadas - disse fiona, tranquilamente. não desviou os olhos do


desenho.

luxford sentiu a tensão crescer dentro dele. - ele...


- não foi o raptor - a voz dela soava oca, como se lhe tivessem arrancado todos os
vestígios de emoção. - primeiro foi peter ogilvie. queria saber porque é que ocultaste
a história sobre leo.

- santo deus - murmurou luxford. - com quem terá ele falado?

- pediu para que lhe telefonasses logo que chegasses. disse que estavas a esquecer
as tuas obrigações para com o jornal. disse que és a chave para a melhor história do
ano e que se estás a sonegar informações ao teu próprio jornal, ele gostaria de
saber porquê.

- oh, meu deus, fi. desculpa.

- rodney também telefonou. quer saber o que é que queres para a primeira página
da edição de amanhã. e miss wallace quer saber se deverá permitir que rodney
continue a utilizar o teu gabinete para as reuniões do conselho de redação. não
sabia o que havia de responder-lhes, por isso disse que lhes telefonarias quando
pudesses.

- para o diabo com todos eles.

ela continuava a balouçar-se suavemente, como se tentasse divorciar-se do que se


estava a passar. luxford inclinou-se para ela. roçou os lábios pelos cabelos cor de
mel.

- tenho tanto medo por ele - disse ela. - imagino-o sozinho. cheio de frio e de fome.
fazendo um esforço para ser corajoso e tentando perceber a todo o instante o que
se terá passado e porquê. lembro-me de ter lido uma vez qualquer coisa sobre um
rapto em que a vítima foi metida dentro de um caixão e enterrada viva, com uma
reserva de ar limitada. encontraram-na mesmo a tempo, antes que ela morresse
sufocada. tenho tanto medo que leo tenha... que alguém possa tê-lo magoado.

- não estejas assim - disse luxford.

- ele não conseguirá compreender o que aconteceu. e quero fazer qualquer coisa
para ajudá-lo a compreender. sinto-me tão inútil, aqui sentada, à espera. sem poder
fazer nada, enquanto durante todo este tempo todo o meu mundo está preso
algures, nas mãos de alguém. não suporto pensar no terror que ele deve estar a
sentir. e não sou capaz de pensar noutra coisa a não ser nisso.

luxford ajoelhou-se junto da cadeira onde ela estava sentada. não conseguia tornar
a dizer-lhe o que lhe vinha repetindo há mais de vinte e quatro horas. vamos trazê-lo
de volta, fiona. porque, pela primeira vez, não tinha certezas: nem sobre a
segurança de leo, nem sobre o que quer que fosse. tinha a sensação de que
caminhava sobre uma camada de gelo de tal modo quebradiça que um passo
precipitado seria o suficiente para os destruir a todos.

fiona mexeu-se, virando-se na cadeira para olhá-lo de frente. passou-lhe a mão pela
têmpora e deixou-a descair para o ombro dele.
- sei que também estás a sofrer. sei-o desde que tudo isto começou, mas recusei-me
a reconhecer o teu sofrimento, porque estava à procura de alguém a quem pudesse
atribuir culpas. e tu estavas à mão.

- eu mereço que me culpes. se não fosse por mim, nada disto teria acontecido.

- agiste de forma insensata há onze anos atrás, dennis, mas não deves culpar-te
pelo que está a acontecer agora. És uma vítima, tal como leo. do mesmo modo que
charlotte e a mãe dela foram vítimas. sei isso.

a generosidade do seu perdão atingiu-o como uma garra que se fechasse sobre o
seu coração e o apertasse. invadido por um tumulto que lhe revolvia as entranhas,
disse: - tenho de te contar uma coisa.

os olhos graves de fiona pousaram sobre ele.

- sobre o elemento que faltava no artigo publicado esta manhã - concluiu ela. - eve
bowen sabia o que era. diz-me. está tudo bem.

nada estava bem. nunca poderia vir a estar. ela acabara de confessar que procurara
alguém a quem atribuir culpas, e até à tarde daquele dia ele fizera justamente o
mesmo. só que no seu caso o alvo fora evelyn. escudara-se na paranóia dela, no
ódio que ela sentia e na sua enorme estupidez para justificar a morte de charlotte e
o rapto de leo. agora, porém, sabia sobre quem pesava de fato a responsabilidade.
e o fato de partilhar esse conhecimento com a mulher iria deixá-la ainda mais
abalada.

- conta-me, dennis - pediu ela.

e ele contou. começou por referir o modesto contributo dado por eve bowen
relativamente à história publicada no jornal, continuou com a interpretação que o
inspetor lynley sugerira para a frase o teu primogênito e concluiu verbalizando a
hipótese que vinha considerando desde que saíra da new scotland yard.

- fiona, eu não conheço este terceiro filho. nunca soube da sua existência até este
momento. deus é testemunha de que não sei de quem se trata.

ela parecia aturdida. - mas como é possível que não saibas...? - ao compreender o
que esta ignorância deixava entrever afastou-se dele. - foram assim tantas, dennis?

luxford procurou uma maneira de lhe explicar a pessoa que ele tinha sido nos anos
que antecederam o encontro entre ambos, as suas motivações, os demônios que o
tinham perseguido. - antes de te conhecer, fiona, o sexo era apenas algo que eu
fazia - disse.

- como lavar os dentes?

- era algo de que eu necessitava, algo que usava para provar a mim mesmo... -
gesticulou no vazio. - nem sei bem o quê.
- não sabes? não sabes mesmo? ou não queres dizer?

- está bem - assentiu. - a minha masculinidade. uma atração por mulheres. porque
sempre receei que, se não estivesse sempre a provar a mim próprio que as
mulheres me achavam terrivelmente atraente... - olhou para trás, tal como ela, para
a secretária de leo, para os desenhos, para a delicadeza, a sensibilidade e a
emotividade que os caracterizava. representavam o medo com que ele evitara
confrontar-se durante toda a sua vida. foi a mulher quem finalmente lhe deu voz.

- serias obrigado a lidar com o fato de os homens também te acharem terrivelmente


atraente.

- sim - disse. - isso também. pensava que deveria haver algo em mim que não
estava bem. pensava que de uma forma ou de outra estava a deixar passar qualquer
coisa: uma aura, um rasto, um convite silencioso...

- como leo.

- como leo.

ela inclinou-se então para a frente e pegou no retrato do rapazinho que o filho deles
desenhara. levantou-o de forma que a luz incidisse diretamente sobre o desenho.

- É assim que leo se sente - disse.

- vamos trazê-lo de volta. eu vou escrever o artigo. vou confessar. direi o que for
preciso. referirei o nome de todas as mulheres que conheci e suplicarei a cada uma
delas que se identifique publicamente, se...

- não estou a dizer que é assim que ele se sente neste preciso momento, dennis.
estou a dizer-te que é assim que ele se sente a todo o momento.

luxford pegou no desenho. observando-o mais de perto percebeu que o rapazinho


do desenho pretendia ser um retrato de leo. o cabelo claro denunciava-o, tal como
as pernas demasiado compridas e os tornozelos frágeis, que estavam expostos
porque as calças lhe estavam demasiado curtas e as peúgas apareciam dobradas.
ainda na semana anterior tivera oportunidade de testemunhar aquela atitude de
desânimo, no restaurante de pond square. ao examinar o esboço mais de perto viu
que inicialmente fora incluída outra figura, entretanto apagada. os seus contornos
eram ainda visíveis o suficiente para que ele pudesse distinguir os suspensórios de
caxemira, a camisa enrugada e a linha de uma cicatriz ao longo do queixo. era uma
figura excessivamente grande inumanamente grande que se elevava atrás do rapaz,
como se fosse a manifestação da sua futura condenação.

luxford amarfanhou o desenho. sentia-se exausto.

- deus me perdoe. fui assim tão severo com ele?

- tanto quanto para ti próprio.


pensou no filho: sempre tão cauteloso quando se encontrava na presença do pai,
velando para não cometer nenhum erro. recordou as vezes em que o rapaz tentara
corresponder aos desejos do pai endurecendo a forma de caminhar, encrespando a
voz, evitando a utilização de palavras que pudessem rotulá-lo de efeminado. todavia,
o verdadeiro leo nunca deixara de transparecer através da máscara que tanto se
esforçava por ostentar: sensível, de lágrima fácil, franco, desejoso de criar e de
amar. pela primeira vez desde que, ainda rapazinho, aceitara a importância de
camuflar emoções e da virtude da perseverança, luxford sentia a angústia acumular-
se perigosamente no seu peito. os seus olhos, porém, conservaram-se secos.

- queria que ele fosse um homem - disse.

- eu sei, dennis - retorquiu fiona. - mas como poderia ele sê-lo? só poderá tornar-se
um homem depois que lhe tenha sido permitido ser um rapazinho.

barbara havers sentiu a coragem fugir-lhe quando, ao regressar de stanton st.


bernard, viu que o carro de robin não estava estacionado na alameda de acesso a
lark’s haven. a idéia de voltar a vê-lo não voltara a atravessar a sua consciência
desde a estranha conversa que mantivera com célia. as conclusões de célia acerca
da natureza da relação entre ambos eram de tal modo estúpidas que nem mereciam
que voltasse a dedicar-lhes atenção mas quando viu o espaço vago no sítio onde ele
habitualmente deixava o escort, deixou escapar um sussurrante «oh, para o diabo
com tudo isto» e compreendeu que estivera a contar com a possibilidade de poder
trocar impressões sobre o caso com um colega, tal como fazia com o inspetor lynley.

deslocara-se novamente ao presbitério, em stanton st. bernard, a fim de mostrar a


fotografia de dennis luxford ao sr. matheson e à mulher deste. examinaram-na à luz
da cozinha segurando ambos a fotografia, um de cada lado e dizendo um para o
outro: «o que é que achas, querido? parece-te familiar?», ao que o outro respondia,
«oh, minha querida, a minha memória já não me serve de muito», para concluírem
ambos, hesitantes, que nunca tinham visto semelhante cara. a sra. matheson referiu
que provavelmente se teria lembrado do cabelo, fazendo notar com um sorrizinho
tímido que sempre «gostara de um jovem com uma bonita cabeleira». o sr.
matheson, cujos cabelos escasseavam, confessou que, exceto quando se envolvia
nalguma espécie de diálogo litúrgico, pessoal ou religioso com um indivíduo,
raramente fixava caras. no entanto, se por algum acaso o cavalheiro em questão
tivesse estado presente na igreja, no cemitério ou na festa, o seu rosto ter-lhe-ia
pelo menos parecido familiar. assim sendo... lamentavam, mas não conseguiam
lembrar-se dele.

barbara não obteve outro tipo de resposta por parte de nenhum dos restantes
habitantes da aldeia. quase todos os que encontrou queriam ajudar, mas ninguém foi
capaz de o fazer. assim, esgotada e cheia de fome, regressara a lark’s haven. de
qualquer das formas era já mais do que tempo de telefonar para londres. lynley
estaria à espera do telefonema dela para reunir as informações necessárias para
manter o comissário-adjunto entretido.

caminhou penosamente até à porta. não tinha havido notícias de leo luxford. o
sargento stanley reabilitara a sua grelha, canalizando os esforços das suas equipes
para a área em redor do moinho. todavia, não havia provas de que o garoto sequer
tivesse estado em wiltshire e a apresentação do seu retrato em todos os lugarejos,
aldeias e cidades não surtira outro efeito a não ser um menear de cabeças
generalizado.

barbara interrogava-se sobre como dois garotos podiam ter desaparecido sem
deixar qualquer rasto. tendo crescido numa área metropolitana em expansão, ela
própria tivera de ouvir vezes sem conta, durante a infância, a única ordem que em
termos de importância vinha logo depois de «olha para a direita e para a esquerda
antes de atravessares a rua». ou seja «nunca fales com estranhos». o que poderia
então ter acontecido a estas duas crianças? cismava barbara. ninguém as tinha
visto serem arrastadas pela rua fora aos gritos, o que significava que nenhuma delas
tinha oferecido resistência. será que nunca ninguém lhes tinha dito para
desconfiarem de pessoas estranhas? barbara tinha dificuldade em acreditar nisto.
assim sendo, se, tal como ela, tivessem sido instruídas para obedecer à mesma
ordem intemporal, a única conclusão a tirar era que quem as levara não lhes era de
modo nenhum estranho. nesse caso, que tipo de indivíduo poderia ser familiar a
estas crianças?

barbara estava demasiado esfomeada para conseguir procurar um elo de ligação.


precisava de comer fizera uma paragem no caminho e comprara propositadamente
uma tarte de carne congelada («basta levar ao forno»), na elvis patel’s grocery e
depois talvez conseguisse recuperar os níveis de açúcar e de energia cerebral
necessários para extrair algum sentido dos dados que possuía e procurar um elo de
ligação entre charlotte e leo.

consultou o relógio enquanto se aproximava da entrada, com a embalagem da tarte


na mão. eram quase oito horas, a hora perfeita para um jantar elegante. esperava
que corinne payne não se importasse que ela se servisse do forno durante alguns
minutos.

- robbie? - a voz fina de corinne soou, vinda dos lados da sala de jantar. - És tu,
querido?

- sou eu - disse barbara.

- oh, barbara.

uma vez que a sala de jantar ficava no caminho que levava à cozinha, não podia
evitar cruzar-se com a mulher. encontrou-a debruçada sobre a mesa de jantar, sobre
a qual estava estendido um pedaço de algodão estampado com flores. corinne
colocara um molde sobre o tecido, preso por alfinetes, e estava nesse momento a
cortá-lo.

- olá - cumprimentou barbara. - importa-se que eu me sirva do forno? - e ergueu a


embalagem com a tarte congelada, para que corinne pudesse inspecioná-la.

- robbie não está consigo? - corinne fazia deslizar a tesoura sob o tecido, seguindo
os contornos do molde.
- ainda está a trabalhar, suponho - barbara estremeceu, só então percebendo que
escolhera uma formulação bastante infeliz.

corinne sorriu para o trabalho e murmurou: - a barbara também, calculo?

barbara sentiu o pescoço tenso. esforçou-se por falar num tom casual. - toneladas
de trabalho a fazer. vou só aquecer isto e depois deixo-a à vontade - dirigiu-se à
cozinha.

- quase conseguiu convencer célia - disse corinne.

barbara estacou. - o quê? convencê-la?

- acerca de si e de robbie - continuou a cortar acompanhando a margem do molde.


seria imaginação dela, interrogou-se barbara, ou a tesoura de corinne teria mesmo
acertado o ritmo. - ela telefonou para cá ainda nem há duas horas. não estava à
espera que ela o fizesse, pois não, barbara? percebi pelo tom da voz dela, claro, sou
muito boa nisso, e embora ela não quisesse contar-me nada, consegui arrancar-lhe
a história. acho que ela precisava de desabafar. É normal, sabe? gostaria de
conversar comigo? - ergueu os olhos e o seu olhar cruzou-se com o de barbara,
refletindo uma expressão bastante afável. no entanto, a forma como levantou a
tesoura provocou calafrios em barbara.

não tinha jeito para subterfúgios. era uma técnica que lhe tinha escapado por
completo durante os anos escolares. costumava pensar com alguma frequência que
a sua incapacidade para dominar as astúcias femininas era a razão principal por que
passava a maior parte dos réveillons a ouvir rádio e a comer tarte de nozes pecãs do
st. michael. por isso, depois de dar voltas à cabeça em busca da resposta adequada
que obrigaria corinne payne a mudar de assunto, acabou por dizer: - célia está a tirar
conclusões erradas acerca de mim e de robin, sra. payne. não sei onde ela terá ido
buscar semelhante idéia, mas é totalmente falsa.

- corinne - disse a outra, - trate-me por corinne. - baixou a tesoura e recomeçou a


cortar.

- muito bem, corinne. vou então meter isto no forno e...

- as mulheres não «tiram conclusões erradas», barbara. somos demasiado intuitivas


para isso. eu própria me apercebi de como robin mudou. simplesmente não sabia
que nome lhe havia de dar até a barbara ter chegado. compreendo porque poderia
eventualmente mentir a célia. - ao proferir a palavra mentir, a tesoura mordeu o
algodão com vigor acrescido. - afinal, ela está noiva de robin. mas não precisa de
me mentir a mim. isso não - corinne tossiu suavemente ao concluir a frase. barbara
reparou, pela primeira vez, que a respiração dela soava congestionada. viu a outra
mulher dar palmadinhas no peito, sorrir e dizer: - É esta asma terrível. demasiado
pólen no ar.

- É pior na primavera - disse barbara.


- nem imagina como - corinne contornara a mesa enquanto cortava o tecido. estava
agora entre barbara e a porta da cozinha. empertigou a cabeça e exibiu um sorriso
afetuoso. - conte lá então, barbara. nada de mentir à corinne.

- sra. pay... corinne, célia está apreensiva porque robin tem andado preocupado.
mas é sempre assim quando se está a investigar um homicídio. ficamos apanhados,
esquecemo-nos de tudo o resto durante algum tempo. no entanto, depois de o caso
ser encerrado, a vida volta ao normal, e se ela tiver paciência verá que estou a dizer
a verdade.

corinne tamborilou com a ponta da tesoura sobre o lábio. lançou a barbara um olhar
avaliador e quando retomou a sua ocupação voltou de novo ao mesmo tema de
conversa.

- por favor, não me tome por parva, querida. isso não é para si. eu já vos ouvi
conversar um com o outro. robbie tentou ser discreto. foi sempre extremamente
sério nesse aspecto. mas eu ouvi-o ir ter consigo durante a noite, por isso preferia
que fôssemos francas uma com a outra em relação a tudo. as mentiras são tão
desagradáveis, não é verdade?

a insinuação deixou barbara sem fala durante alguns instantes. gaguejou: - ir ter
comigo? sra. payne, a senhora pensa que nós...

- como eu - disse, barbara, - pode sentir necessidade de mentir para célia. ela está,
é claro, noiva dele. mas não deve mentir-me. É uma convidada na minha casa, e
isso não é muito simpático.

uma convidada que paga a sua estada, barbara sentiu vontade de esclarecer
quando a tesoura de corinne começou a ganhar velocidade. em breve seria ex-
convidada, se conseguisse fazer as malas com rapidez suficiente.

- estão completamente enganadas, tanto a senhora como célia. mas eu saio já. será
melhor para todos.

- e facilitar assim o seu contato com robbie? indo para um sítio onde se possam
encontrar e fazer o que têm a fazer com toda a liberdade? - corinne abanou a
cabeça. - isso não seria próprio. e também não seria justo para célia, pois não? não,
acho que o melhor é ficar aqui. resolveremos este assunto logo que robbie chegue a
casa.

- não há nada para resolver. lamento que robin e célia estejam com problemas, mas
não tenho nada a ver com isso. e a senhora só irá embaraçá-lo, se continuar a
insistir que ele e eu... que nós... que ele tem... isto é durante o tempo em que tenho
estado aqui... - barbara nunca se sentira tão desorientada.

- acha que estou a inventar tudo isto? - perguntou corinne. - está a acusar-me de
levantar falsos testemunhos?

- de modo nenhum. estou apenas a dizer que está enganada, se pensa que...
- enganada não é diferente de mentir, querida. enganada é a palavra que se usa em
vez de mentir.

- a senhora talvez a use, mas eu...

- não discuta comigo - a respiração áspera de corinne ficou presa no peito dela. - e
não negue. sei muito bem o que ouvi e sei o que isso significa. e se julga que pode
abrir as pernas e roubar o meu robbie à rapariga com quem ele está para casar...

- sra. payne. corinne.

- ... é melhor pensar duas vezes. porque eu não vou deixar que isso aconteça. célia
não vai deixar que isso aconteça. e robbie... robbie... - respirou com dificuldade,
tentando inspirar.

- está a aborrecer-se sem motivo - disse barbara. - o seu rosto está a ficar vermelho.
por favor, sente-se. eu falo, se quiser. tentarei explicar tudo. agora sente-se, ou
acabará por sentir-se mal.

- era isso que gostava, não era? - corinne agitava a tesoura na mão de uma forma
que deixava barbara ainda mais enervada. - não foi exatamente isso que planejou
desde o princípio? com a mãe dele fora da jogada, não haveria mais ninguém que
lhe fizesse ver que ele está prestes a desperdiçar a vida inteira com uma
insignificante, quando podia ter... - a tesoura bateu na mesa com um ruído metálico.
ela levou a mão ao peito.

- diabos - disse barbara. avançou na direção de corinne. arquejando com estertor,


corinne afastou-a com um gesto. - sra. payne seja racional. conheci robin há apenas
duas noites atrás. passamos cerca de seis horas na companhia um do outro no
máximo, já que não temos andado a investigar a mesma parte do caso. pense bem
nisso, então. acha que tenho cara de femme fatale? acha que sou o tipo de mulher
para junto de quem robin gostaria de se esgueirar na calada da noite? e depois de
me conhecer há apenas seis horas? acha que isso faz algum sentido?

- tenho andado com vocês dois debaixo de olho - corinne respirava com esforço. -
observei-vos. e sei, sei porque telefonei... - os dedos dela agarraram-se ao peito.

- não se passa nada - disse barbara. - por favor, tente acalmar-se. caso contrário,
vai...

- sam e eu... marcamos a data e eu pensei que ele quereria ser... primeiro... -
arquejou, a saber... tossiu. não estava disposta a ceder. - mas ele não estava lá, pois
não, e ambas sabemos porquê. será que não sente um pingo de vergonha,
vergonha, vergonha, por estar a roubar um homem que pertence a outra mulher - a
frase deixou-a sem forças. curvou-se sobre a mesa. a respiração dela soava como
se estivesse a sugar ar através do buraco de uma agulha. agarrou-se ao tecido que
estivera a cortar e arrastou-o consigo à medida que desfalecia no chão.

