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O PÊNALTI

André e Gustavo eram grandes amigos. Se conheciam desde criança. Jogavam no


mesmo time – um no gol, o outro na linha.
- Atenção aí! – gritou André, debaixo das traves.
Um atacante adversário vem se aproximando. Os zagueiros não deram conta. A área
está desprotegida. O goleiro dá dois passos para a frente e se posiciona. O atacante
ficou cara a cara com ele.
- André!
O atacante chutou à queima-roupa. Daquela distância não dá pra errar. Engano.
Corajoso, nosso arqueiro se joga em cima do adversário, tirando todo o ângulo do
chute, e cai com a bola entre os braços.
Os poucos torcedores de pé, ao longo do campo de várzea, aplaudem. André acena e,
sem perder tempo, já lança o contra-ataque.
Mauricinho vai pela ponta. O campo é cheio de buracos, sem um tufo de grama, o que
atrapalha o controle da bola. Mas ele vai. Um adversário aparece para lhe bloquear a
passagem, Gustavo surge livre pelo meio, Mauricinho toca. Gustavo vai levando. Já
está na intermediária, próximo ao gol adversário. Dois zagueiros vem pra dar o
combate.
- Passa pra mim – pediu Mauricinho, correndo ao seu lado.
Gustavo hesita. Um dos defensores se aproxima mais e tenta o bote. Rápido, Gustavo
passa a bola por entre as pernas dele e prossegue, arrancando aplausos dos
torcedores. O goleiro adversário já olha, com medo.
- Aqui, Gustavo! – pede de novo Mauricinho, ainda ao seu lado.
Dessa vez o garoto atende: passa rápido a bola para o companheiro e vai para o meio
da área. Lá, o goleiro já está colocado, pronto pra fazer a defesa. Mauricinho vai até a
linha de fundo e cruza. O goleiro salta. Gustavo também.
A torcida prende a respiração. A câmera focaliza Gustavo e o goleiro no ar, indo um de
encontro ao outro, e a bola viajando. O choque parece inevitável. Mas o nosso
atacante é mais rápido: com um leve toque de cabeça, desvia a bola do goleiro, que
passa direto e cai no chão. Com o gol aberto, é só tocar para o fundo das redes.
- Isso aí! – vibrou a torcida, fazendo aquela algazarra.
Os jogadores correm para abraçar Gustavo, no meio da área. O técnico e os reservas,
também. É uma festa só. André balança o punho cerrado, em sua meta, e pula feito
um doido.
Jogo terminado.
- E eu gostaria de entregar o troféu de campeão aos Xavantes! – anuncia o prefeito,
do alto de um palanque, onde pode-se ler: Campeonato Municipal de Várzea.
Mauricinho, o capitão, sobe até lá, aperta a mão da autoridade e ergue a taça.
- Parabéns, meus filhos! – felicita a mãe do André, abraçando o garoto e o amigo
Gustavo. Os meninos não cabem em si de contentamento.
Mauricinho se aproxima com o troféu:
- Gustavo, o treinador está chamando vocês dois.
Os amigos se entreolham.
A cena mostra o vestiário pobre dos Xavantes, parede descascada, bancos de
madeira e armários enferrujados. No centro, o velho treinador, em seu uniforme
surrado e um senhor bem vestido, de terno e gravata. André e Gustavo entram pela
porta, e uma fresta de luz ilumina o vestiário.
- Olá – cumprimenta o senhor de terno e gravata.
Os amigos respondem com um meneio de cabeça.
- Meninos, esse é o Otávio Costa, gerente de futebol do Palmeiras F.C. – apresenta o
treinador.
- Gostei muito do que vi – elogiou o gerente – muito mesmo. E estou aqui para fazer
uma oferta.
- Oferta? – repete André, o mais velho, sem entender de início.
- Sim, oferta. Já conversei com o Manoel – e apontou o técnico – e por ele está tudo
bem.
- Vocês têm um futuro grandioso pela frente – assinalou Manoel.
Gustavo olha para o amigo e abre os braços:
- Poderia ser mais claro, senhor?
Otávio Costa abre a pasta que traz na mão e tira um papel timbrado:
- Contrato de dois anos, com opção de renovação por igual período.
Os jovens jogadores não conseguem conter o sorriso:
- Isso é verdade, Manoel?
O treinador balança a cabeça afirmativamente.
Os amigos se abraçam.

