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Curso de Wicca

1) Apresentação do Curso

2) Fundamentos Históricos:
a) Bruxaria e Paganismo
b) A Inquisição perseguiu bruxas?
c) A Wicca é a Antiga Religião da Deusa?

3) Fundamentos Mítico-Religiosos:
a) Conceitos iniciais
b) As Divindades
c) Os Elementais
d) A Magia

4) Fundamentos Ritualísticos:
a) Instrumentos Mágicos
b) A Roda do Ano
c) Os Sabás
d) Os Esbás
e) Estrutura de um ritual
f) Iniciação

5) Paralelos:
a) Wicca e Xamanismo
b) Wicca e Cristianismo
c) Wicca e as religiões orientais

6) Fundamentos da prática e da vivência

7) Bibliografia
1)Apresentação do Curso

por Jan Duarte

Atualmente, existe uma grande quantidade de material sobre Wicca, na Internet, nas livrarias ou
mesmo nas bancas de jornal. O crescente interesse no assunto, em especial por um público mais
jovem, causou uma multiplicação de fontes de consulta, as quais, talvez pela própria demanda,
não passam por um processo de seleção rigoroso antes da sua publicação. Com isso, a qualidade
editorial desse material é muitas vezes duvidosa, quando não está, simplesmente, recheado de
conceitos superficiais ou definitivamente errôneos.
A intenção desse curso que disponibilizamos é justamente proporcionar ao interessado na Wicca,
que busca conhecimento sobre o assunto, uma fonte confiável, em especial nos aspectos
históricos dessa doutrina, que são comuns e constantemente deturpados.
O que pretendemos, portanto, é propiciar uma sólida base teórica e rudimentos da prática, a partir
do que o iniciante nesse caminho poderá desenvolver com segurança os seus conhecimentos.
Não queremos, no entanto, com essa iniciativa, estabelecer códigos doutrinários ou
intrometermo-nos em questões relativas a crenças individuais: isenção e rigor são os princípios
que norteiam a formulação desse curso.
Dessa forma, desejamos um feliz encontro a todos que se servirem desse material, na esperança
que ele venha sanar as dúvidas e questionamentos com que, comumente, temos lidado.

Jan Duarte

2)FUNDAMENTOS HISTÓRICOS

BRUXARIA E PAGANISMO

Nos meios de comunicação, em boa parte da literatura específica sobre o assunto e, em especial,
nos conceitos adquiridos pela maioria das pessoas que travam seus primeiros contatos com o
tema, as palavras bruxaria e Wicca apresentam-se, se não como sinônimos, pelo menos com
significados bastante semelhantes.
Embora o uso, no decorrer dos últimos anos, tenha consagrado essa semelhança, chegando
mesmo alguns autores a definir Wicca como "a bruxaria moderna", é importante perceber essa
designação pode não ser correta e, poderia, mesmo, ser evitada. Existe uma série de motivos para
isso, que mostraremos ao longo dessa primeira parte do nosso curso. Nesse primeiro momento,
buscaremos apenas mostrar no que consiste a figura da bruxa, dentro das concepções religiosas e
míticas da humanidade, e levantar algumas questões acerca dessa figura.
A bruxa surge em basicamente todos os folclores: não adianta apelarmos, nesse caso, para as
raízes da palavra em português, sua etimologia, para compreendermos o seu significado, pois
mesmo a origem desse termo é incerta. O que existe de definitivo, nesse caso, é um conjunto de
atributos, de qualidades, que definem um determinado personagem mais do que, simplesmente, o
seu nome. Nas inúmeras línguas do mundo, vivas ou mortas, esse personagem ganhou um nome
que, ao ser traduzido para o português, resulta "bruxa". Aquele conjunto de atributos, qualidades
ou práticas comuns a essas bruxas de milhares de nomes é, por sua vez, chamado de "bruxaria",
em português.
No entanto, ao contrário do que se tem querido divulgar ultimamente, esse conjunto de atributos
que definem uma bruxa é, desde a mais remota antiguidade e em todo o mundo, caracterizado
pela prática do "mal", ou pelo menos de malefícios diversos, através de meios que incluem
desde o uso da magia ou de algum conhecimento secreto com propósitos egoístas ou nefastos, até
a associação com espíritos malignos ou, mais modernamente, demônios.
"Bruxa", portanto, nunca foi um termo utilizado para designar sacerdotes ou sacerdotisas de uma
determinada religião, ou pessoas que usavam seus conhecimentos para práticas benfazejas.
Sempre foi um termo pejorativo, ou que inspirava temor. As pessoas chamadas de bruxas, ou
acusadas de bruxaria, foram, ao longo dos milênios da civilização, justamente os "bodes
expiatórios", a quem se atribuíam àqueles malefícios, reais ou imaginários, que afligiam o povo
sem que este pudesse compreendê-los.
O antropólogo Evans-Pritchard1 nos conta o caso por ele observado entre os Azande, um povo
africano. Um jovem havia se ferido no pé ao caminhar pela mata, e essa ferida infeccionara e
demorava a cicatrizar. O fato da ferida infeccionar não perturbava o jovem, pois isso fazia parte
do seu cotidiano. O que lhe causava espanto, e lhe fazia atribuir aquilo à bruxaria, era
justamente o fato dele, habituado a caminhar descalço pela mata, ter se distraído a ponto de ferir
o pé. Portanto, os males que fugiam do habitual, certamente eram obra de bruxos.
A contraparte da bruxa ou do bruxo, ao longo das eras, foi à figura do "curandeiro", ou do
"xamã", ou ainda do mago ou feiticeiro. A estes era atribuído o poder de utilizar, muitas vezes,
aqueles mesmos métodos das bruxas, mas para o bem da comunidade. Até mesmo a Inquisição,
como veremos em outra parte, fez uma nítida distinção entre "feiticeiros" ou "curandeiros" e
bruxas, em um determinado momento da sua existência, tolerando os primeiros e perseguindo as
últimas2.
Fazendo um apanhado ao longo das diversas tradições religiosas e folclóricas que temos notícia,
portanto, podemos dizer que a bruxa foi, sempre, a anti-religiosa, ou anti-sacerdotisa, e que a
bruxaria sempre figurou, simbolicamente, como a própria negação da religião, ou daqueles
valores associados ao bem-comum. Justamente por causa disso é que o termo foi usado, durante
os séculos de perseguição católica, para designar suas vítimas, mas esse é um assunto ao qual
retornaremos em outro momento desse curso.
Se deixarmos de lado, no entanto, as questões puramente semânticas, poderemos distinguir na
literatura um outro aspecto da bruxa: a iniciadora, aquela que, por sua atuação, obriga a
mudança. Deve ficar claro, no entanto, que essa interpretação não surge no seio das concepções
populares: ela surge através da manipulação poética dessas concepções3.
No conjunto dos mitos gregos, por exemplo, que nos foi legado através da poesia épica, temos as
figuras de Circe e Medéia. A primeira podia transformar os homens em animais; a segunda,
cozinhava as pessoas em seu caldeirão para rejuvenescê-las, ou curá-las. Essas "bruxas" surgem,
claramente, como transformadoras, como símbolos da provocação de mudanças internas,
inevitáveis para que um obstáculo seja superado ou para que um novo estado de consciência seja
alcançado. Ulisses não deixaria jamais a ilha de Circe e retornaria a Ítaca, se não percebesse que
seus homens haviam sido transformados em porcos4.
Nos contos de fadas, que tomaram forma próxima da que conhecemos na Idade Média, mas cujas
raízes são imemoriais, a figura da bruxa é sempre presente e, de forma geral, surge ainda nesse
papel de transformadora, ou de provocadora de transformações. Ao confrontar o homem com
seus medos, com seus preconceitos ou com a morte, ela o obriga a "renascer", a transformar-se e
seguir em frente com sua missão.
Essa confrontação com a morte e conseqüente renascimento está enraizada, no entanto, em outro
conjunto de concepções que foram, mais ou menos modernamente, agrupadas e designadas sob o
rótulo geral de paganismo.
Embora a palavra "pagão" tenha adquirido, já há muito tempo, o significado de "não-cristão", ou
simplesmente de "não-batizado", seu significado original refere-se aos habitantes do campo, aos
agricultores, cujo conjunto de concepções próprias os distinguia dos habitantes das cidades. Para
essas pessoas, a idéia de sazonalidade, de um tempo que envolvia ciclos de morte e
renascimento, era muito presente.
A confrontação com a morte, na forma de períodos de inverno, ou de seca, era cotidiana, bem
como era cotidiana a idéia de que, após esse período de morte aparente, um novo período de vida
se seguiria, num ciclo infindável. É necessário compreender, no entanto, que mesmo nessas
culturas generalizadas como pagãs, as bruxas tinham o seu papel de confrontação, de desafio,
mas era dos sacerdotes, ou do povo, a responsabilidade de cumprir os ritos necessários para
garantir o próximo ciclo. As bruxas, nesse caso, eram o que deveria ser enfrentado, o que
instigava a mudança, mas era justamente a sua derrota que assegurava a sobrevivência. Elas
representavam o individualismo, em sociedades onde a coletividade era fator preponderante para
a sobrevivência.Voltaremos, certamente, a esses temas em outros momentos deste curso. No
entanto, a partir dessas primeiras noções, podemos já esboçar um contrasenso: a Wicca, ao invés
de ser "uma espécie de bruxaria", seria antes uma doutrina que se aproxima dos cultos de
manutenção e sazonalidade que, por suas características essenciais, evitavam a bruxaria e seus
efeitos.
A partir de que princípios, então, se estabeleceu a idéia que a Wicca seria uma "religião da
bruxaria", e que aquelas pessoas que foram supliciadas pela Inquisição foram chamadas de
bruxas por serem pagãs?
Este será, justamente, o assunto do próximo tópico do nosso curso. Por enquanto, devemos reter
as duas idéias principais, e refletir sobre elas: paganismo significa manutenção de um equilíbrio
natural, e bruxaria é justamente o desafio, a quebra desse equilíbrio.
Lançamos, portanto, dois pontos para reflexão, duas questões que deverão continuar presentes
durante toda essa primeira parte do curso:
A Wicca é "bruxaria" porque rompe com padrões e conceitos pré-estabelecidos,
em favor de uma ordem social relativamente distinta?
ou
A Wicca é "paganismo" porque busca manter padrões e conceitos atemporais,
relacionados a valores que são, por natureza, perpétuos?

Notas:
1
Evans-Pritchard, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.
2
ver, a esse respeito, Nogueira, Carlos R. F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário,
1995.
3
Em relação à interpretação literária da figura da bruxa, agradeço os esclarecimentos e a
pesquisa de Ana Duarte.
4
Existem inúmeras traduções e publicações da Odisséia. Aconselhamos, em especial, a tradução
de Carlos Alberto Nunes, publicada pela Ediouro, por ter preservado a métrica do original grego.
A INQUISIÇÃO PERSEGUIU BRUXAS?

Encerramos o tópico anterior do nosso curso com duas perguntas que não são, necessariamente,
auto-excludentes. Questionamos se a Wicca pode ser considerada como bruxaria, levando em
conta que este termo foi empregado para designar práticas que rompiam com padrões pré-
estabelecidos de conduta social, ou se poderia ser chamada de paganismo, uma vez que baseava-
se em ritos que, ao contrário, destinavam-se a manter uma ordem atemporal, ou seja, preservar
os ciclos naturais.
As pessoas que se detiveram nessas questões, provavelmente chegaram à conclusão que, em
certos casos, ambas as respostas poderiam ser afirmativas e, em outros, pelo menos uma delas
seria negativa. Se encararmos a Wicca como "bruxaria", teremos que retirar dessa palavra o
cunho malévolo e demoníaco que a ela foi atribuída, conforme mostramos no texto. Se a
considerarmos simplesmente como "paganismo", estaríamos deixando de lado uma série de
outros fatores que compõem a prática da Wicca.
Vê-se, portanto, que ainda não temos elementos suficientes para fazer uma definição clara da
Wicca, em relação ao lugar que ela ocupa entre as diversas práticas religiosas da humanidade, ou
mesmo em relação ao seu papel social. Nesse tópico, procuraremos fornecer mais alguns
elementos que serão úteis para essa definição.
Um dos temas mais explorados nos livros de autores populares sobre Wicca, se refere à
perseguição movida pela Santa Inquisição aos bruxos e bruxas. Segundo esses autores, desde a
Idade Média, inúmeras pessoas foram torturadas e queimadas pela Igreja, acusadas de bruxaria, e
estas pessoas nada mais eram do que praticantes de antigas religiões pagãs. Alguns autores, como
Laurie Cabot1, chegam a fazer uma verdadeira apologia aos wiccans atuais, colocando estes
como "herdeiros dessas mulheres injustiçadas", ou mesmo como responsáveis por "resgatar essa
barbaridade cometida contra nossos ancestrais pagãos", ou coisas semelhantes.
Sem dúvida alguma, a disseminação dessa idéia serve como ótima peça de propaganda: desperta
entusiasmo e paixões. No entanto, ela é intrinsecamente falsa, e deriva de uma fraca
compreensão dos mecanismos da Inquisição e de interpretações que, embora tenham tido algum
destaque nas primeiras décadas do século XX, são hoje ultrapassadas.
Vale a pena, portanto, nos determos um pouco no estudo da Inquisição, para entendermos o que
era realmente essa "bruxaria" que ela combateu, quem eram as "bruxas" que ela perseguiu e qual
o verdadeiro papel desse fenômeno na Wicca.

A Inquisição na Idade Média

Ao contrário do que muitos pensam, não houve, durante a Idade Média, praticamente nenhuma
perseguição às bruxas pela Inquisição. Essa instituição católica foi criada no século XIII, quando
o regime feudal e a própria Idade Média já começavam a demonstrar sinais de declínio, e com
objetivos que, a princípio, não incluíam nenhum tipo de opressão à população, em si.
O objetivo da Igreja, ao criar a Inquisição, era combater as heresias, que eram dissidências dentro
do próprio seio da Igreja. As diversas seitas heréticas, prenunciando de certa forma o movimento
de Reforma do século XVI, reclamavam uma maior austeridade da Igreja e, principalmente, uma
maior aproximação aos Evangelhos. A maioria dos líderes heréticos eram pessoas cultas,
profundamente versados em Teologia, cuja oratória impressionava bastante a população, quando
comparada aos dos padres comuns, geralmente ignorantes. Além disso, sua postura, de retidão
moral e desprendimento material, era também profundamente contrastante com a da maioria dos
párocos locais, muitos dos quais mantinham amantes e filhos, além de serem, certamente,
apreciadores da boa mesa e da fartura. Alguns heréticos, como os cátaros, passaram a ser
conhecidos entre o povo como os "perfeitos".
As heresias, portanto, representavam um duplo desafio para a Igreja. Granjevam simpatia e
atraíam fiéis pela sua representatividade espiritual e, ao mesmo tempo, atraíam a adesão de
alguns nobres, senhores feudais, que estavam cansados da intervenção da Igreja nos negócios de
Estado, assim como, certamente, cobiçavam as suas terras. Na região da Occitânia, na França,
esse processo tomou proporções verdadeiramente alarmantes, com diversos senhores de famílias
tradicionais da aristocracia fundiária declarando-se cátaros e protegendo os heréticos.
Foi dentro desse contexto que a Inquisição foi criada. Com o propósito de erradicar as heresias,
ela chegou a levantar uma cruzada contra os cátaros, que culminou com o cerco de Montségur,
onde os últimos que resistiram foram forçados a se render e, em seguida, foram mortos e
queimados.
No decorrer desse processo, que levou anos, e no período seguinte, quando focos esparsos de
resistência herética foram sendo paulatinamente eliminados, os poderes dos inquisidores foram
crescendo. Dependendo do local onde atuavam, poderiam ou não estar subordinados às
autoridades seculares; da mesma forma, eram razoavelmente livres para promover confisco de
bens e de terras, não só dos acusados, mas também de sua família e de quem suspeitava-se ser
associado a eles. O ofício de Inquisidor, portanto, era, além de prestigioso, altamente lucrativo.
Quando as heresias foram completamente sufocadas, portanto, era interessante para os
inquisidores conseguir novos inimigos para combater. Um dos alvos escolhidos foram os judeus.
O outro, as bruxas, sendo a bruxaria considerada a maior das heresias.

A Idade Moderna e as bruxas

Foi somente a partir da segunda metade do século XV que a Inquisição voltou-se contra a
bruxaria, num processo que atingiu o seu auge no século XVI e que, no século seguinte, já havia
arrefecido bastante. O racionalismo instaurado na Europa a partir do século XVIII deu o golpe
fatal nesse processo, embora as últimas leis contra a bruxaria somente tenham sido revogadas em
princípios do século XX. Essas leis, no entanto, já visavam mais proteger as pessoas de boa fé da
ação de místicos aproveitadores do que, propriamente, combater a bruxaria.
É de fins do século XV a obra emblemática dessa fase da chamada "caça a bruxas", o Malleus
Maleficarum, conhecido também como "O Martelo das Feiticeiras", dos inquisidores alemães
Kramer e Spranger, publicado em 1484. Na sua introdução à edição atual dessa obra2, Rosemarie
Muraro faz uma análise bastante elucidativa das causas que motivaram essa verdadeira histeria
coletiva, que levou à morte cerca de 30 mil mulheres na Europa Ocidental. Ela aponta, em
especial, a profunda misoginia da Igreja, nessa época, como uma das causas principais da
perseguição: o Malleus está repleto de citações e trechos que apontam a mulher como fraca e
naturalmente propensa a ser tentada e, assim, associar-se ao demônio. Essa misoginia da Igreja,
aliás, não era nova, e remonta aos escritos teológicos de Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino, entre outros.
Outra causa apontada por aquela autora é o início da ascenção da classe médica, que buscava
desmerecer como superstições toda a sabedoria popular a respeito de ervas e remédios naturais.
As parteiras, em especial, foram alvo de dura perseguição e acusadas de provocar a morte dos
bebês para ofertá-los ao demônio. Henrique Carneiro, professor da USP, faz uma análise bastante
acurada desse fenômeno, em especial, em sua obra A Igreja, a Medicina e o Amor.
Somente essas causas, no entanto, aliadas à possibilidade de ganhos pessoais pelos inquisidores e
pela própria Igreja, não são suficientes para explicar completamente porque muitas pessoas
foram acusadas de bruxaria por seus pares e, além disso, porque elas, muitas vezes, confessaram-
se bruxas, dando detalhes dos ritos pretensamente diabólicos que praticavam. Para isso,
precisamos entender quem eram essas "bruxas" e o contexto social em que elas viveram.