- para o inferno com tudo isto! - barbara deu um salto em frente e gritou: - sra.
payne! diabo! sra. payne! - segurou a outra mulher e virou-a de costas.
o rosto de corinne passara de vermelho a branco. os lábios estavam cianusados.

- ar - implorou ela. - respirar...

barbara deitou-a de costas no chão, sem cerimônia. pôs-se de pé e começou a


procurar.

- o inalador. onde está, sra. payne?

os dedos de corinne moveram-se, debilmente, na direção das escadas.

- lá em cima? no seu quarto? na casa de banho? onde?

- ar... por favor... escadas...

barbara galgou os degraus das escadas. escolheu a casa de banho. escancarou o


armário dos medicamentos. despejou meia dúzia de medicamentos para o lavatório
que ficava por baixo. derrubou pasta de dentes, elixir bucal, emplastros, fio dental,
creme de barbear. do inalador, nem sombra.

em seguida tentou o quarto de corinne. abriu as gavetas da cômoda e esvaziou o


respectivo conteúdo. fez o mesmo com a mesa de cabeceira. espreitou para as
estantes, procurou dentro do guarda-vestidos. nada.

correu até ao corredor. conseguia ouvir a respiração agonizante da mulher. parecia


estar a abrandar. gritou «merda! merda!» e precipitou-se para um armário, onde
enfiou os braços e foi atirando ao chão tudo o que havia lá dentro. lençóis, toalhas,
velas, tabuleiros de jogos, cobertores, álbuns de fotografias. esvaziou o armário em
menos de vinte segundos, mas o resultado foi o mesmo que obtivera nos outros
sítios que revolvera.

mas ela mencionara as escadas. ela tinha dito escadas, não tinha? será que...?

barbara correu de novo até às escadas. ao fundo havia uma mesa em forma de
meia-lua. e aí, misturado com o correio do dia, um vaso com uma planta viçosa e
duas peças decorativas em faiança estava o inalador. barbara pegou nele e
apressou-se a voltar à sala de jantar. colocou-o dentro da boca da outra mulher e
bombeou-o freneticamente.

- vá lá - exortou. - oh, meu deus. vá lá - e esperou que o milagre medicinal se desse.

passaram dez segundos. vinte. a respiração de corinne tornou-se por fim regular.
continuou a respirar com a assistência do inalador. barbara continuou a ampará-la,
não fosse ela esvair-se por qualquer razão. e foi assim que robin as encontrou,
menos de cinco minutos depois.

lynley jantava sentado à secretária, graças à gentileza do quarto andar. telefonara a


havers três vezes duas para o departamento em amesford e uma para lark’s haven,
onde deixara uma mensagem a uma mulher que lhe dissera: «fique descansado,
inspetor, eu dar-lhe-ei o recado», num tom de extrema delicadeza, que sugeria que
barbara iria ser brindada com algo mais para além do seu pedido para que ela lhe
ligasse para londres, para o habitual relatório diário de atividades.

telefonara igualmente a st. james. desta vez falara apenas com deborah que o
informara que o marido não estava em casa quando ela chegara havia meia hora,
depois de ter passado o dia a fotografar em st. botolph’s church.

- ver os sem abrigo que por lá existem... obriga-nos a ver as coisas tal como elas
são, não é, tommy? - disse ela, o que lhe deu a ele oportunidade para dizer:

- deb, sobre o que se passou na segunda-feira à tarde, não tenho desculpa possível
a não ser a de que me comportei como um labrego. não, fui um labrego. todo aquele
discurso sobre matar crianças não tem desculpa. lamento muito.

ao que ela, após uma pausa de reflexão, muito característica da sua personalidade,
replicou: - eu também lamento. sou muito sensível em relação a esse tipo de coisas.
crianças, sabes.

- sei, sim - disse ele. - claro que sei. perdoas-me?

- há séculos que te perdoei, querido tommy - retorquiu ela, ainda que só tivessem
passado umas escassas quarenta e oito horas desde que a violenta troca de
palavras que ocorrera entre eles.

depois de ter falado com deborah ligara à secretária de hillier, a fim de lhe comunicar
a hora aproximada a que o comissário-adjunto poderia esperar receber o relatório
que lhe era devido. em seguida telefonara a helen. ela disse-lhe aquilo que ele já
sabia que st. james queria falar com ele, e estava a tentar fazê-lo desde o meio-dia.

- não sei de que se trata - disse ela, - mas está relacionado com aquela fotografia de
charlotte bowen. a que deixaste em casa de simon. na segunda-feira.

- falei com deborah sobre isso - disse lynley. - pedi-lhe desculpa. não posso apagar o
que lhe disse, mas ela parece estar disposta a perdoar-me.

- isso é mesmo típico dela.

- pois é. e tu, estás? disposta, quero dizer.

seguiu-se uma pausa. ele pegou num lápis e serviu-se dele para escrevinhar na
parte de cima de uma pasta de arquivo em cartolina. desenhou o nome dela, como
se fosse um rapazinho em idade escolar. imaginou-a reunindo forças para lhe
responder. ouviu o som de louça do outro lado do fio e apercebeu-se de que tinha
interrompido o jantar dela, o que por sua vez o fez recordar-se de que não pensara
muito em comida desde o pequeno-almoço.

- helen?

- simon disse-me que tenho de decidir - disse ela. - entre entrar no barco de uma vez
por todas ou saltar borda fora definitivamente. ele é a favor da primeira. diz que
gosta da excitação de um casamento incerto.

abordara sem rodeios o cerne da questão entre eles, o que não era próprio dela.
lynley não conseguia decidir se isso era bom ou mau. helen tendia a encontrar a
direção a seguir por vias indiretas. sabia, no entanto, que as palavras de st. james
tinham o seu quê de verdade. não podiam continuar como estavam indefinidamente,
um deles hesitando em assumir um compromisso duradouro, o outro preferindo
aceitar a hesitação a ter de enfrentar a rejeição. era ridículo. nenhum deles estava
dentro do tacho de fritar. ao longo dos últimos seis meses nem sequer se tinham
aproximado do queimador.

- helen, estás livre este fim-de-semana? - perguntou ele.

- tinha planeado ir almoçar com a mãe. porquê? não vais estar a trabalhar, querido?

- É possível. É provável. É mais do que certo, se este caso não estiver encerrado.

- então, o que...?

- pensei que podíamos casar-nos. temos a licença. acho que chegou o momento de
fazermos uso dela.

- assim, sem mais nem menos?

- diretamente para a fogueira.

- mas e a tua família? e a minha? e os convidados, a igreja, a recepção...?

- e se nos casássemos? - insistiu ele. a sua voz soava jovial, mas o seu coração
estava numa grande agitação. - vamos lá, querida. esquece essas ninharias.
podemos cumprir essa parte mais tarde, se quiseres. chegou o momento de dar o
salto.

quase podia senti-la a pesar as opções de que dispunha, tentando examinar com
antecedência todos os desfechos possíveis decorrentes da decisão de ligar a sua
vida à dele, de forma permanente e assumida. quando se tratava de tomar decisões,
helen clyde era a mulher menos impetuosa que ele conhecia. a ambivalência que a
caracterizava deixava-o louco, mas há muito que aprendera que era algo que fazia
parte dela. era capaz de passar um quarto de hora a tentar decidir que meias
calçaria de manhã e outros bons vinte minutos remexendo entre os brincos à
procura do par perfeito. como poderia surpreender-se, então, pelo fato de ela ter
passado os últimos dezoito meses a tentar decidir se, primeiro, e depois quando se
casaria com ele?

- helen chegou o momento - disse ele. - estou consciente de que se trata de uma
decisão difícil e assustadora. só deus sabe as dúvidas que eu próprio tenho. mas
isso é muito natural e chega sempre o momento em que um homem e uma mulher
têm de...
- querido, eu sei tudo isso - disse, sensatamente. não precisas de me fazer uma
preleção a animar-me e a encorajar-me.

- não preciso? então, por amor de deus, porque é que não dizes...?

- o quê?

- diz que sim. diz que aceitas. diz qualquer coisa. diz qualquer coisa que me dê um
sinal.

- desculpa, não pensei que precisasses de um sinal. estava apenas a pensar.

- em quê, santo deus?

- no pormenor mais importante.

- que é?

- céus. suponho que saberás qual é, tão bem quanto me conheces a mim: que diabo
vou eu vestir?

disse-lhe que não se importava com o que ela vestisse. não se importava com o que
ela iria vestir durante o resto das vidas de ambos. que se vestisse de burel e se
cobrisse de cinzas, se quisesse. calças de ganga, maillots, cetim e rendas. ela riu e
disse que o obrigaria a manter-se fiel à sua palavra.

- tenho precisamente os acessórios idéias para usar com burel.

terminada a conversa deu-se conta de que estava esfomeado e desceu ao quarto


andar, onde descobriu que o sanduíche especial do dia era de abacate e camarão.
tirou um, juntamente com uma maçã, e, equilibrando a peça de fruta sobre uma
chávena de café regressou ao gabinete. já tinha engolido metade da solução de
emergência em termos alimentares, quando winston nkata lhe apareceu à porta,
bloco-notas na mão. o seu rosto espelhava perplexidade.

- o que é que se passa? - perguntou lynley.

nkata passeou o dedo ao longo da cicatriz que lhe marcava uma das faces.

- não sei o que pensar - disse. dobrou a figura esguia e afundou-se numa das
cadeiras, voltando a concentrar a sua atenção no papel que trazia consigo. - acabei
de falar ao telefone com a esquadra de wigmore street. eles têm andado a trabalhar
nos especiais desde ontem. está lembrado?

- os guardas especiais? - quando nkata confirmou com um movimento de cabeça,


lynley perguntou: - o que é que há com eles?

- lembra-se que chegamos à conclusão de que não tinha sido nenhum dos guardas
efetivos de wigmore street quem tinha escorraçado aquele tipo de cross keys close,
a semana passada?
- jack beard? sim, por isso presumimos que isso teria sido feito por um dos
voluntários da esquadra. conseguiste localizá-lo?

- É impossível.

- porquê? os registros deles não são exatos? houve alguma mudança de pessoal? o
que é que aconteceu?

- não para as duas primeiras, nada para a última - disse nkata. - os registros deles
estão em ordem. e a pessoa que coordena os especiais continua a ser a mesma de
sempre. não houve desistências a semana passada, e nenhum elemento novo foi
admitido.

- o que estás a querer dizer-me, então?

- que jack beard não foi escorraçado por nenhum guarda do grupo de especiais, ou
por qualquer outro dos elementos efetivos de wigmore street. - inclinou-se para a
frente, ainda sentado na cadeira, amachucou o papel e atirou-o para o cesto dos
papéis. - tenho um palpite que me diz que jack beard não foi escorraçado por
absolutamente ninguém.

lynley refletiu sobre o que acabara de ouvir. não fazia sentido. tinham dois
depoimentos para além das declarações do próprio vagabundo que confirmavam
que beard tinha sido de fato expulso da zona de marylebone no mesmo dia em que
charlotte bowen desaparecera. embora os dois depoimentos tivessem inicialmente
sido recolhidos por helen, os oficiais que trabalhavam no caso tinham registrado
depoimentos formais junto das mesmas pessoas que tinham testemunhado a troca
de palavras entre o mendigo e o agente da polícia que o tinha expulso da zona.
assim sendo, a menos que houvesse uma conspiração entre jack beard e os
habitantes de cross keys close, tinha de haver outra explicação.

- tal como, - alvitrou lynley, - a possibilidade de alguém se ter disfarçado de polícia.


não era impossível ter acesso a uniformes policiais. podiam perfeitamente ser
alugados numa casa que alugasse fantasias.

as implicações subjacentes a esta linha de raciocínio deixaram lynley inquieto.


falando mais para si mesmo do que para nkata, disse: - todas num vasto campo de
possibilidades.

- o que me parece é que temos um campo e nada lá dentro.

- não me parece.

lynley olhou para o relógio. era demasiado tarde para começar a telefonar para lojas
de aluguel de roupas, mas quantas casas do gênero haveria em londres? dez?
doze? menos de vinte, certamente, e a primeira coisa a fazer na manhã seguinte
seria...

o telefone tocou. era da recepção. um tal sr. st. james aguardava embaixo. o
inspetor quereria recebê-lo? lynley disse que sim. claro que sim. pediu a nkata que
fosse buscá-lo.

st. james não se preocupou com delicadezas sociais quando, cinco minutos mais
tarde, entrou no gabinete de lynley, acompanhado por winston nkata. limitou-se a
dizer: - desculpa. não podia esperar mais tempo até que retribuísses os meus
telefonemas.

- isto por aqui tem sido um verdadeiro inferno - disse lynley.

- claro - st. james sentou-se. trazia com ele um enorme envelope castanho, que
pousou no chão, encostado à perna da cadeira onde se instalara. - em que ponto
estás? - perguntou. - o evening standard estava a concentrar as suas atenções num
suspeito anônimo, em wiltshire. É o mecânico de que me falavas ontem à noite?

- cortesia especial de hillier - disse lynley. - ele quer que a opinião pública saiba que
os impostos que paga estão a ser bem empregues no domínio da aplicação da lei.

- que outros elementos é que tens?

- uma série infindável de pontas soltas. andamos a tentar ligá-las umas às outras.

pôs st. james ao corrente dos últimos desenvolvimentos, quer no que dizia respeito a
londres, quer relativamente ao que se passava em wiltshire. st. james ouviu-o com
atenção, interrompendo para colocar uma ou outra questão: o sargento havers tinha
a certeza de que o moinho que aparecia na fotografia que ela vira em baverstock era
o mesmo moinho onde charlotte bowen fora mantida prisioneira? haveria alguma
ligação entre a festa paroquial em stanton st. bernard e alguém ligado ao caso?
alguns dos outros pertences de charlotte tinham sido encontrados o resto do
uniforme, os livros, a flauta? será que lynley estava em condições de identificar o
sotaque regional de quem tinha telefonado para a casa de dennis luxford naquela
tarde? e damien chambers, tinha alguma ligação com wiltshire, mais exatamente
ligações que envolvessem o trabalho da polícia da região?

- não seguimos essa pista no caso de chambers - disse lynley. - as opções políticas
dele situam-no no campo do ira, mas a sua ligação ao provos é razoavelmente
remota. - lynley resumiu os fatos que tinham apurado acerca de chambers. -
porquê? sabes alguma coisa sobre chambers? - concluiu.

- não consigo esquecer-me do fato de ele ser a única pessoa, para além das colegas
do colégio, que a chamavam lottie. e por isso, ele é o único elo que eu consigo
estabelecer entre charlotte e a pessoa que a matou, seja ela quem for.

- mas há muitas pessoas que podiam ter descoberto o nome da miúda, sem que
elas próprias a chamassem por esse nome - assinalou nkata. - se as colegas a
tratavam por lottie, os professores sabê-lo-iam com certeza. os amigos dos pais
saberiam. os próprios pais saberiam. e isto sem falar no professor de dança, no
maestro do coro, do sacerdote da igreja que ela frequentava. tal como outra pessoa
qualquer que tivesse ouvido alguém gritar o nome dela em plena rua.
- winston tem razão - disse lynley. - porque é que estás tão centrado no nome,
simon?

- porque acho que o fato de ter revelado que conhecia o diminutivo de charlotte foi
um dos erros cometidos pelo assassino - disse st. james. - outro foi a impressão
digital do polegar...

- ... no interior do gravador - concluiu lynley. - existem outros erros?

- mais um, julgo. - st. james pegou no envelope castanho. abriu-o e despejou o seu
conteúdo em cima da secretária de lynley.

lynley viu que dentro do envelope estava a fotografia do cadáver de charlotte bowen.
era a mesma fotografia que ele atirara a deborah e que deixara ficar para trás depois
da violenta disputa que se seguira.

- tens as notas de rapto? - perguntou st. james.

- cópias apenas.

- servem.

as mãos de lynley encontraram facilmente as referidas notas, já que se servira delas


escassas horas antes, quando eve bowen e dennis luxford se tinham deslocado ao
gabinete dele. tirou-as para fora e colocou-as ao lado da fotografia. esperou que o
seu cérebro estabelecesse a ligação entre elas. enquanto isso contornou a
secretária até ao lado onde costumava sentar-se. nkata inclinou-se para a frente.

- a semana passada examinei os bilhetes demoradamente - disse st. james. - na


quarta-feira à noite, depois de ter estado com eve bowen e com damien chambers.
sentia-me inquieto e tentava ligar as peças todas entre si. por isso dediquei algum
tempo a estudar a caligrafia. - À medida que falava ia indicando cada conclusão a
que chegara com a borracha encaixada numa das extremidades do lápis que tinha
nas mãos. vê a forma como ele forma as letras, tommy, sobretudo o t e o f. o traço
transversal de cada um deles continua para formar a letra que se segue. e olha para
os w, sempre isolados, desligados do resto da palavra. e os e, repara nos e. estão
sempre ligados ao que vem depois, mas nunca ao que os antecede.

- consigo ver que as duas notas foram escritas pela mesma mão disse lynley.

- exato - concordou st. james. - e agora vê isto virou a fotografia de charlotte bowen
ao contrário, expondo o nome dela, que tinha sido escrito nas costas da fotografia.
repara nos f disse. e nos e, no w

- cristo - murmurou lynley.

nkata pôs-se de pé. veio até junto de st. james, colocando-se do outro lado da
cadeira onde lynley estava sentado.

- esta é a razão das minhas perguntas sobre as ligações de chambers a wiltshire -


disse st. james. - porque me parece que a existência de alguém, como chambers,
por exemplo, que passasse informações para um cúmplice, em wiltshire, é a única
forma de explicar que a pessoa que escreveu o nome da garota nas costas desta
fotografia poderia saber qual era o diminutivo dela quando escreveu estas duas
notas de rapto.

lynley considerou todos os fatos que possuíam. todos eles pareciam apontar para
uma razoável, assustadora e inelutável conclusão. winston nkata endireitou o corpo
depois de ter examinado os bilhetes e deu voz a essa conclusão.

expirou uma longa lufada de ar e disse: - acho que estamos metidos num grande
sarilho.

- precisamente aquilo em que estou a pensar - respondeu lynley e fez um gesto na


direção do telefone.

ao ver barbara e a mãe no chão, robin ficou branco como a cal. - mãe! exclamou,
deixando-se cair de joelhos. pegou na mão de corinne, num gesto hesitante, como
se ela pudesse desfazer-se sob um toque demasiado violento.

- ela está bem - disse barbara. - teve uma crise, mas agora está bem. infelizmente,
virei tudo do avesso à procura do inalador. deixei o primeiro andar num caos.

ele parecia não estar a ouvi-la. - mãe? - disse. - o que aconteceu? mãe? sentes-te
bem?

corinne esboçou um movimento tênue na direção do filho. - fofo querido, robbie, -


disse num murmúrio quase inaudível, embora o ritmo respiratório registrasse uma
visível melhoria. - tive uma crise, querido. mas barbara... tomou conta de mim. agora
já estou bem. não te preocupes.

robbie insistiu para que ela fosse para a cama imediatamente.

- vou telefonar ao sam, mãe. queres que faça isso? queres que lhe peça para vir até
aqui?

as pálpebras dela agitavam-se enquanto abanava a cabeça, cansada.

- só quero o meu querido filho - murmurou. - o meu robbie. exatamente como nos
velhos tempos. está bem para ti, querido?

- claro que está bem - a voz de robin traía indignação. - porque é que não haveria de
estar? És a minha mãe, não és? em que é que estás a pensar?

barbara tinha fortes suspeitas quanto àquilo em que corinne estaria a pensar, mas
ficou calada. sentia-se extremamente feliz por poder entregar corinne aos cuidados
de robin. ajudou-o a pôr a mãe em pé e depois auxiliou-os a subirem as escadas
que levavam ao andar superior. ele entrou no quarto com a mãe e fechou a porta. do
lado de fora, barbara conseguia ouvir as vozes de ambos, a de corinne frágil e a de
robin tranquilizadora, como um pai que fala com o filho num tom pacificador.

- mãe, tens de ser mais cuidadosa - dizia ele. - como é que te posso entregar à
guarda de sam, se não começas a ter mais cuidado contigo?

no corredor, barbara ajoelhou-se no meio dos destroços resultantes do seu assalto


ao armário da roupa branca. começou a arrumar os lençóis e as toalhas. estava a
pôr em ordem os tabuleiros de jogos, as velas e a imensa miscelânea que atirara ao
chão momentos antes, quando robin saiu do quarto da mãe. fechou a porta com
suavidade atrás de si. - deixa lá isso, barbara apressou-se a dizer, - quando viu o
que ela estava a fazer. - eu encarrego-me de arrumar o resto.

- quem causou os estragos fui eu.

- foste tu quem salvou a vida da minha mãe - aproximou-se dela e estendeu-lhe a


mão. - para cima - disse. - e isto é uma ordem - suavizou as palavras com um
sorriso, acrescentando: - se é que não te importas de receber ordens de um humilde
e modesto agente.

- eu diria que humilde e modesto não serão talvez os termos certos.

- isso deixa-me satisfeito. - aceitou a mão que ele lhe estendia e deixou que ele a
puxasse até ficar em pé. não fizera muitos progressos para emendar a confusão que
provocara. inclinando a cabeça para o chão, disse: - receio que tenha causado um
efeito semelhante no quarto de dormir dela. mas presumo que te terás apercebido
disso.