A ida dos meninos foi um acontecimento na cidade. Teve corpo de bombeiros, banda
marcial, o prefeito deu a chave da cidade, enfim, toda a honra para os filhos ilustres,
os garotos que iam tornar o nome da vila conhecido em todo o país.
E os dois já estão no CT do Palmeiras.
- Cara, que diferença do Xavantes! – comentou Gustavo, ao entrar pela primeira vez
no luxuoso vestiário do clube.
- Tem piscina ali fora! – apontou André, eufórico.
Os outros jogadores riram, achando graça do deslumbramento dos garotos.
- Daqui a pouco vocês acostumam – disse um deles, um altão. E se apresentou: - Eu
sou o Ricardo, o guarda-metas.
Os amigos não entenderam.
- Liga não, o Ricardinho é português – interveio um outro, escurinho como Gustavo. –
Guarda-metas é como se chama goleiro em Portugal.
- Ah, sei – disse André, e acrescentou, sem modéstia – Você é o meu reserva?
Ricardo caiu na gargalhada:
- Que isso, garoto? Olha só, chegou agora e já quer botar marra.
- Nós somos do profissional – esclareceu o escurinho, estendendo a mão – eu sou o
Deninho.
Gustavo arregalou o olho:
- Nossa! Como é que eu não reconheci? Cara, o Deninho!
E apertou a mão dele, todo trêmulo.

Os dias foram passando e Gustavo e André eram destaque nos juvenis. A equipe ia
bem e já estava nas finais. Já o time de profissionais sofria derrota após derrota –
principalmente após a contusão de Ricardo.
Após uma partida do torneio de juvenis, os torcedores no estádio começaram a gritar o
nome de André. “Bota o André, seu treinador! Bota o André!”
O técnico, com a corda no pescoço, resolveu apostar no garoto.
- Estou feliz por você – disse Gustavo, na véspera da estréia do amigo – Caramba, vai
jogar pelos profissionais, naquele estádio enorme!
- Não estou acreditando, cara. Isso é mesmo verdade?
Gustavo deu-lhe um beliscão.
- Ai! Tá maluco?
- Doeu, viu? Não é sonho, não.
André riu, massageando o braço. No dia seguinte, estava lá, com o uniforme titular do
Palmeiras, diante de trinta mil pessoas. De início, inseguro, deixou escapar umas
bolas fáceis, mas os zagueiros seguraram a onda. Mas no final, a consagração: uma
defesa incrível, de mão trocada, cara a cara com o atacante.
Saiu carregado.
As manchetes do jornal estampavam: “André, o menino de ouro”.
Ricardo não voltou mais e o menino de ouro assumiu de vez a posição. Era uma boa
atuação após a outra. O Palmeiras se recuperou na temporada e já estava na cola dos
líderes. Mas o time de juvenis foi eliminado no torneio da categoria.
- Fica assim não, Gustavo – consolou André, vestindo uma roupa de marca, presente
dos patrocinadores.
- Eu errei o chute, cara. Isso não acontece comigo!
- Todo mundo erra, lembra? – e apanhou o jornal do dia – o Deninho ontem perdeu um
pênalti.
- Mas você segurou o empate – rebateu Gustavo, com uma ponta de inveja na voz.
André percebeu:
- Que isso, rapaz? Não fala assim não. Eu só defendo, mas no futebol, o que conta é a
bola na rede.
- Está falando que nem eles.
- O que está havendo com você?
Gustavo não respondeu. Levantou-se e saiu do quarto, onde agora dormia sozinho,
pois André ganhara um apartamento no centro da cidade.
Andou pela rua, inconformado. Na era justo. Poxa, ele e o André sempre fizeram tudo
juntos. Sempre brilharam juntos. Por que, agora, o amigo estava se destacando mais
do que ele?
Estava perturbado. Não conseguia jogar direito. Irritava-lhe ver a foto de André nos
jornais, ler as suas entrevistas. André fazia de tudo para incluir o colega em sua nova
vida, levava-o ao seu apartamento, convidava-o para as festas. Mas Gustavo tornava-
se cada vez mais arredio.
- Vou pra quê? Pra ficar na sua sombra? – disse certa vez.
Até que um dia, finalmente, o golpe final: quando chegou para treinar, o gerente Otávio
Costa o chamou para conversar num canto:
- Infelizmente, teremos que rescindir o seu contrato.
- O quê? – o menino quase chorou.
- Você não está correspondendo. Eu sinto muito. Passe amanhã em meu escritório,
para receber os seus direitos.
Gustavo foi correndo procurar André. Seu sonho de criança não podia terminar assim.
Mas ao chegar no prédio do amigo, foi barrado por um segurança:
- Onde pensa que vai?
- Vou falar com o meu amigo. Qual é, cara? Você sabe quem eu sou!
- Não sei de nada, não. O senhor André está recebendo um pessoal muito importante
e pediu pra não ser incomodado.
- Senhor André... – repetiu Gustavo, sem acreditar. – Olha aqui, meu chapa, nós
somos amigos! De infância, crescemos juntos! Fala com ele, eu tenho certeza que...
- Sinto muito, garoto. É melhor você ir andando.
Gustavo chorou a noite toda. Sentiu um ódio enorme do amigo. No momento que mais
precisava, ele não o quis receber. Sentiu vergonha. Agora terá que deixar o alojamento
do clube e voltar para a vila como um fracassado, com o rabo entre as pernas.
- Isso não vai acabar assim! – jurou, entre dentes, tendo uma idéia maligna.