Quem eram as bruxas?

Nas primeiras décadas do século XX, a antropóloga e folclorista inglesa Margareth Murray
publicou uma série de obras onde defendia que aquelas bruxas que foram queimadas nos séculos
de perseguição eram, na verdade, praticantes de antigos ritos pagãos de fertilidade. Seu livro
"The Witchcraft Cult in Western Europe" veio a influenciar, posteriormente, a própria criação da
Wicca, no sentido que descrevia as bruxas como sacerdotisas de uma religião pagã, cujos deuses
haviam sido, pela Igreja, associados ao demônio.
Embora não totalmente desprovida de valor, essa obra tinha sérios problemas, que foram
imediatamente apontados por outros estudiosos. As que se seguiram, porém, continham
verdadeiras excentricidades e absurdos, tais como afirmar que toda uma dinastia inglesa tinha
sido formada por sacerdotes dessa "religião da bruxaria" e que Joana D'Arc havia sido vítima de
um sacrifício ritual. Mrs. Murray, portanto, acabou por ser ridicularizada e seu trabalho, embora
contivesse alguns poucos elementos pertinentes, deixado de lado.
Não se pode afirmar, portanto, que as bruxas mortas pela inquisição eram, de qualquer maneira,
seguidoras de uma religião pré-cristã, e que por isso tenham sido perseguidas. Na verdade, ainda
na Idade Média, toda a população da Europa Ocidental era já profundamente cristã - a conversão
dos últimos povos "bárbaros" já se iniciara desde o século IX, com Carlos Magno, e foi levada a
cabo efetivamente, inclusive com o uso da força. Na verdade, o pensamento cristão e o próprio
cristianismo são fatores determinantes da mentalidade da época medieval.
Portanto, todas as mulheres (e homens) que caíram nas garras da Inquisição eram,
indubitavelmente, cristãs. O que havia, certamente, e que já fora apontado por vários outros
estudiosos antes de Margareth Murray, como Carlo Ginzburg ou mesmo Jacob Grimm, era uma
sobrevivência de determinados costumes pagãos, no seio da população, como aliás existem até
hoje, mas de forma alguma uma sobrevivência do paganismo, como um conjunto.
O professor Carlos Roberto Nogueira3, aliás, eminente pesquisador da bruxaria e da Inquisição
na Espanha, nos aponta que a própria Inquisição, por orientação papal, tendia a ser tolerante com
aquelas populações que conservavam antigos ritos pagãos, indicando que estas o faziam apenas
por terem tido uma "cristianização deficiente". No entanto, o rigor se aplicava plenamente
quando os acusados de bruxaria eram cristãos por formação e costumes, pois estes eram, na
verdade, os supremos heréticos: haviam negado a Deus e à sua religião e entregado-se,
voluntariamente, ao conluio com o demônio.
Mas quem eram essas pessoas? Laura de Mello e Souza, ainda que atendo-se unicamente ao
contexto das colônias portuguesas, nós dá claros exemplos4. Eram, sobretudo, pessoas que
despertavam a ira, a inveja e a maledicência de seus conterrâneos, ou por serem mulheres
sensuais, ou ainda por serem pessoas excêntricas, e, sobretudo, por serem pessoas que usavam de
um certo sincretismo religioso, geralmente fruto da ignorância, em suas práticas comuns. Essa
pesquisadora nos cita, entre muitos outros, o caso de um certo José Januário da Silva, que
confessou voluntariamente à Inquisição que usava, entre outras práticas, padres-nossos e aves-
marias para curar insolações. Cita-nos, igualmente, o caso de um padre condenado pela
Inquisição como bruxo, cujas "curas milagrosas" geralmente incluíam variadas práticas sexuais
com suas pacientes.
As pessoas, portanto, condenadas pela Inquisição, passavam longe da figura romântica de
sacerdotes e sacerdotisas de cultos secretos, preservados desde tempos neolíticos através de uma
suposta tradição oral. Ao contrário, eram pessoas comuns, geralmente iletradas e ignorantes,
profundamente cristãs, que por algum motivo despertavam a ira de seus semelhantes, que lhes
atribuíam toda sorte de malefícios, ou eram assaltadas por terríveis crises de consciência, frente
aquilo que, no seu imaginário, contrariava a doutrina que deviam professar. Os motivos da ira ou
das crises de consciência, invariavelmente, gravitavam em torno da sexualidade, de diferenças
raciais, ou do sincretismo religioso.
As "bruxas", nesse contexto, e seus vôos em vassouras, suas reuniões em lugares ermos - os
sabás - e seus constantes e animalescos contatos com o demônio, foram unicamente fruto da
imaginação do povo e da doutrina da Igreja. Nunca existiram. Sua "realidade" foi somente
estabelecida face um determinado contexto social que, como em várias outras épocas e lugares
da História, as produziu.

O porquê das bruxas

Em 1770, os índios Anasazi, do Novo México, chacinaram uma aldeia vizinha sob a acusação de
bruxaria. Era a única aldeia Anasazi que havia se convertido ao cristianismo. Tendo a sua pátria
invadida, seus costumes confrontados com aqueles dos brancos e a sua própria sobrevivência
cultural ameaçada, essa foi à reação daquele povo5.
Da mesma maneira, nos séculos XV e XVI, a Europa presenciava as profundas mudanças que
iriam conduzi-la do feudalismo à formação do Estado Moderno; da absoluta participação da
Igreja nos assuntos relacionados ao governo até a seu progressivo afastamento dessa esfera de
influência; da ilha constituída por uma Europa continental centrada e cercada pelos mares e pelos
infiéis até uma Europa que confrontava, pela primeira vez, novas terras e novos povos. Num
campo paralelo, os grandes pensadores europeus, liderados por uma elite erudita italiana, que
nunca se afastara da influência direta de Roma, começava a contrapor aos valores cristãos uma
série de valores pagãos, herdados da Antiguidade Clássica, por intermédio do movimento que se
chamou de Humanismo. Por um outro lado, uma série de crises intestinas, guerras e pestes,
assolavam essa mesma Europa. Além disso, alguns religiosos atreviam-se a atentar contra a
própria Igreja, iniciando o movimento conhecido como Reforma.
Nesse contexto de crise, onde uma série de valores tradicionais arraigados ao longo de, pelo
menos, cinco séculos, eram colocados em xeque, a Europa reagiu da forma que era esperada:
criou as suas bruxas e procurou matá-las. Tudo que recendesse, ainda que longinquamente, a
uma forma de desafio, de transformação desses valores, foi taxado de bruxaria. Onde se via uma
reminiscência de paganismo, ou de sincretismo religioso, que era uma ameaça à integridade
cristã, isso era bruxaria. Onde se via uma forma de sexualidade explícita, em oposição a uma
moral rígida, isso era bruxaria.
Todas as fantásticas e aterradoras descrições de rituais que, a partir desse ponto, foram feitas
pelos acusados e condenados, nada mais eram do que aquilo que os seus acusadores queriam
ouvir. As orgias dos sabás, os sacrifícios humanos, a presença física do Diabo nesses sabás, na
forma de um homem, de um cachorro ou de um bode, as relações sexuais antinatura, as práticas
mágicas que destruíam colheitas, adoeciam as mulheres, tornavam os homens impotentes, tudo
isso existiu apenas na imaginação dos inquisidores. No entanto, foi colocado na boca das suas
vítimas da forma mais violenta possível, com requintes de crueldade e horror. As pessoas
submetidas a esse tratamento confessariam de bom grado qualquer coisa, por mais absurda que
fosse, unicamente para serem livradas da tortura e poderem usufruir, o mais rápido possível, da
morte.
A Inquisição, portanto, nunca perseguiu bruxas, como alguns manuais de Wicca querem fazer
crer. A Inquisição criou as suas próprias bruxas e criou, mesmo, a figura da bruxa e da bruxaria
como foi legada à posteridade, a partir dos seus próprios temores. Nesse ponto, a criação
romântica foi muitas vezes suplantada pela realidade: mais do que simples sacerdotes e
sacerdotisas de um culto mal interpretado e estigmatizado, as bruxas foram representantes da
mudança, dos tempos que estavam por vir. Essas sacerdotisas da religião do inconformismo,
pobres, ignorantes e, sobretudo, inocentes, foram à parcela popular de um tempo que, enquanto
as queimava, glorificou nomes como o de Erasmo de Rotterdam e de Thomas More.
Esse é o ponto para reflexão que surge desse tópico do nosso curso. As idéias e valores vistos
naquelas bruxas, mortas pela Inquisição, sobreviveram como símbolos de mudanças sociais, ao
passo que a própria instituição eclesiástica da Inquisição, embora não tenha acabado, mas apenas
mudado de nome, perdeu a maior parte da sua força e representatividade. Portanto, o que serve
melhor aos atuais praticantes da Wicca? Serem os "descendentes" de supostos praticantes de um
culto que nunca existiu, ou serem, de alguma forma, participantes nas mudanças que se fazem
necessárias em nossa sociedade?

Notas:
1
Cabot, Laurie. O Poder da Bruxa. São Paulo: Campus, 1990.
2
Muraro, Rosemarie. Uma Breve Introdução Histórica in Kramer, Heinrich e Sprenger, James.
Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1995.
3
ver, a respeito, Nogueira, Carlos Roberto F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário,
1995.
4
Souza, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
5
ver, a esse respeito, meu artigo intitulado Sacrifícios Humanos, Canibalismo e Bruxaria, na
seção "Os Textos" do Mito e Magia.
A WICCA É A ANTIGA RELIGIÃO DA DEUSA?

Seria inútil começarmos a falar diretamente nos conceitos e práticas da Wicca sem que
determinadas meias-verdades, crendices e mistificações fossem abordadas e esclarecidas. Dessa
maneira, embora essa primeira parte do nosso curso possa ter o demérito de desfazer algumas
ilusões ou, de qualquer forma, diminuir o glamour intrínseco à bruxaria, ela é extremamente
necessária para que seja atribuída uma dimensão correta aos conceitos que desenvolveremos em
outras partes.
No tópico anterior, aludimos ao fato que a "bruxaria" que foi perseguida pela Igreja, durante a
Idade Moderna, foi um fenômeno criado pela Igreja e pela população, e pouco ou nada tinha
de paganismo, bem como não tinha relação alguma com a prática de qualquer religião estranha
ao cristianismo. No entanto, nos resta aludir ainda a uma argumentação freqüente nas obras sobre
o assunto: a de que a Wicca seria o "resgate" de uma Antiga Religião da Deusa, que seria
corrente na Europa Ocidental pré-cristã, tendo mesmo raízes neolíticas.

A "Religião da Deusa"

Antes de nos situarmos no espaço e entrarmos no contexto da Europa, cabe percorrermos o


tempo e tentar localizar, seja em que parte do mundo for, a existência de uma "Religião da
Deusa", específica, que se enquadre, mesmo que vagamente, naqueles preceitos que se diz serem
resgatados pela Wicca.
Na verdade, as únicas evidências que apontam para um culto exclusivo a uma divindade de
caráter feminino, seja na forma de "Deusa-Terra" ou mesmo de "Deusa-Mãe", datam do período
conhecido como Paleolítico, que se estende, de forma mais ou menos flexível, desde 100.000 até
10.000 anos a.C. Evidentemente, não existe nenhum tipo de registro escrito desse longo período
de tempo, e tudo que se tem de "positivo" a respeito da religiosidade humana dessa época são
simples conjecturas, apoiadas em algumas poucas evidências arqueológicas, como estatuetas de
pedra e barro, a exemplo da famosa Vênus de Willendorf. O que eram essas estátuas, como eram
utilizadas e em que contexto, ninguém pode precisar.
Esta é uma época pré-agrícola. O ser humano dependia, em tudo, da caça e da colheita, ou seja:
dos frutos da terra, daquilo que lhe era oferecido pela natureza. A partir disso, supõe-se que se
tenha desenvolvido um culto da fertilidade, que estaria, portanto, vinculado à figura feminina. A
Terra - entendida como "todo o lugar", ou seja, terra e céu - era a divindade central (ou talvez
única) desse culto e, por ser a fonte da vida, a geradora, foi associada à mulher.
A partir do Neolítico, quando a agricultura começa a se desenvolver e os processos da
fecundação e da concepção passam a ser melhor entendidos pelo ser humano, já não se pode
traçar com exatidão a existência de um culto matriarcal exclusivo. Registros que datam da
Civilização Minóica (cerca de 4000 a.C.), em Creta, mostram um certo privilégio de uma
divindade feminina, uma "senhora das serpentes", mas surgem ao lado da representação de
virilidade do touro sagrado.
Em épocas posteriores e em outras culturas, a figura de uma Deusa-Mãe, autogerada e criadora
da vida, permanecerá existindo, mas sempre secundada pela figura de um deus-consorte,
geralmente associado ao céu estrelado, ou ainda por um filho-divino, que a fecunda, morre e
torna a nascer dela, numa representação dos ciclos naturais.
Dessa forma, uma "religião da Grande Deusa", completamente centrada na figura feminina, se
algum dia existiu, foi numa época suficientemente remota para que toda noção dela tenha
desaparecido, sendo substituída por um culto dos opostos, onde a dualidade Deusa-Deus dava a
tônica da manutenção da vida. Hoje em dia, mesmo entre povos que mantém um estilo de vida
aproximado ao que se poderia supor existir há milhares de anos atrás, como os aborígines
australianos, não se encontram nenhum resquício dessa unilateralidade.

A Europa Pré-Cristã

Cumpre definir, antes de mais nada, o que seria essa "Europa Pré-Cristã", antes de analisarmos
diretamente a presença de uma religião orientada para a figura de uma Deusa, nesse local. A
idéia de "pré-cristã" é bastante vaga, mas podemos situá-la, talvez, em todo o período que
antecede o século IV d.C., quando o Cristianismo foi adotado como religião oficial do Império
Romano. Nesse momento, no entanto, este Império já está em plena decadência, e pouco depois
iria desmoronar, dando início ao que chamamos de Idade Média.
Se formos nos estender, portanto, a todo o período que vai do início da Idade do Bronze até fins
do Império Romano, teríamos pelo menos 4500 anos de História para considerar como
abrangendo essa "Europa Pré-Cristã". No entanto, talvez apenas nos últimos dois mil anos desse
período é que podemos falar, efetivamente, em Europa Ocidental. Antes disso, o foco da
civilização européia girava em torno do mar Egeu e do Mediterrâneo, com gregos e,
posteriormente, romanos.
A religião grega - ao menos sob a forma que foi chamada de mitologia - é bastante conhecida,
mas, de uma forma geral, bem pouco compreendida. Como nos mostra Jean Pierre Vernant 1, não
havia entre os gregos nada que se aproximasse de um "texto sagrado", ou ao menos uma classe
sacerdotal. Não havia nenhum tipo de centralização ou um culto unificado, que incluísse todas as
inúmeras divindades descritas nos mitos, mas antes cultos locais, de divindades tutelares que
protegiam a pólis ou daquelas que eram especialmente reverenciadas pelos camponeses. Entre
estes últimos, existiam figuras de deusas-mãe, como Deméter, mas seu culto era dividido com
deuses extremamente populares, como Dioniso. Entre as famílias aristocráticas, por outro lado,
era comum o culto aos heróis, dos quais essas famílias diziam descender.
Na verdade, tanto a Grécia quanto Roma, que lhe herdou em grande parte os mitos, não
constituíram sociedades propícias para o desenvolvimento de qualquer tipo de religião matrifocal
dominante. Pelo contrário, os valores dominantes nessas sociedades eram essencialmente valores
masculinos, o que gerou, inclusive, o anacronismo costumeiro de definir gregos e romanos como
"machistas".
Devemos nos voltar, portanto, para os povos que, através de migrações e invasões, vieram a
ocupar o oeste da Europa, sendo que alguns desses povos resistiram ao cristianismo até o século
X d.C. Desses povos, que foram agrupados sob o título geral de "bárbaros", podemos destacar os
Celtas e os povos nórdicos.
No entanto, cairemos aqui num novo impasse. Embora muito tenha se escrito sobre os Celtas e o
papel que a mulher ocupava em sua sociedade, quase nada se conhece de efetivo sobre sua
religião, em especial da religião dos Celtas do continente. O que se conhece, principalmente, é o
relato tardio de Júlio César, no seu De Bello Gallico, que é uma interpretação romana daquilo
que ele supunha ser a religião celta. Se alguma coisa se recuperou da religião dos Celtas
insulares, isso foi, igualmente, devido à cristianização tardia da Irlanda, da interpretação que os
missionários católicos fizeram dessa religião e, principalmente, da tradição literária da Irlanda e
do País de Gales que é, por sua vez, uma coleção de poesias épicas, similares às gregas, e não um
texto canônico.
De qualquer forma, não há nenhuma garantia que os Celtas do continente tivessem crenças
semelhantes, e muito menos os mesmos deuses, daqueles da ilhas. Mircea Eliade2 nos mostra a
dificuldade em estabelecer ou reconstituir esse panteão e, indo além, demonstra os diversos
paralelos entre o que nos restou da religião celta e as religiões do Vale do Indo. A presença das
deusas-mães, nesse caso, está atestada e possui um caráter mágico-simbólico incontestável, mas
nenhum tipo de supremacia específica. Barry Cunliffe3, professor de Arqueologia Européia da
Universidade de Oxford, ao descrever o sistema religioso dos Celtas, nos fala, ainda, na
formidável tropa de divindades femininas que aparecem sob vários nomes, como consortes de
deuses tribais masculinos, sendo protetoras de nascentes e rios, ou simplesmente como 'mães-
divinas'.
Entre os povos do norte, especialmente os Germanos, o que havia era uma religião guerreira,
onde ao menos surge a idéia de uma deusa primordial, nos seus mitos da criação4, mitos estes
que, a exemplo dos outros povos que citamos, são encontrados igualmente na forma de poesia
épica e não de textos sagrados. Suas deusas ocupam lugares secundários frente os poderosos
Odin, Thor, Loki e outros, e algum destaque é obtido apenas por Freyja. Na verdade, nessa
mitologia nórdica, ao menos é mencionado um local de morada após a morte para algum outro
membro da sociedade a não ser os guerreiros.
Voltaremos, no entanto, aos Celtas, Germanos e outros povos que ocuparam a Europa Ocidental
no período pré-cristão, bem como à sua mitologia e religião, em outros momentos desse curso,
bastando, nesse ponto, a constatação que não existia, entre eles, nenhum tipo de religião
exclusivamente matriarcal.