- eu arrumo tudo. e farei o mesmo com isto. já jantaste?

- estava a preparar-me para ir aquecer uma coisa que trouxe da mercearia.

- isso não chega. não, é ótimo. a sério. É uma tarte de carne congelada.

- barbara... - pronunciou o nome dela de uma forma que soou como um preâmbulo.
falou num tom baixo, intensificado por um sentimento que ela não era capaz de
definir.

- comprei o congelado na elvis patel - apressou-se a dizer. - conheces o sítio? com


um nome daqueles, eu simplesmente tinha de entrar e espreitar. Às vezes acho que
devia ter nascido nos anos cinquenta, porque sempre tive um fraquinho por sapatos
de camurça azuis.

- barbara...

ela continuou com mais determinação ainda. - ia levá-lo para a cozinha para o
aquecer, quando a tua mãe teve a crise. por pouco não conseguia encontrar o
inalador. pela forma como virei a casa do avesso, parece... - hesitou. a expressão do
rosto dele tinha-se tornado bastante intensa, com um tipo de intensidade que muito
provavelmente teria comunicado uma verdadeira enciclopédia de sentidos não
verbalizados a uma mulher mais experiente, mas que aos olhos de barbara nada
mais continha do que a suspeita de que navegava agora em águas mais turvas do
que a princípio imaginara. ele disse o nome dela uma terceira vez, e para ela foi
como se uma violenta erupção cutânea explodisse em todo o seu peito. que diabo
significaria toda aquela intensidade nos olhos dele? mais do que isso, que
pretenderia ele ao dizer barbara com a mesma inflexão terna com que ela
habitualmente pedia mais natas batidas? continuou a falar, apressada. - seja como
for, a crise da tua mãe aconteceu uns escassos dez minutos depois de eu ter
chegado a casa. por isso não cheguei a aquecer o congelado.

- sendo assim, uma refeição far-te-ia bem - disse ele, sensatamente. - e a mim
também. - segurou-a pelo braço e ela percebeu que a pressão suave que exercia
sobre ele tinha por objetivo guiá-la na direção das escadas. - sou bom cozinheiro.
comprei umas costeletas de borrego e vou grelhá-las para nós. temos brócolos
frescos e umas cenouras jeitosas. - parou e olhou-a diretamente nos olhos. era uma
espécie de desafio, que ela não sabia muito bem como interpretar. - deixas-me
cozinhar para ti, barbara?

perguntou a si própria se cozinhar para ti seria alguma expressão com duplo sentido,
característica da new age. se assim era, não conseguia atingir o seu significado.
tinha de admitir que estava suficientemente esfomeada para engolir um javali, pelo
que decidiu que o relacionamento entre ambos não seria seriamente prejudicado se
deixasse que ele lhe preparasse um jantar rápido. - está bem, - disse. no entanto,
sentiu que estaria a aceitar a refeição sob pressupostos absolutamente falsos se
não esclarecesse robin sobre o que se passara antes entre ela e a mãe dele. era
óbvio que ele a via como a salvadora de corinne e naquele momento estaria,
provavelmente, a sentir-se grato pelo papel que ela desempenhara no pequeno
drama da noite. e embora fosse verdade que salvara corinne, não deixava de ser
menos verdade que era ela o agent provocateur que estava por detrás do ataque de
asma de corinne. ele tinha de saber isso. era mais do que justo que assim fosse.
libertou-se então da mão que lhe prendia o braço e disse: - robin, precisamos de
conversar sobre um assunto.

ele adotou imediatamente um ar circunspecto. barbara conhecia a sensação.


precisamos de conversar sobre um assunto era, na maioria das vezes, o prenúncio
de que havia mouro na costa, e neste caso isso só poderia passar-se em dois
âmbitos: no da relação profissional ou no da relação pessoal... se é que tinham
alguma. queria tranquilizá-lo de alguma forma, mas era demasiado inexperiente
neste tipo de conversas de homem para mulher para o fazer sem que fizesse figura
de imbecil. por isso decidiu ir direita ao assunto.

- falei hoje com célia.

- célia? - ele ficou ainda mais circunspecto, se é que isso era possível. - célia?
porquê? o que é que se passa?

brilhante, pensou barbara. ele já estava a erguer as defesas todas e ela ainda nem
passara da introdução.

- tive de ir ter com ela por causa do caso...


- e o que é que célia tem a ver com o caso?

- nada, conforme descobri, mas eu...

- porque é que foste falar com ela?

- robin - barbara tocou o braço dele. - deixa-me dizer-te o que tenho para te dizer,
está bem?

ele parecia contrafeito, mas assentiu com a cabeça embora tornasse a insistir: - não
podemos conversar lá em baixo? enquanto eu faço o jantar?

- não, preciso de te dizer isto já. porque poderá acontecer que não queiras cozinhar
para mim depois. poderás vir a sentir a necessidade de tirar algum tempo para ti,
esta noite, para esclareceres as coisas com célia. - ele parecia perplexo, mas antes
que ele tivesse oportunidade de a interrogar, apressou-se a continuar. explicou-lhe o
que tinha acontecido, primeiro no banco com célia, depois em lark’s haven com a
mãe dele. ele escutou tudo, rosto sombrio no início, murmurando «diabos», no meio,
ficando em silêncio no final. quando, trinta segundos depois de ela ter concluído o
relato viu que ele ainda não fizera qualquer comentário, insistiu: - por isso acho que
o melhor será eu sair cá de casa depois do jantar. se a tua mãe e a tua namorada
estão a tirar conclusões erradas...

- ela não é minha... - interrompeu ele rapidamente, mas deteve-se antes de concluir
a frase. - escuta, não podemos conversar sobre isto lá em baixo? - perguntou.

- não há mais nada a discutir. pomos ordem nesta confusão toda e depois eu vou
fazer a minha mala. janto contigo, mas depois tenho de sair daqui. não há outra
alternativa. - baixou-se para executar a mesma tarefa uma segunda vez. começou a
reunir o jogo de monopólio, que estava espalhado, o dinheiro e cartões misturados
com os marcadores pertencentes a um outro jogo.

ele voltou a segurá-la pelo braço e obrigou-a a parar. desta vez a pressão da sua
mão era firme.

- barbara, olha para mim - disse, e a voz dele, tal como a mão que a agarrava pelo
braço, alterara-se completamente, como se o homem tivesse de súbito tomado o
lugar do rapaz. ela sentiu um estranho sobressalto no coração. no entanto fez o que
ele lhe pedia. ele levantou-a mais uma vez. - tu não te vês a ti própria da mesma
maneira que os outros te vêem. percebi isso desde o primeiro momento. parece-me
que não te vês a ti própria como uma mulher, uma mulher capaz de despertar o
interesse de um homem - disse ele.

raios partam isto, pensou ela. no entanto, disse: - acho que sei quem sou e o que
sou.

- não acredito nisso. se soubesses quem és e o que és, não me terias contado o que
a minha mãe pensa acerca de nós dois, o que célia pensa acerca de nós dois, da
forma como o fizeste.
- limitei-me a apresentar-te os fatos - a voz dela soou firme. gostava de pensar que
conseguira até incutir-lhe algum desprendimento. todavia, estava intensamente
consciente da proximidade dele e de tudo o que essa proximidade implicava.

- deste-me mais do que fatos. disseste-me que não acreditavas.

- não acreditava em quê?

- que aquilo que célia e a minha mãe tinham visto era verdade. que eu sinto alguma
coisa por ti.

- e eu por ti. estamos a trabalhar juntos. e quando se trabalha com uma pessoa
desenvolve-se um sentido de camaradagem que poderá...

- aquilo que eu tenho sentido está para além do sentido de camaradagem. não me
digas que não reconheceste isso, porque não vou acreditar em ti. nós funcionamos
bem os dois, e tu sabes isso.

barbara não sabia o que dizer. não podia negar que uma leve centelha se acendera
entre ambos, desde o início. no entanto, as probabilidades de que daí resultasse
alguma coisa tinham-se-lhe afigurado de tal modo remotas que começara por
ignorar essa centelha e passara depois a extingui-la o melhor que podia. era esse o
procedimento lógico, dissera para si mesma. eram colegas, e os colegas não
deviam envolver-se uns com os outros. e mesmo que não fossem colegas, ela não
era estúpida ao ponto de esquecer, por um minuto que fosse, a bagagem negativa
que transportava consigo, em especial o rosto, a figura, a maneira de vestir, os
modos bruscos e a personalidade tipo porco-espinho. que homem quereria alguma
vez penetrar através de todo aquele conjunto de inutilidades e vê-la como ela
realmente era?

ele pareceu ler os pensamentos dela. - o que é importante é aquilo que as pessoas
são interiormente, não é a sua aparência exterior - disse. - tu olhas para ti própria e
vês uma mulher que nunca conseguiria atrair um homem. certo?

ela engoliu em seco. ele não se afastara dela. aguardava uma resposta da parte
dela, e ela teria de lha dar mais cedo ou mais tarde. ou isso, ou desatar a correr até
ao quarto e bater com a porta. então diz alguma coisa, dizia para consigo. responde-
lhe. porque se não o fazes... porque ele está a aproximar-se... porque ele pode
perfeitamente pensar as palavras saíram numa torrente.

- já passou muito tempo. não estou com um homem há... quero dizer... não sou
mesmo nada boa nisto... não queres telefonar a célia?

- não - disse ele. - não quero telefonar a célia. - cobriu a escassa distância que os
separava e beijou-a.

diabos me levem, raios partam isto, caraças, pensou barbara. depois sentiu a
língua dele dentro da sua boca e as mãos dele no rosto, nos ombros, nos braços e
em seguida procurando o caminho até aos seios dela. e então parou de pensar. ele
moveu-se de encontro a ela. empurrou-a contra a parede. colocou-se numa posição
de forma que ela pudesse sentir cada centímetro do corpo dele, para que não
houvesse qualquer engano no que dizia respeito às suas intenções. a cabeça dizia:
não, é melhor fugires, é melhor esconderes-te. o corpo, porém, dizia: finalmente, já
não era sem tempo.

o telefone tocou. o ruído apartou-os. ficaram parados, olhando um para o outro,


arquejando, culpabilizando-se, corpos em fogo, olhos muito abertos.
falaram ao mesmo tempo, barbara, para dizer - É melhor... e robin - eu devia...

desataram a rir. robin disse com um sorriso: - vou atender. fica onde estás. não te
mexas nem um milímetro. prometes?

- está bem - disse barbara.

entrou no quarto dele. ela podia ouvir a voz dele: o está lá suave, a pausa e depois: -
sim, ela está aqui. É só um momento. - saiu do quarto trazendo um telefone sem
fios. entregou-o a barbara, dizendo: - londres. o teu chefe.

bonito serviço, pensou. já devia ter ligado a lynley. ele estava à espera do relatório
dela desde o fim da tarde. pressionou o telefone de encontro ao ouvido, enquanto
robin abria o armário da roupa branca e se entregava à tarefa de tornar a arrumar o
seu conteúdo. ainda tinha o gosto dele na boca. ainda sentia a pressão das mãos
dele sobre os seios. lynley não podia ter telefonado em pior altura.

- inspetor? - disse. - peço desculpa. tivemos uma situação algo complicada por aqui.
ia agora mesmo telefonar-lhe.

robin olhou para ela, sorriu e voltou a concentrar-se no trabalho que tinha em mãos.

- o agente está aí consigo? - perguntou lynley tranquilamente.

- claro que está. o senhor acabou de falar com ele.

- refiro-me a se está aí consigo agora. na mesma divisão.

barbara viu robin olhar para ela novamente. empertigou a cabeça num gesto
inquisitivo. ela encolheu os ombros e informou lynley que «sim», embora, enquanto
confirmava, se apercebesse de que a sua voz se elevava, numa entoação de
pergunta. robin retomou a sua tarefa. lynley disse, dirigindo-se a alguém presente no
seu gabinete, «ele está com ela», e depois continuou com uma voz contida e nada
familiar nele.

- ouça com atenção, barbara. não se mexa. há fortes possibilidades de que robin
payne seja o nosso homem.

barbara sentiu-se colada ao sítio onde estava. não conseguiria reagir, mesmo que
tivesse tentado fazê-lo. abriu a boca e sem saber como proferiu palavras como «sim,
senhor», mas isso foi tudo o que conseguiu fazer.

- ele ainda aí está? - perguntou o inspetor. - na divisão? consigo?


- oh, sim - barbara deslocou o olhar, oscilante, da parede oposta para robin,
agachado no chão. empilhava álbuns de fotografias.

- foi ele quem escreveu as notas de rapto - disse lynley. - escreveu o nome de
charlotte e o número do caso nas costas das fotografias tiradas no local do crime. st.
james examinou-as todas e a caligrafia coincide. além disso, obtivemos confirmação
junto do departamento, em amesford, que foi payne quem escreveu nas costas das
referidas fotografias.

- compreendo - disse barbara. robin estava a pôr ordem no jogo do monopólio.


dinheiro para aqui. casas para ali. hotéis ao lado das casas. espreitou para uma das
cartas da sorte. você está livre da prisão. queria gritar.

- traçamos os movimentos dele ao longo das últimas semanas - prosseguiu lynley. -


ele esteve de férias, barbara, o que lhe deu tempo suficiente para ficar em londres.

- isso é novidade, não é? - disse barbara. sobrepondo-se às palavras de lynley,


porém, ouviu o que devia ter ouvido antes, o que teria ouvido se não se tivesse
deixado cegar pela idéia ou seria a esperança, sua cretina? de que um homem
poderia estar eventualmente interessado nela. podia ouvir tudo, palavra por palavra,
e as contradições nelas contidas deviam ter agitado bandeiras vermelhas mesmo
debaixo do nariz dela:

«entrei para o departamento de investigação criminal há três semanas atrás», dizia a


voz de robin, «foi nessa altura que acabei o curso.» e corinne gritara: «quando
telefonei... ele não estava.» e esta última, a mais evidente de todas. barbara ouvia-a
ressoar dentro do cérebro. ele não estava lá, ele não estava lá, ele não estava no
curso de detetives. porque estava em londres, pondo o seu plano em ação: seguindo
a pista de charlotte, perseguindo leo, familiarizando-se com os movimentos de cada
uma das crianças e estabelecendo o percurso que seguiria quando chegasse o
momento de as raptar.

- barbara. está aí? está a ouvir-me? - perguntava lynley.

- sim, senhor. - respondeu barbara. - claro. a ligação está a funcionar deste lado
pigarreou, - pois sabia que a sua voz tinha uma entoação estranha. - estava só a
considerar todas as causas e razões. sabe o que quero dizer.

- o motivo? existe outra criança algures. para além de charlotte e de leo, luxford tem
um terceiro filho. payne sabe quem ele é. ou conhece a mãe. É isso que ele quer
que luxford escreva no jornal. era isso que ele pretendia desde o início.

barbara observava-o. estava ocupado a arrumar um conjunto de velas, que tinham


caído do armário. vermelhas, bronze, prateadas, cor-de-rosa, azuis. como era
possível? perguntava a si própria. tinha a mesma aparência que ostentara
momentos antes, quando a abraçara, quando a beijara, quando se comportara como
se a desejasse.

- não há então dúvidas quanto aos fatos, pois não? - disse, dando continuidade à
charada, mas tentando ainda encontrar uma possibilidade remota do contrário. - isto
é, harvie parecia tão limpo, não era? bem sei que tínhamos a ligação com wiltshire,
desde o início, mas quanto ao resto... que diabo, senhor, detesto forçar as coisas,
mas confirmou todas as hipóteses?

- se temos a certeza de que payne é o nosso homem? - esclareceu lynley.

- essa é a questão - disse barbara.

- estamos a escassos milímetros da certeza. só nos falta a impressão digital.

- e essa qual é?

- a que st. james encontrou no interior do gravador. vamos levá-la para wiltshire..

- agora?

- agora. precisamos da confirmação do departamento de investigação criminal de


amesford. eles devem ter as impressões digitais dele em arquivo. quanto nos
tivermos certificado de que coincidem, temo-lo na mão.

- e depois?

- depois ficamos quietos.

- porquê?

- ele tem de nos levar até ao garoto. se apanharmos payne antes disso corremos o
risco de perder a criança. quando o jornal de luxford sair amanhã de manhã sem a
história que payne pretende ver impressa, irá ter com o rapaz. e aí agarramo-lo -
continuou lynley, falando com palavras baixas e urgentes. disse-lhe que ela deveria
manter o mesmo procedimento que até aí. disse-lhe que a segurança de leo luxford
estava em primeiro lugar. enfatizou que deviam esperar sem avançar e deixar que
payne os conduzisse ao sítio onde tinha escondido o garoto. disse-lhe que logo que
obtivessem a confirmação da impressão digital, o departamento de amesford poria a
casa sob vigilância. tudo o que ela tinha a fazer até esse momento era continuar a
agir normalmente. - winston e eu vamos seguir para wiltshire de imediato. pode
controlar as coisas por aí? consegue continuar? sente-se capaz de retomar o que
estava a fazer antes do meu telefonema?

- suponho que sim - disse e perguntou a si mesma como diabo iria conseguir fazê-lo.

- Ótimo - disse lynley. - no que diz respeito a ele estamos a cercar harvie. continue
exatamente como até aqui.

- certo - depois deteve-se e acrescentou como salvaguarda, como se estivesse a


responder a uma pergunta que lynley lhe tivesse feito: - amanhã de manhã? muito
bem. não há problema. a partir do momento em que tiver harvie na mão, ele dir-lhe-á
que fim deu ao garoto. já não vai precisar que eu fique por aqui durante mais tempo,
a passar o terreno a pente fino. a que horas me quer de volta na yard?
- muito bem, barbara - disse lynley. - mantenha-se firme por aí. vamos a caminho.

barbara premiu o botão e desligou a chamada. observou robin que se afadigava no


chão. queria atirar-se a ele e sacar-lhe a verdade e a realidade. e queria que isso a
fizesse concluir que robin era o que à primeira vista parecera ser. no entanto, sabia
que não tinha poderes para fazer o que quer que fosse de momento. a vida de leo
luxford era muito mais importante do que o seu desejo de compreender o significado
de dois minutos de agarradelas e apalpadelas no meio das toalhas e dos lençóis do
armário da roupa branca. quando ela perguntou: «queres que ponha o telefone...?»,
robin levantou os olhos para ela e ela viu a razão por que ele estivera tão
empenhado em fazer o jantar, em compor a desarrumação que ela provocara, em
mantê-la ocupada com ele e em distrair a atenção dela daquilo que,
inadvertidamente, pusera a descoberto. ele pegara nas velas. preparava-se para
tornar a metê-las dentro do armário. todavia, no meio dos círios que segurava entre
os dedos havia uma vela prateada que não era realmente uma vela. era parte de
uma flauta. da flauta de charlotte bowen.

robin pôs-se de pé. enfiou o que tinha nas mãos ao lado de uma pilha de toalhas.
entre os detritos espalhados pelo chão, barbara viu outra seção da flauta, pousada
junto da caixa de dentro da qual caíra. juntou tudo a uma série de fronhas, que
colocou dentro do armário. em seguida tirou o telefone das mãos dela, dizendo, «eu
arrumo isto», e os seus dedos tocaram ao de leve na sua face quando passou por
ela a caminho do quarto.

tinha esperanças de que o falso ardor que ele demonstrara se alterasse, depois de
ter afastado a flauta do campo de visão dela. no entanto, quando voltou para junto
dela, sorriu ao aproximar-se. percorreu com um dedo a linha do maxilar dela e
curvou-se na sua direção.

barbara pensou nos sacrifícios que estava disposta a fazer no cumprimento do


dever. este não era um deles. a língua dele era como um réptil dentro da boca dela.
queria cerrar os maxilares e ranger os dentes até conseguir sentir o gosto a sangue.
queria agarrá-lo pelos tomates até que aquelas órbitas miseráveis cuspissem
estrelas. não estava disposta a ir para a cama com um homicida por amor, dinheiro,
monarca, pátria, sentido do dever, ou pelo gozo de tudo aquilo. esta, porém, era a
única razão por que robin payne queria levá-la para a cama. o gozo doentio de tudo
aquilo. a grande e sonora gargalhada funda que daria ao lembrar-se que o tinha feito
precisamente com a agente que estava a tentar descobrir o seu rasto. porque fora
isso que ele andara a fazer desde o começo, de uma forma ou de outra. tinha
andado a levar a fazê-lo com ela, metaforicamente falando.

barbara sentia a raiva abrir-lhe buracos no peito. queria esmagar a cara dele.
contudo, ouvia a voz de lynley que lhe dizia para continuar. então pensou na melhor
forma de ganhar tempo. não seria difícil, em sua opinião. tinha uma desculpa dentro
de casa. afastou-se do beijo de robin e sussurrou: - que diabo, robin. a tua mãe. está
mesmo aqui ao lado, no quarto dela. não podemos...

- ela está a dormir. dei-lhe dois comprimidos. não vai dar por nada até amanhã. não
tens de te preocupar com nada.
e assim se ia o plano número um, pensou barbara. depois, de súbito, deu-se conta
do que ele dissera. comprimidos. comprimidos. que tipo de comprimidos? tinha de
voltar rapidamente à casa de banho, porque estava quase certa do que iria
encontrar misturado com os medicamentos que revolvera nas prateleiras do armário
dos medicamentos. queria certificar-se, porém.

robin cercou-a, um braço apoiado na parede, a outra mão colocada na nuca dela.
conseguia sentir a força que se desprendia dos dedos dele. como deveria ter sido
fácil para ele manter charlotte bowen debaixo de água até ela estar morta.

beijou-a de novo. a língua dele explorava o interior da boca dela. ela ficou tensa. ele
afastou-se. fitou-a intencionalmente. não era parvo, conforme ela podia ver.