Estamos vendo agora Gustavo entrando numa rua escura. Caminha rápido, sem olhar
pros lados, receoso de ser reconhecido.
Chegou numa construção bonita, onde estava escrito: Limoeiro Futebol Clube. Pediu
pra conversar com o técnico.
- Então você conhece o André? – perguntou o técnico, pra confirmar.
- Sim. Joguei com ele a vida toda.
- E por que quer nos ajudar?
- Ele me traiu. É um safado.
- Pois então fale.
Gustavo conhecia André muito bem, e sabia que o amigo tinha um ponto fraco. Deu
todas as dicas e garantiu: se seguissem seu conselho, a vitória era certa.
E assim se deu.
A partida entre Palmeiras e Limoeiro transcorreu sem novidades, com as duas equipes
demonstrando um certo desinteresse, tocando a bola de lado e arriscando pouco. Na
arquibancada, Gustavo roia as unhas e xingava à cada ataque perdido do Limoeiro:
- Droga! Será que esses caras não entenderam o que eu falei?
E o jogo seguia para seu final. Até que, aos trinta e cinco minutos, um dos atacantes
do Limoeiro invadiu a área e chutou estranho, meio de lado, só roçando a bola de leve.
Enganado, André pulou para o lado errado e a bola entrou de mansinho no outro
canto.
- Gol!! – vibrou Gustavo, junto com a torcida.
O jogo acabou e a torcida do Palmeiras não perdoou:
- Frangueiro! Frangueiro!
O garoto saiu de cabeça baixa, amparado pelos colegas. Na saída, Gustavo passou
por ele, sorrindo de orelha a orelha e comentou, maldoso:
- A vida é assim.
O amigo não retrucou.

No jogo seguinte, André não era mais o titular. Ricardo reassumiu a posição, mesmo
sentindo um pouco de dor.
- O treinador achou melhor te preservar – disse o experiente goleiro para André,
consolando-o – Você ainda é muito jovem, tem muito chão pela frente.
O garoto entendeu. E dias depois estava de volta ao time juvenil.
Nesse meio tempo, Gustavo conseguiu uma vaga no Limoeiro, como presente pela
ajuda que prestara. E logo se destacou. Era de longe o melhor atacante do time.
Enchia os adversários de gols, de todos os tipos.
E o inevitável aconteceu:
“Amanhã, Palmeiras e Limoeiro, pelo torneio de juvenis”, dizia uma nota no jornal.