Então, o que é a Wicca?

Como vimos, é insustentável a tese de que a Wicca seja um "resgate" de uma Antiga Religião da
Deusa em voga na Europa pré-cristã, e muito menos uma "sobrevivência" desta suposta religião,
uma vez que não existe nenhum indício que indique que ela sequer tenha existido.
Indiscutivelmente, no entanto, há uma série de costumes e superstições que faziam parte do
cotidiano dos povos que vieram a habitar a Europa Ocidental, sendo que alguns destas tradições
devem provavelmente remontar a épocas ainda anteriores e outras terras, de onde esses povos se
originaram. Muito disso sobreviveu ao longo das eras no seio da população, da mesma maneira
que, hoje em dia, fazem parte do nosso imaginário popular e dos nossos costumes diversas
sabedorias que nos foram legadas pelas etnias que formaram nossa população. Algumas dessas
antigas tradições européias foram, mesmo, incorporadas pelo Cristianismo e transformadas em
parte integrante desta doutrina, ao longo, principalmente, da Idade Média, num processo de fusão
e sincretismo. Portanto houve, como já falamos em nosso tópico sobre a Inquisição, uma
sobrevivência de tradições pagãs, mas não uma sobrevivência do paganismo.
Em meados da década de 1950, um funcionário da Coroa Britânica chamado Gerald Brosseau
Gardner lançou, em um breve intervalo, dois livros, chamados "Witchcraft Today" e "The
Meaning of Witchcraft". Nesses livros, aparece pela primeira vez a palavra Wicca, e a idéia que
ela seria um resgate e uma preservação da antiga religião pré-cristã da Europa. Pouco se sabe de
concreto a respeito da vida de Gardner, a não ser aquilo que pode ser comprovado por registros,
ou seja, o fato dele ter vivido muitos anos no Oriente como funcionário britânico e,
posteriormente ao lançamento dos seus livros, alguns dos seus atos públicos. As opiniões sobre
ele são polêmicas. Houve quem o chamasse de "grande mestre", bem como muitos o chamavam
de "dirty old man" (velho sujo). Mas suas alegações de ter sido iniciado numa espécie de
"bruxaria tradicional" por uma certa "Old Dorothy", e coisas semelhantes, foram confirmadas
apenas pelos seus admiradores e seguidores.
O que se pode afirmar, a partir de seus livros, é que ele utilizou amplamente duas referências,
embora nem sempre citando as fontes: um livro do folclorista amador inglês George Leland,
chamado "Aradia, o Evangelho das Bruxas" e as obras da antropóloga e folclorista inglesa
Margareth Murray, que, à época de Gardner, já estavam completamente desacreditadas. O
primeiro livro, de Leland, data de 1899 e é igualmente obscuro em suas fontes. Trata de uma
suposta tradição de feiticeiras italianas, as Strega, que lhe teria sido confiada por uma dessas
mulheres (cuja existência real não pode ser estabelecida). Quanto à obra de Margareth Murray, já
nos referimos a ela no tópico anterior deste curso.
Deve-se acrescentar, ainda, que, na época que Gardner escreveu, havia na Inglaterra e na França
um enorme interesse por ocultismo, em suas mais variadas vertentes. Esse interesse já não se
comparava com a verdadeira febre de ocultismo das décadas anteriores, que deu origem a
algumas ordens herméticas, seitas satânicas e personagens como Mme. Blavatsky e Alesteir
Crowley, mas ainda era vivo o suficiente para promover a notoriedade quase imediata de tudo
que se relacionasse ao "oculto" ou ao "mágico". Prenunciava-se, igualmente, nesses tempos em
que o continente europeu ainda se recuperava dos traumas da Segunda Guerra, aquilo que viria,
na década seguinte, constituir a contracultura e o seu interesse premente por uma religiosidade
alternativa.
Todos esses fatores, no entanto, podem ser considerados de menor importância. Se extrapolarmos
livremente o que se retira do trabalho original de Gardner, talvez seja lícito chegar às seguintes
conclusões: sendo uma pessoa naturalmente interessada por folclore e misticismo, Gardner
provavelmente descobriu, ao longo de seus anos no Oriente, várias similitudes entre as tradições
orientais e as lendas e mitos das Ilhas Britânicas. A partir disso, ele costurou tais elementos, junto
com ritos e símbolos tirados da tradição esotérica ocidental e da Magia Cerimonial para, como
era comum na sua época, criar o seu próprio sistema. Acrescentou a esse sistema, a Wicca,
outros elementos que faziam parte de seu cotidiano e dos modismos culturais de sua época,
como o naturismo. Isso não bastaria, no entanto, para dar a esse sistema a autenticidade, ou a
autoridade necessária e, por isso, ele se utilizou de um recurso que já havia, antes, sido usado
por vários outros autores e que era, igualmente, comum: atribuiu a esse sistema uma antiguidade
que o validaria, a partir das teses de Murray e outros.
Com isso, no entanto, ele conseguiu atribuir à sua obra um caráter muito mais completo, em
termos de doutrina, e muito mais acessível, do que vários de seus contemporâneos e
antecessores. Não descambou para escândalos públicos, ou para o culto aberto ao Demônio,
como Alesteir Crowley, antes dele, ou Anton La Vey, depois. Pelo contrário, criou um sistema de
culto às divindades naturais, que tirava o caráter diabólico do demônio, resgatava a figura das
bruxas como mulheres incompreendidas e trazia regras explícitas que garantiam que seus
seguidores não podiam praticar o mal. Igualmente, não se isolou em uma sociedade
extensivamente hermética, acessível a uns poucos escolhidos, mas deixou em aberto a
possibilidade de um culto livre, ao qual todos poderiam ter acesso.
A obra de seus seguidores, revisitadores e mesmo de seus plagiadores, no entanto, nem sempre
fez jus aos princípios que parecem ter norteado a sua criação. A grande maioria dos livros que se
seguiram começaram a esvaziar a Wicca de seus princípios doutrinários e locupletá-la de
aspectos simplesmente populescos ou panfletários. O culto à natureza, o caráter ctônico das
divindades, começou a ser transformado em uma proposta simplesmente ecológica ou recheada
por lendas que passaram a ser encaradas como realidade. O papel da magia como auto-
transformadora, já longamente descrito e discutido desde os alquimistas, passou a um caráter
puramente prático e imediatista, onde a forma, a receita, era privilegiada em relação ao contexto.
O destaque dado às deusas-mães, representantes da fecundidade e da perenidade da Natureza, foi
apropriado por grupos feministas e contraposto à figura do Deus-Pai. A idéia romântica e
figurativa das bruxas supliciadas transformou-se em acusação e repúdio ao cristianismo.
Portanto, podemos afirmar com uma certa segurança, que a Wicca é um sistema filosófico,
mágico-religioso, criado em meados do século XX. Sua antiguidade, como reminiscência de uma
antiga religião européia, certamente está dispersa entre algumas de suas práticas, mas foi, antes
de mais nada, provavelmente um recurso utilizado pelo seu autor, de forma consciente ou não,
para justificar a sua criação. Podemos ainda dizer que muito do que se diz e faz a seu respeito foi
acrescentado posteriormente e, ao passo que algumas coisas vieram a completá-lo, a grande
maioria acabou por desvirtuar a intenção original, partindo para uma interpretação simplista dos
seus elementos constitutivos.
Dessa forma, encerrando essa nossa parte voltada a uma visão histórica, que foi necessariamente
breve e até certo ponto superficial, resta dizer que procuraremos, no decorrer desse curso,
desenvolver o que é nossa visão pessoal da Wicca, certamente interpretando e acrescentando
elementos, mas buscando, ao máximo, deixar de lado e desmistificar aquelas noções que não são
úteis ou produtivas para a compreendermos como um sistema, antes de mais nada, válido.

Notas:
1
Vernant, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1992.
2
Eliade, Mircea. História das Idéias e Crenças Religiosas, T.II, vol.1. São Paulo: Zahar, 1978.
3
Cunliffe, Barry. The Ancient Celts. New York: Oxford University Press, 1997.
4
Eliade, Mircea. opus cit.
3) Fundamentos Mítico-Religiosos:

CONCEITOS INICIAIS

Antes de começarmos a descrever e nos aprofundar naquilo que chamamos de fundamentos


mítico-religiosos da Wicca, uma pergunta talvez precise ser respondida, pergunta esta que, aliás,
surge constantemente e é debatida nos diversos meios onde se trata do assunto: a Wicca, afinal, é
uma religião?
Ao contrário do que possa parecer, não é fácil nem simples responder essa pergunta, e ela,
fatalmente, conduz à outra: em que consiste, enfim, uma religião? Utilizando uma única fonte
bastante conhecida1, encontramos pelos menos três definições de religião que cabem aos nossos
propósitos: "crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como
criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s)"; "a manifestação
de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos" e
"qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolve uma posição
filosófica, ética, metafísica, etc." Levando em conta que tais definições possam ser alternativas
válidas para se classificar algum conjunto de idéias, ou uma prática específica, como religião,
podemos tentar, então, confrontá-las com alguns fundamentos da Wicca, o que talvez venha a
responder a nossa pergunta e, igualmente, possa servir para que esses fundamentos sejam
gradualmente apresentados.
A primeira definição, portanto, é a crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais,
considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e
obedecida(s).
Uma crença é, antes de mais nada, uma concordância com algo em que se tem fé. Portanto, ela é
muito mais subjetiva do que objetiva. Na Wicca, assume-se a existência de determinadas forças,
que permeiam o mundo material, mas que não são, de forma alguma, consideradas como
sobrenaturais. Pelo contrário, essas forças seriam inerentes à natureza, e da mesma qualidade das
leis físicas que a regem, em nada se distinguindo dessas últimas exceto pelo fato que, em parte,
não tenham sido ainda objeto explícito de comprovação científica. Tais forças são, afinal,
modelos que explicam determinados fatos, o que não as diferencia da hipótese inicial de qualquer
proposição da ciência: afinal, uma hipótese é uma crença em que algo pode ser explicado de uma
determinada maneira.
No entanto, o corpo da definição que reproduzimos inclui a idéia que tais forças devem ser
adoradas e obedecidas, o que envolve uma idéia de personificação. Para que se deva "adorar e
obedecer" alguma coisa, está implícita a idéia que o contrário seria possível, que poderíamos
"desprezar" ou "desobedecer" essa mesma coisa. Nesse caso, teríamos aqui um contra-senso, a
partir da proposição que fizemos acima: podemos até mesmo não levar em consideração a
explicação científica para a Lei da Gravitação Universal, ou considerá-la errada, mas seria
impossível "desprezar" a ação da gravidade, ou ainda "desobedecer" essa Lei.
Dessa maneira, embora possamos afirmar que a Wicca se baseia na crença em determinadas
forças, que por serem inerentes à natureza, certamente participaram da sua criação, ela não se
baseia na idéia que essas forças sejam personificadas ou misteriosas, e portanto que precisem ser
obedecidas ou adoradas. Não há, na Wicca, o estabelecimento de uma hierarquia que submeta o
ser humano à ação e ao escrutínio de entidades sobrenaturais e super-humanas, mas antes a idéia
de que o ser humano não se distingue do todo da natureza e da criação, não estando, portanto,
submetido, mas antes interagindo com qualquer parte desse todo.
A conseqüência direta desta nossa primeira proposição é que, ao contrário da maioria das
doutrinas religiosas, não existe na Wicca nenhum tipo de conseqüência caso tais forças sejam,
simplesmente, ignoradas. Nenhum tipo de "castigo" se abate sobre quem não segue os seus
preceitos, nem nenhum tipo de "elite de bem-aventurados" é determinada entre aqueles que os
seguem. Alguém pode, por toda a vida, ignorar a existência da Lei da Gravitação, mas essa
pessoa não deixará de cair se tropeçar, exatamente como o físico que passar toda a sua vida
estudando as causas e conseqüências dessa lei.
A segunda definição que escolhemos é a manifestação de tal crença por meio de doutrina e
ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos.
Já estabelecemos acima que a idéia de crença, na Wicca, está ligada à existência de determinadas
forças que são inerentes à natureza. Essa idéia, em si, já estabelece a existência de uma doutrina,
entendida essa palavra como um conjunto de princípios que servem de base a um sistema
qualquer. Existe, efetivamente, uma doutrina wiccan, uma vez que existe toda uma série de
idéias e proposições que complementam e desenvolvem essa nossa primeira proposição, e essa
doutrina, em seu conjunto, lhe é própria. Como qualquer outro sistema, no entanto, a idéia de
propriedade não inclui necessariamente a idéia de exclusividade, ou mesmo de originalidade.
Ainda usando como comparação às ciências físicas, a Mecânica Quântica não poderia ter sido
desenvolvida sem a base estabelecida pela Mecânica Clássica e por outros ramos do
conhecimento. Assim, embora ela possua um corpo de concepções que lhe são próprias, existe
igualmente em sua base um outro corpo de proposições que serviram à sua formação.
Assim, embora a Wicca possua o seu corpo doutrinário próprio, este corpo é composto,
certamente, de proposições que são comuns a diversas outras manifestações, religiosas ou não,
sendo que o que cabe levar em consideração é a síntese que a Wicca faz dessas proposições. Já
no campo da maioria das religiões estabelecidas, o que se vê é uma necessidade quase absoluta
de originalidade, de afirmação de seus princípios como tendo sido "revelados", bem como,
muitas vezes, da afirmação desses princípios como sendo os únicos válidos. Podemos afirmar
com bastante segurança, no entanto, que isso nada mais é que resultado de um profundo
desconhecimento das próprias bases que formam uma determinada religião, seja ela qual for.
Aquele que resolve praticar a Wicca, portanto, deve ter em mente que a sua doutrina não é, de
forma alguma, exclusivista, bem como não pressupõe nenhum tipo de ascendência sobre
qualquer outra. Ao contrário, a ele cabe compreender e distinguir os diversos conceitos (bem
como a sua origem), que vieram a dar origem a Wicca e, além disso, ter bastante clara a noção
que esses conceitos não se prendem a nenhum tipo de revelação, a não ser se tomarmos essa
palavra no sentido de "o que se revela" a partir da própria natureza e existência, mas nunca no
sentido "do que é revelado". A partir desse corpo doutrinário, estabelece-se certamente um ritual,
mas ainda aqui é preciso dar um sentido restrito a essa palavra. Seria melhor encará-la, no caso
da Wicca, como um conjunto de práticas que são estabelecidas e consagradas pelo uso, mas de
forma alguma como um conjunto de normas fixas, estabelecidas canonicamente, e que precisam
ser seguidas de forma estrita e imutável. Ao contrário, existem inúmeras variações pessoais (ou
grupais) a partir de um conjunto básico de preceitos que, assim como a doutrina, foram
recolhidos e adaptados de várias fontes. Cumpre ressaltar que, havendo na Wicca um conceito de
crença bastante geral (como vimos) e que, assim, comporta e acolhe inúmeras variantes de
crenças pessoais específicas, necessariamente haverá, também, uma rica gama de práticas
pessoais que se adaptem a essas variações.
Agora, podemos depreender desses conceitos doutrinários e rituais a existência de preceitos
éticos? Por ética, normalmente se entende uma análise qualitativa de valores, em especial
daquilo que se julga certo ou errado, ou ainda do que constituiria o bem ou o mal. Podemos
dizer, sem medo de errar, que o estabelecimento dessas oposições, em especial sob a forma de
normas de conduta, é a tônica da imensa maioria das religiões estabelecidas, e constitui, mesmo,
parte indissociável do seu corpo doutrinário.
Se levarmos em consideração, no entanto, a época de formação da maioria dessas religiões e o
estágio de civilização (se é que esse conceito é válido) dos povos que as criaram, torna-se óbvia a
necessidade de estabelecer, a partir de uma autoridade divina, uma série de regras de
convivência que, política e economicamente, servissem aos propósitos desses povos. A religião,
ao sustentar esses princípios éticos, foi determinante e influiu diretamente na formação das
sociedades, ao longo de inúmeras eras da existência do ser humano. Tais regras chegaram,
inclusive, a caracterizar determinados povos e determinadas sociedades, e a lhes dar identidade
própria. Sem elas, seria a barbárie, na acepção estrita da palavra, e a indistinção.
No entanto, em nossa sociedade, existe uma real necessidade da interferência de princípios
religiosos na sua regulamentação? O Estado, e em especial o Estado democrático, não construiu
e constrói, por si só, o conjunto de normas que regulamentam o seu funcionamento e a
convivência entre os seus cidadãos? Poderíamos mesmo dizer que, sendo o "Estado" uma
entidade incorpórea, formado a princípio pela soma das vontades daquelas pessoas e instituições
que o compõem, é muito mais isento para estabelecer essas normas do que grupos formados por
relativamente poucas pessoas, e sujeitos a concepções baseadas em crenças que podem,
inclusive, ser arbitrárias.
Não se pode dizer, portanto, que a doutrina e o ritual próprios da Wicca resulte ou estabeleça
princípios éticos distintos daqueles que, de qualquer forma, já fazem parte da sociedade em que
seus praticantes estão inseridos. Suas regras, se é que existem, são as mesmas que possibilitam a
coexistência de quaisquer indivíduos dentro de um grupo social, e não decorrem, em absoluto, da
doutrina, mas sim da convivência. Por estar, por princípio, intimamente ligada à natureza, ou
ainda resultar desta, não cabe a Wicca fazer distinções que a própria natureza não faz, como entre
bem e mal, mas antes aceitar uma noção direta de conseqüências irrefutáveis de toda e qualquer
atitude humana, seja qual for o instituto que regule essas conseqüências - natural ou humano.
É bastante comum encontrarmos, em qualquer livro popular sobre Wicca, a afirmação que
"bruxos (sic) são pessoas comuns". Embora essa afirmação não seja feita com essa intenção, eu
concordaria com ela e a complementaria: por serem pessoas comuns, inseridas em outros grupos
sociais e atividades que regulamentam a sua conduta social, elas não precisam de nenhum tipo de
contribuição específica da sua doutrina ou da sua prática como wiccans para participarem desses
grupos. Evidentemente, isso implica numa responsabilidade específica: uma pessoa que não
possua uma consciência formada de sua cidadania, de seu papel social, dificilmente poderá
contar com sua opção doutrinária para formar essa consciência. Aqueles que precisam da religião
como uma espécie de "muleta social", não devem optar pela Wicca.
Passemos então à última definição que escolhemos para religião: qualquer filiação a um sistema
específico de pensamento ou crença que envolve uma posição filosófica, ética, metafísica, etc.
Essa definição pouco acrescenta àquilo que já discutimos. Ser wiccan, sem dúvida, significa
filiar-se a um sistema específico que, como já vimos, envolve uma forma de pensamento, num
sentido amplo, e alguma forma de crença, num sentido mais restrito. Esse sistema, sem dúvida,
envolve um posicionamento filosófico: aliás, creio não existir nenhuma dúvida que o que temos
feito, até agora, é uma discussão filosófica, em sua essência, desse sistema. Envolve igualmente
um posicionamento ético, ainda que não envolva uma interferência direta na ética. Envolve,
certamente, uma posição metafísica, uma vez que envolve conhecimentos racionais, e não
conhecimentos revelados, e busca, de qualquer forma, uma visão do mundo que vai além das
aparências, ou que expande essas aparências para uma percepção do que seria o real.
Portanto, embora certamente vaga e abrangente, essa última definição seria a que mais se
adequaria para definir a Wicca como uma religião. No entanto, devemos refletir que essa
definição poderia igualmente transformar quase qualquer coisa em religião, em especial a
ciência, que da mesma forma é um sistema de pensamento baseado em posições específicas, que
incluem aquelas citadas.Nesse ponto, restaria-nos ainda fazer algumas indagações, que se
referem principalmente ao porquê da necessidade de considerar a Wicca como religião, se
levarmos em consideração todas as limitações que apontamos acima, em relação à observância
estrita das várias definições dessa palavra. Esta necessidade não estaria centrada na idéia,
profundamente arraigada em cada um de nós e constantemente reforçada pela sociedade em que
estamos inseridos, de que "precisamos ter uma religião"?
Vale lembrar a frase de Sêneca, o Jovem (4 a.C. - 65 d.C.): "A religião é vista pelas pessoas
comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil"; ou ainda
Napoleão Bonaparte: "Religião é uma coisa excelente para manter as pessoas comuns quietas".
Dessa maneira, ao insistirmos em ver um caráter "religioso" em um determinado sistema, não
estaremos apenas reproduzindo mecanismos que acabam por sujeitar as pessoas a verdades pré-
estabelecidas, a mecanismos de controle social, e à submissão a certos indivíduos ou classes?
Quando nos referimos, em especial, a um sistema recentemente criado - ainda em formação, na
verdade - como a Wicca, estabelecer a priori que ele é uma "religião", ao adotá-lo, não é
simplesmente uma forma de ir ao encontro da aspiração social de que sejamos religiosos, de que
tenhamos religião? Nesse caso, não estaremos simplesmente substituindo os velhos conceitos por
outros, colocando-os exatamente no mesmo nível e, com isso, correndo o risco de tirar desses
novos conceitos à idéia primordial de liberdade de pensamento?
Tais questões precisam ser colocadas. Afinal, qualquer pessoa que se debruce sobre o estudo da
Wicca, seja em que nível for, na esperança de encontrar uma religião alternativa, não encontrará
nada nela além de uma religião. O seu objetivo já estará definindo, desde o início, aquilo que ela
conseguirá atingir, e ela estará irremediavelmente presa à sua necessidade de adotar uma religião.
Dessa forma, qualquer outra experiência, qualquer outro significado, somente será alcançado por
essa pessoa por acaso, no decorrer de um processo que, por si, já está limitado - e mais
provavelmente não será alcançado nunca. Tal pessoa, que "busca uma religião", pode
indistintamente procurar qualquer uma das religiões estabelecidas, uma vez que o que ela quer é
tornar-se religiosa, e nada além disso.
Vale a pena, portanto, refletir nos conceitos que apresentamos ao longo desse tópico. Ao
discutirmos o significado da palavra religião, apresentamos uma série de pressupostos que
podem aproximar a Wicca dessa palavra e, igualmente, afastá-la. A resposta, a interpretação
desses pressupostos é, certamente, pessoal, e será igualmente um espelho do que cada pessoa
espera encontrar.