- o que é? - perguntou ele.- o que é que se passa?

sabia que algo se passava. e não iria morder a isco se ela tentasse ludibriá-lo uma
vez mais com as suas preocupações em relação à mãe. por isso disse-lhe a
verdade, pois alguma coisa nele, e que ela não vira antes, uma sexualidade
predatória, lhe dizia que havia a possibilidade de ele interpretar a verdade de uma
forma que viria ao encontro das necessidades dela.

- tu assustas-me. - viu o brilho da suspeita assomar aos olhos dele. continuou a fitá-
lo, sustentando o olhar dele com uma expressão firme e confiante. - desculpa -
prosseguiu. - tentei dizer-te isto há pouco. há séculos que não estou com um
homem. já quase esqueci o que devo fazer.

o brilho que vira nos olhos dele extinguiu-se. aproximou-se mais dela.

- acabarás por te lembrar de tudo - murmurou. - prometo. - sujeitou-se a outro beijo.


deixou escapar o que esperava que fosse um som adequado ao momento. em
resposta, ele tomou a mão dela. guiou-a até ele. fez com que os dedos dela se
curvassem em torno dele. aumentou a pressão para que ela o apertasse. soltou um
gemido.

isso deu-lhe uma desculpa para escapar ao abraço dele. teve o cuidado de fingir que
estava sem fôlego, confusa, receosa.

- estamos a ir depressa demais, robin, que diabo. tu és um homem atraente. e só


deus sabe como és sexy. só que eu não estou preparada para... quero dizer, preciso
de um pouco de tempo - esfregou furiosamente os nós dos dedos no cabelo. soltou
uma gargalhada que pretendia soasse pesarosa. - sinto-me uma completa imbecil.
não podemos ir um pouco mais devagar? dá-me oportunidade para...

- mas vais embora amanhã - lembrou ele.

- embora?... - estacou mesmo à beira do precipício. - mas só vou para londres. e a


que distância estamos de londres? oitenta milhas? não é nada, quando se deseja
muito estar lá. - presenteou-o com um sorriso e amaldiçoou-se por dedicar tão-
pouco tempo da sua vida à prática das artes de persuasão femininas. - e tu, queres?
queres estar em londres? ou seja, sentes um desejo razoável de lá estar?

passeou um dedo ao longo da cana do nariz dela. com três dedos acariciou-lhe
suavemente os lábios. ela permaneceu imóvel e ignorou o impulso de se escapulir.

- preciso de um pouco de tempo - tornou a dizer. - e londres não fica longe daqui.
estás disposto a dar-me algum tempo?

esgotara todos os ardis femininos contidos na sua minúscula bolsa de recursos.


esperou para ver o que aconteceria em seguida. neste momento não teria dito não a
um deus ex machina. alguém que descesse das alturas, montado num carro de fogo
teria vindo mesmo a calhar. mas estava nas mãos de robin, da mesma forma que ele
estava nas dela. dizia, agora não, aqui não, ainda não. a ele, e só a ele, cabia dar o
passo seguinte.

ele roçou a boca dela na dele. deslizou a mão ao longo do corpo dela. apalpou-a tão
depressa entre as pernas que ela poderia nem ter chegado a ter consciência
daquele gesto, não fora o fato de ele tê-lo feito com uma força tal que mesmo depois
de ter retirado a mão ela ainda sentia no corpo a sua pressão quente.

- londres - disse ele, e sorriu. - vamos jantar.

permaneceu junto da janela do quarto de dormir, forçando os olhos a perscrutar a


escuridão. não havia candeeiros públicos em burbage road, por isso tinha de se fiar
na claridade da lua, das estrelas e nos ocasionais faróis de um veículo que por ali
passasse para conseguir captar qualquer sinal indicador de que a vigilância policial
prometida por lynley estava em posição.

sem saber como conseguira comer o jantar. não conseguia lembrar-se do que ele
cozinhara, para além das costeletas de borrego. vira pratos de servir dispostos sobre
a mesa de jantar e servira-se do seu conteúdo, fingindo comer. mastigara, engolira,
bebera um copo de vinho depois de o ter trocado pelo dele mera precaução quando
ele fora até à cozinha buscar os legumes. todavia, não saboreara nada. dos seus
cinco sentidos, o único que parecia estar a funcionar era a audição. e escutara tudo:
o som dos passos dele, o ritmo da sua própria respiração, o arrastar das facas sobre
a porcelana e, sobretudo, os sons abafados vindos do exterior. teria ouvido um
carro? ou será que eram os ruídos surdos de homens ocupando as suas posições?
teriam tocado a uma campainha ali perto, para que a polícia tivesse acesso a uma
casa onde pudesse esperar até que robin entrasse em ação?

ter de conversar com ele fora um suplício. estava perfeitamente consciente do risco
de colocar as perguntas erradas sob a capa da intimidade que crescia entre ambos
que inadvertidamente traíssem o conhecimento que tinha da culpabilidade dele. para
evitar fazê-lo, monopolizara o discurso. os temas de conversa eram escassos, e a
quantidade de assuntos que ela desejava partilhar com ele era ainda menor. no
entanto, se quisesse que ele acreditasse que ela acalentava o sonho de continuar a
vê-lo depois de regressar a londres, sabia que tinha de manter os olhos brilhantes e,
na voz, uma inflexão que traísse a felicidade que sentia ao antecipar esse
reencontro. tinha de olhá-lo diretamente nos olhos. tinha de levá-lo a pensar que
queria que ele estivesse consciente dos seus lábios, dos seus seios, das suas
coxas. tinha de o fazer falar e quando o conseguisse tinha de beber as palavras
dele, como se elas fossem o maná por que tanto ansiava.

não se tratava exatamente de uma encenação que tivesse ensaiado até à perfeição.
no final da refeição estava completamente exausta. e no momento em que
levantavam a mesa do jantar os seus nervos estavam absolutamente tensos.

disse-lhe que se ia retirar, tinha sido um longo dia, e ela tinha de se levantar cedo na
manhã seguinte, pois era esperada na yard às oito e meia, e sendo o trânsito aquilo
que era... se ele não se importasse, iria para a cama.

ele não se importara.

- tiveste a tua conta hoje, barbara - dissera. - mereces um descanso decente. -


acompanhara-a até ao fundo das escadas e acariciara-lhe a nuca em jeito de boa-
noite.

quando desapareceu do campo de visão dele, barbara esperou para ver se ouvia os
movimentos que lhe confirmassem se ele voltara para a sala de jantar ou entrara na
cozinha. quando os sons de louça sendo lavada flutuaram até ela esgueirou-se até à
casa de banho, onde horas antes procurara o inalador de corinne.

sustendo a respiração e mexendo-se o mais silenciosamente possível escrutinou os


frascos de medicamentos que se acumulavam no lavatório para onde os deixara
cair. leu os rótulos com sofreguidão. encontrou medicamentos para as náuseas,
infecções, indisposições, diarreia, espasmos musculares e para a indigestão, todos
eles receitados para o mesmo paciente: corinne payne. o frasco que procurava não
estava ali. mas tinha de estar... se robin fosse quem lynley pensava que era.

então lembrou-se. ele tinha dado comprimidos a corinne. se estes estivessem junto
com os outros, originalmente, ele teria sido obrigado a vasculhar entre os que
estavam dentro do lavatório como ela acabara de fazer para encontrá-los. quando os
tivesse encontrado teria inclinado o frasco fazendo deslizar para a palma da mão
dois comprimidos e... onde teria ele metido o maldito frasco? não tinha sido reposto
no armário dos medicamentos. não estava no rebordo do lavatório. não estava no
cesto de papéis. então onde...? viu-o, em cima da cisterna. soltou um grito interior de
triunfo e apoderou-se dele. valium, estava escrito no rótulo. bem como as indicações
para o paciente: tome um comprimido aos primeiros sinais de tensão. e, ainda, o
rótulo mais pequeno contendo a breve advertência adicional: pode provocar
sonolência. não misturar com álcool. ingerir segundo as instruções.

tornou a colocar o frasco em cima da cisterna. «cacei-te», pensou. dirigiu-se ao seu


quarto.

fizera os ruídos habituais de quem vai para a cama durante quinze minutos. deixou-
se cair na cama e apagou a luz. esperou cinco minutos e depois deslizou até à
janela, onde se encontrava neste momento, observando e aguardando um sinal.

se soubesse que estavam lá fora e lynley dissera que estariam deveria conseguir
visualizar um sinal deles, não era? uma carrinha sem identificação? uma luz coada
através de um cortinado na casa que ficava do outro lado da estrada? uma
movimentação perto das árvores que se erguiam junto à alameda de acesso? nada
via, porém.

quanto tempo passara desde o telefonema de lynley? perguntava a si própria. duas


horas? mais? ele ligara da yard, mas iam partir de imediato, dissera ele. levariam
pouco tempo a chegar vindo pela auto-estrada, se não houvesse nenhum acidente
que os atrasasse. as estradas secundárias que conduziam a amesford causavam
alguns problemas, mas a esta hora já teriam tido tempo de chegar. a não ser que
tivessem ficado retidos por causa de hillier. a não ser que o palerma do hillier tivesse
provocado as suas habituais confusões na central...

ouviu os passos de robin no corredor, do outro lado da porta do quarto. voou até à
cama e enfiou-se debaixo dos cobertores. esforçou-se por respirar com o ritmo dos
que dormem e tentou ouvir o puxador da porta rodando, a porta sendo aberta e os
seus passos furtivos avançando até meio do quarto.

em vez disso escutou barulho na casa de banho. urinava como uma mangueira de
incêndio. parecia não ter fim. em seguida, o autoclismo e quando este foi silenciado
reconheceu um som vibrante. comprimidos sendo agitados sonoramente dentro de
um frasco.

a explicação do patologista ressoava com tanta nitidez nos seus ouvidos, que era
como se ele estivesse ali mesmo no quarto com ela:

ela foi drogada antes de ser afogada dissera ele, o que explica o fato de não termos
encontrado marcas significativas no corpo. não teria tido forças para opor
resistência. estava inconsciente durante o tempo em que foi mantida debaixo de
água.

barbara sentou-se na cama muito direita. «o miúdo», pensou, «não vai esperar até
que o jornal de amanhã esteja na rua. vai livrar-se do garoto esta noite e vai usar o
valium para isso.» afastou os cobertores para o lado e, em silêncio, precipitou-se
para a porta. aventurou-se a abri-la e espreitou pela fresta estreita.

robin vinha a sair da casa de banho. caminhou até à porta do quarto da mãe e abriu-
a. olhou para dentro durante alguns minutos, pareceu ficar satisfeito e depois virou-
se na direção de barbara. ela fechou a porta. esta não tinha fecho. tão-pouco tinha
tempo de correr até à cama antes de ele a alcançar. ficou parada com a cabeça
encostada à porta. rezou: «vai-te embora, vai-te embora, vai-te embora.» podia ouvir
a respiração dele do outro lado da madeira. bateu ao de leve. ela não se mexeu.

ele murmurou, então: - barbara? estás a dormir? posso entrar? - em seguida tornou
a bater.

ela comprimiu os lábios e susteve a respiração. instantes depois ouviu-o descer as


escadas.

ele vivia naquela casa. sabia, por isso, que a porta do quarto dela não tinha fecho.
isso significava que não tinha querido entrar, porque se quisesse fazê-lo teria
simplesmente entrado. quisera apenas certificar-se de que ela estava a dormir.

abriu a porta. sentia-o no andar de baixo. entrara na cozinha. desceu as escadas


devagar e silenciosamente.

ele fechara a porta da cozinha quando entrara, mas não a trancara. abriu-a apenas o
suficiente, uma fresta com a espessura de um cordel. conseguia ouvir mais do que
via: um armário sendo aberto, o ruído estridente de um abre-latas elétrico, o som de
metal embatendo num mosaico.

ele cruzou então o campo de visão dela, segurando numa das mãos uma garrafa
térmica grande. remexeu dentro de um armário e tirou uma pequena tábua de
madeira. sobre ela colocou quatro comprimidos azuis. esmagou-os com as costas
de uma colher de pau até ficarem em pó. verteu cuidadosamente o pó para dentro
da garrafa térmica.

caminhou até ao fogão onde pusera qualquer coisa a aquecer. mexeu durante um
minuto. conseguia ouvi-lo assobiar baixinho. em seguida aproximou um tacho da
garrafa térmica e encheu-a com um líquido quente e fumegante, sopa de tomate
pelo cheiro. depois de ter fechado a garrafa limpou escrupulosamente todos os
vestígios da tarefa que acabara de realizar. olhou em volta, apalpou os bolsos e tirou
as chaves do carro. saiu ao encontro da noite, desligando as luzes da cozinha ao
sair.

barbara correu até às escadas. galgou-as e precipitou-se para a janela do quarto. o


escort dele deslizou em silêncio e com as luzes apagadas ao longo da alameda que
conduzia à estrada. todavia, eles vê-lo-iam mal ele entrasse na rua, e nessa altura
segui-lo-iam.

olhou para a direita, depois para a esquerda. esperou. olhou. o carro de robin
começou a trabalhar no momento em que alcançou a estrada. ele acendeu os faróis
e seguiu para oeste, na direção da aldeia. ninguém foi atrás dele, porém. passaram
cinco segundos. depois dez. depois quinze. ninguém.

- merda! - murmurou barbara. - maldito... raios partam! - pegou nas chaves. desceu
pesadamente as escadas. atravessou a cozinha a correr e atravessou o escuro.
entrou no mini. rodou a ignição com um rugido, manobrou as mudanças para meter
a marcha-atrás e desceu velozmente a alameda para entrar em burbage road.
conduziu sem acender os faróis, rolando na direção da aldeia. rezava, alternando
orações com blasfêmias.

no centro da aldeia travou na zona onde a estrada se bifurcava para os dois lados
da estátua do rei alfredo. se virasse à esquerda iria para sul, no sentido de
amesford. a estrada da direita seguia para norte, na direção de marlborough e da
estrada secundária que atravessava o vale de wootton, passando por stanton st.
bernard, por allington e continuando para lá daquele fantasmagórico cavalo de giz
que há milhares de anos percorria as dunas a galope. escolheu a via da direita.
carregou a fundo no acelerador. passou a grande velocidade pela esquadra
mergulhada na escuridão, pela elvis patel’s grocery e pela estação dos correios. o
mini pareceu elevar-se no ar ao entrar na ponte em arco que ligava as duas
margens do canal do kennet e do avon.

uma vez atravessado o canal, ficava fora dos limites da aldeia e entrava em plena
zona agrícola. perscrutou o horizonte. escrutinou a estrada que se estendia à sua
frente. amaldiçoou hillier e todos aqueles de quem conseguia lembrar-se e que
pudessem ter tramado o plano de vigilância. ouviu a voz de lynley que lhe dizia que
a segurança do garoto vinha em primeiro lugar, que payne se livraria dele quando
descobrisse que nenhum artigo fora publicado no tablóide. viu o corpo de charlotte
bowen, tal como ele se lhe apresentara durante a autópsia e bateu com as mãos no
volante, gritando:

- diabos te levem! onde é que te meteste?

nesse instante viu-o: o brilho de faróis incidia sobre uma fileira de árvores, cerca de
um quarto de milha mais à frente. avançou, veloz, na direção da luz. era a sua única
esperança.

ele não seguia tão depressa quanto ela. na mente dele, não haveria qualquer
necessidade disso. tanto quanto sabia, a mãe estava a dormir e barbara também.
porquê atrair as atenções sobre si percorrendo a estrada a alta velocidade, como se
estivesse a ser perseguido por demônios? barbara ganhou terreno em relação a ele,
e quando ele passou por uma estação de serviço profusamente iluminada, situada à
saída de oare, viu que era de fato o escort de robin payne que ela perseguia. «talvez
existisse um deus, afinal», pensou.

contudo, ninguém a seguia a ela. o que lhe dizia que estava entregue a si própria.
sem uma arma, sem um plano e sem entender completamente por que motivo robin
payne se empenhara em destruir as vidas de tantas pessoas.

lynley dissera que dennis luxford era pai de uma terceira criança. dado que a nota de
rapto ordenara ao jornalista que reconhecesse o seu primogênito e uma vez que o
reconhecimento de charlotte bowen não tinha servido os interesses do raptor, a
única conclusão possível era a de que havia uma outra criança, mais velha. e robin
payne sabia coisas sobre esta criança. sabia e estava furioso com ela. furioso ao
ponto de matar. então, quem...?

- ele mudou, - dissera célia. - imediatamente depois de ter regressado do que ela
presumira ser um curso para detetives, robin mudara. quando deixara wootton cross,
ela partira do princípio de que iriam casar. quando regressara sentiu o abismo que
se cavara entre ambos. concluiu que esse abismo tinha como razão a existência de
uma outra mulher na vida de robin. e se robin tivesse descoberto algo sobre ela?
acerca de célia? acerca do envolvimento de célia com outro homem? acerca do
envolvimento de célia com dennis luxford?

lá à frente, robin virara à esquerda saindo da estrada principal para seguir por um
caminho estreito, iluminando com os faróis dianteiros o percurso serpenteante
através da paisagem campestre. aquela viragem à esquerda significava que ele
rumava para a zona norte do vale de wootton. quando barbara chegou ao caminho,
decidiu arriscar-se a acender as luzes do seu carro por breves instantes, a fim de ver
exatamente para onde ele seguia. na tabuleta leu as indicações para fyfield,
lockeridge e west overton. junto a estas, acompanhada de uma seta de direção
podia ver-se a imagem que identificava universalmente os locais de interesse
histórico: a torre de um castelo, pintada de castanho sobre metal branco, com as
ameias muito bem desenhadas para que não houvesse hipótese de alguém a
confundir com outra indicação.

bingo, pensou barbara. o moinho, primeiro. o castelo, depois. robin payne, e fora ele
próprio a dizê-lo, há muito que conhecia os melhores sítios de wiltshire, os sítios
ideais para qualquer travessura.

talvez até tivesse vindo até aqui com célia. talvez fosse essa a razão por que
escolhera o local. todavia, se a causa de tudo isto era a relação ilícita que célia
matheson mantinha com dennis luxford, quando e como teria ela ocorrido? charlotte
bowen tinha dez anos de idade quando morreu. se ela não era a filha primogénita de
luxford, então quem quer que o fosse devia ser, obviamente, mais velho. e mesmo
que a criança fosse apenas alguns meses mais velha, isso situaria o envolvimento
amoroso de célia matheson com dennis luxford nos anos da adolescência dela. que
idade tinha célia, afinal? vinte e quatro? vinte e cinco, no máximo? para que ela
pudesse ter tido um caso com luxford, para que daí resultasse um filho mais velho
do que charlotte bowen seria preciso que ela tivesse andado com luxford quando
tinha apenas catorze anos. isto não estava para lá dos limites do reino das
probabilidades, já que era muito frequente ver crianças dando à luz. no entanto,
embora luxford parecesse ser um indivíduo de caráter absolutamente duvidoso a
avaliar pelo jornal onde trabalhava nada do que barbara ouvira acerca dele a tinha
feito concluir que se sentia atraído por adolescentes. e tendo em conta a descrição
que portly dera de luxford nos tempos em que era estudante em baverstock,
sobretudo tendo em conta o forte contraste que portly estabelecera entre luxford e
os outros rapazes, era forçoso concluir... espera lá, pensou barbara. diabos levem
tudo isto. aumentou a pressão sobre o volante. conseguia ver o carro de robin
serpenteando estrada fora, abrindo caminho por entre um grupo de árvores,
inclinando-se para subir um ligeiro declive. seguia-o, fitando alternadamente o carro
dele e o caminho por onde seguia, enquanto tentava chamar à memória os
pormenores mais proeminentes do relato de portly. um grupo de rapazes de
baverstock alunos do sexto ano, da mesma idade de dennis luxford tinham mantido
encontros regulares com uma rapariga da aldeia com quem tinham relações sexuais
na velha câmara frigorífica que ficava dentro dos terrenos da escola. pagavam-lhe
duas libras cada um, em troca dos seus favores. ela aparecera grávida. tinha havido
algum reboliço, na sequência disso, com expulsões e tudo o resto. fora isso que
acontecera, não fora? nesse caso, se a gravidez dessa rapariga da zona tivesse
vingado, se ela tivesse dado à luz um bebé saudável que ainda fosse vivo, nesse
caso a criança resultante desses encontros na câmara frigorífica entre a rapariga da
aldeia e o grupo de vigorosos rapazes teria hoje barbara fez as suas contas vinte e
nove anos de idade. macacos me mordam, pensou barbara. robin payne
desconhecia que luxford tinha uma filha. robin payne pensava que era ele o filho de
luxford. como chegara a essa conclusão, barbara nunca poderia adivinhá-lo, mas
sabia que essa era a verdade tanto quanto tinha a certeza de que ele a conduzia
naquele momento até junto da criança que julgava ser seu meio-irmão. podia até
ouvir o que ele lhe dissera na noite em que passaram de carro em frente a
baverstock school. não há absolutamente ninguém na minha árvore genealógica. ela
julgara que ele queria dizer ninguém digno de nota. agora, porém, compreendia que
ele pretendera dizer exatamente aquilo que dissera. absolutamente ninguém, pelo
menos ninguém com estatuto legítimo.