A câmera vem se aproximando do estádio. Mostra as arquibancadas, quase vazias,


poucos torcedores de lado a lado. Agora focaliza o centro do campo, onde as equipes
estão perfiladas. Mostra André com a camisa do Palmeiras, cabeça baixa e Gustavo,
com a camisa do Limoeiro, apreensivo. Era a primeira vez que os dois se enfrentariam
– nunca antes na vida estiveram em lados opostos.
O juiz dá a saída.
Os primeiros minutos foram nervosos, com os times errando muitos passes. Mas com
o tempo os ataques começaram a se acertar.
Aos vinte minutos, Gustavo recebeu livre na ponta direita. Foi levando, passou por um,
passou por dois, André se posicionou. Gustavo entrou na área, sem olhar para o
amigo e chutou. André defendeu.
- Ooh!! – fez a torcida.
Pouco depois, novo embate: bola cruzada na área, Gustavo recebeu na frente de
André, tentou passar por ele mas o amigo, agora adversário, se jogou e tomou-lhe a
bola.
Quando levantou-se, sorriu amarelo para Gustavo.
- Tudo bem, cara? – arriscou.
Gustavo saiu sem responder.
O relógio marca agora trinta e dois minutos. O time do Palmeiras não consegue
segurar a bola no ataque e lá vem o Limoeiro de novo. Gustavo recebeu novamente
na direita, deu um drible no pobre zagueiro, invadiu a área e chutou com raiva. A bola
passou pelo André, mas explodiu na trave!
- Droga! – gritou, a plenos pulmões, o rosto vermelho.
O juiz deu escanteio.
Gustavo se colocou entre os defensores do Palmeiras, procurando a melhor posição.
André ficou na frente dele. A bola veio e os dois pularam. Em câmera lenta, vemos os
amigos saltarem em direção à bola, num lance parecido àquele no início da história.
Mas dessa vez o goleiro leva a melhor – dá um soco na bola antes que o atacante
pudesse pôr a cabeça nela.
- Só tem um jeito de me superar – disse André, ao passar por Gustavo, caído. O amigo
levantou-se e o encarou. André não desviou o olhar. O juiz veio logo:
- Opa, nada de briga! Olha que eu meto o cartão.
Cada um vai para o seu lado.
No lance seguinte, Gustavo, mais uma vez, surge livre na área mas André não sai, fica
esperando. Gustavo, então, vai chutar daquele jeito esquisito, mas é derrubado por
trás. Pênalti.
André põe as mãos na cabeça. Gustavo apanha a bola e põe na marca.
O atacante toma posição. Respira fundo. Olha para o amigo, a poucos metros dele. O
estádio está em silêncio. Dá pra ouvir a respiração dos dois.
Passa um filme na cabeça de Gustavo. Todos os momentos que passou com o amigo,
as alegrias, as lutas, a realização do sonho de criança. A inveja que sentiu do sucesso
do amigo. A forma desonesta com que lidou com a situação.
A consciência pesou. André era mais que um amigo, era um irmão. E agora, o seu
irmão estava bem á sua frente, como adversário!
O juiz autorizou. Gustavo olhou para o chão. Seus olhos marejaram.
Correu para a bola. André permaneceu parado. O chute saiu forte, mas sem direção.
Todos no estádio, surpresos, vêem a bola ganhar altura e cair na arquibancada atrás
do gol.
André olhou para o amigo, surpreso. Gustavo deu um sorrisinho de canto de boca.
André entendeu. Correu para o amigo. Os dois se abraçaram, comovidos.
E o estádio irrompeu em aplausos.

MORAL: uma grande amizade é tudo que temos na vida. Não permita que a inveja, ou
qualquer sentimento negativo, destrua a relação que você tem com as pessoas de
quem você gosta.

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