Notas:
1
Para todas as referências semânticas desse texto, foram utilizadas definições retiradas do Novo
Dicionário Aurélio - Século XXI, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, na sua versão
eletrônica produzida pela Lexykon Informática Ltda. (1999).

AS DIVINDADES

É bastante difícil tentar apreciar a noção de "divindades", dentro de um contexto ligado a Wicca.
A maioria das obras mais modernas (ou populares) sobre o assunto concentra-se no obscuro
panteão celta ou adota um panteísmo que acaba por provocar mais confusões do que uma
definição clara do que (ou de quem) seriam os "deuses" wiccans. Essa fixação nos Celtas - em
especial no panteão insular que, como vimos anteriormente, é o melhor conhecido - ou ainda
uma simples adoração a deusas e deuses de diversas culturas e de diferentes momentos da
história humana, apreciados fora de seu contexto original e tomados apenas pelas suas
"características", parece resultar, afinal, de uma compreensão incompleta das obras dos
precursores da Wicca.
Se olharmos, por exemplo, a totalidade da obra de Gardner, não encontraremos referência direta
a nenhuma divindade em especial, ou ao menos uma referência a um culto direto a algum tipo de
divindade. Vagamente, ele cita um culto a uma antiga Deusa-Mãe e, mesmo quando faz uma
referência direta à Diana, em seu "A Bruxaria Hoje"1, ele reitera que "o problema de investigar
tal caso é saber se o culto é antigo ou se tem origem recente", e ainda que "o nome Diana parece
invenção moderna".
Na obra do casal Janet e Stewart Farrar, que consideramos de especial importância pela sua
análise e interpretação dos temas pertinentes a Wicca, a polaridade deusa-deus é especialmente
privilegiada, mas de forma arquetípica: existem inúmeras representações alegóricas divinas
desses dois princípios, que traduzem de forma mais ou menos regular o tema solar e o tema da
fertilidade natural. Tais temas, segundo eles, teriam origens pré-históricas e figuras como Osíris,
Dioniso e Cristo seriam "apenas algumas de suas formas posteriores"2.
A idéia de que as divindades da Wicca seriam apenas figurações de conceitos que transcendem a
imagem geralmente aceita de divindades, como potestades celestes com existência própria e
sobre-humana, aparece bem clara em uma outra obra clássica da Wicca, o "Os Mistérios
Wiccanos"3, de Raven Grimassi. Embora tenhamos algumas sérias restrições a diversas
passagens desse livro, o autor parece ir direto ao ponto quando apresenta os diversos deuses e
deusas existentes na história humana como criações, que "precisam de nós tanto quanto
precisamos deles". Indo além, Grimassi coloca a idéia de um "Deus-Pai" e de uma "Deusa-Mãe"
como arquétipos, preexistentes à criação de qualquer um dos deuses individualizados.
Há, portanto, uma quebra entre os principais teóricos da Wicca e as alusões que fazem alguns
autores que a popularizaram. Enquanto os primeiros apóiam-se em bases que, afinal, possuem
um certo arcabouço antropológico, e buscam estabelecer uma reverência (e não um culto,
propriamente dito) a determinados princípios naturais, os segundos imaginam a Wicca como uma
religião que, basicamente, segue as mesmas regras de adoração e subserviência a divindades
personificadas que interferem diretamente na vida humana. Estes, em última análise, apenas
tornam a Wicca um substitutivo plausível para as grandes religiões estabelecidas, uma forma de
culto paralelo, ou ainda de culto antagônico e, assim, podem, quando muito, satisfazer a
necessidade de pessoas que buscam outras divindades que não aquelas que lhes foram legadas
pela tradição familiar, mas que em nada diferem dessas.
Os Aspectos da Divindade

Antes de mais nada, é necessário entender que a Wicca, em seus princípios, deixa um espaço
enorme e abrangente para as crenças pessoais. Nesse espaço, embora seja exigido daquele que
procura se denominar "bruxo" um mínimo de consciência crítica, cabe toda uma série de
concepções que necessariamente precisam ser respeitadas. Não se pode falar em dogma, pois se
utilizarmos esse conceito, estaremos negando uma das principais características da magia, que é
ser uma forma de arte.
Na arte não há dogmas, pois na arte não há inabaláveis e intocáveis questões de fé: seria
impossível argumentar que Picasso pintava errado pois o certo seria a forma de Rembrandt
interpretar a realidade. Se cem fotos forem tiradas de uma mesma árvore, por cem pessoas
diferentes, teremos cem fotos diferentes, mas uma única árvore. Alguns prezarão o tronco, outros
as folhas, uma única folha ou flor, um detalhe de uma raiz, o conjunto encaixado na paisagem;
uns buscarão os verdes e marrons vibrantes, outros a luz e a sombra em preto e branco; haverá
outros ainda que, ao ver a árvore, esquecerão a máquina fotográfica e preferirão simplesmente
sentar-se sob seu tronco e aproveitar a sua sombra. E ainda haverá quem, ao ver a árvore, pense
em derrubá-la e transformar sua madeira em pequenos palitos de fósforo, pois a árvore é livre e é
de todos, pois a árvore pode ser sentida e aproveitada por cada um como bem entender, ao passo
que palitos são acondicionados em pequenas caixas e vendidos. Ainda abusando do exemplo, a
única realidade que pode ser apontada é que, enquanto for uma única árvore, mesmo assim ela
será milhões de percepções. Se transformada em palitos de fósforo e acondicionada em
caixinhas, ela deixa de ser árvore e passa a ser objeto.
Existem religiões que se baseiam na idéia da existência absoluta da divindade, enquanto outras
há em que essa noção é secundária. O budismo, por exemplo, é uma religião em que a existência
da divindade é secundária: existem "deuses", mas estes são finitos e mortais, ao passo que a
criação é infinita e constante, e os homens são regidos não pelos deuses, mas pelas suas próprias
ações. Exatamente por causa disso, muita discussão ainda existe (entre os não-budistas, é claro)
se o budismo seria ou não uma verdadeira religião, ou seria antes uma filosofia.
Já no caso da Wicca, temos visto um recrudescimento da noção que ela seria uma "religião da
Deusa". Já discutimos anteriormente a noção de que essa religião matrifocal centralizadora nunca
existiu, em momento algum da história da humanidade e, portanto, se atribuirmos um caráter
matrifocal a Wicca estaremos, sim, criando uma nova religião. No entanto, embora a palavra
"Deusa" tenha se tornado de uso corrente entre os adeptos da bruxaria, o que vem se observando
é um uso dessa palavra tão limitador quanto o uso da palavra "Deus" entre os cristãos. Ao criar-
se uma divindade suprema feminina, à qual - admitindo-se a idéia que o paganismo é politeísta -
os demais deuses e os seres humanos estariam subordinados, estaria-se novamente afastando essa
divindade dos Homens. A Deusa nada mais seria, dessa forma, que uma espécie de Jeová de
saias.
Qual seria, portanto, a noção de divindade, ou de divindades, dentro da Wicca?

A Deusa e o Deus

Nas palavras do bruxo americano A. J. Drew4, "wiccans acreditam na divindade tanto quanto
outras pessoas acreditam numa árvore. A árvore é real, podemos tocá-la, subir nela e cair dela.
Não é preciso fé para saber que ela existe. Ela está lá."
Essa colocação é bastante feliz, visto que revela um modo de pensar na divindade, dentro da
Wicca: não é necessário, realmente, ter fé na existência da divindade, visto que ela está presente
em tudo que nos cerca e em nós mesmos. Cada coisa é parte da divindade e, portanto, a nossa
existência é prova suficiente da existência da divindade.
No entanto, devemos compreender essa divindade e, dessa maneira, ela precisa ser representada
de alguma forma. Seria impossível compreender algo de tal forma abrangente se não fosse por
intermédio de representações, que traduzissem os princípios criadores, geradores e reprodutivos
da natureza para uma escala que fosse possível de abarcar pelo ser humano. Assim, costuma-se
dividir esse princípio divino em dois aspectos complementares: a Deusa e o Deus.
A Deusa é a própria representação da vida, do ato gerador e criador. Desde a mais remota
antiguidade, a capacidade de conceber a vida é tida como atributo feminino, mesmo porque o
papel do homem na concepção dos filhos foi apenas muito mais tarde compreendido. Nada mais
natural, portanto, que a Criação fosse atribuída a uma Grande Mãe, uma Senhora que dera à luz
todas as coisas que existem e que, a partir de seu próprio corpo, mantém todas as coisas vivas5.
A Deusa é, dessa forma, o próprio princípio vital. Ela é a Terra que, emergindo do informe caos
primordial, manifesta-se na Natureza em seu ciclo de nascimento, crescimento, morte e
renascimento. Também dessa forma, ela apresenta-se em três aspectos, cada um deles
representando uma fase específica desse ciclo.
A Deusa é a Donzela, representando tudo que está por nascer. É a luz da aurora anunciando um
novo dia que chega; as flores da primavera, repletas do pólen que gerará novos frutos; o frescor
de um riacho, recolhendo as águas que se tornarão um rio caudaloso. A Donzela é a juventude, a
Natureza vestida de seus mais fortes atributos sexuais. Ela é também a Caçadora, a representação
da força necessária à conservação das espécies.
A Deusa é também a Mãe, em outro momento. Apresenta-se aqui como a nutridora, farta em
frutos que alimentam o Homem e todas as espécies. É a maturação, o Verão pleno de calor e
acolhimento. A colheita farta e o amadurecer dos frutos. E, por fim, a Deusa é a Anciã,
representação do Inverno que se instaura, da chegada da morte e, também, da sabedoria que se
acumula com o passar dos anos. É a Senhora da Magia e da transformação, pois tudo que morre
há de renascer, como a própria natureza, ao chegar uma nova Primavera. Dessa forma, a Senhora
da Morte é também a Senhora do Renascimento.
Além dessa associação clara com as estações do ano, os três aspectos da Deusa associam-se
também com as fases da Lua. A Donzela abrange desde a Lua Nova até a Crescente, a Mãe da
Crescente à Cheia e a Anciã, da Cheia à Minguante.
Muitas religiões ancestrais possuíam uma deusa feminina primordial, normalmente considerada a
divindade criadora do universo. Esta deusa normalmente, nessas mitologias, gerara a si própria
ou existira desde sempre. Posteriormente, esta deusa gerara outros deuses, inclusive, em alguns
casos, aquele que viria a ser seu consorte. Na cosmogonia grega, expressa em Hesíodo, por
exemplo, Gaîa, a Terra, surge de Kháos, o abismo primordial, e é, de certa forma, o seu oposto: é
a primeira coisa com forma que surge do informe, do não-organizado. Ela é, evidentemente,
feminina, ao passo que Kháos é uma palavra neutra, assexuada. Em seguida, surge uma outra
personagem assexuada, Éros, que expressa o "amor primordial", como força que coloca o
universo em movimento, e não como atração entre os sexos. No entanto, é a partir de Gaîa que
vai surgir o primeiro personagem masculino, Óuranos, ou o céu estrelado, réplica da Terra que se
deita sobre ela, para gerar os seus demais filhos6. Seguindo essa tradição, a Wicca vê o Deus
como filho e consorte da Deusa.
Tal visão, entretanto, veio dar margem a interpretações equivocadas, nas quais a Deusa seria, de
alguma maneira, superior ao Deus, ou que o culto ao aspecto masculino da divindade seria
acessório. Na verdade, o que existe é uma espécie de duoteísmo, a crença em duas divindades
básicas, referindo-se ao aspecto gerador representado pela Deusa e ao aspecto fertilizador
representado pelo Deus - sendo conseqüentemente uma dualidade cooperativa. Dessa forma, não
existe competição ou prevalência de um dos aspectos - masculino ou feminino - sendo ambos
igualmente importantes, necessários e, mais ainda, indispensáveis um ao outro.
Da mesma maneira que a Deusa, o Deus guarda diversas faces, que também podem ser
associadas ao eterno ciclo de nascimento, crescimento, morte e renascimento da natureza. Ao
passo que a Deusa mostra suas faces nas variações da vegetação e do comportamento dos
animais, e nas fases da Lua, o Deus as mostra no caminho do Sol ao longo do ano. Assim, nos
primeiros dias da Primavera, ainda tênue no céu, o Sol, nos mostra a face do Deus menino, que
venceu o frio do Inverno e renasce. Conforme essa estação avança, o Sol, ganhando vigor e
permanecendo cada vez mais tempo no céu, nos mostra a face do Deus jovem, pronto a fertilizar
a Terra para que esta gere seus frutos. Com a chegada do Verão, o Deus atinge a sua maturidade e
torna-se o guerreiro, o protetor e o provedor. Temos os dias mais longos do ano, o tempo de
maior permanência do sol no céu e, a partir daí, sua tendência será diminuir essa permanência.
No Outono, com o encurtar dos dias, o Deus começa a assumir sua face de ancião para que, nas
longas noites de Inverno, ele finalmente morra para renascer na próxima primavera.
Este ciclo de morte e renascimento, espelhando a natureza no decorrer de um ano, ficará mais
claro quando falarmos, num próximo momento, da Roda do Ano. No entanto, a descrição feita é
suficiente para entender que, independentemente de denominações que as diversas culturas
possam ter adotado, a Deusa e o Deus, ao contrário de existirem apartados da vida na Terra, estão
profundamente ligados a ela. Aliás, poderíamos dizer que as figuras da Deusa e do Deus são a
própria representação da vida, com o seu delicado equilíbrio e com a relação de interdependência
de cada um dos seus aspectos, um não podendo existir de forma adequada, ou de nenhuma
forma, sem o outro.
A idéia do Deus como filho da Deusa, portanto, nasce unicamente do princípio básico que tudo
aquilo que existe deve nascer, e que a capacidade de gerar é tipicamente feminina. Tal noção é
mítica e simbólica, e pode ser levada em conta apenas nesse sentido, caso não se queira cair
numa regressão infinita. Aliás, toda tentativa de se explicar a Criação, seja ela mítica, simbólica
ou científica, cairá necessariamente nessa regressão infinita. Perguntar-se o que existia antes da
Deusa, ou antes de Deus, ou antes de Kháos, ou mesmo antes do Big-Bang, apenas nos
empurrará para ela. A idéia central aqui é o estabelecimento do equilíbrio, da organização do
mundo conhecido, quando o filho se torna amante, estabelecendo a capacidade da vida de se
auto-sustentar, num ciclo infindável.
Ao falarmos na dualidade Deusa-Deus, enfim, é importante que esta dualidade não seja
antropomorfizada. Representarmos cada uma dessas faces como um deus ou uma deusa
específica sempre dará uma idéia limitada, ou a visão de apenas uma parte de um conceito muito
mais abrangente. Mesmo se voltarmos ao exemplo dado da cosmogonia grega, com o casal Gaîa
- Óuranos, Terra e Céu, veremos que essas divindades primordiais não possuíam forma, nem
nenhum tipo de semelhança com os seres humanos, sendo simplesmente conceitos: embora
permeassem a vida humana, assim como toda a vida na Terra, não possuíam um papel ativo, de
interferência consciente nos assuntos humanos.
Na verdade, a idéia de equilíbrio representado pela adoção do conceito Deusa-Deus somente
poderia ser figurada (mesmo assim de forma incompleta) se usássemos como exemplo algum
grande ecossistema, como o da floresta tropical. Cada folha que cai, cada animal que morre,
reintegra-se ao ciclo da vida, transforma-se em sustento para cada ser que vive ou viverá. E a
vida seria impossível se a continuação desse ciclo for interrompida ou gravemente alterada.