conseguir que o destacassem para o caso tinha sido um verdadeiro golpe de mestre.
ninguém pensaria duas vezes perante o pedido do jovem e ansioso agente. e
quando colocou a sua casa à disposição do sargento da scotland yard tão próxima
do local onde o corpo fora abandonado, não havendo nenhum hotel decente na
aldeia, a sua própria mãezinha residindo no local para manter tudo dentro dos limites
do decoro, a casa sendo uma pensão de confiança não podia ter encontrado melhor
maneira de acompanhar de perto a evolução do caso. mantivera-se ao corrente dos
progressos que iam sendo feitos sempre que conversara com barbara ou a ouvira
falar com lynley. e quando ela lhe forneceu a informação sobre os tijolos e o mastro
mencionados na cassete de charlotte sentira-se transportado ao sétimo céu. ela
entregara-lhe de bandeja a «pista» de que ele precisava para que fosse ele a
descobrir o moinho. onde, indubitavelmente, fizera roçar o uniforme de charlotte
pelas grades de madeira antes de o dobrar e de o enfiar num dos sacos de trapos
da quermesse, durante uma das suas visitas aos matheson. É evidente que os
matheson nunca iriam tomar robin por um estranho que tivesse vindo rondar em
torno da igreja. era o noivo da filha deles, o verdadeiro amor da filha deles. o fato de
ser igualmente um assassino escapara-lhes.

a atenção de barbara concentrou-se no escort de robin. ia virar novamente, desta


vez para sul. o carro dele começou a escalar a encosta de uma colina. barbara tinha
a sensação nítida de que estavam a aproximar-se do alvo.

virou atrás dele, abrandando a marcha. não havia ali nada, tinham passado pela
última quinta há pelo menos três milhas atrás por isso era quase impossível perdê-lo
de vista. conseguia ver os faróis do carro dele oscilando na distância. continuou a
persegui-lo a uma distância regular.

o caminho estreitou-se para formar um trilho semeado de sulcos profundos deixados


pelas rodas de carros. para a esquerda elevava-se a colina, densamente povoada
de árvores. para a direita um vasto campo engolido pela escuridão, estava
delimitado por uma cerca feita de arame e postes. o trilho começou a descrever uma
curva em torno da encosta da colina e barbara abrandou ainda mais o andamento
do carro. então, cerca de noventa metros mais à frente, o carro de robin imobilizou-
se em frente a um portão com o gradeamento partido. este bloqueava a estrada e,
como barbara pôde observar, robin saiu do carro para abri-lo. conduziu o carro
através da entrada, fechou o portão atrás de si e seguiu caminho. o luar iluminava o
seu destino. outros noventa metros mais adiante ficavam as ruínas de um castelo.
podia distinguir a muralha degradada que o circundava e, no interior, o rendilhado
dos arbustos e das árvores que, iluminados pela lua, faziam lembrar a espuma das
ondas. por detrás da muralha elevava-se o que restava do castelo propriamente dito.
avistava duas torres redondas e respectivas ameias, em cada uma das
extremidades da muralha em ruínas e, a cerca de dezoito metros de uma das torres,
o telhado de um edifício. uma cozinha, uma casa de forno, um solar, ou uma casa
senhorial, talvez.

barbara manobrou o mini até à berma do trilho, junto ao lado de fora do portão.
desligou o carro e apeou-se, mantendo-se bem encostada ao lado esquerdo do
trilho, na zona onde se elevava a encosta coberta de árvores e arbustos frondosos.
uma tabuleta presa ao portão identificava o local como silbury huish castle. uma
segunda placa indicava que o monumento estava aberto ao público apenas no
primeiro sábado de cada mês. robin escolhera bem o local. a estrada de acesso era
suficientemente má para desencorajar a maioria dos turistas que pensassem em
deambular pelas redondezas, e mesmo que estes se aventurassem por estas
paragens remotas no dia errado seria pouco provável que corressem o risco de
penetrar em propriedade particular apenas para ter a oportunidade de admirar o que
parecia ser pouco mais do que uma ruína. havia muitas outras ruínas por esse
campo fora, e de acesso muito mais fácil do que esta.

lá à frente, o carro de robin parara perto da muralha exterior do castelo. os faróis


dianteiros projataram arcos brilhantes sobre as pedras durante alguns instantes. em
seguida foram desligados. quando se aproximou silenciosamente do portão com o
gradeamento partido, barbara viu a silhueta dele saindo do carro. dirigiu-se à mala
do veículo e remexeu no seu interior com algum ruído. tirou um objeto, que pousou
no chão com um ruído de metal embatendo numa superfície de pedra. segurava um
segundo objeto do qual jorrou um foco de luz brilhante. uma lanterna. usou-a para
iluminar o caminho ao longo da muralha. segundos depois deixou de ser visível.

barbara correu até à mala do seu carro. não podia arriscar-se a usar uma lanterna
um olhar de relance por cima do ombro bastaria para que ele percebesse que estava
a ser seguido e robin payne não hesitaria em livrar-se dela. no entanto, também não
estava disposta a aventurar-se no meio daquelas ruínas sem uma arma qualquer.
atirou, então, para o chão o conteúdo da mala do mini, amaldiçoando-se por fazer
dela há tanto tempo receptáculo de tudo o que se lembrava de armazenar. perdido
entre cobertores, um par de botas de borracha, revistas variadas e um fato de banho
com pelo menos dez anos encontrou um macaco e a respectiva barra de ferro.
escolheu esta última. avaliou o seu peso. bateu a extremidade curva na palma da
mão. teria de servir.

foi atrás de robin. dentro do carro, ele seguira ao longo do trilho que conduzia ao
castelo. a pé, não era necessário percorrer esse trilho, pelo que ela cortou caminho
por uma extensão de terreno descoberto. daí tinha-se um panorama que outrora
teria proporcionado aos habitantes do castelo um aviso visual de um ataque
iminente, fato que barbara não esqueceu enquanto se apressava a cobrir a distância
que a separava da construção. avançava rastejando, ciente de que o luar que
tornava os seus progressos menos difíceis também fazia com que ficasse visível
nem que fosse como sombra para quem quer que olhasse na sua direção.

movia-se com rapidez e facilidade e sem impedimentos quando a natureza se


atravessou no seu caminho. embateu num arbusto baixo tinha ar de ser um junípero
e desinquietou um ninho de pássaros, que esvoaçaram à sua frente. o bater de asas
fez ricochete e ressoou, pareceu-lhe, em cada uma das pedras que compunham as
muralhas do castelo.

barbara ficou petrificada. esperou, com o coração acelerado. por duas vezes contou
até sessenta. como tudo continuasse imóvel na direção em que robin seguira,
decidiu prosseguir.
chegou até junto do carro dele sem incidentes. espreitou para o interior à procura da
chave, rezando para que pudesse vê-la pendurada na ignição. não estava lá. bem,
isso seria pedir demais.

seguiu ao longo da curva da muralha do castelo, tal como ele fizera, desta vez
estugando o passo. desperdiçara o tempo que pretendia ganhar ao evitar o trilho.
precisava de compensar esse tempo perdido fosse como fosse. todavia, a incógnita
e o silêncio eram cruciais. À exceção da barra de ferro, a única arma que possuía
era o efeito surpresa.

depois de contornar a muralha chegou ao que restava da casa da guarda. a porta


que teria estado presa às pedras antigas desaparecera, deixando ficar apenas um
arco sobre o qual enxergou, sob a luz tênue, um escudo já deteriorado. deteve-se
numa reentrância criada pela parede meio-destruída da casa da guarda e apurou o
ouvido, tentando escutar qualquer som. os pássaros estavam de novo em silêncio.
uma brisa noturna fazia sussurrar as folhas presas nas árvores que cresciam no
interior das muralhas do castelo. não havia, porém, sinais de uma voz, passos ou do
roçar de roupas. e nada havia que se visse, exceto duas torres escarpadas que se
elevavam em direção ao céu.

nestas viam-se pequenas frestas oblongas através das quais o sol se teria
esgueirado para iluminar a escadaria de pedra em forma de espiral que existia no
interior das torres. estas frestas teriam permitido montar um sistema de defesa
colocando sentinelas que se precipitariam para cima, para o telhado em forma de
ameia. estas frestas teriam ainda deixado escapar uma luz tênue, se robin payne
tivesse escolhido uma das torres para manter prisioneiro leo luxford. contudo,
nenhuma luz jorrava através delas. sendo assim, robin tinha de estar algures dentro
do edifício cujo telhado, notou barbara, ficava a cerca de dezoito metros da torre
mais distante.

o edifício erguia-se perante os seus olhos como uma forma fantasmagórica


iluminada pela luz fraca. entre a estrutura com janelas de empena e a passagem em
forma de arco onde se encontrava, envolvida pelo que pareciam ser trevas
profundas, não tinha muito onde se esconder. mal se aventurasse a sair da casa da
guarda e avançasse para além dos limites impostos pelas árvores e arbustos que
cresciam junto à parede, apenas poderia contar com os montes de pedras dos
alicerces, dispersos aqui e ali, que assinalavam as zonas que, outrora, tinham
albergado a área habitável do castelo. barbara estudou os montes de pedras. o
primeiro grupo parecia estar a nove metros de distância, e aí o ângulo certo de uma
pedra oferecer-lhe-ia proteção.

tentou escutar sinais de movimento e outros sons. não se ouvia nada para além do
vento. correu até às pedras.

agora, nove metros mais perto do que restava da estrutura do castelo conseguia
avaliar o seu verdadeiro aspecto. discernia o arco das janelas ogivais de estilo
gótico, bem como um florão no cume do telhado cujos contornos se destacavam do
céu escuro. representava uma cruz. o edifício albergava a capela.

barbara colou os olhos às janelas ogivais, à espera de ver um fio de luz tremeluzir
no interior. ele levara uma lanterna. não era possível que estivesse a movimentar-se
no escuro e, dentro de momentos, denunciar-se-ia com certeza. no entanto, não viu
nada.

sentia a mão escorregadia no sítio onde segurava a barra de ferro. limpou-a nas
calças. examinou a extensão de terreno descoberto que tinha pela frente e correu
mais alguns metros até um segundo monte de pedras.

aí viu que em torno da capela tinha sido construído um muro mais baixo do que as
muralhas exteriores do castelo. uma pequena casa da guarda coberta por um
telhado de telhas, e em tudo igual à capela, servia de proteção à forma oblonga e
escura de uma porta de madeira. a porta estava fechada. uma distância de
aproximadamente treze metros distava entre o sítio onde se encontrava e a casa da
guarda da capela, e ao longo desses treze metros o único abrigo existente consistia
num banco de onde os turistas podiam admirar o pouco que restava da fortificação
medieval. barbara precipitou-se para este banco, e daí correu até à parede exterior
da capela.

avançou encostada a esta parede, agarrando firmemente na barra de ferro e quase


não se atrevendo a respirar. mantendo o corpo colado às pedras alcançou a casa da
guarda junto à capela. estacou, costas coladas à parede, e escutou. primeiro, o
vento. depois o som de um avião voando bem alto. e em seguida outro som. o de
metal roçando em pedra. o corpo de barbara estremeceu em resposta àquele som.

avançou gradualmente até ao portão. empurrou-o com a palma da mão. cedeu uma
polegada e depois outra. espreitou para o interior.

diretamente à sua frente viu a porta da capela, que estava fechada. além disso, as
janelas em ogiva que ficavam por cima continuavam tão negras e opacas como
momentos antes. no entanto, uma passagem empedrada contornava a parede
lateral da igreja, e quando passou o portão viu o primeiro clarão de luz vindo dessa
direção. e tornou a ouvir aquele som. metal sobre pedra.

um canteiro de herbáceas votado ao abandono crescia profusamente ao longo da


parede exterior que delimitava a área da capela, inundando o empedrado do
caminho com gravinha, ramos, folhas e flores. aqui e ali, a vegetação fora pisada e,
ao observar este pormenor, barbara estava disposta a apostar que quem a tinha
pisado não fora com certeza nenhum visitante do-primeiro-sábado-do-mês que
tivesse decidido pôr em risco a suspensão do seu carro e se tivesse aventurado por
estas paragens tão remotas.

deslizou ao longo da passagem que conduzia à capela propriamente dita. caminhou


de lado pelas pedras ásperas que formavam a parede exterior até alcançar a
esquina do edifício. parou. pôs-se à escuta. primeiro tornou a ouvir o vento,
elevando-se e baixando num movimento que ressoava através dos ramos das
árvores que cobriam a encosta da colina ali perto. em seguida, o metal sobre pedra,
desta vez com maior nitidez. depois, a voz. - bebes quando eu disser para beberes. -
era robin. só que não era aquele que ela ouvira antes. este não era o agente
inseguro e inexperiente com quem ela conversara durante os últimos dias. esta era a
voz de um bandido e assassino. - estamos entendidos?
e depois a voz da criança, aguda e assustada.

- mas não sabe bem. sabe a...

- não me interessa a que é que sabe. vais fazer o que te estou a dizer e vais bebê-
lo, e ou bebes de boa vontade ou então vou ter de te empurrar isso pela garganta
abaixo. entendido? gostaste, quando te empurrei isto pela garganta abaixo da última
vez?

a criança não respondeu. barbara avançou alguns milímetros. arriscou uma


espreitadela para além da esquina da capela e viu que a passagem ia dar a uns
degraus de pedra. estes continuavam em sentido descendente passando através de
um arco aberto na parede da capela. pareciam conduzir a um subterrâneo com teto
abobadado. a luz vinda do interior alumiava os degraus. uma claridade demasiado
intensa para uma lanterna, apercebeu-se barbara. ele deve ter trazido também o
candeeiro a gaz. tinha-o com ele no dia em que tinham ido ao moinho. deve ter sido
isso que ele tirou da mala do carro.

fletiu os dedos em torno da barra de ferro. avançou devagar ao longo da parede da


capela.

- bebe, raios te partam - dizia robin.

- quero ir para casa.

- estou-me nas tintas para o que tu queres. agora, bebe isto...

- isso dói! o meu braço! - gritou o rapaz.

seguiu-se um arrastar de pés agitado. um golpe. robin grunhiu. depois, a sua voz
ríspida soou de novo: - meu patifezinho. quando te digo para beberes... - e o som de
um corpo agredindo outro corpo, num golpe violento.

leo gritou. outro golpe. robin tencionava matá-lo. ou obrigá-lo-ia a ingerir a droga,
esperando depois alguns minutos até que esta surtisse efeito e o garoto ficasse
inconsciente antes de o afogar como fizera com charlotte, ou recorreria à violência
para acabar com ele. fosse como fosse, leo ia morrer.

barbara caminhou rapidamente na direção da luz. tinha o fator surpresa a seu favor,
disse para si própria. tinha a barra de ferro. tinha o fator surpresa. correu degraus
abaixo com um grito agudo e precipitou-se violentamente para o subterrâneo. deitou
abaixo a porta de madeira, que se esmagou contra o chão de pedra. robin segurava
a cabeça loira de um rapaz na curva do braço e, com a mão, pressionava uma
chávena de plástico de encontro aos lábios do garoto. compreendeu de imediato o
que ele estava a planejar fazer desta vez.

o subterrâneo abobadado era uma antiga cripta. seis caixões de chumbo ocupavam
uma vala aberta no chão. nesta vala havia um reservatório de água cheia de algas
de onde se libertava um odor fétido a excrementos humanos e a doença. seria essa
a água encontrada no corpo de leo. desta vez não haveria água canalizada, mas sim
algo infinitamente mais desafiante, para entretenimento do patologista.

- solta-o! - gritou barbara. - disse-te que o soltasses!

robin obedeceu. empurrou o rapaz para o chão. todavia, não recuou nem ficou
amedrontado com o fato de ela ter descoberto que era ele o assassino. em vez
disso, avançou na direção dela.

barbara brandiu a barra de ferro. esta atingiu-o no ombro. ele pestanejou, mas
continuou a avançar. ela tornou a agitar a barra de ferro. a mão dele surgiu
disparada e apropriou-se dela. arrancou-a da mão dela e atirou-a para o lado,
fazendo-a deslizar ao longo do chão de pedra. embateu num dos caixões e caiu na
vala com um som característico. robin sorriu ao ouvi-lo. deu um passo em frente.

barbara gritou: - leo! foge!, - mas a criança parecia hipnotizada. agachou-se junto do
caixão onde a barra de ferro tinha embatido. observava-os através dos espaços
entre os dedos. gritou: - não! não faça isso!

robin foi rápido. encostou-a à parede antes que ela pudesse ter percebido o que lhe
estava a suceder. atingiu-a com dois socos, um no estômago para a impelir na
direção das pedras, e outro nos rins, quando a apanhou inclinada para a frente.
sentiu o calor espalhar-se dentro dela e agarrou o cabelo dele com os dedos. torceu-
o com força e puxou a cabeça dele para trás. procurou chegar-lhe aos olhos com os
polegares. ele reagiu com um movimento instintivo. ela soltou-o e ele atingiu-a no
rosto com um soco.

ouviu o nariz partir-se. sentiu a dor que se espalhava por todo o rosto, como se
fosse uma pá em fogo. caiu para o lado, mas agarrou-se a ele e arrastou-o consigo
na queda. chocaram ambos com o chão de pedra.

ela saltou para cima dele. o sangue jorrava do seu nariz e caía sobre o rosto dele.
imobilizou a cabeça dele entre as duas mãos. ergueu-a. bateu com ela no pavimento
empedrado. atingiu-o na maçã de adão, nos ouvidos, na face, nos olhos.

- leo! sai daqui! - gritou.

as mãos de robin alcançaram a garganta dela. ele agitava-se violentamente debaixo


dela. através da neblina que lhe cobria os olhos viu leo mover-se. mas o garoto
recuava. não corria em direção à porta. esgueirava-se entre os caixões como se
quisesse esconder-se.

- leo! sai daqui!

soltando um gemido, robin afastou-a de cima de si. agitou as pernas selvaticamente


quando o seu corpo embateu no chão. sentiu o pé agredi-lo no queixo e quando ele
recuou pôs-se de pé de um salto.

passou a mão pelo rosto. ficou manchada de vermelho. gritou chamando por leo. viu
a cor dos cabelos dele um brilho luminoso contrastando com o chumbo sombrio dos
caixões e depois robin tornou a ficar de pé.

- raios... diabo... - murmurou de cabeça baixa. atirou-a contra a parede. grunhiu.


desferiu-lhe uma série de golpes violentos no rosto.

uma arma, pensou barbara. precisava de uma arma. não tinha nada. e se não tinha
nada, estavam perdidos. ela estava perdida. leo estava perdido. porque ele iria
matá-los. ele iria matá-los, porque ela falhara. falhara. falhar. esse pensamento...

afastou-o, enfiando desesperadamente o ombro no peito dele. ele tornou a empurrá-


la, mas ela impediu esse movimento enlaçando-o pela cintura com os dois braços.
fez pressão sobre os pés para ganhar balanço e no momento em que o peso dele se
atenuou elevou o joelho, procurando atingi-lo na virilha. falhou o alvo e ele
aproveitou para ficar em vantagem. atirou-a de novo de encontro à parede. agarrou-
a pelo pescoço. empurrou-a para o chão.

colocou-se em cima dela, olhando para a esquerda e para a direita. procurava uma
arma. viu-a ao mesmo tempo que ele. o candeeiro.

agarrou-o pelas pernas quando ele se esticou para agarrar o candeeiro. ele agrediu-
a no rosto com um pontapé, mas ela tornou a puxá-lo para trás. quando ele caiu no
chão, trepou para cima dele, embora soubesse que as suas forças estavam quase
esgotadas. apertou-lhe a garganta. prendeu as pernas dele entre as suas. se
conseguisse mantê-lo naquela posição, se o garoto conseguisse escapar, se tivesse
presença de espírito suficiente para correr na direção do arvoredo...

- leo! - gritou. - corre! esconde-te!

julgou vê-lo mover-se nos limites do seu campo visual. mas havia alguma coisa nele
que não estava certo. o cabelo não brilhava o suficiente. o seu rosto tornara-se
macabro, os membros pareciam inertes.

estava aterrorizado. era apenas um garoto. não compreendia o que se passava. mas
se ela não conseguisse dar-lhe a entender que tinha de sair dali, sair dali depressa,
sair dali agora, então...

- vai! - gritou. - vai!

sentiu robin elevar-se. pernas, braços e peito. com um assomo de força voltou a
atirá-la para o lado. desta vez, porém, ela não conseguiu pôr-se de pé. ele ficou por
cima dela, tal como ela se colocara em cima dele segundos antes. fazendo pressão
com o braço sobre a garganta dela, pernas entrelaçadas nas suas, respiração
quente diretamente sobre o seu rosto.

ele vai... com um movimento feroz recobrou o fôlego. pagar. ele vai.

aumentou a pressão. esmagou-a ainda mais sob o peso do seu corpo. barbara viu
um zumbido branco e desfocado à sua volta. e a última coisa que conseguiu ver foi o
sorriso de robin. era o olhar de um homem a quem, finalmente, estava sendo feita
justiça.
lynley observou corinne payne levar a chávena aos lábios. os seus olhos reflectiam
um brilho ébrio e os seus gestos eram lentos e sem energia.

- mais café - pediu a nkata num tom de voz sinistro. - simples, desta vez. e mais
forte. um duplo, ou um triplo, se conseguires.

- um duche frio faz o mesmo efeito - respondeu nkata, em tom cauteloso. prosseguiu
o seu raciocínio, como se pretendesse refutar o argumento que lynley não se deu ao
trabalho de apresentar: - não tinham nenhum agente do sexo feminino com eles. não
podiam ser eles a despir a mulher. não seria preciso despi-la, não é verdade?
podíamos dar-lhe um bom banho, nada mais.

- vai tratar do café, winston.

corinne murmurou: - fofo? - e deixou descair a cabeça para a frente. lynley sacudiu-a
pelos ombros. afastou a cadeira para trás e pô-la de pé. obrigou-a a caminhar pela
sala de jantar, mas as pernas dela tinham tanta força como fios de espaguete
cozinhado. era-lhes tão útil quanto um utensílio de cozinha.

- diabos a levem, mulher. acorde. agora, - resmungou e, quando ela tropeçou nele
compreendeu o quanto desejava chocalhá-la e fazê-la falar. o que, por sua vez, o
fazia perceber como a sua ansiedade crescera nos trinta minutos que se tinham
escoado desde que tinham chegado a lark’s haven.

o plano devia ter sido executado sem quaisquer falhas. partida da yard, viagem de
carro até wiltshire, uma comparação do registro policial das impressões digitais do
agente payne com as impressões digitais encontradas no gravador e na casa
abandonada. em seguida, seria montado um posto de vigilância, para que quando
payne fosse buscar o filho de luxford na manhã seguinte o que certamente faria
quando visse que o the source não incluía a história que ele queria ver publicada
pudessem segui-lo sem problemas, prendê-lo e devolver a criança aos pais, em
londres. tudo se tinha complicado no departamento de investigação criminal de
amesford. não conseguiram descobrir um oficial que pudesse comparar as
impressões digitais por nenhum dinheiro do mundo, e quando finalmente
conseguiram localizar a criatura responsável, esta demorara mais de uma hora a
apresentar-se na esquadra. durante esse tempo, lynley envolvera-se num combate
verbal com o sargento-detetive reg stanley, cuja reação à hipótese de que um dos
seus detetives pudesse estar por detrás de dois raptos e de um homicídio foi, - isso
é um disparate total. quem são vocês, afinal? veem da parte de quem?, -
acompanhado de um resmoneio de escárnio quando percebeu que trabalhavam com
o sargento da scotland yard que, aparentemente, se tornara a sua bete noire. a
palavra cooperação não parecia ocupar os lugares cimeiros na lista dos seus
atributos pessoais, válida nos seus melhores dias. neste, em particular o seu pior dia
de sempre, parecia ter-se esfumado por completo.

depois de terem obtido a confirmação que pretendiam o que demorou o tempo


necessário para que o oficial de impressões digitais pusesse os óculos, acendesse
um candeeiro com uma lâmpada de alta voltagem, pegasse na lupa, a segurasse
por cima dos cartões onde estavam as impressões digitais e dissesse, -
circunvoluções duplas. uma brincadeira de crianças. são iguais. fizeram-me vir até
aqui, obrigaram-me a sair a meio de um jogo de póquer para isto? - uma equipe de
vigilância foi rapidamente constituída. houve algum burburinho entre os agentes
quando se tornou óbvia a identidade do objeto da operação de vigilância, mas foi
disponibilizada uma carrinha, o contato via rádio foi estabelecido e as posições
definidas. foi só quando receberam a primeira mensagem informando que não havia
sinal, nem do carro do suspeito nem da viatura do sargento da scotland yard, que
lynley e nkata se dirigiram para lark’s haven.

- ela foi atrás dele para qualquer lado - lynley disse a nkata quando, noite dentro,
seguiam velozmente para norte, na direção de wootton cross. - ele estava com ela
quando falamos ao telefone. deve ter lido a verdade no rosto dela. havers não é
nenhuma atriz. ele resolveu agir.

- talvez ele tenha saído para ir ver a namorada - observou nkata.

- não creio.

o nervosismo de lynley intensificou-se quando chegaram à casa de burbage road.


estava completamente às escuras o que sugeria que todos os seus habitantes
dormiam e a porta das traseiras não só não estava trancada como estava aberta.
além disso, uma marca de pneus bem funda no canteiro que bordejava a alameda
de acesso indicava que alguém saíra à pressa.

o rádio de lynley deu sinal no momento em que ele e nkata se dirigiam à porta das
traseiras.

- quer cobertura, inspetor? - perguntou uma voz a partir da carrinha estacionada na


estrada alguns metros mais abaixo.

- mantenham as posições - lynley disse ao oficial. - há qualquer coisa que parece


não estar bem. vamos dar uma espreitadela no interior.

a porta das traseiras dava para uma cozinha. lynley ligou as luzes. tudo parecia
estar em ordem, o mesmo acontecendo na sala de jantar e na sala de estar
contígua.

no primeiro andar encontraram o quarto onde havers estava alojada. a velha


sweatshirt com o motivo de são jorge e o dragão pendia molemente, suspensa pela
etiqueta num gancho preso à porta. a cama estava em desordem embora apenas a
colcha e os cobertores estivessem amarrotados, ao contrário dos lençóis que
permaneciam intatos. isto queria dizer que, ou ela fizera uma sesta, o que era muito
pouco provável, ou fingira estar a dormir, o que estava mais em consonância com as
instruções que recebera no sentido de continuar a agir como de costume. o saco a
tiracolo disforme estava em cima da cômoda, mas as chaves do carro dela tinham
desaparecido. - ela deve ter ouvido payne sair de casa, pensou lynley. deve ter
agarrado nas chaves e ido no encalço dele.

a idéia de que havers pudesse estar em vias de seguir sozinha a pista de um


assassino fez com que lynley caminhasse até à janela do quarto. afastou as cortinas
e perscrutou a noite, como se as estrelas e a lua pudessem indicar-lhe qual a
direção que ela e robin payne tinham tomado. diabos levassem aquela mulher
enfurecedora, pensou lynley. em que raio estaria ela a pensar, para decidir ir atrás
dele sozinha? se ela morresse...

- inspetor lynley?

lynley virou-se. nkata estava à entrada do quarto.

- o que é?

- há uma mulher num dos outros quartos de dormir. está inconsciente que nem uma
pedra. parece ter sido drogada.

e assim se explicava que agora estivessem a enfiar chávenas de café pela garganta
abaixo de corinne payne, enquanto ela murmurava, chamando alternadamente, pelo
seu «fofo» ou por sam.

- quem diabo poderá ser este sam, se é que existe mesmo? - quis saber nkata.

lynley não se importava. queria apenas pôr a mulher a falar de forma coerente. e
quando nkata entrou na sala de jantar trazendo mais um bule de café, sentou
corinne à mesa e começou a tentar fazer com que ela o entendesse.

- precisamos de saber onde está o seu filho - disse lynley. - sra. payne, consegue
ouvir-me? robin não está aqui. sabe para onde é que ele foi?

desta vez, os olhos dela deram mostras de quererem focar-se, graças ao efeito que
a cafeína começava finalmente a surtir no seu cérebro. fitaram primeiro lynley e
depois nkata, dilatando-se aterrorizados ao contemplar o rosto deste último.

- somos agentes da polícia - lynley disse antes que ela pudesse soltar qualquer grito
perante a visão de um negro desconhecido e por isso intrinsecamente ameaçador ali
mesmo, na sua sala de jantar antiga. - estamos à procura do seu filho.

- robbie é polícia - respondeu-lhes. depois pareceu entender o significado exato de


estamos à procura do seu filho. - onde está robbie? - perguntou ela. - o que é que
aconteceu com robbie?

- precisamos de falar com ele - disse-lhe lynley. - pode ajudar-nos, sra. payne. pode
dar-nos uma idéia do sítio onde ele poderá estar?

- falar com ele? - a voz dela elevou-se ligeiramente. - falar com ele, porquê? É noite.
ele está deitado. É um bom rapaz. sempre foi muito bom para a sua mamãe. ele...

lynley colocou uma mão tranquilizadora sobre o ombro dela. ela tinha uma
respiração irregular.

- asma - disse ela. - por vezes perco o fôlego.


- toma algum remédio para isso?

- um inalador. no quarto.

nkata foi buscá-lo. ela bombeou vigorosamente e pareceu ficar melhor. a


combinação do café com o remédio para a asma fê-la recobrar por completo os
sentidos. pestanejou várias vezes como se estivesse plenamente acordada.

- o que é que desejam do meu filho?

- ele raptou duas crianças em londres. trouxe-as para o campo, uma delas está
morta. a outra pode muito bem estar viva. temos de o encontrar, sra. payne. temos
de encontrar esta criança.

ela parecia completamente aturdida. a mão fechou-se sobre o inalador e lynley


pensou que iria usá-lo de novo. em vez disso, porém, fitava-o. o rosto dela era um
tratado sobre a incompreensão absoluta.

- crianças? - disse. - o meu robbie? os senhores estão doidos.

- receio bem que não.

- ora, ele não iria fazer mal a crianças. isso nem lhe passaria pela cabeça. ele gosta
delas. ele tenciona ter filhos dele. tenciona casar com célia matheson ainda este ano
e ter um rancho de filhos - aconchegou ainda mais o roupão de encontro a si, como
se de repente tivesse ficado com frio, e continuou, num tom de voz sussurrante e
indignado: - estão a tentar dizer-me, estão realmente a sugerir que, que o meu
robbie é um tarado? o meu robbie? o meu filho? o meu próprio filho, que não se
atreve a tocar na sua pilinha sem que eu própria tenha que a pôr nas mãos dele?

as suas últimas palavras ressoaram entre eles durante alguns instantes. lynley viu
nkata erguer as sobrancelhas, interessado. a pergunta formulada pela mulher
remetia para águas turvas, senão profundas, mas não havia tempo agora para retirar
ilações. lynley prosseguiu.

- as crianças que ele raptou são filhas do mesmo pai. o seu filho parece ter um
ressentimento qualquer contra esse homem.

a mulher parecia ainda mais perplexa do que antes, se é que isso era possível.

- quem? que pai? - perguntou.

- um homem chamado dennis luxford. existe alguma relação entre robin e dennis
luxford?

- quem?

- dennis luxford. É editor de um tablóide chamado the source. frequentou uma escola
que fica nesta zona, baverstock, há cerca de trinta anos atrás. a primeira criança que
o seu filho raptou era a filha ilegítima de luxford. Â segunda é o seu filho legítimo.
aparentemente, robin acredita que existe uma terceira criança, uma criança mais
velha do que as outras duas. ele quer que dennis luxford diga o nome dessa criança
no jornal. se luxford não o fizer, a segunda criança que ele raptou morrerá.

uma mudança lenta foi-se operando nela à medida que lynley ia falando. cada frase
que ele dizia parecia obscurecer ainda mais a expressão do seu rosto. por fim,
deixou cair a mão sobre o colo.

- editor de um jornal, disse o senhor? em londres? - perguntou num fio de voz.

- sim. o nome dele é dennis luxford.

- meu deus.

- o quê?

- não pensei... - disse ela. - não era para ele acreditar realmente...

- em quê?

- foi há tanto tempo.

- o quê?

- meu deus - a mulher limitou-se a dizer.

a tensão que dominava os nervos de lynley subiu mais um pouco.

- se nos pode dizer alguma coisa que nos possa conduzir ao seu filho sugiro-lhe que
o faça, e que o faça agora. uma vida já foi ceifada. duas outras estão em jogo. não
temos tempo a perder e menos ainda para refletir. agora...

- eu não sabia de fato que tinha sido - falava, olhando para a toalha da mesa, sem
fitar nenhum dos dois homens. - como é que eu ia saber? mas tive de lhe dizer
qualquer coisa. porque ele não parava de insistir... não parava de perguntar e de
perguntar. não me dava descanso - pareceu retrair-se.

- isto não nos leva a lado nenhum, meu - notou nkata.

- descobre o quarto dele - disse lynley. podemos encontrar alguma coisa que nos
diga para onde ele terá ido.

- mas não temos...

- para o diabo com o mandato de busca, winston. havers está algures lá fora. pode
estar em apuros. e não faço tenções de ficar aqui sentado à espera que...

- certo. vou procurar - nkata dirigiu-se para as escadas. lynley ouviu o agente
percorrer em passo brusco o corredor do andar superior. portas abriam-se e
fechavam-se. depois o som de gavetas e de portas de um armário sendo puxadas
para a frente e para trás, misturadas com a incessante algaraviada de corinne
payne.

- nunca pensei - dizia ela. - pareceu-me tão simples quando o vi no jornal... quando
li... quando dizia baverstock... de todos os lugares possíveis, logo havia de ser
baverstock... e ele podia ter sido um deles. podia muito bem ter sido, de fato. porque
eu não sabia os nomes deles, sabe. nunca perguntei. eles limitavam-se a vir até à
câmara frigorífica. segundas e quartas... rapazes bonitos, para dizer a verdade...

lynley queria sacudi-la até se lhe soltarem os dentes. falava sem sentido, enquanto o
tempo se escoava.

- winston! - gritou. - há alguma coisa aí em cima?

nkata desceu as escadas ruidosamente. trazia com ele alguns recortes de jornal. a
sua expressão era grave. entregou os recortes a lynley, dizendo:

- isto estava dentro de uma gaveta, no quarto dele.

lynley olhou para os recortes. eram da revista do sunday times. espalhou-os sobre a
mesa, mas não precisou de ler o que diziam. era o mesmo artigo que nkata lhe
mostrara no início da semana. leu o título pela segunda vez: «como remodelar um
tablóide.» o seu conteúdo constituía uma biografia resumida de dennis christopher
luxford, biografia acompanhada por fotografias brilhantes e lustrosas de luxford, da
mulher e do filho de ambos.

corinne aproximou-se e traçou com um gesto frágil os contornos do rosto de dennis


luxford.

- dizia baverstock - disse ela. - dizia que ele tinha andado em baverstock. e robbie
queria saber... o pai dele... há anos que faz essa pergunta... disse que tinha esse
direito...

lynley compreendeu finalmente.

- a senhora disse ao seu filho que dennis luxford era o pai dele? É isso que quer
dizer?

- ele disse que eu lhe devia a verdade, já que me ia casar. estava a dever-lhe o
nome do seu verdadeiro pai. mas eu não sabia, está a perceber? porque tinham sido
tantos. e não podia dizer-lhe isso, pois não? não podia. como é que podia fazer uma
coisa semelhante? por isso disse-lhe que tinha havido um. uma vez. uma noite. eu
não queria fazê-lo, disse-lhe eu, mas ele era mais forte do que eu, por isso tive de
deixar. fui obrigada a isso, se não ele fazia-me mal

- violação? - perguntou nkata.

- nunca pensei que robbie fosse... disse-lhe que tinha sido há muito tempo. disse
que não tinha importância. disse-lhe que era ele que era importante agora. o meu
filho. Ò meu amorzinho. era só ele que interessava.

- disse-lhe que dennis luxford a tinha violado? - esclareceu lynley. - a senhora disse
ao seu filho que dennis luxford a tinha violado quando eram ambos adolescentes.

- o nome dele vinha no jornal - murmurou ela. - dizia baverstock também. não
imaginei... deus tenha misericórdia. não me estou a sentir lá muito bem.

lynley afastou-se da mesa. permanecera de pé ao lado dela, mas agora precisava


de distância. estava incrédulo. uma garota tinha morrido e duas outras vidas
estavam agora em jogo, porque esta mulher, esta mulher absolutamente repugnante
não quisera que o filho soubesse que a identidade do seu pai era um completo
mistério para ela. escolhera um nome ao acaso, tirara-o de dentro de uma cartola.
vira a palavra baverstock num artigo de revista e usara essa palavra para condenar
à morte uma criança de dez anos de idade. santo deus. era de loucos. precisava
respirar um pouco de ar. precisava de se lançar à estrada. precisava de encontrar
havers antes que payne se cruzasse no caminho dela.

lynley virou para a cozinha, para a porta, decidido a escapar. ao fazê-lo, o seu rádio
deu sinal de vida.

- vem aí um carro, inspetor. devagar. de oeste.

- apaga as luzes - ordenou lynley. nkata agiu com rapidez e desligou-as.

- inspetor? - rugiu o rádio.

- fiquem onde estão.

À mesa, corinne mexeu-se e disse:

- robbie? É robbie?

- leva-a para cima - disse lynley.

- não quero... - começou ela.

- winston.

nkata moveu-se na direção dela. ajudou-a a levantar-se.

- por aqui, sra. payne.

ela agarrou-se com força à cadeira.

- não lhe façam mal - disse. - É o meu menino. não lhe façam mal. por favor.

- leva-a daqui para fora.

enquanto nkata guiava corinne escadas acima, os faróis de um carro iluminaram a


sala de jantar. um motor rugiu, tornando-se mais ensurdecedor à medida que o carro
se aproximava da casa. em seguida, o barulho cessou com um soluço. lynley
esgueirou-se até à janela e afastou a cortina que tapava a vidraça.

o carro tinha estacionado fora dos limites do seu campo de visão, para os lados das
traseiras da casa, onde a porta da cozinha continuava aberta. lynley contornou
rapidamente a mesa dirigindo-se para lá. tirou o som do rádio. tentou escutar o som
de movimentos no exterior.

a porta de um carro abriu-se. alguns segundos escoaram-se. então distinguiu o som


de passos pesados aproximando-se da casa.

rápido, lynley caminhou até à porta que separava a cozinha da sala de jantar. ouviu
um clamor fundo e gutural um som que parecia estar a ser selvaticamente abafado
vindo de muito perto do lado de fora da casa. esperou no escuro com a mão sobre o
interruptor da luz. quando viu a sombra nos degraus ligou o interruptor e inundou a
divisão de luz.

- cristo! - exclamou. gritou por nkata enquanto o sargento havers deixava descair o
corpo, apoiando-o na porta.

trazia uma criança nos braços. tinha os olhos inchados e o rosto era uma amálgama
de golpes, feridas e sangue. mais sangue, ainda, ensopava a parte da frente da
camisola suja. manchava-lhe também as calças, das ancas aos joelhos. olhou de
soslaio para lynley virando para ele o rosto magoado.

- safa - disse através dos lábios inchados. um dos dentes estava partido. - vocês
demoraram a chegar.

nkata entrou de rompante na cozinha. estacou ao ver havers, murmurando, atônito:

- jesus.

- chama uma ambulância - disse-lhe lynley por cima do ombro e, virando-se para
havers: - o garoto?

- está a dormir.

- ele tem um aspecto terrível. vocês dois têm um aspecto terrível. - ela sorriu e
depois piscou o olho.

- ele andou a nadar numa vala à procura da minha barra de ferro. deu uma
marretada valente em payne. quatro, para ser mais exata. É um valentão. embora
provavelmente precise de ser vacinado contra o tétano depois de ter saltado para
dentro daquela água. estava nojenta. um autêntico viveiro para todo o tipo de
doenças conhecidas do homem. ficava numa cripta. havia caixões, está a ver. um
castelo. eu sei que devia ter ficado à espera, mas quando ele arrancou e não vi
ninguém segui-lo, pensei que seria melhor...

- havers - lynley interrompeu-a. - bom trabalho. - avançou até ela e tomou a criança
nos braços. leo mexeu-se, mas não acordou. havers tinha razão. o rapaz estava
coberto de tudo, desde algas a fuligem. os ouvidos pareciam uma plantação de lodo.
as palmas das mãos estavam negras. o cabelo louro parecia verde. todavia, estava
vivo. lynley entregou-o a nkata.

- telefona aos pais disse. dá-lhes a notícia. - nkata saiu da cozinha.

lynley virou-se para havers. continuava encostada à porta, sem se mexer.


gentilmente, afastou-a dali, tirou-a da luz e levou-a para a sala de jantar onde ainda
estava escuro. sentou-a.

- ele partiu-me o nariz - murmurou ela. - e não sei que mais. tenho uma forte dor no
peito. acho que são algumas costelas.

- lamento muito - disse lynley. - cristo, barbara, lamento muito.

- leo apanhou-o - disse ela. - chegou-lhe como deve ser. - lynley baixou-se em frente
dela. tirou o lenço para fora e passou-o delicadamente pelo rosto. ensopou o
sangue. este, no entanto, continuava a jorrar. onde estaria a maldita ambulância,
perguntou a si próprio.

- É claro que eu sabia que ele não estava de fato interessado em mim - disse ela. -
mas alinhei no jogo. pareceu-me que era a atitude certa.

- e foi - disse lynley. - foi a atitude certa. você agiu da maneira correta.

- e no fim dei-lhe o mesmo tratamento que ele costumava aplicar.

- como? - perguntou lynley. sorriu e fez uma careta de dor.

- tranquei-o na cripta. decidi ver se ele iria gostar de ficar fechado no escuro por uma
vez. o sacana.

- sim - disse lynley. - É isso que ele é.

recusou-se a deixar-se conduzir até ao hospital até ter a certeza de que eles
saberiam onde encontrá-lo. nem sequer permitiu que os paramédicos lhe
prestassem os primeiros socorros antes que tivesse desenhado um mapa para servir
de orientação a lynley. curvou-se sobre a mesa e manchou de sangue o tecido laura
ashley que a cobria. desenhou então o mapa, vendo-se forçada a guiar o lápis com
a ajuda das duas mãos.

a determinada altura tossiu e uma golfada de sangue saiu-lhe da boca. lynley tirou-
lhe o lápis das mãos e disse:

- estou a ver onde é. irei buscá-lo. você precisa de ir já para o hospital.

- mas quero estar lá para acompanhar tudo até ao fim - disse irracionalmente.

- já fez o que devia - disse ele.


- e agora?

- agora tira umas férias - apertou-lhe um dos ombros. - e são mais do que
merecidas.

a sua expressão consternada apanhou-o completamente de surpresa.