A Existência dos Deuses Específicos

Vemos, portanto, que a noção básica de divindade, dentro da Wicca, é bastante diversa daquela
adotada em outras tradições religiosas ou mesmo filosóficas. Não se pode, aqui, falar em um
deus tonitruante, que vigia, agracia e pune os seres humanos, a partir de uma morada divina
situada em algum ponto da Terra ou do céu, de acordo com seus próprios desígnios. O que temos
aqui é uma noção que, embora seja muito mais difusa, é igualmente muito mais complexa, e que
pode ser figurada a partir da dualidade Deusa-Deus que descrevemos acima, mas ainda assim de
forma incompleta.
No entanto, se uma pessoa com algum conhecimento de mitologia, mas leigo em matéria de
Wicca, for consultar qualquer literatura específica sobre Wicca, irá deparar, certamente, com uma
profusão de nomes de deuses e deusas de diversos panteões, evocados de acordo com a
conveniência. A conclusão dessa pessoa certamente seria a de que wiccans cultuam, veneram, ou
crêem em antigas divindades, algumas pertencentes a outras religiões vivas (como o hinduísmo
ou o budismo) e outras pertencentes a religiões mortas (como os deuses celtas, gregos e
nórdicos), ou ainda que fazem uma mistura indistinta desses diversos panteões. Essa conclusão,
no entanto, seria equivocada, embora seja justo admitir que mesmo entre os wiccans ela não seja
incomum.
Seria importante distinguir, portanto, rito de crença: o rito da Wicca baseia-se nas figuras da
Deusa e do Deus, que podem ser figurados por uma infinidade de nomes. No entanto, a crença
da Wicca baseia-se na afirmação, encontrável em qualquer livro sobre o assunto, de que todas as
deusas são a Deusa e todos os deuses são o Deus, ou seja, de que qualquer divindade
específica que se use para figurar esses dois aspectos centrais da divindade é,
simbolicamente, válida. Tomando-se essas duas afirmativas em conjunto - referentes a rito e
crença - poder-se-ia justificar o uso de uma profusão de nomes de deuses e deusas, desde que,
independentemente do nome, haja a compreensão básica de que tais deuses e deusas são apenas
manifestações de determinados aspectos da divindade.
Assim, por exemplo, ao celebrar-se um ritual de fertilidade, poder-se-ia usar como parâmetro à
figura da deusa Eostre, deusa saxônica associada a esse aspecto, sem que isso queira
necessariamente dizer que se cultua ou venera-se essa deusa, individualmente. Naquele momento
e com aquele objetivo, a figura do feminino é eficazmente representada pelos atributos
conferidos àquela deusa, então o seu nome é utilizado, a partir de uma escolha pessoal, para que
esse simbolismo específico, esses atributos, não se percam em meio a uma infinidade de outros
símbolos e atributos que fazem parte do aspecto feminino da divindade. Ou seja: a fertilidade,
em sua imagem da primavera que se instala nos campos, é apenas um dos muitos aspectos da
Deusa, que por sua vez é apenas uma polaridade do todo. Mas, nesse momento, é este aspecto
que nos interessa para a realização daquele ritual em especial e, dessa forma, a "nomeamos" de
Eostre, como poderíamos nomear de Perséfone ou de tantas outras "divindades individuais" que
possuem as mesmas características simbólicas.
Esse é um enfoque. Mas permanece o nosso subtítulo, visto que ainda pode pairar a pergunta: a
Wicca aceita a existência individual dessas divindades? Para os wiccans, tais deuses e deusas são
apenas nomes que representam determinadas coisas ou são seres reais?
Embora, nesse ponto, caiamos em um terreno que é profundamente marcado por concepções e
crenças pessoais, vale fazermos algumas considerações para que possamos chegar a uma
concepção mais abrangente do assunto. Admitamos o seguinte: a divindade - aquele princípio
criador e mantenedor da vida ao qual nos referimos - existe. Esse princípio manifesta-se em
todas as coisas vivas e inanimadas, porém de formas diferentes. Para acessarmos esse princípio,
essa divindade intangível, são necessários canais de comunicação, formas tangíveis que
permitam, que possibilitem o nosso contato com ela, uma vez que ela é ampla o suficiente para
ser incompreensível. Esses canais seriam os diversos deuses.
Dessa forma, o ser humano, ao criar - sim, o termo é esse - inúmeros deuses e deusas, criou
formas de pensamento que lhe possibilitavam acessar, ou compreender melhor, a Divindade. A
crença das pessoas nesses deuses e deusas manteve abertos os canais de comunicação entre o ser
humano e a divindade, nas suas múltiplas facetas, dessa forma individualizadas. Mas a
Divindade em si não é a mera reunião de inúmeras figuras com forma humana, divinizadas ou
superlativadas, mas sim o amálgama dessas figuras, perdendo as características humanas.
O ser humano, portanto, que é criação da divindade, pois é parte do universo e guarda em si a
polaridade representada pela Deusa e pelo Deus, é igualmente criador de formas simbólicas, cuja
"divindade" é atenuada até o ponto que ele as possa compreender. Essas formas simbólicas são
por ele chamadas "deuses", e lhe possibilitam a comunicação com a Divindade.
Poderia-se dizer, dessa forma, que essas formas, esses inúmeros deuses, têm existência real, mas
não existência independente da humanidade. São reais pois são resultado da crença de milhares
de pessoas, por um longo período de tempo, e através deles canalizou-se uma incontável
quantidade de energia. Não são independentes da humanidade basicamente pelo mesmo motivo:
como são frutos da crença, apenas existirão enquanto essa crença se mantiver.
Imaginemos que um determinado povo, ou tribo, viveu durante séculos isolada em algum lugar.
No decorrer desse tempo, instituiu o culto aos deuses X, Y e Z, aos quais se dirigiam, prestavam
culto e homenagem, ofereciam sacrifícios, para abençoar suas colheitas, apaziguar as
tempestades, cuidar da fertilidade de seus animais e das almas imortais dos seus entes queridos
que se foram. Os deuses X, Y e Z não eram, certamente, A Divindade, pois esta não é
propriedade de um único povo, mas eram as formas que esse povo criou para acessá-la, e assim
existiam.
Imaginemos agora que esse povo foi dizimado por uma catástrofe ou doença, e que nunca se
tenha ouvido falar dele, dos seus costumes ou crenças. Os deuses X, Y e Z teriam morrido com
ele.
Imaginemos ainda que, pouco antes da catástrofe, um pequeno grupo tenha sido expulso da
aldeia ou cidade, justamente por crer apenas no deus X, e que esse grupo tenha se fixado e
florescido em outro lugar, e que resquícios de sua crença subsistam até hoje. Nesse caso, o deus
X teria sobrevivido e ainda existiria, por ser ainda um canal de comunicação em uso, ao passo
que os deuses Y e Z teriam morrido.

A bruxaria e os Deuses Antigos

Uma vez questionada a existência dos deuses ditos "pagãos", valeria a pena questionar a validade
da utilização ou do culto a esses deuses? Por qual motivo, sendo a Deusa e o Deus da Wicca uma
síntese já bipolarizada de todos os arquétipos masculinos e femininos que compõem o todo da
Divindade, seria usual dirigir-se aos arquétipos individuais? Por quê, havendo a identificação da
Deusa e do Deus com os ciclos naturais e sendo a sua união a síntese da própria Natureza, ou da
Divindade, não se estabelece simplesmente que a Wicca é o culto a esta divindade abrangente e
incorpórea?
Poderiam haver inúmeras respostas a estas perguntas. Uma delas, que vale não ser esquecida, é
que realmente existem wiccans que estabelecem sua prática como um contato direto à essência
da divindade, sem o uso específico de divindades simbólicas que auxiliem a sua compreensão.
Por outro lado, precisamos admitir que um culto a deuses e deusas, ou a um grupo de divindades
de um determinado panteão, pode ser uma maneira de canalizar de forma mais adequada a nossa
energia pessoal. Como no exemplo do ritual de fertilidade, que citei anteriormente, "enxergar" a
figura de um determinado deus ou deusa, com suas características e atributos bem palpáveis em
termos humanos, sempre é um meio eficaz de focarmos nossa atenção sobre aquilo que
desejamos. Nesse ponto de vista, a associação seria simples: como é mais fácil descrever uma
pessoa? Tentando enumerar suas inúmeras características através da nossa memória ou
simplesmente mostrando uma fotografia?
No que pese a validade de tais argumentos ou justificativas para a utilização de diversos deuses e
deusas como objeto de culto, há ainda um outro ponto de vista, o qual, este sim, consideramos
importantíssimo: se o que se busca é uma harmonização com a energia primordial, com aquilo
que, por falta de um nome melhor, chamamos de Divindade, deveríamos fazer o possível para
ampliar a nossa visão dessa divindade, e não para restringi-la.
É necessário compreender o que é uma "declaração de amor aos Deuses Antigos", tão falada nos
meios wiccans, uma vez que o praticante da Wicca precisa ter em mente que nenhuma religião
moderna é depositária dos conhecimentos e das práticas de milênios atrás. Muito disso se perdeu,
em especial no Ocidente, devido à interpretação dos cultos ditos "pagãos" pelo Cristianismo.
Além disso, a mente do homem atual é radicalmente diferente da de seus antepassados
longínquos: as concepções individuais de tais antepassados simplesmente não nos servem mais.
Cumpre, portanto, a qualquer pessoa que se disponha a praticar a Wicca, ou simplesmente a
conhecê-la, discernir que "declarar o amor aos deuses antigos" é simplesmente uma maneira de
dizer que se aceita a primitiva concepção de divindade. Essa concepção é a aceitação da
presença da divindade no mundo natural e a interação com a divindade. Estas eram as
características das crenças ancestrais, e é isso que deve ser valorizado, ao contrário de
simplesmente adotar, de forma indistinta e anacrônica, a forma de crer, pensar e ver o mundo de
culturas que já não existem.
A mentalidade ocidental, no entanto, acostumou-se à veneração. O Cristianismo, ao disseminar-
se no Ocidente, "empurrou Deus para longe dos homens", tornando a divindade uma coisa
longínqua, que mora num céu apenas atingível a custa de penas e obediência. O conceito da
divindade participante, presente em cada aspecto da vida por ser a totalidade da existência,
afigura-se estranho para as mentes educadas dentro dos padrões cristãos.
Muitas vezes, por isso mesmo, as mentes de alguns praticantes da Wicca cultuam a figura dos
"deuses pagãos" como se estes fossem os santos da Igreja Católica, e como se a Deusa fosse uma
espécie de Jeová travestido. Aferram-se a pedidos, oferendas, preces, exatamente da mesma
forma que fazem os seguidores de religiões "estabelecidas", apenas substituindo os nomes dessas
últimas "divindades" pelos daquelas. Tais pessoas, ao dizerem-se "bruxos", passam a acreditar
serem os verdadeiros descendentes de seitas que são pouco conhecidas até mesmo pelos
arqueólogos; recheiam o vazio de suas vidas (sem mito) com nomes estrangeiros; alienam-se na
defesa de supostos antepassados "espirituais" celtas, quando deveriam, talvez, com mais
propriedade e com a mesma riqueza cultural, buscar seus antepassados entre índios ou africanos.
Esse tipo de concepção adultera a própria base da Wicca como religião. Ao contrário do deus
cristão, a Deusa não está no seu trono celeste manipulando e julgando os seres humanos, mas sim
está em cada um dos seres humanos, permeia-os, como permeia todas as coisas. Os diversos
deuses e deusas não são seres humanos divinizados e colocados a postos para atender pedidos,
mas sim manifestações da Deusa e do Deus, ou suas múltiplas faces, igualmente presentes em
cada um de nós e em todas as coisas. Ao assumir isto, assume-se igualmente que a Wicca não é
uma antiga religião européia, mas sim uma forma de religiosidade viva e aplicável em qualquer
parte do mundo e por qualquer pessoa.
Aqueles que, ao aderirem a Wicca, o fazem como quem se associa a um clube, achando que com
isso estão conquistando o direito de ser o depositário de algum conhecimento milenar, poder usar
determinados símbolos e artefatos, ter de se alcunhar de algum nome repleto de consoantes, estão
vendo apenas a casca e o glamour da Wicca. Não estão, realmente, buscando um novo caminho,
mas apenas travestindo seu velho e desgastado caminho normal. Poderiam, com a mesma
facilidade e com o mesmo efeito, mergulhar em algum riacho, vestir um manto de algodão cru e
trocar seus nomes para Jacó, ou David, ou Aarão.
Assumir a presença da divindade, sentir a sacralidade de todas as existências, a permeabilidade
da Deusa e do Deus (ou dos deuses), é a verdadeira declaração de amor aos deuses antigos. Essa
deve ser a meta daqueles que praticam a Wicca.

Notas:
1
Gardner, Gerald. A Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras, 2003.
2
Farrar, Janet e Stewart. Oito Sabás para Bruxas. São Paulo: Anúbis, 1983.
3
Grimassi, Raven. Os Mistérios Wiccanos. São Paulo: Gaia, 2000.
4
Drew, A.J. Wicca for Men. New Jersey: Citadel Press, 1998. Não confundir com o "Wicca para
Homens", publicado pela Editora Madras em português, que é na verdade a tradução de uma
outra obra do autor, Wicca Spellcraft for Men.
5
ver, a respeito, Barros, Maria N. Alvim. As Deusas, as Bruxas e a Igreja. cap. I e II. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001.
6
cf. Vernant, Jean-Pierre. O Universo, os Deuses e os Homens. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
OS ELEMENTAIS

Uma vez que já discutimos o papel das divindades na Wicca, cabe agora discutirmos a relevância
e o papel de outros seres - os Elementais. Na verdade, pouco ou nenhum destaque é dado aos
Elementais nas obras comuns sobre Wicca, com exceção feita àquelas que se dedicam a uma
tradição específica, a Faery Wicca, ou "wicca das fadas"1. De toda a extensa bibliografia
específica que dispomos, apenas Raven Grimassi2 cita, mesmo assim de forma vaga, o papel dos
Elementais na Wicca, ao passo que Scott Cunningham3, o polêmico divulgador da "magia
natural", faz apenas alusão aos elementos, mas não a esses seres que, tradicionalmente, estariam
a eles associados.
Essa omissão, ao nosso ver, é imperdoável. Como já vimos anteriormente, a Wicca tem suas
raízes na Magia Cerimonial, ou Alta Magia, em especial no seu aspecto ritualístico, e em
diversos cultos baseados na natureza, comuns a todas as regiões do Globo, que poderíamos
(talvez) agrupar sob a alcunha de "xamânicos". Ambas estas tradições dão importância especial
ao papel dos elementos e, conseqüentemente, aos Elementais, embora sobre diferentes pontos de
vista. Dessa forma, uma abordagem da Wicca que menospreze esse papel é, pelo menos,
incompleta.
No entanto, esse é um assunto delicado e bastante vasto. Não poderíamos pretender, aqui, fazer
um amplo estudo sobre o tema, mas tentaremos, ao menos, estabelecer uma série de conceitos
que certamente auxiliarão aqueles que se dispuserem a fazer uma pesquisa mais aprofundada
sobre o assunto.