- mas o que... - começou, interrompendo-se como se receasse desatar a chorar se


continuasse a falar.

ele tentou imaginar ao que ela se estaria a referir. que seria? depois compreendeu,
quando ouviu movimento nas suas costas e winston nkata se juntou a eles de novo.

- já falei com os pais - disse-lhes. - vêm a caminho. como é que se sente, sargento?

os olhos de havers estavam fixos no agente alto.

- barbara, nada mudou - disse lynley. - você vai para o hospital.

- mas, e se surge algum caso...

- haverá outras pessoas para se ocuparem dele. helen e eu casamo-nos durante o


fim-de-semana. eu também não vou estar na yard.

- casar? - ela sorriu.

- finalmente. já não era sem tempo.

- macacos me mordam - disse ela. - devíamos celebrar isso com um copo.

- e havemos de o fazer - disse ele. - mas não esta noite.

lynley encontrou robin payne onde o sargento havers dissera que o tinha deixado: na
macabra cripta que ficava por baixo da capela, dentro dos limites de silbury huish
castle. estava agachado no canto mais afastado dos sinistros caixões de chumbo,
cobrindo a cabeça com as mãos. quando o agente nkata fez incidir o foco da sua
lanterna sobre o polícia, payne ergueu o rosto para a luz, e lynley sentiu uma breve
e atávica satisfação ao contemplar os seus ferimentos. havers e leo tinham dado na
mesma medida em que tinham recebido. as faces e a testa de payne apresentavam
equimoses extensas, para além de arranhões e cortes vários. o seu cabelo estava
coberto de sangue. um dos olhos estava fechado, de tão inchado que estava.

- payne? - perguntou lynley.

o agente reagiu agitando-se num estremecimento, esfregando a parte de trás do


punho na boca e dizendo:

- tirem-me daqui para fora. uns patifórios quaisquer fecharam-me aqui dentro.
fizeram-me sinais para parar na estrada lá em baixo e...
- sou o colega do sargento havers - interrompeu-o lynley.

isso foi o suficiente para silenciar o jovem. os hipotéticos vândalos uma desculpa
muito conveniente e que se encaixaria bem na história que ele estivera a arquitetar
desde que havers o abandonara naquele lugar pareceram desaparecer dos seus
pensamentos sem deixar rasto. aproximou-se mais da parede da cripta e, momentos
depois, disse com um tom de voz surpreendentemente firme, tendo em conta as
circunstâncias em que se encontrava:

- onde está a minha mãe, então? tenho de falar com ela.

lynley pediu a nkata que lesse a ordem de prisão a payne e solicitou a outros dos
agentes do departamento de amesford que pedisse um médico via rádio, que
deveria encontrar-se com eles na esquadra. enquanto nkata cumpria o que lhe fora
pedido e o outro agente saía para pedir assistência médica, lynley observava o
agente responsável pela morte, ruína e desespero que se tinham abatido sobre as
vidas de um grupo de pessoas que ele nem sequer conhecia.

apesar das feridas de payne. lynley conseguia ainda discernir a inocência juvenil e
espúria do seu rosto. era uma inocência superficial que, combinada com um disfarce
que nenhum observador inteligente poderia ter entendido como sendo um disfarce,
lhe trouxera grandes vantagens. vestido com o uniforme que usara quando ainda era
polícia, antes de entrar para o departamento de investigação criminal de amesford,
teria expulso jack beard de cross keys close, em marylebone, sem que ninguém que
o tivesse visto e tivesse assistido à cena com o vagabundo tivesse motivos para
pensar que ele poderia ser outra pessoa que não aquela que aparentava ser: não
um raptor que estivesse a desimpedir o local antes de atrair a sua vítima, mas em
vez disso um polícia cumprindo a sua ronda. vestido com o mesmo uniforme e com
aquele rosto inocente resplandecendo de boas intenções teria convencido charlotte
bowen e, mais tarde, leo luxford a acompanhá-lo. saberia com certeza que as mães
previnem os filhos desde o berço para que não falem com estranhos. no entanto,
também sabia que as crianças são ensinadas a confiar na polícia. e robin payne
tinha um rosto talhado para inspirar confiança. lynley via-o sob as feridas.

era também um rosto inteligente, e tinha sido necessária uma grande dose de
inteligência para planejar e executar os crimes que payne cometera. a inteligência
ter-lhe-ia dito para utilizar a casa abandonada de george street enquanto estivesse
em londres, para que assim pudesse entrar e sair sem problemas enquanto
estudava os percursos das suas vítimas quer vestido como o uniforme de agente da
polícia quer vestido à civil sem ter de correr o risco de ser visto por um recepcionista
de hotel que, mais tarde, pudesse relacioná-lo, ainda que de forma remota, com o
rapto de duas crianças e o assassínio de uma delas. e fora essa mesma inteligência,
combinada com a sua experiência profissional, que o levara a colocar provas falsas
que lançariam a polícia na pista de dennis luxford. porque de uma forma ou de outra
ele tinha intenção de aplicar uma forma de justiça sobre dennis luxford. era óbvio
que o homem que ele julgava ser seu pai estava no centro de tudo o que payne
fizera.

o horror de tudo isto era que, ao pretender atingir luxford atingira também um
fantasma nascido de uma mentira. e era este conhecimento que arranhava a porta
das intenções de lynley neste preciso momento, em que ele se confrontava com o
assassino.

raptor. homicida. durante o trajeto até ao castelo, lynley planejara o primeiro


encontro entre ambos: como iria levantá-lo com um puxão, a forma violenta como
ordenaria que fosse lida a ordem de prisão, a forma como prenderia as algemas e o
empurraria para a noite escura. assassinos de crianças valiam menos do que lama.
e mereciam ser tratados como tal. e o tom de voz de robin payne ao pedir para falar
com a mãe tão firme e seguro, tão isento de remorso não parecia outra coisa senão
a ilustração da sua verdadeira malevolência. todavia, ao observar o homem mais
novo e ao colocar esta observação à luz do que ficara a saber sobre os seus
antecedentes, lynley sentia apenas uma tremenda sensação de derrota.

o abismo entre a verdade e aquilo que robin payne acreditava ser a verdade era
pura e simplesmente demasiado amplo para que pudesse ser anulado pela raiva e
pela afronta que lynley sentia, não obstante a segurança com que o agente tinha
feito o seu pedido. as palavras de corinne payne ecoavam ainda no cérebro de
lynley, enquanto nkata juntava as mãos do outro polícia atrás das costas e lhe
prendia os pulsos com as algemas: «não lhe façam mal. por favor. É o meu
menino.» e ao ouvir estas palavras lynley compreendeu que de nada adiantaria
magoar robin payne. a mãe já causara estragos suficientes.

contudo, necessitava ainda do último pedaço de informação que lhe permitiria dar o
caso por encerrado com um mínimo de paz de espírito. e para isso teria de agir com
cuidado, a fim de conseguir uma posição favorável. payne era esperto o suficiente
para saber que tudo o que tinha a fazer era manter-se em silêncio para que lynley
nunca se apoderasse do último pedaço de informação que compunha o puzzle de
todos os fatos ocorridos. no entanto, no pedido dele para falar com a mãe, lynley viu
uma forma de conceder uma magra forma de justiça e, ao mesmo tempo, arrancar
ao agente o último fato de que necessitava para relacioná-lo inequivocamente, quer
com a morte de charlotte bowen quer com o pai dela. a única forma de chegar à
verdade seria falando a verdade. todavia, não lhe competiria a ele fazer uso da
palavra.

- vá buscar a sra. payne - disse para um dos agentes da esquadra de amesford. -


leve-a para a esquadra.

a expressão de surpresa estampada no rosto do agente informou lynley que ele


assumira que o pedido de payne para falar com a mãe estava a ser atendido.

- É um procedimento um pouco irregular, senhor disse, - algo embaraçado.

- pois é - retorquiu lynley. - a vida é toda ela irregular. vá buscar a sra. payne.

o percurso de carro até amesford transcorreu em silêncio, a paisagem noturna


desfilando imersa numa escuridão apenas quebrada aqui e ali pelos faróis de um
carro. À frente deles, tal como na retaguarda, rolava uma escolta formada por
veículos da polícia, cujos rádios estariam sem dúvida ruidosos dado que já tinha sido
difundida a informação de que payne fora capturado e estava a ser transportado
para a esquadra. no interior do bentley, porém, nem um som se ouvia. desde que
pedira para falar com a mãe, o agente não voltara a proferir palavra.

apenas no momento em que, finalmente, chegaram à esquadra da polícia de


amesford, payne tornou a falar. viu um repórter isolado com um bloco-notas na mão
e um fotógrafo com a máquina fotográfica pronta a disparar, ambos aguardando à
porta da esquadra e disse:

- nada disto é por minha causa. a história vai ser revelada. as pessoas vão saber. e
eu estou contente com isso. estou contente como o caraças. a minha mãe já
chegou?

obtiveram a resposta a essa pergunta quando entraram na esquadra. corinne payne


aproximou-se deles, cotovelo apoiado na mão de um homem gorducho e calvo que
trazia o casaco do pijama enfiado numas calças cinzentas e sem cinto.

- robbie? o meu robbie? - corinne avançou na direção do filho, lábios trêmulos ao


pronunciar o nome dele. os olhos dela dilataram-se. - o que foi que estes homens
horríveis te fizeram! - e depois, virando-se para lynley: - eu disse-lhe que não lhe
fizessem mal. ele está muito ferido? o que é que lhe aconteceu? oh, sam. sam.

o companheiro apressou-se a enlaçá-la pela cintura. murmurava: - doçura. tem


calma.

- levem-na para uma sala de interrogatórios - disse lynley. - sozinha. iremos para lá
imediatamente.

um polícia uniformizado segurou corinne payne pelo braço.

- mas, e sam? sam? - disse ela.

- eu fico bem aqui, doçura - disse ele.

- não te vais embora?

- não saio daqui, amor - beijou-lhe as pontas dos dedos. robin payne virou a cara
para o outro lado.

- podemos despachar as coisas, então - perguntou, dirigindo-se a lynley.

corinne foi conduzida à sala de interrogatórios. lynley levou o filho dela para que
fosse visto pelo médico, que os esperava com a mala já aberta, os instrumentos
expostos e gaze e desinfetante dispostos de modo irrepreensível. examinou
rapidamente o paciente, referindo em voz baixa a possibilidade de fratura e a
necessidade de manter o ferido sob observação durante as próximas horas. aplicou
emplastros onde estes eram necessários e usou suturas para unir uma ferida
profunda na cabeça de payne.

- nada de aspirinas - disse, ao dar por terminado o seu trabalho, - e não o deixe
dormir.
lynley explicou que o sono não fazia parte do futuro imediato de robin payne. levou-o
pelo corredor fora notando que os colegas de payne desviavam os olhos à sua
passagem e conduziu-o à presença da mãe.

corinne estava sentada num canto afastado da única mesa que havia na sala. tinha
os pés bem assentes no chão. segurava a mala no colo com as duas mãos curvadas
em torno da pega, numa atitude de quem estava prestes a levantar-se para ir
embora.

nkata estava com ela. reclinava-se indolentemente contra a parede mais afastada,
com uma chávena na mão de onde bebericava. o vapor elevava-se em torno do seu
rosto. o cheiro a canja de galinha impregnava o ar.

as mãos de corinne apertaram a mala ainda com mais força no momento em que viu
o filho. no entanto, não se moveu da cadeira onde estava sentada.

- estes homens contaram-me uma coisa horrível, robbie. uma coisa sobre ti.
disseram que tinhas feito coisas horríveis e eu disse-lhes que estavam enganados.

lynley fechou a porta. puxou uma das cadeiras junto à mesa e pousando a mão
sobre o ombro de payne indicou-lhe que devia sentar-se. payne cooperou, mas não
disse nada.

corinne continuou a falar, agitando-se na cadeira mas sem fazer qualquer gesto para
se aproximar do filho.

- disseram que mataste uma garotinha, robbie, mas eu disse-lhes que isso estava
fora de questão. disse-lhes que sempre gostaste muito de crianças, e que tu e célia
pretendem ter um rancho delas logo que casem. por isso vamos já esclarecer todos
estes disparates, não vamos, querido? suponho que tudo não passe de um terrível
engano. alguém se meteu num sarilho por qualquer motivo, mas essa pessoa não és
tu, com certeza, pois não? - tentou um sorriso esperançoso, mas os seus lábios não
conseguiram esboçá-lo. e, apesar das suas palavras, os seus olhos traíam o medo
que sentia. quando payne não respondeu à pergunta dela de imediato, disse com ar
sério: - robbie? não é assim? não é verdade que estes dois polícias estiveram a
dizer disparates? não é verdade que tudo isto não passa de um engano terrível?
sabes, estive a pensar que talvez seja pelo fato de o sargento estar hospedado lá
em casa. talvez ela tivesse contado alguma tolice a teu respeito. uma mulher
desprezada é capaz de tudo, robbie, de tudo para se vingar.

- tu não foste - disse ele.

corinne apontou para si própria, algo confusa. - eu não fui o quê, querido?

- não foste capaz de te vingar - disse ele. - tu não foste. nunca foste. por isso eu fui.

corinne brindou-o com um sorriso hesitante. apontou-lhe um dedo admoestador.

- se estás a referir-te ao modo como te tens comportado com célia, nestes últimos
dias, meu maroto, então é ela quem deveria estar sentada nesta cadeira, e não eu.
ora, aquela rapariga tem a paciência de um santo no que diz respeito a esperar até
que te decidas a dizer o que pensas, robbie. mas nós vamos esclarecer estes mal-
entendidos com célia mal esclareçamos estes mal-entendidos aqui - lançou-lhe um
olhar vivo. era óbvio que pretendia que o filho seguisse o jogo dela.

- eles apanharam-me, mãe - disse payne.

- robbie...

- não, ouve-me. não tem importância. o que é importante é que a história seja
divulgada e que seja divulgada como deve ser. essa é a única maneira de o obrigar
a pagar. primeiro pensei que podia apanhá-lo através do dinheiro dele, obrigá-lo a
pagar pelo que fizera. mas quando vi o nome dela pela primeira vez, quando me dei
conta de que ele fizera com outra pessoa exatamente o mesmo que fizera contigo...
foi aí que percebi que tirar-lhe dinheiro não era suficiente. ele precisava que lhe
mostrassem o que ele realmente é. e agora isso vai acontecer. ele vai sofrer pelo
fato de se ter safado sem consequências, mãe. fi-lo por ti.

corinne parecia nervosa. se entendera o que o filho lhe dissera, não dava qualquer
sinal disso. - de que é que estás a falar exatamente, robbie?

lynley puxou uma segunda cadeira. sentou-se numa posição de onde podia observar
tanto a mãe como o filho. falou com uma rispidez deliberada. - ele está a explicar
que raptou e matou charlotte bowen e que raptou leo luxford por sua causa, sra.
payne. está a explicar que o fez como forma de vingança, para que se fizesse justiça
em relação a dennis luxford.

- justiça?

- por tê-la violado, por tê-la engravidado e por a ter abandonado há trinta anos atrás.
ele sabe que foi apanhado, o fato de ter mantido leo luxford preso em silsbury huish
castle dificilmente pode ser encarado como prova da sua inocência, julgo eu, por
isso quer que a senhora saiba porque é que decidiu agir desta forma. fê-lo por si.
sabendo isto, não quererá a senhora esclarecer alguns pormenores do passado?

- por mim? - os dedos dela tornaram a apontar para o peito.

- perguntei-te vezes sem conta - payne disse à mãe. - mas tu nunca dizias nada.
pensaste sempre que eu estava a perguntar-te por minha causa, não foi? pensaste
que eu queria satisfazer a minha curiosidade. mas nunca foi por minha causa, mãe.
era por ti. era preciso que alguém tratasse dele. não podia ter-te abandonado como
fez sem arcar com as consequências. não estaria certo. por isso obriguei-o a
enfrentar tudo. a história vai sair em todos os jornais, agora, e ele vai ficar arrumado,
tal como merece.

- jornais? - corinne fez uma careta horrorizada.

- ninguém podia tê-lo feito a não ser eu, mãe. só eu poderia ter planejado uma coisa
destas. e não me arrependo de nada. como disse, não foste a única a quem ele
pregou a partida. quando fiquei a saber isso soube que ele tinha de pagar pelo que
tinha feito.

era a segunda vez que ele se referia a uma segunda violação, e havia apenas uma
única possibilidade no que dizia respeito à identidade daquela suposta vítima de
violação. o fato de payne ter tocado no assunto deu a lynley a oportunidade por que
esperava.

- como é que ficou a saber a história de eve bowen e da filha dela, sr. agente?

payne continuou a falar para a mãe.

- vês, mãe, ele pregara-lhe a partida também a ela. e ela apareceu grávida, tal como
tu. e ele deixou-a tal como te deixou a ti. por isso tinha de pagar. primeiro pensei em
sacar-lhe dinheiro, seria um belo presente de casamento para ti e para sam. mas
quando olhei para lá e vi o nome dela na conta dele, pensei: «ora, ora, o que é que
temos aqui?» e descobri-a. o nome dela na conta dele. pensei em sacar-lhe dinheiro
primeiro.

de súbito, lynley lembrou-se do que dennis luxford dissera a eve bowen durante o
encontro entre ambos no gabinete dele. abrira uma conta para a filha deles, dinheiro
que seria usado se ela alguma vez tivesse necessidade dele, fora a forma medíocre
que encontrara de aceitar o fardo representado pelo nascimento dela. quando
procurava qualquer coisa com que pudesse destruir a vida de luxford. robin payne
deve ter tropeçado nesta conta, o que lhe permitiu depois ter acesso ao segredo
mais bem guardado da vida do editor. mas como tê-lo-ia ele feito? era este o elo final
que lynley procurava.

- depois foi fácil - payne continuou. inclinou-se sobre a mesa, na direção da mãe.
corinne retraiu-se um pouco na sua cadeira: - fui até st. catherine’s vi que da certidão
de nascimento dela não constava o nome do pai, exatamente como na minha. foi
assim que fiquei a saber que luxford tinha feito a mais alguém o mesmo que te tinha
feito a ti. quando percebi isso, deixei de querer o dinheiro dele. queria apenas que
ele dissesse a verdade. por isso investiguei a miudita até descobrir a mãe. depois
passei a segui-la. e quando chegou o momento certo, raptei-a. não estava previsto
que ela morresse, mas quando luxford não avançou não me restou outra saída. vês
isso, não vês? percebes isso? estás muito pálida, mas não tens nada com que te
preocupar. logo que a história seja publicada nos jornais...

corinne agitou os dedos com algum nervosismo, tentando interromper as palavras


dele. abriu a mala e tirou o inalador. bombeou-o para dentro da boca.

- mãe, não deves pôr-te doente - disse payne. corinne respirou de olhos fechados e
a mão no peito.

- robbie, meu querido - murmurou. depois abriu os olhos e brindou-o com um sorriso
afectuoso. - meu querido, querido e encantador rapaz. não sei como é que começou
este terrível mal-entendido.

payne fitava-a inexpressivo. engoliu em seco e disse: - o quê?


- de onde tiraste tu a idéia, meu querido, que este homem é teu pai? com certeza
que não fui eu que te disse semelhante coisa.

payne fitava-a sem compreender. - tu disseste... - mostrou a língua e humedeceu os


lábios. quando viste o sunday times, a história acerca dele... disseste...

- eu não disse absolutamente nada - corinne tornou a colocar o inalador dentro do


saco e fechou-o com um ruído sonoro. - oh, claro, posso ter dito este homem
parece-me ser familiar, mas estás terrivelmente enganado se pensas que o
identifiquei de alguma maneira. posso até ter dito que ele se parecia vagamente com
o rapaz que abusou de mim há tantos anos atrás. mas não teria dito mais nada,
porque tudo aconteceu há muitos anos atrás, meu querido robbie. e foi apenas uma
noite. uma noite horrível e infeliz que eu pura e simplesmente queria esquecer de
uma vez por todas. só que como poderei esquecê-la agora, que me fizeste isto?
haverá jornais, revistas e a televisão, todos eles a bombardearem-me com
perguntas medonhas que irão revolver toda esta história, que me obrigarão a
recordar, que levará sam a pensar... talvez até a deixar... era isso que querias?
querias que sam me deixasse, robbie? foi por isso que fizeste esta coisa terrível?
porque estás prestes a perder-me a favor de outro homem e querias destruir essa
hipótese? foi por isso, robbie? querias destruir o amor que sam sente por mim?

- não! fi-lo porque ele te fez sofrer. e quando um homem faz uma mulher sofrer, tem
de pagar.

- mas ele não fez - disse ela. - não foi... robbie, entendeste mal. não foi este homem.

- foi, sim. disseste que tinha sido. lembro-me que me deste o artigo da revista,
apontaste para baverstock e disseste, «este é o homem, querido robbie. levou-me
para a câmara frigorífica, numa noite de maio. tinha uma garrafa de xerez com ele.
obrigou-me a beber um pouco e ele próprio também bebeu. depois atirou-me para o
chão. tentou estrangular-me, por isso fiz o que ele queria. e foi assim que as coisas
aconteceram. É este o homem.»