Os Quatro Elementos

A noção de que o Universo é formado por quatro elementos - Ar, Fogo, Água e Terra - nos foi
transmitida, no ocidente, a partir do legado grego, em especial o trabalho de Aristóteles. Essa
noção, no entanto, é muito mais antiga que o filósofo grego, e esteve disseminada, com todo o
seu simbolismo, por todas as sociedades ancestrais, persistindo ainda hoje, entre as sociedades
indígenas. Ela deriva de um profundo contato com o mundo natural, de uma observação
constante e acurada que, no entanto, não possuía um caráter explicativo, ou científico, mas antes
preocupava-se em perceber e conhecer os processos e os ciclos da natureza, e atribuir a estes
processos um caráter simbólico, abrangente e facilmente compreensível.
Esse contato com a natureza foi perdido, ou pelo menos relegado a um segundo plano, a partir do
momento em que o ser humano passou a se fixar em cidades. Segundo o antropólogo Felicitas
Goodman4,

"Os urbanos se divorciaram do seu habitat. A terra, o céu, a chuva, as plantas e os


animais não são seus parceiros na luta pela sobrevivência. Esta alienação se tornou
ainda mais pronunciada com o advento da industrialização, que eventualmente causou
a destruição dos cultivos tradicionais e a invasão do agro-negócio. (...) A terra, o solo,
nada é além do local onde se situam a manufatura, o comércio e os serviços."
Pode-se dizer, portanto, que a noção dos elementos naturais passou a ser encarada fora do seu
contexto original e, com isso, tais elementos vieram a ser adotados, incorretamente, como
constituidores da natureza, em primeiro lugar e, depois, com o avanço da ciência, foram
simplesmente abandonados e, nesse papel, substituídos por aqueles elementos constantes da
tabela periódica.
No entanto, os elementos não constituem uma forma de explicar do que as coisas são feitas, mas
antes qual é o caráter intrínseco de cada um dos seres e dos diversos fenômenos que regem a
natureza. Nascimento, vida, morte e renascimento de cada criatura, assim como o início, o
desenrolar, o transformar e o permanecer de cada ato estão convenientemente simbolizados pelo
papel do ar, da água, do fogo e da terra, no contexto natural, e devem ser compreendidos a partir
da interação com esse contexto. Ainda segundo Goodman, essa interação com o ambiente
constitui-se, na verdade, numa variável independente a ser considerada quando falamos da
religiosidade humana.
Dessa forma, segundo a tradição, o Ar seria o elemento dos inícios, o sopro divino, o próprio
elemento da criação. Ele está associado à vontade, ao pensamento criador e, em última análise,
ao próprio Verbo, a palavra que dá início à ação. Segundo os povos nativos da América do Norte,
o nosso espírito é feito de vento, e é dessa forma que penetramos no mundo material 5. A Água,
por sua vez, representa o movimento, a fluidez, os sentimentos que orientam a vida e que
impulsionam as ações. É a água que rega a terra e, fazendo a ponte entre esta e o céu, a fecunda e
propicia seus frutos. Se a Água é movimento contínuo e incessante, o Fogo, por sua vez, é a ação
transformadora, aquele que destrói para que um novo começo seja possível. Queimam-se os
campos, após a colheita, para que uma nova safra possa ser semeada. A Terra, por outro lado,
representa tudo que é perene, imutável, e que, portanto, está além do ciclo de mudanças da vida.
Ela abriga no seu ventre tudo que ainda está por nascer, bem como tudo que morre, e é no seu
seio que se processa a transformação de morte em vida. É, portanto, o elemento da magia e da
espiritualidade, por excelência.
Ao longo de incontáveis anos da história humana, as diversas sociedades atribuíram a cada um
desses elementos, seres que lhes eram próprios. Essas associações passam por criaturas "de carne
e osso", ou ainda árvores e pedras, e vão até determinados seres incorpóreos, ou ainda com
corpos sutis, que seriam, de acordo com a tradição específica, guardiões, regentes ou ainda
agentes desses quatro elementos, personificando as suas características intrínsecas. Esses seres, e
suas inúmeras variações, são os que agrupamos sob o título geral de "Elementais".

Os Elementais e as Tradições

Devemos à tradição esotérica ocidental a sistematização dos chamados Elementais, e é através


desse sistema que a maioria das pessoas veio a saber alguma coisa desses seres. Arthur Edward
Waite, renomado ocultista que viveu na virada do século XIX para o XX, nos diz:

"(...) é do conhecimento geral, desde os tempos mais remotos, que os quatro elementos
eram supostamente habitados por um enxame de vários tipos de inteligências, quase
todas subumanas, classificadas em quatro grandes espécies. O ar é habitado pela
amável raça dos Silfos, o mar pelas belas e encantadoras Ondinas, a terra pela raça
laboriosa dos escuros Gnomos, e o fogo pela gloriosa e sublime nação das
Salamandras.6"
Esse autor, citando um livro do Abade de Villars, publicado no final do século XVIII e intitulado
Comte de Gabalis, nos faz ainda uma rica descrição desses seres, das suas personalidades e
características físicas, bem como de suas esposas e filhos. Alerta, no entanto, sobre a "riqueza de
imaginação desses fantásticos devaneios", embora pouco a frente venha igualmente descrever
certos elementais com a mesma dose de imaginação, embora de maneira mais grotesca.
Antes de Waite, o célebre Eliphas Lévy já havia consagrado um capítulo do seu Ritual7 aos
"espíritos" que ele designa como elementos ocultos. Ele nos diz que tais espíritos têm "vontades
imperfeitas que podem ser dominadas e empregadas por vontades mais poderosas",
acrescentando que "os espíritos elementais são como crianças e atormentarão mais facilmente
aqueles que deles se ocupam, a menos que sejam dominados mediante uma elevada razão e
muito severamente". Prossegue descrevendo uma série de rituais, invocações e orações para
convocar e dominar os espíritos elementais.
Dentro do esoterismo ocidental, portanto, essas criaturas - silfos, ondinas, gnomos e salamandras
- são tidas geralmente como seres inferiores aos humanos, espécies incorpóreas aparentadas aos
anjos ou aos demônios, às quais deve-se dominar, sendo esse domínio o que possibilita a
realização do tipo de magia denominada Magia Branca, em oposição à Magia Negra, que
resultaria da dominação dos demônios, propriamente ditos.
Esse enfoque da Magia Cerimonial, embora não deva ser desprezado, não é em absoluto um
ponto de vista que mereça ser compartilhado por uma forma de religiosidade que estabelece as
suas bases no contato e na cooperação com a Natureza. Ao contrário, ele é fruto, justamente,
daquele processo que descrevemos acima, através do qual o homem urbano passa a enxergar o
seu habitat como uma espécie de serventia sua, como algo que deve ser subjugado para que sirva
aos seus propósitos e que é, por princípio, inferior a ele próprio. Foi, no entanto, a descrição dos
silfos, ondinas, salamandras e gnomos, suas "nações" e mesmo os seus "reis" - visão claramente
medieval, portanto - divulgada por essa tradição, que chegou com mais força até os dias de hoje
como sendo aquilo que constitui os chamados "elementais".
Busquemos, portanto, um outro enfoque, em outras tradições ou dentro do folclore e da
mitologia de outros povos, que possam nos dar uma idéia melhor do que seriam os Elementais e
de qual seria a sua relação com o nosso assunto, em especial. Na verdade, veremos que quase
todas as tradições - de caráter místico-religioso ou não - guardam em seu seio a idéia de que toda
e qualquer matéria possui alguma espécie de vida. Aliás, o próprio Levy8 nos afirma isso, ao
dizer que "em todas as partes o espírito trabalha e fecunda a matéria para a vida; toda matéria é
animada; o pensamento e a alma estão espalhados por todas as partes". Esses espíritos das
coisas, de forma mais ou menos antropomorfizada, foram descritos e relacionados por todas as
sociedades humanas, de forma tão mais completa quanto sua proximidade à natureza.
A antiguidade grega nos legou, por exemplo, a figura das ninfas, faunos e sátiros, espíritos
protetores: as árvores possuíam as suas dríades, enquanto o seu conjunto - bosque ou floresta -
tinha personalidade própria, a hamadríade. As montanhas tinham as suas orestíades, os cursos
d'água, suas náiades. Tais figuras, que esporadicamente se mostravam aos homens, não eram
divinas ou semidivinas, mas sim entidades que partilhavam o mundo humano, embora com uma
existência mais sutil, mais diáfana, e cuja corporificação era aquele "ente" natural que elas, de
alguma forma, habitavam, fosse ele mineral ou vegetal.
A tradição budista, em grande parte herdada do Hinduísmo, ao descrever os diversos planos de
existência, nos fala dos planos dévicos, nos quais, entre outras espécies de seres ainda
governados pelos desejos ou pelos sentidos, habitariam os caturmaharajika-deva, e entre estes os
yaksa, "espíritos dos bosques e da terra, dotados de um grande poderio ou potência, que ora são
benfazejos ou benéficos, ora são terríveis ou perigosos"9.
Por outro lado, diversos grupos indígenas que se utilizam de plantas de poder em rituais
xamânicos, descrevem suas experiências com esses alucinógenos como sendo proporcionadas
não pela planta em si, mas pelo espírito da planta, ou pela entidade que a habita como organismo
individual ou como espécie. Se levarmos em consideração as descrições publicadas por Carlos
Castañeda, por exemplo, veremos que o brujo Don Juan refere-se ao peyote como uma entidade
chamada Mescalito, vinculada àquele vegetal10. Aliás, as concepções xamânicas tradicionais
admitem a existência de três planos de existência, que interagem entre si, sendo o nosso próprio
plano o intermediário. No plano "inferior" - e aqui a palavra não tem sentido depreciativo -
habitariam justamente esses "espíritos das coisas", comumente chamados de animais, plantas e
cristais de poder, sendo estes uma espécie de guias, conselheiros e protetores do xamã.
Em outras mitologias e religiões, abundam igualmente os exemplos. Os celtas do continente
possuíam várias divindades femininas que eram, na realidade, personificações de cursos d'água.
O próprio Cernnunos, muitas vezes evocado como um deus, provavelmente era, antes, uma
espécie de espírito guardião dos bosques e dos animais que neles habitavam. As lendas dos celtas
insulares descrevem a raça mítica, profundamente versada em magia, dos Tuatha de Dannan, que
teria reinado sobre a terra e que, com o advento dos humanos, teria ido habitar o "submundo",
mantendo apenas contatos esporádicos com nossa realidade habitual. Nestes últimos, alguns
vêem a origem das insistentes lendas e contos sobre o "povo pequeno" - anões, duendes, gnomos,
etc.
Aliás, os contos populares, em todo o mundo, são povoados de fadas, bruxas, ogros e duendes -
por vezes agradáveis protetores benfazejos, por vezes ardilosos, cruéis ou assustadores - todos
eles compartilhando, no entanto, de um elemento comum: habitam a natureza, o interior das
florestas, os lugares ermos, sendo, de certa forma, a representação desses locais intocados no
imaginário popular. Nesses contos, a transformação, a jornada iniciática do personagem
principal nunca se dá no meio urbano, mas sempre junto à natureza, onde tais seres podem ser
encontrados.
Por fim, podemos ainda citar diversos seres fantásticos das lendas indígenas brasileiras, como o
Curupira, o Saci, o Caipora ou a Iara que, embora tenham sofrido influência européia após a
chegada dos portugueses, guardam ainda essa conotação de protetores das matas e das criaturas
que nelas habitam.
Vê-se, portanto, que a noção de elementais pode ir bem além da concepção até certo ponto rígida
e limitada que foi estabelecida pela Magia Ritual. Muito mais do que silfos, ondinas,
salamandras e gnomos, em estreita dependência dos elementos por eles habitados, podemos
estender o conceito de elementais para toda uma série de entidades que personificam a natureza.
Essa personificação se dá de forma bastante distinta daquela das divindades que
antropomorfizam fenômenos naturais tais como o raio, o trovão, o dia, à noite ou as estações: ao
passo que esses deuses situam-se num plano intangível e possuem, mesmo, um caráter imutável,
os elementais interagem diretamente com os seres humanos, por serem uma espécie de
consciência daqueles objetos que só aparentemente são inanimados, e que se situam no plano do
terreno, do cotidiano.

A Wicca e os Elementais
Levando em consideração a exposição que fizemos até aqui, podemos começar a questionar qual
seria o papel dos assim chamados elementais na Wicca, e porque esse papel seria, como
colocamos no início desse texto, preponderante. Ao contrário do que fizemos ao falar sobre as
divindades, no entanto, não iremos discutir aqui a existência real desses seres, na forma como
são representados ou descritos, até mesmo porque tal discussão seria inócua para o nosso
objetivo.
Pelo descrito, poderíamos logo de início definir os elementais como sendo a manifestação
energética, ou a essência, de determinados entes, animados ou inanimados, do mundo natural.
Colocando isso de uma forma mais simples, mesmo correndo o risco de uma supersimplificação,
eles seriam o "espírito das coisas", sua alma. A partir desse ponto de vista, cada um de nós teria,
desde que aceita a existência de uma alma, igualmente a sua parte "elemental". Vale dizer, no
entanto, que cada uma dessas manifestações (inclusive as nossas) nada mais é do que uma ilusão
de individuação, uma vez que cada entidade individual se confunde no grande todo que é a Vida
- aquilo que, no capítulo anterior, definimos como a única e verdadeira divindade. No entanto,
apenas conhecendo as partes é que poderemos vir a conhecer o todo.
Dessa maneira, enquanto o culto às divindades pode quando muito representar uma forma ampla
e abrangente de contato com os grandes ciclos naturais, ou estabelecer uma visão que nos
aproximará da compreensão de conjunto da natureza através de suas grandes manifestações, será
apenas o contato com essas energias elementais que proporcionará a visão do detalhe, a
compreensão da interdependência de todas as formas de vida e de como se processam as relações
entre elas.
Pode-se celebrar belíssimos rituais, respeitando equinócios e solstícios. Pode-se cantar a beleza e
a plenitude da natureza, através das figuras da Deusa e do Deus, a cada amanhecer e pôr-do-sol.
No entanto, se a prática da Wicca se resumir nisso, o praticante que o fizer estará simplesmente
reproduzindo qualquer outra religião centrada na adoração, e com isso empurrando a verdadeira
divindade para um local inatingível e para um conceito que, por ser amplo demais, é
incompreensível.
Se, pelo contrário, o praticante da Wicca se dispuser simplesmente a olhar cada tronco, cada
pedra, cada fonte, como sendo dotado de uma espécie de consciência e de uma espécie de vida;
se ele se dispuser a ouvir as mensagens que esses objetos aparentemente inanimados transmitem,
a ver aquilo que eles têm a mostrar, a sentir que não existe uma diferença intrínseca entre ele
próprio e essas coisas, em pouco tempo ele dominará a linguagem dos elementos, não para
submetê-los, mas para interagir com eles. A partir dessa visão micro, que pode ser obtida sem
nenhum tipo de ritual a não ser, talvez, algumas longas caminhadas por algum parque, ele
chegará aos poucos à noção de conjunto, por conseguir se sentir integrado a esse conjunto, e em
breve distinguirá não apenas os entes individuais, mas ainda os próprios guardiões de um
determinado lugar, os espíritos coletivos que o habitam e protegem. Esse será um passo para uma
visão realmente macro.
Indo além, poderia-se mesmo dizer que aqueles que concentram-se nos deuses podem, quando
muito, esperar receber graças. Sua visão será constantemente passiva, seus atos serão
constantemente esmagados ou tornados inócuos por um poder que está muito acima de suas
próprias possibilidades. Aqueles que, ao contrário, baseiam-se inicialmente nas energias
cotidianas, estão atuando magicamente, através da compreensão dos pontos mais próximos da
grande teia que une tudo que existe sobre a face da Terra.
Ao longo da história, essas forças das quais falamos, e que em nada diferem das que residem em
cada um de nós, se mostraram aos homens sob diferentes formas. Cada sociedade as descreveu
de acordo com seus próprios costumes e cultura. Elas foram belas mulheres cobertas por véus
diáfanos em alguns lugares; seres mistos de homens e animais em outros; imponentes animais
cheios de força e vigor, em outras ocasiões. Às vezes foram pequeninos e atarefados, às vezes
gigantes impassíveis. Em determinadas ocasiões, foram ardilosos, incômodos ou traiçoeiros; em
outras foram sábios guias e protetores.
Portanto, é inútil perguntar se existem fadas: veremos fadas, se assim o desejarmos,
independentemente se aquele ser com asas de borboleta possui uma existência corpórea. No
entanto, apenas estabeleceremos um real contato com a natureza se nos dispusermos a ver
alguma coisa do que ela nos mostra, sob a forma simbólica dos seus elementos componentes. A
atenção a esses elementos, portanto, e a busca da interação com eles, deve ter importância
especial para aquele que se disponha a praticar a Wicca.