- não - protestou ela. - eu nunca disse isso. posso ter dito que ele me lembra...

payne bateu com a mão na mesa. - tu disseste «este é o homem!» gritou ele. por
isso fui a londres. por isso o segui. por isso segui a pista dele até ao barclay’s e
depois voltei para casa e fui ter com célia e aconcheguei-me bem a ela e disse-lhe:
«mostra-me como funcionam estes computadores. podemos espreitar as contas? as
contas de qualquer pessoa? e a deste tipo aqui? ena, fantástico, não é?» e lá estava
o nome dela. foi então que a localizei. vi que ele tinha feito com a mãe dela o mesmo
que fizera contigo. e ele tinha de pagar por isso. ele... tinha... de... pagar - payne
afundou-se bruscamente na cadeira. pela primeira vez a sua voz soava derrotada.

lynley percebeu que o circuito de informação estava finalmente completo. recordou


as palavras de corinne payne: ele tenciona casar com célia matheson. relacionou-as
com aquilo que o agente acabava de dizer. só havia uma conclusão possível.

- célia matheson - lynley disse para nkata. - vai buscá-la.


nkata encaminhou-se para a porta. payne deteve-o, dizendo num tom cansado: - ela
não sabe. não está envolvida. não poderá dizer-vos nada.

- então diga-me você - disse lynley.

payne fitou a mãe. corinne abriu a mala. tirou o lenço que costumava encostar ao
nariz e passar pela zona abaixo dos olhos.

- precisa de mim para mais alguma coisa, inspetor? - perguntou numa voz fraca. -
não me estou a sentir muito bem. se não se importa, poderia talvez chamar sam
para me vir buscar...?

lynley fez um sinal de cabeça a nkata, que saiu da sala. enquanto aguardavam o seu
regresso, acompanhado por sam, corinne tornou a falar ao filho.

- um mal-entendido tão terrível, querido. não sei como é que uma coisa destas pôde
ter acontecido. pura e simplesmente não consigo...

payne baixou a cabeça. - leve-a daqui - disse para lynley.

- mas robbie...

- por favor.

lynley conduziu corinne para fora da sala. encontraram nkata e sam no corredor. ela
caiu nos braços do homem gorducho, dizendo: - sammy, aconteceu uma coisa
horrível. robbie não está em si. tentei falar com ele, mas ele recusa-se a ver a razão
e eu tenho tanto medo...

- vamos - disse sam, fazendo-lhe uma festa nas costas. - chio, doçura. deixa-me
levar-te para casa.

avançou na direção da recepção levando-a consigo. a voz dela flutuava até eles à
medida que ela ia dizendo: - não me vais deixar, pois não? diz que não me vais
deixar.

lynley regressou à sala de interrogatórios.

- pode dar-me um cigarro, por favor? - payne pediu-lhe.

- eu encarrego-me disso - disse nkata, saindo para ir buscar cigarros. quando


regressou com um maço de dunhill e uma carteira de fósforos, o outro agente
acendeu um e fumou em silêncio durante alguns momentos. parecia estar em
estado de choque. lynley tentou imaginar qual seria a sua reação quando e se a mãe
se decidisse a contar-lhe a verdade acerca das circunstâncias do seu nascimento.
uma coisa era acreditar que se era o produto de um ato de violência, outra era ficar
a saber que se era o resultado de sexo anônimo e descuidado, feito por dinheiro, de
forma apressada e sem qualquer troca de palavras, um dos intervenientes pensando
apenas em atingir rapidamente o orgasmo e outro imaginando o fim que daria às
libras e aos pence recebidos depois de completado o serviço.

- fale-me de célia - disse lynley.

- servira-se dela, - disse-lhe payne, - porque ela trabalhava no barclay’s de wootton


cross. oh, sim, já a conhecia, há séculos que a conhecia, de fato mas nunca pensara
muito nela até perceber que ela poderia ajudá-lo na questão de luxford. uma noite
em que ela ficou a trabalhar até tarde, consegui convencê-la a deixar-me entrar no
banco - disse ele. - ela trabalha num cubículo e mostrou-mo nessa noite. mostrou-
me o computador também e persuadi-a a entrar nas contas de luxford, porque queria
ver quanto poderia sacar-lhe. convenci-a também a entrar noutras contas.
transformei tudo aquilo num jogo e escondi luxford no meio dos outros
intervenientes. e enquanto ela o fazia, enquanto ela entrava nas contas, entrei eu
nela.

- teve relações sexuais com ela - esclareceu lynley.

- para que ela pensasse que estava interessado nela - concluiu payne - e não
apenas no computador dela.

deixou cair a cinza do cigarro sobre o tampo da mesa. pressionou-a com o indicador
e viu a cinza desintegrar-se.

- se acreditava que charlotte bowen era sua meia-irmã - disse lynley, - e uma vítima
tal como você, porque é que a matou? É a única coisa que não consigo
compreender.

- nunca pensei nela dessa maneira - retorquiu payne. - só pensei na minha mãe.

seguiam à pressa para oeste pela auto-estrada, com os quatro piscas ligados para
desimpedir o trânsito que circulava na faixa da direita. luxford conduzia. fiona estava
sentada a seu lado na mesma posição que adotara quando tinham entrado no
mercedes, em highgate. tinha o cinto de segurança colocado, mas inclinava o corpo
para a frente como se essa postura pudesse fazer com que o carro circulasse mais
depressa. ia em silêncio.

estavam deitados quando receberam a chamada. estavam deitados no escuro,


abraçados, ambos calados, pois parecia que nada mais havia a dizer. a evocação
constante das recordações do filho emprestava ao seu desaparecimento um caráter
permanente do qual não suportavam falar. conversar sobre o futuro de leo fazia-os
correr o risco de tomarem como certo qualquer coisa que um deus vingador poderia
vir a frustrar. por isso não falavam, deixando-se ficar deitados debaixo dos
cobertores, abraçados, sem qualquer esperança de vir a sentir sono ou paz de
espírito.

o telefone tinha tocado antes de eles terem ido deitar-se. luxford deixara tocar três
vezes, conforme fora instruído pelo detetive que se encontrava ainda no andar de
baixo, na cozinha, à espera do telefonema que viria solucionar o caso. no entanto,
no momento em que luxford levantara o auscultador viu que era peter ogilvie quem
estava no outro extremo do fio.
falara naquele seu tom de voz ríspido de quem não tolera disparates. - rodney disse-
me que um informador da yard confirmou a sua presença lá esta tarde, juntamente
com eve bowen. estava a planejar publicar essa história, ou ia deixar que o globe se
apoderasse dela? ou o sun, talvez?

- não tenho nada a dizer.

- rodney afirma que você está envolvido até ao pescoço neste caso com eve bowen,
embora o pescoço não tenha sido a parte da anatomia que ele usou. ele insinua que
tem estado envolvido desde que tudo começou. e isso permite-me ver com clareza
quais são as suas prioridades. e o the source não está entre elas.

- o meu filho foi raptado. pode muito bem ter sido assassinado. se acha que eu devia
estar concentrado no jornal num momento como este...

- o desaparecimento do seu filho é uma circunstância infeliz, dennis. mas ele ainda
não tinha desaparecido quando a história sobre bowen rebentou. você não nos disse
tudo nessa altura. não o negue. rodney seguiu-o, viu-o encontrar-se com bowen. ele
tem estado a trabalhar a dobrar desde a morte da filha de bowen e até antes disso.

- e assegurou-se de que isso chegasse ao seu conhecimento - disse luxford.

- estou a dar-lhe a oportunidade de se explicar - assinalou ogilvie. - trouxe-o para o


the source para que fizesse com ele o mesmo que tinha feito no globe. se conseguir
garantir-me de que o artigo de capa da edição de amanhã conseguirá fornecer ao
público a informação que lhe falta e refiro-me a toda a informação, dennis, o seu
lugar estará assegurado por mais seis meses, pelo menos. se não está em
condições de me garantir isso, então serei forçado a dizer-lhe que chegou o
momento de interromper a nossa colaboração.

- o meu filho foi raptado - repetiu luxford. - ouviu sequer aquilo que eu lhe disse?

- isso dará ainda mais força à primeira página de amanhã - disse ogilvie. - qual é a
sua resposta?

- a minha resposta? - luxford olhara para a mulher, que estava sentada na ponta da
chaise longue, de frente para a janela do quarto de dormir de ambos. segurava
ainda o casaco do pijama de leo. tinha-o no colo e dobrava-o com cuidado num
quadrado. queria ir ter com ela. - estou fora, peter - disse a ogilvie.

- o que quer dizer com isso?

- rodney tem andado atrás do meu lugar desde o primeiro dia. dê-lho a ele. ele
merece-o.

- você não está a falar a sério.

- nunca falei tão sério na minha vida.


desligara o telefone e fora juntar-se a fiona. despira-a com carinho e metera-a na
cama, deitando-se em seguida a seu lado. viram o reflexo da lua deslocar-se ao
longo da parede em direção ao teto.

quando o telefone tocou três horas mais tarde, o coração pesado de luxford
ordenou-lhe que o deixasse tocar. no entanto obedeceu ao procedimento
estabelecido pela polícia e ao quarto toque levantou o auscultador.

- sr. luxford? - o homem tinha uma voz suave. as suas palavras continham o sotaque
melódico característico de um nativo das índias ocidentais que tivesse crescido na
zona sul de londres. identificou-se como sendo o agente nkata e acrescentou
departamento de investigação criminal da scotland yard, como se luxford pudesse
tê-lo esquecido no período de horas que tinham transcorrido desde que se tinham
visto pela última vez. - temos o seu filho, sr. luxford. está tudo bem. ele está ótimo.

luxford apenas conseguiu dizer: - onde?

nkata dissera esquadra da polícia de amesford. explicara ainda como tinha sido
encontrado e por quem, porque é que tinha sido raptado, onde estivera preso.
terminara dando indicações a luxford sobre o percurso até à esquadra. esta era,
aliás, a única parte do breve discurso que luxford recordava ou se preocupava em
recordar à medida que ele e fiona avançavam a alta velocidade a meio da noite.

saíram da auto-estrada em swindon e seguiram velozmente para sul, na direção de


marlborough. as trinta milhas até amesford pareceram-lhes sessenta, cento e
sessenta e enquanto as percorriam fiona falou, por fim.

- fiz um acordo com deus.

luxford olhou-a de relance. os faróis de um veículo que se cruzou com eles iluminou
em cheio o rosto dela.

- disse-lhe que se ele me devolvesse leo, separar-me-ia de ti, dennis, se isso fosse
necessário para te trazer à razão.

- razão? - perguntou ele.

- não consigo imaginar como seria deixar-te.

- fi...

- mas é o que farei. leo e eu vamos embora, se não voltares atrás em relação a
baverstock.

- julguei que já tinha deixado bem claro que leo não terá de ir. julguei que o tivesses
compreendido através das minhas palavras. bem sei que não o disse diretamente,
mas parti do princípio que terias percebido que não faço tenções nenhumas de o
mandar para longe depois de tudo o que aconteceu.

- e quando o horror «de tudo o que aconteceu», como dizes, tiver desaparecido?
quando leo começar de novo a irritar-te? quando ele saltar em vez de caminhar de
forma imponente? quando ele cantar demasiado bem? quando pedir que o levem ao
ballet no dia do seu aniversário, em vez de querer assistir a um jogo de futebol ou de
críquete? o que farás então, quando começares de novo a pensar que ele precisa de
enrijecer um pouco?

- rezo para conseguir ter tento na língua. está bem assim, fiona?

- como poderia estar? eu saberei aquilo em que estarás a pensar.

- o que eu penso não interessa - disse luxford. - aprenderei a aceitá-lo tal como é -
tornou a olhá-la. a expressão do seu rosto era implacável. era evidente que as
palavras dela não escondiam nenhuma armadilha. - amo-o. apesar de todos os
defeitos que eu possa ter, amo-o - disse ele.

- tal como ele é ou como queres que ele seja?

- todo o pai tem os seus sonhos.

- os sonhos de um pai não deveriam tornar-se o pesadelo do filho.

passaram por upavon, contornaram uma rotunda e continuaram para sul rompendo
a escuridão. para oeste, um brilho ocasional de luzes assinalava a presença de
aldeias adormecidas nos limites de salisbury plain. east chisenbury, littlecott,
longstreet, coombe, fittleton. enquanto passava pelas tabuletas de identificação,
luxford pensava nas palavras da mulher e em como os sonhos de cada um estão
intimamente ligados aos seus pesadelos. sonhamos em ser fortes quando somos
fracos. sonhamos com a riqueza quando somos pobres. sonhamos escalar
montanhas quando estamos enredados nas massas que rastejam no fundo dos
vales.

os sonhos que tinha para o filho não passavam do reflexo dos medos que sentia em
relação a ele. só quando se libertasse desses medos seria capaz de renunciar aos
seus sonhos.

- preciso de o compreender - disse luxford. - e vou compreendê-lo. deixa-me tentar.


hei-de conseguir.

seguiu o percurso que o agente nkata lhe tinha indicado quando alcançaram os
arredores de amesford. entrou no parque de estacionamento e estacionou ao lado
de um panda.

no interior da esquadra, vivia-se uma azáfama como se se estivesse em pleno dia e


não a meio da noite.

polícias uniformizados circulavam nos corredores.

um homem vestido com um fato completo e carregando uma pasta apresentou-se


como sendo gerald sowforth, esq., um advogado que pedia para ser conduzido ao
seu cliente.
uma mulher de rosto lívido atravessava a recepção apoiada no braço de um homem
calvo, que lhe fazia festas na mão e dizia, «vamos levar-te para casa, doçura».

uma equipe de paramédicos respondia às perguntas que lhes eram feitas por um
polícia à paisana.

um repórter isolado fazia um interrogatório furioso a um sargento que se encontrava


atrás do balcão da recepção.

luxford disse em voz alta por cima da cabeça do repórter:

- dennis luxford. sou...

a mulher que atravessava a recepção começou a choramingar, encolhendo-se de


encontro ao companheiro.

- não me deixes, sammy - disse. - diz que não me vais deixar!

- nunca - disse sammy, com fervor. - espera e verás - deixou que ela escondesse o
rosto no seu peito no momento em que passavam por luxford e fiona e
desapareciam na noite.

- estou aqui para vir buscar o meu filho - luxford disse ao sargento.

o sargento fez um aceno de cabeça e pegou no telefone. discou três números. falou
durante breves instantes. desligou.

um minuto depois, a porta ao lado do balcão da recepção abriu-se. alguém chamou


pelo nome de luxford. este segurou a mulher pelo braço e entraram juntos para um
corredor que corria ao longo de todo o comprimento do edifício.

- por aqui - disse uma mulher polícia. conduziu-os até uma porta e abriu-a.

- onde está leo? - perguntou fiona.

- esperem aqui, por favor. - respondeu a mulher polícia e deixou-os a sós.

fiona caminhava de um lado para o outro. luxford esperava. ambos escutavam os


sons que chegavam até eles vindos do corredor, do outro lado da porta. três dúzias
de passos passaram sem parar durante os dez minutos seguintes. então, ouviram
uma suave voz masculina dizer, por fim, «aqui dentro?» a porta abriu-se.

quando os viu, o inspetor lynley disse de imediato:

- leo está bem. está a demorar um pouco, porque está a ser examinado pelo médico.

- um médico? ele... - sobressaltou-se fiona. lynley segurou-a pelo braço.

- É uma mera precaução. ele estava muito sujo quando o meu sargento o trouxe, por
isso estamos também a tentar limpá-lo um pouco. não vai demorar muito mais.

- mas ele está bem? está tudo bem com ele?

o inspetor sorriu.

- está mais do que bem. ele é o grande responsável pelo fato de o meu sargento
ainda estar viva. atirou-se a um assassino e deu-lhe uma valente pancada no crânio
que será difícil de esquecer. se não tivesse feito isso, não estaríamos aqui agora. ou
se estivéssemos, estaríamos a ter uma conversa completamente diferente.

- leo? - perguntou fiona. - leo fez isso?

- primeiro saltou para dentro de uma fossa para ir buscar a arma - explicou lynley. -
depois manejou uma barra de ferro como um homenzinho valente que tivesse
nascido para partir crânios - sorriu de novo. luxford via que ele estava a tentar
descontrair fiona. colocou a mão dele sobre a dela e conduziu-a até junto de uma
cadeira. - leo é o que se chama um verdadeiro jovem brigão - disse ele. - mas era
isso precisamente que as circunstâncias exigiam. ah, aqui está ele.

e ali estava, de fato, nos braços do agente nkata, cabelo louro molhado, roupas
escovadas mas sujas, cabeça pousada no peito do agente negro. estava a dormir.

- está exausto - disse-lhes nkata. - mantiveram-no acordado o tempo suficiente para


que o médico pudesse observá-lo, mas adormeceu enquanto lhe lavavam o cabelo.
receio que tenhamos tido de usar sabão para isso. quando chegarem a casa hão-de
querer dar-lhe uma boa ensaboadela.

luxford aproximou-se do agente e pegou o filho ao colo. fiona disse, «leo, leo» e
tocou-lhe a cabeça.

- vamos deixá-los sozinhos durante alguns instantes - disse lynley. - quando já


tiverem tido tempo de saborear o reencontro voltaremos a conversar.

quando a porta se fechou suavemente, luxford carregou o filho até uma cadeira.
sentou-se, abraçando-o, surpreendido com a sua leveza, apalpando cada osso do
seu corpo como se tocasse cada um deles pela primeira vez. cerrou os olhos e
inspirou os cheiros que ele exalava: desde o aroma penetrante a detergente que se
libertava dos cabelos mal lavados ao odor acre a imundície que lhe impregnava a
roupa. beijou a testa do filho e depois os dois olhos.

estes entreabriram-se, azuis-celeste tal como os da mãe. pestanejaram e depois


ajustaram-se. distinguiu quem estava a segurá-lo.

- papá - disse, corrigindo automaticamente para: - pai. olá. a mamãe está aqui
contigo? não chorei. tive medo, mas não chorei.

luxford estreitou-o ainda mais nos seus braços. baixou a cabeça pousando-a na
reentrância do ombro de leo.
- olá, querido - disse fiona e ajoelhou-se junto à cadeira.

- acho que fiz o que era certo - disse-lhe leo com determinação. -não chorei nem
uma vez. ele deixou-me fechado e eu tive muito medo e queria chorar. mas não
chorei. nem uma vez. foi bom, não foi? portei-me bem, acho. - o seu rosto enrugou-
se na zona em torno dos olhos e na testa. contorceu-se para conseguir ver melhor o
pai. o que é que tem o pai? - perguntou à mãe, perplexo.

- absolutamente nada - disse fiona. - o papá está apenas a chorar em teu lugar.

agradecimentos

wootton cross e o vale de wootton não existem. agradeço, no entanto, a todos os


que me ajudaram a criá-los: ao sr. a. e. swaine de great bedwyn, wiltshire, que
partilhou comigo as belezas de wilton windmill; a gordon rogers de high ham,
somerset, e aos simpáticos funcionários do national trust que me facultaram o
acesso a high ham windmill; aos amáveis agentes policiais de pewsey que
responderam às minhas perguntas e autorizaram a que a sua esquadra de polícia
servisse de modelo à de wootton cross.

estou amplamente reconhecida a michael fairbairn, correspondente político da bbc,


que dedicou muito do seu tempo a acompanhar-me no parlamento e que,
gentilmente, se dispôs a responder às minhas infindáveis perguntas durante o
processo de criação deste romance; a david banks, que me facultou o acesso ao
mirror e a maggie pringle, que forneceu respostas às minhas questões e organizou a
minha visita às instalações do jornal, em holburn; a ruth e richard boulton, que nunca
deixaram de responder a uma única questão, por mais trivial que ela fosse; ao
inspetor-chefe pip lane, que não me deixa ultrapassar os limites razoáveis do
trabalho policial; à minha agente vivienne schuster e ao meu editor tony mott que
apoiam os meus esforços e emitem sons de encorajamento quando é necessário.

nos estados unidos, agradeço a gary bale do departamento do xerife de orange


county, as suas palavras avisadas em tudo, desde o campo das impressões digitais
ao da toxicologia; ao dr. tom ruben e ao dr. h. m. upton por me terem fornecido
aconselhamento médico sempre que dele necessitei; a april jackson dos los angeles
times por ter respondido a perguntas várias sobre o jornalismo; a julie mayer por ter
lido mais um rascunho; a ira toibin pelo seu apoio carinhoso e constante; à minha
editora kate miciak por escutar variações infinitas da intriga e do tema do livro; à
minha agente deborah schneider pela sua sensatez e por ter acreditado no projeto.

convém recordar que este é um trabalho de ficção. além disso, todos os erros e
incorrecções que o romance possa conter são única e exclusivamente da minha
responsabilidade.
no entanto, o caso deixa st. james intranquilo, pois nenhum dos intervenientes neste
drama parece reagir da forma esperada. É então que ocorre a tragédia, a new
scotland yard é chamada a intervir.

o inspetor-detetive thomas lynley cedo descobre que o caso ganha ramificações que
se estendem de londres até ao campo e que simultaneamente, tem del idar
astutamente com a morte à medida que investiga o misterioso desaparecimento de
charlotte bowen. entretanto, a colega, o sargento-detetive barbara havers, que
conduz sozinha parte da investigação, esperando que lhe proporcione a grande
oportunidade da sua carreira, pode estar mais perto da terrível solução do perigo do
que todos julgam. na presença do inimigo revela uma hábil contadora de histórias no
auge do seu talento. este é um romance envolvente, e de uma perspicácia brilhante,
sobre ideais corrompidos pelo egoísmo, os pecados dos pais refletidos nos filhos,
máscaras que escondem as pessoas umas das outras e delas próprias.

elizabeth george reside em artington beach, califórnia. nomeada para o edgar, foi
distinguida com anthony and agatha award grand prix de littérature i cière francês e
o mimi alemão. as suas obras integram a primeira lista de livros do mystery gui a
lista alternativa da literary g e do doubleday book club.

fim

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