Notas:
1
a respeito dessa tradição específica, consultar Stepanich, Kisma K. Faery Wicca. Minnesota:
Llewellyn, 1997.
2
Grimassi, Raven. Os Mistérios Wiccanos. São Paulo: Gaia, 2000.
3
Cunningham, Scott. Magia Natural. São Paulo: Gaia, 1997.
4
Goodman, Felicitas D. Ecstasy, Ritual and Alternate Reality. Bloomington: Indiana University
Press, 1988.
5
cf. Sams, Jamie. As Cartas do Caminho Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
6
Waite, Arthur E. As Ciências Ocultas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.
7
Lévy, Eliphas. Dogma e Ritual de Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998.
8
idem.
9
cf. Lamotte, Etienne. Histoire du Bouddhisme Indien. Louvain-la-Neuve: Université de
Louvain, 1976. (tradução livre do prof. Dr. Paulo Ramos C. Filho, Universidade de Brasília,
exemplar mimeografado)
10
ver, a respeito, Castañeda, Carlos. A Erva do Diabo. São Paulo: Clube do Livro, 1988.
A MAGIA

Já determinamos, em outro ponto deste curso, que nunca existiu uma "religião da magia", seja
em que parte for do mundo ou em qualquer época da história, da qual a Wicca possa descender
ou ainda que ela possa "resgatar". No entanto, é inegável que a magia seja parte integrante dos
fundamentos da Wicca e, portanto, é imprescindível que este conceito seja perfeitamente
compreendido.
Na realidade, a magia é uma parte indissociável da herança cultural de todas as sociedades. É
impossível conceber qualquer agrupamento humano que não tenha desenvolvido alguma forma
de magia, e isso de forma mais ou menos independentes de suas concepções e crenças religiosas.
Aliás, é necessário estabelecer desde já essa distinção: pelo menos nas sociedades mais
"primitivas", a magia não se confunde com a religião, tendo cada uma delas seu campo de
atuação específico. Uma mesclagem entre magia e religião só vai acontecer em sociedades mais
desenvolvidas culturalmente ou em certas teocracias da antiguidade.
Ainda no final do século XIX e início do século XX, antropólogos e sociólogos como Durkheim
e Malinowsky estabeleceram a distinção, nas sociedades então chamadas de "primitivas", entre
magia e religião. Estes pesquisadores puderam estabelecer (em especial a partir dos trabalhos de
campo de Malinowsky nas Ilhas Tobriand1) que haviam papéis distintos para a magia e a religião,
embora ambas fossem consideradas indispensáveis e profundamente vinculadas ao contexto
cultural dessas sociedades. Dessa maneira, a magia intervinha onde a técnica, pura e simples, se
mostrava ineficiente, e a religião, por sua vez, nos campos onde mesmo a magia não podia atuar.
Exemplificando, se um indígena usa a técnica que possui - seu conhecimento das estações, das
melhores formas de plantio, etc. - para semear a sua roça, ele usará a magia para protegê-la de
pragas, e apelará aos deuses para garantir uma primavera favorável. Esse mesmo indígena não
pensará em usar magia para construir uma canoa: ele possui a técnica necessária para fazê-lo;
mas certamente usará alguma magia para protegê-la das tempestades, afugentar os tubarões ou
atrair boa pesca.
Portanto, o papel da magia interfere nos assuntos cotidianos, mas apenas onde a técnica comum
não consegue atuar. Seu papel é o controle do imponderável - tempestades, pragas, doenças - mas
é limitado por aquilo que pertence ao domínio divino, ou seja: os grandes ciclos e fenômenos
naturais.

Magia de Cura e Magia de Maldição

Uma das formas mais antigas e básicas de magia, portanto, era constituída por práticas que
visavam a abundância da caça e da pesca, a conseqüente proteção contra os perigos envolvidos
nessas atividades e, posteriormente, a proteção da lavoura. Tais práticas, normalmente, se
dirigiam aos espíritos dos animais e das plantas, refletindo a simbiose existente entre o ser
humano e as demais formas de vida. Essa interação passava, portanto, por ritos de caráter mágico
que demonstravam o respeito pelo animal a ser abatido e presumiam, pela sua realização, a
anuência prévia desse animal ao abate. Esse tipo de magia natural simpatética ficou registrada
em inúmeras pinturas rupestres, em cavernas e outros locais ao redor do mundo2.
Essa espécie de magia talvez se confundisse, até certo ponto, com as concepções religiosas, mas
apenas no tocante à noção intuída de interdependência entre as espécies vivas. O caráter da
religião, como já ressaltamos, se referia em especial aos grandes ciclos naturais e, ainda, aos
mistérios relacionados à morte e à presunção de renascimento.
Paulatinamente, no entanto, a aplicação de práticas mágicas foi se estendendo a outros aspectos
da vida cotidiana sobre os quais o ser humano desejava ter controle. O mais corriqueiro e, talvez,
o mais relevante desses aspectos era a doença. Fosse qual fosse a causa que cada povo atribuía às
doenças, a magia que se destinava à cura ganhou preponderância, e seu desenvolvimento trouxe
algumas conseqüências cruciais.
Em primeiro lugar, a busca do combate às doenças (ou sua profilaxia) gerou um conhecimento
específico, que embora fosse de caráter empírico, já relacionava claramente causa e efeito. A
geração desse conhecimento específico acabou criando, igualmente, uma separação nítida entre
aqueles que o possuíam - os curandeiros - e os demais membros da comunidade. Por fim, essa
separação alargou o abismo existente entre magia e religião, uma vez que essa última era de
posse comum do povo, ao passo que a primeira tornou-se cada vez mais exclusiva dos
curandeiros.
Foge ao nosso objetivo analisar porque esse conhecimento tornou-se, cada vez mais, secreto.
Basta, no entanto, lembrar que aquelas pessoas que, em tais sociedades, vinham a dedicar-se à
arte mágica da cura, acabavam por ter certos privilégios e prerrogativas, que certamente
desapareceriam se o seu conhecimento se torna-se de domínio público e sua arte acessível e
praticada por todos.
Se o desenvolvimento dessa magia de cura proporcionou a criação de um saber específico, o
desenvolvimento de uma classe especial de pessoas e ainda uma maior separação entre magia e
religião, ela trouxe igualmente duas conseqüências diversas: um provável aumento da
superstição entre os que não possuíam o conhecimento, e o seu uso para fins que apenas
atendiam os interesses e a vontade do mago ou curandeiro. Ambas as conseqüências ficam
bastante claras quando observamos, por exemplo, o estudo realizado pelo antropólogo Evans-
Pritchard3 entre o povo Azande, da África: todo e qualquer infortúnio era atribuído à magia e, por
isso mesmo, os magos, entre esse povo, eram tão temidos quanto necessários.
Possamos atribuir isso a uma natureza humana ou não, a verdade é que um conhecimento que
garanta o uso, digamos, de uma determinada planta para curar, garantirá igualmente o uso de
outra para envenenar, e ambos os conhecimentos serão usados por aqueles que os detém. Em
determinado estágio da civilização, portanto, os magos tornaram-se indivíduos possuidores de
considerável poder, capazes de provocar a cura ou a morte ou, na maioria dos casos, ambos.
Além disso, estando protegidos por associações tácitas ou explícitas, tinham o respaldo suficiente
para se tornarem figuras proeminentes em suas sociedades.
O poder dos magos, dessa forma, em sociedades onde a natureza, por força da agricultura e da
técnica, já se encontrava relativamente "domesticada", parecia emanar ou mesmo transcender o
poder dos deuses. Dessa maneira, se os papéis do mago e do sacerdote, em princípio, se
dividiram, eles começaram novamente a convergir, mas agora em um novo enfoque: o mago
passava a ser, de certa forma, o intermediário ou mesmo o manipulador daquelas energias divinas
e, por conseqüência, o líder natural de certas sociedades.

Os Taumaturgos
Os sacerdotes egípcios, fechada classe de homens que aparentemente obedeciam apenas à
própria divindade encarnada - o faraó - foram verdadeiros símbolos arquetípicos dessa nova
espécie de magos-sacerdotes. Em seus templos, operavam verdadeiros "milagres": levitação de
grandiosas estátuas, comunicação altissonantes da própria voz divina, ou com os mortos, e assim
por diante. Obviamente, tudo isso era resultado do domínio de uma técnica mistificadora que,
hoje em dia, chamaríamos de "efeitos especiais". Além disso, eram os possuidores da técnica
que, segundo se acreditava, garantia aos mortais o ingresso na vida eterna: a mumificação.
Esses magos-sacerdotes fizeram do Egito, em sua época áurea, uma teocracia mágica, ao
conjugar os efeitos práticos da magia aos aspectos devocionais da religião. Bebendo dessa
mesma fonte e talvez iniciado na mesma escola, o líder de um povo de escravos, Moisés,
conseguiu libertar sua gente do cativeiro no Egito e guiá-lo numa longa peregrinação pelo
deserto palestino, usando uma mistura de palavra divina e efeitos pirotécnicos que, ainda hoje,
causariam comoção.
Manipulando artes elitistas e negociando com o poder divino, tais magos vieram, mesmo, a
estabelecer algumas das bases da civilização atual. Distribuindo uma sabedoria dúbia à custa de
ricos presentes, como as pitonisas de Apolo, em Delfos, ou fazendo a manifesta "vontade do pai"
para obter conversões, como Jesus, 300 anos depois, os magos acabaram por mudar os rumos da
humanidade. Já numa época mais recente, os grandes magos vestiram a batina dos prelados - ou
vice-versa - para controlar a sociedade, a partir de sua magia de redenção apoiada no verbo
divino, ou seja: no conhecimento oculto e na intermediação com a divindade, que só a eles era
possível.
No Ocidente, a Igreja conseguiu transmutar a crença na magia em dogma religioso, quando isso
lhe era conveniente, e execrar e perseguir os magos quando a magia praticada por estes a
desafiava. No entanto, a assimilação foi muito maior do que a perseguição, uma vez que,
benignas ou malignas, lícitas ou ilícitas, todas as formas de magia passaram a ser explicadas
segundo a religião. A Igreja apropriou-se de convicções que eram gerais para incluí-las no seu
sistema, passando a atribuir a ação da magia a seres que pertenciam a esse sistema e, assim,
conseguindo classificá-la segundo suas próprias convicções, associando-a a luz e às trevas.

Os Agentes da Magia

Como resultado óbvio do animismo ou do pan-psiquismo, ou seja, na crença da existência de


uma alma ou "espírito" em todas as coisas, ou ainda frente ao medo instintivo da morte e da
possibilidade dos mortos influírem no mundo dos vivos, os antigos (ou os povos que encontram-
se num estágio de civilização equivalente) acabaram por atribuir à ação desses "espíritos" a força
motora por trás da magia. A partir daí, não houve sociedade que não viesse a atribuir os efeitos
da magia ao controle, pelos magos, dessas entidades incorpóreas que poderiam beneficiar ou
prejudicar. Talvez se possa estabelecer unicamente uma distinção, nesse caso, que depende
diretamente do maniqueísmo maior ou menor de cada uma dessas sociedades, sendo que algumas
vieram a atribuir caracteres positivos ou negativos aos espíritos, enquanto outras apenas
atribuíam a estes um caráter amoral, que poderia ser "maléfico" ou "benéfico", conforme a
vontade do mago.
Nas sociedades indígenas, por exemplo, embora o controle dessas entidades seja, via de regra,
um dos atributos dos magos, ele normalmente não é o único modo admitido para fazer magia,
bem como os espíritos dominados pelos magos (ou a eles aliados) não sejam necessariamente
bons ou maus. Já no Ocidente Cristão, a visão que se sedimentou sobre a magia, em especial a
partir da Idade Média, e que perdurou através dos tempos até os dias atuais, é a de que os magos
agem pelo domínio sobre anjos ou sobre demônios.
Não entraremos no mérito da existência, no entanto, de entidades malévolas ou benévolas, e
menos ainda na possibilidade de controlá-las através de determinadas fórmulas, para que
obedeçam à nossa vontade. Guardemos, por enquanto, apenas a palavra "vontade" e descartemos
tudo mais, que pode apenas ser fruto de superstição e medo, e da necessidade de dividir o mundo
em duas metades distintas, necessariamente branca e negra.
Se formos buscar numa das figuras mais proeminentes e, igualmente, mais controversas de nosso
tempo no campo do ocultismo, uma palavra que sintetize a magia, encontraremos nos Livros
Sagrados de Thelema, de Alesteir Crowley4, a palavra exata: "vontade". Lá estão as duas frases
que se tornaram populares e até mesmo populescas: "O Amor é Lei, Amor sob Vontade" e "Faz o
que tu queres é o todo da Lei". Analisemos essas frases sem nos preocupar com o seu conteúdo
místico ou ocultista.
O amor significa a paixão, a expressão fluente dos sentimentos, à intensidade. Esse é um
componente básico da magia e, talvez, a verdadeira medida de sua eficácia. Malinowsky, ao
abordar o assunto, já escrevia:
"O homem, sob a onda de fúria impotente ou dominado pelo ódio frustrante, cerra
espontaneamente o punho e desfecha golpes imaginários sobre o seu inimigo,
balbuciando imprecações, lançando palavras de ódio e raiva contra ele. O amante que
sofre com a inacessibilidade e a impassividade da sua amada, tem visões dela, dirige-
lhe a palavra, suplica-lhe e ordena-lhe favores, sente-se correspondido, abraça-a. (...)
Quando a paixão atinge o ponto de ruptura, em que o homem se descontrola, as
palavras que profere, o comportamento cego, permitem o afluxo da tensão psicológica
acumulada. (...) A medida que a tensão se desgasta nas palavras e nos gestos, o fim
desejado parece mais próximo da concretização, e permanece em nós a convicção de
que as palavras de maldição e os gestos de fúria se deslocam para a pessoa odiada e
acertam o alvo; que a imploração de amor não pode ter ficado sem resposta, que o êxito
da consecução visionária de nossa demanda não pode ter ficado sem uma influência
para a questão pendente".5

Esse componente psicológico da magia, independente da abordagem científica do antropólogo


que não admite a real consecução do ato mágico, mas apenas a crença na sua realização, é
essencial: ele concentra a energia do mago e, numa explosão, direciona-a ao seu objetivo. Se
acrescentarmos a esse componente a determinação, o autocontrole necessário para que esse
direcionamento de energia seja o mais preciso possível, teremos o "amor sob vontade"
preconizado por Crowley.
Se unirmos isso à noção de integração entre todos os aspectos da Natureza, conforme debatemos
no tópico anterior deste curso, começaremos a compreender melhor aquilo que, mais
possivelmente, seja o principal agente da magia e, ao menos teoricamente, a causa de sua real
eficiência. Teríamos uma poderosa energia trafegando de uma fonte emissora (o mago) para uma
fonte receptora (o objeto da magia), através da grande teia da existência, sem a necessidade de
qualquer espécie de "emissário", fosse ele de caráter sobrenatural ou não.
O que dizer, então, se aceita essa hipótese, dos elaborados encantamentos, da observância de
conjunções planetárias e fases lunares, do uso de fetiches, bonecos, instrumentos, e toda a
panóplia associada comumente à prática da magia? Serviriam, antes de mais nada, elementos
consagrados pelo uso e, conseqüentemente, pelo efeito psicológico, para proporcionar uma
melhor concentração, uma maior determinação, um uso mais consciente e focado da soberana
Vontade. Obviamente, essa teoria não poderia ser profundamente discutida nesse espaço, mas
serve como um guia para uma reflexão mais profunda sobre o assunto6.
Detendo-nos ainda sobre a segunda frase de Crowley, ela expressa a liberdade, ou ainda a
amplidão de horizontes que se descortina ante aquele que compreende os mecanismos mágicos:
sua capacidade de realização se torna ilimitada. Mas essa falta de limites é justamente a limitação
do mago, a partir do momento que ele compreende que tal descortino não é propriedade apenas
sua, mas de todos que se proponham a seguir o mesmo caminho. Logo, sua liberdade, o seu "faz
o que queres", necessariamente esbarrará no "faz o que queres" alheio. Não será o capricho de
alguma divindade ou a vingança de um ser luminoso ou tenebroso, mal controlado, que refreará a
atitude do verdadeiro magista, mas antes a sua própria consciência e, igualmente, a própria teia
de relacionamentos em que ele está inserido, em escala global.

A Wicca e a Magia

Por tudo que já expusemos até agora, qual seria então o papel verdadeiro da magia dentro da
Wicca?
Antes de uma simples demonstração de poder, ou da possibilidade de exercer esse poder, como
temos, muitas vezes, observado entre as pessoas que demonstram algum interesse sobre o
assunto, a magia, dentro da Wicca, é uma forma de se estabelecer um contato mais profundo com
a Natureza, pela compreensão de que suas leis não são imutáveis, mas antes sujeitas à manobra
consciente de suas partes componentes, seres humanos entre elas.
Por outro lado, nada mais longe da realidade do que se atribuir a Wicca o papel de "religião da
magia", ou ainda estabelecer que o "fazer magia" é parte indispensável ou preponderante da
doutrina, dentro de certos limites. O que há de se compreender, para compreender igualmente o
papel desempenhado pela magia na Wicca, é que tudo é magia, ou seja: que qualquer ato humano
envolve a sua dose de manipulação, consciente ou não, de energias que percorrem o fluxo da teia
da existência. Portanto, mais do que "fazer magia", o wiccan deve ser consciente da magia que é
praticada cotidianamente, rotineiramente, e das diversas formas que esse "viver mágico" afeta o
seu cotidiano e o das pessoas que, de alguma forma, se achem diretamente no seu campo de
ação.
Saber fazer magia não distingue o wiccan, mas sim saber lidar com a magia, e isso independe até
mesmo da aceitação de teorias como a que expusemos. Ainda que se tenha convicção de que
outros agentes existem que possibilitam a consecução do ato mágico, ainda que os corolários
estabelecidos pelo rol das crenças pessoais de cada um vão de encontro a uma compreensão mais
simples ou mais natural das forças envolvidas nesse ato, o poder do mago reside em ter controle
sobre esse ato, e não em executá-lo. Novamente, portanto, voltamos ao conceito da Vontade
soberana e do amor sob controle. Nesse ponto, talvez o mais importante para o conhecedor da
magia seja saber a hora de não executá-la.

Notas:
1
ver, a respeito, Malinowsky, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70, 1984.
2
existem várias referências a esse tipo de magia, por exemplo, no livro Mitologia na Vida
Moderna, de Joseph Campbell (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002), entre vários outros.
3
Evans-Pritchar, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
4
Crowley, Alesteir. Os Livros Sagrados de Thelema. São Paulo: Madras, 1998.
5
Malinowsky, Bronislaw. opus cit.
6
vale a pena ler a esse respeito à série de artigos intitulada "O Caminho da Magia", que consta
da seção "Os Textos", da Mito e Magia.

4) Fundamentos Ritualísticos:

INSTRUMENTOS MÁGICOS

Uma vez examinados aqueles fundamentos sobre os quais se assenta a doutrina da Wicca, dentro
de nosso ponto de vista, passaremos agora a abordar os aspectos que se referem mais diretamente
à sua prática ou, para ser mais exato, aos elementos que são de conhecimento fundamental para
que essa prática se estabeleça.
Escolhi o tema "instrumentos mágicos" para abrir essa seção do curso porque é, inegavelmente,
um tema que desperta interesse imediato em todos os iniciantes. Na verdade, poucos foram
aqueles que eu conheci que, tendo travado um contato inicial (e muitas vezes superficial) com a
Wicca, não ficassem aflitos para conseguir seu atame, seu caldeirão, e todo um arsenal de
bugigangas que, muito mais do que um valor simbólico, passam a ter para o iniciante um
verdadeiro valor ritual, assumindo assim um caráter quase indispensável, o que, obviamente, faz
a alegria dos proprietários de lojas esotéricas...
Vale, portanto, fazer uma análise do simbolismo desses instrumentos, da necessidade de possuí-
los e da importância que eles possam ter como fundamento ritualístico ou doutrinário, antes de
seguir em frente para situações em que eles possam, eventualmente, ser citados.

Os quatro símbolos do mago

Embora outros instrumentos tenham se incorporado à prática da Wicca, quatro deles possuem
uma tradição simbólica específica por estarem, desde uma época bastante remota - e portanto
bastante anterior à criação da própria Wicca - associados à magia. Esses quatro instrumentos são
a espada ou punhal, o bastão, o cálice e o pentáculo.
No meu artigo "A Magia dos Instrumentos"1, eu me referi a esses quatro instrumentos
tradicionais dos magos como sendo, na verdade, objetos indispensáveis a qualquer viajante que
percorresse os longos e inseguros caminhos da Europa medieval (ou mesmo de épocas
anteriores). Um instrumento de defesa (a espada ou punhal), um bastão ou cajado para auxiliar
nas passagens mais íngremes, um recipiente para água e algum dinheiro eram, sem dúvida
alguma, requisitos básicos e de uso tão corrente que ficaram, inclusive, imortalizados nos quatro
naipes do baralho comum ou do tarô.
Se nos ativermos apenas ao contexto da Idade Média, período em que se consolidou a maior
parte da tradição mágica ocidental, veremos que a figura do mago ou do curandeiro está
profundamente associada a do viajante ou mesmo do peregrino. O eminente historiador Jacques
Le Goff nos descreve a formação do Ocidente medieval como "desbravamento, luta e vitória
sobre matagais e arbustos ou, quando necessário e quando os apetrechos técnicos e a coragem
permitem, sobre os altos troncos, a floresta virgem (...). Por muito tempo, o Ocidente medieval
foi um aglomerado, uma justaposição de domínios, castelos e cidades que iam surgindo no meio
de extensões incultas e desertas"2. Tínhamos então um panorama formado por pequenas "ilhas" -
as clareiras onde se situavam os povoados - em meio a um mar de florestas que, então, já havia
inclusive engolido as estradas romanas que haviam caído em desuso. Esse mar de florestas era
cortado por trilhas, cercadas de perigos reais e imaginários, que precisavam ser percorridas a pé.
Alguns desses caminhos faziam parte de uma espécie de "circuito", similar aos das peregrinações
empreendidas pelos cristãos, e ligavam pontos associados, muitas vezes, a antigos lugares
sagrados, geralmente marcados por dólmens. Louis Charpentier nos aponta3 como estes locais
parecem desenhar uma verdadeira espiral no solo da França, unindo cidades cujo nome está
associado ao deus gaulês Lugh, como Lugrin, Lyon (antiga Lugdunum), Loudun e muitas outras.
Esse caminho deixou resquícios também na cultura popular, como no Jogo do Ganso, espécie de
ancestral dos jogos de tabuleiro onde, ao jogar-se um dado, um determinado número de casas
deve ser percorrido, até que se chegue ao final de um caminho em espiral.
Essa peregrinação pelos lugares mágicos era empreendida pelos antigos magos, como
provavelmente já o fora pelos sacerdotes druidas, e assim a figura do mago ficou associada ao do
viajante-peregrino, munido daqueles instrumentos que citamos. Posteriormente, a magia
cerimonial veio, com algumas variações, atribuir um simbolismo específico a cada um desses
instrumentos, bem como estabelecer técnicas específicas para a sua consagração. A partir desse
ponto, eles deixam de ter o seu caráter essencialmente funcional e passam a adquirir um caráter
simbólico.
No âmbito da magia cerimonial, cuja tradição ritualística foi em grande parte herdada pela
Wicca, como já esclarecemos, surgem algumas variações na descrição desses quatro
instrumentos simbólicos principais. Eliphas Lévy, por exemplo, não cita a taça, mas acrescenta à
espada e à "varinha mágica" (bastão) a "lâmpada", ou candeeiro de nove braços, o qual seria
capaz de "criar diante das pessoas magnetizadas formas de uma realidade espantosa (...); os
fantasmas falarão e, depois, caso se cerre a coluna da lâmpada, redobrando o fogo dos perfumes,
se produzirá algo inesperado e extraordinário"4. Esse mesmo autor, no entanto, dedica especial
atenção aos pantáculos, desde trigramas até hexagramas, com ênfase no chamado "pentagrama
flamejante", que ficou popularmente conhecido como Tetragramaton, a estrela de cinco pontas
coberta de símbolos cabalísticos e astrológicos que é inevitavelmente associada à magia.
Aliás, se adotarmos como correta essa origem dos instrumentos mágicos principais como sendo
aparatos típicos dos magos viajantes, veremos que aquele que se tornou mais simbólico,
distanciando-se sobremaneira com o tempo do objeto que lhe deu origem, foi justamente o
pentagrama. Essa origem conservou-se nos baralhos comuns e no tarô - como o naipe de ouros,
moedas, etc. - mas no âmbito da magia tornou-se o verdadeiro símbolo do mago, aquele objeto
que lhe identifica por conter uma súmula da sua arte ou do seu conhecimento, através de
grafismos pessoais. Pode-se considerar, no entanto, que essa característica está igualmente
presente nas moedas, que são (e sempre foram) cunhadas com efígies e sinais que identificavam
aquele soberano ou país da qual se originavam5.

Outros símbolos e instrumentos

Além desses quatro instrumentos que descrevemos, vários outros foram incorporados à prática
da Wicca. Esses outros possuíam ou ainda possuem, igualmente, um caráter essencialmente
funcional mas, ao contrário dos primeiros, originam-se de um aspecto distinto das tradições que
deram origem a essa doutrina.
Podemos citar, nesse caso, especialmente a chamada "faca de cabo branco", ou bouline, ou ainda
a foice e o caldeirão. Esses objetos se referem, obviamente, a uma atividade típica dos
sacerdotes-curandeiros: a de herbolário, manipulador de plantas medicinais ou "fazedor de
poções". Consta que os druidas, detentores da ciência médica entre os gauleses, portavam sempre
uma pequena foice, com a qual colhiam ervas para preparar suas receitas. O caldeirão, por sua
vez, está intimamente associado à figura da bruxa, desde épocas muito remotas: ele surge na
mitologia grega com Medéia; é uma das armas mágicas de Lugh, na mitologia celta, e é
associada igualmente à deusa irlandesa Ceridwen, em todos os casos com um sentido simbólico
de transformação, cura ou renascimento. Aquilo que é colocado no caldeirão, passa pelo
preparo e pela cocção em seu interior, sai de lá transformado, curado ou capaz de curar,
exatamente como as ervas que se transformam em poção, ou como os ingredientes que se
transformam em comida. Dentro da mesma analogia, ele foi associado ao útero materno. A faca
de "cabo branco" - para distinguir-se do punhal ritual de "cabo preto" - é simplesmente um
instrumento de manipulação: algo para cortar e picar as ervas que devem ser usadas nos
preparados.
Há de se levar em consideração também que, desde fins da Idade Média até fins da Idade
Moderna, quando a chamada "Alta Magia" começou a ganhar novamente popularidade, esse tipo
de "bruxaria", baseada em práticas de medicina tradicional, esteve, pelo menos na Europa,
basicamente concentrada nas mãos das mulheres. Isso fez com que a espada, por exemplo, objeto
geralmente associado aos homens, fosse geralmente substituída na Wicca pelo punhal - o atame -
instrumento (de defesa) muito mais adequado às mulheres tanto pelo peso quanto pelo volume
reduzido, e portanto mais fácil de manusear ou mesmo de esconder. Também fez com que vários
instrumentos de cozinha ganhassem esse cunho ritual, ou mesmo que, ao contrário, instrumentos
rituais fossem disfarçados como instrumentos de cozinha.
Um exemplo típico geralmente citado nesse caso é o da vassoura. Existe alguma possibilidade de
que o bastão ou cajado do mago tenha se transformado, ou se disfarçado, na vassoura da bruxa.
Existe também alguma possibilidade de que o famoso "vôo das bruxas", montadas em suas
vassouras, se devesse a um ungüento baseado em plantas alucinógenas que era esfregado na
mucosa da vagina. Nesse caso, o tal "vôo" teria um cunho marcadamente sexual, e a vassoura
seria um nítido símbolo fálico.
Obviamente, a utilização de tais instrumentos dentro de um contexto ritual, ou mesmo religioso,
acabou por determinar a sua consagração. Apenas para fazer uma analogia, seria inconcebível
que um padre utilizasse a taça da comunhão para tomar água, cotidianamente. Ou seja: a
consagração desses objetos representa, simplesmente, que eles têm uma finalidade específica e
que devem ser usados dentro de um determinado contexto. Não há uma "sacralidade" explícita
neles, mas apenas a sacralidade que seus possuidores podem atribuir ao seu uso.

Os instrumentos e suas correlações

Deixando de lado momentaneamente, portanto, aqueles objetos que possuem uma função óbvia e
específica, constituindo-se na verdade em instrumentos de trabalho, que podem ter um valor
simbólico mas que são principalmente "ferramentas", voltemos a nos concentrar naqueles quatro
instrumentos de função essencialmente simbólica e uso ritual. Deixemos igualmente de lado as
correlações desses instrumentos com a magia cerimonial e vamos analisá-los dentro do contexto
específico da Wicca.
Nesse contexto, portanto, os quatro instrumentos são o atame, o bastão, a taça e o pentáculo.
Daremos posteriormente descrições mais detalhadas, mas essencialmente o atame é um punhal
de fio duplo, o bastão é essencialmente uma vara de madeira (ou por vezes de metal) de cerca de
40 cm de comprimento, a taça é um cálice de metal (ou vidro, ou cristal) e o pentáculo é,
normalmente, um pentagrama (estrela de cinco pontas) inscrito em uma circunferência, podendo
ser pintado em uma superfície plana, gravado ou entalhado, ou ainda forjado em metal.
Na qualidade de símbolos, esses instrumentos têm correlações específicas com os quatro
elementos: ar, fogo, água e terra. O atame é associado ao elemento ar, o bastão ao fogo, a taça à
água e o pentáculo a terra. Portar tais símbolos, possuí-los, representa justamente a conexão com
esses elementos, a "autoridade" sobre eles, ou ainda o poder de manipulá-los ou simplesmente a
habilidade de conhecê-los profundamente.
O ar, representado pelo punhal, é o elemento dos inícios, do pensamento, do raciocínio lógico e
da palavra, por excelência. O punhal, portanto, traduz que a maior arma, a melhor defesa do
iniciado, sacerdote ou mago, é o seu conhecimento. Diversas escrituras sagradas dizem que o
princípio era o verbo, e o punhal é a própria palavra cortante, que expressa a vontade soberana
de quem a utiliza. Vale lembrar de diversas espadas mágicas lendárias, como a Excalibur,
símbolos patentes de autoridade, que não precisavam, em verdade, ser efetivamente usadas em
combate, mas cuja simples presença intimidava os inimigos e conferia poder aos seus
possuidores.
O fogo é o poder da transformação, o elemento da força, que destrói mas faz renascer. O bastão,
seu símbolo, é desde tempos imemoriais o símbolo da autoridade dos reis e dos líderes. Ele surge
no cajado de Moisés, na lança mágica de Lugh, no caduceu de Hermes, na avassaladora clava de
Hércules e, fora do âmbito das lendas e mitos, no cetro dos reis. Se através do ar e da palavra a
Vontade se manifesta, é através do fogo que ela se realiza. O bastão é aquele ramo da planta que
pode brotar, gerando uma nova planta. É igualmente um símbolo fálico, uma representação do
membro viril que fecunda, e talvez possamos afirmar com uma certa segurança que o rei que
empunha o cetro assemelha-se ao macho dominante de um grupo de babuínos que exibe o pênis
ereto como símbolo de sua primazia sobre os demais membros do grupo.
A água representa a fluidez, a suavidade, os sentimentos. De nada adiantaria a vontade que cria
os princípios, se estes não puderem se conduzir, caminhar em direção a um objetivo. De nada
adiantaria a força do fogo, se este fosse apenas destruição e nada pudesse, no momento
conveniente, apagá-lo. A água conduz, dá movimento suave e contínuo, ou arrebata e destrói
como a enxurrada se não for convenientemente contida. Ora, a taça contém a água: é a emoção
contida, sob controle, que pode ser dosada. É o próprio recipiente que contém a vida e sua
continuidade, como foi descrito nas lendas dos cavaleiros da Távola Redonda, em sua busca pelo
Santo Graal. Representa, portanto, a compreensão que o mago tem dos fluxos naturais, dos
ciclos, do surgimento, manutenção e continuidade da vida, surgida do meio líquido no okéanos
primitivo que, para os gregos, circundava e delimitava o mundo.
Por fim, na terra repousam os mistérios da vida e da morte. Nela se depositam as sementes,
pequenas parcelas secas e aparentemente sem vida das plantas, que irão dela brotar como novas
plantas. Nela se colocam os corpos daqueles que se foram, na esperança que um dia renasçam.
Escuro, frio, úmido, misterioso como as grutas e altaneiro como as montanhas, é o elemento da
magia por excelência. É representado pelo pentáculo, a estrela de cinco pontas que simboliza o
próprio corpo humano em suas proporções ideais, como no famoso desenho de Leonardo da
Vinci. Contém em si todos os elementos e acrescenta mais um: o elemento imortal, o espírito.
Nesse aspecto, o pentáculo confunde-se com a terra por ser esta o início e o fim, a compreensão
última da integração de todas as coisas com a natureza, e o círculo em volta da estrela dá
exatamente essa noção da totalidade.
Deve-se entender, igualmente, o caráter dúbio de todos esses símbolos. O punhal é tanto arma de
ataque como de defesa. O bastão pode ser o apoio nos momentos difíceis da caminhada ou a
clava que golpeia. A taça pode conter a água que sacia a sede ou pode ser o instrumento que,
num gesto de ofensa, arremessa a bebida na face do adversário. O pentáculo pode ser o símbolo
da autoridade ou a moeda que compra os favores. Da mesma maneira, o ar é a brisa fresca e o
furação destruidor. O fogo cozinha e acalenta, ou mata e destrói. A água sacia a sede ou leva tudo
de roldão. A terra é a guardiã da vida e também da morte. Portar os símbolos, para o mago, é
sinal da compreensão desse caráter dúbio e da maneira correta de utilizá-lo.

A necessidade e a confecção dos instrumentos

Como dissemos no início deste texto, a maior parte dos iniciantes na Wicca têm a impressão que
possuir os instrumentos mágicos é uma espécie de pré-requisito para a prática. Isso me passa a
impressão de uma "lista de material", como as escolas distribuem no início do ano letivo e, pior
ainda, me lembra o início de cada livro da série Harry Potter, quando o jovem bruxo precisa
passar pelo Beco Diagonal para comprar o material que irá usar, aquele ano, em Hogwarts.
Infelizmente, a maior parte dos livros de Wicca reforça essa impressão, havendo neles o
inevitável capítulo que indica os artefatos "necessários" para a "bruxaria".
A humanidade tem necessidade de símbolos de caráter religioso. Basta olharmos a imensa
profusão de estátuas de todos os tamanhos, crucifixos, medalhas e outros acessórios que são
vendidos, todos os dias, na vizinhança ou nos próprios templos cristãos, em todo o mundo. A isso
podemos acrescer cristais, bruxinhas, duendes, baguás, mandalas, e inúmeras outras
quinquilharias que se vende nas lojas esotéricas, e que são adquiridas como tendo poderes
específicos ou como simples símbolos de uma fé alternativa.
No entanto, da mesma forma que o cristão não precisa do crucifixo para exercer a sua religião,
ou o monge tibetano da roda de oração, o wiccan igualmente não precisa de instrumento algum
para sua prática. Nenhum instrumento ou artefato tem poder por si próprio: ele apenas reflete
aquilo que o seu possuidor lhe confere ou, ainda, serve como um canal, uma forma de focar o
seu pensamento ou a sua vontade com uma finalidade específica. Voltando ao exemplo cristão, o
uso de um rosário para rezar é simplesmente uma forma de manter as mãos ocupadas e o
pensamento fixo na oração: o rosário é um meio, e não um fim, e não possui, por si só, nenhuma
propriedade específica além dessa que mencionamos.
Partindo desse princípio, se considerarmos a Wicca como uma religião - conceito que vem se
firmando - e a magia como uma arte, poderíamos dizer que a primeira não tem necessidade
alguma de instrumentos (embora possa ter de símbolos) e a segunda terá essa necessidade de
acordo com o seu uso. Nesse aspecto, vale a pena repetir que a magia não é necessariamente
parte integrante da Wicca, mas uma prática correlata.
Dessa maneira, não aconselho de forma alguma que alguma pessoa invista tempo e dinheiro em
adquirir ou confeccionar instrumentos "mágicos" que não terão nenhuma utilidade, a não ser que
essa pessoa dedique, antes de mais nada, o tempo necessário para aprender a dar a eles alguma
utilidade. É inútil comprar um piano se não nos dispusermos a aprender a tocá-lo, da mesma
forma que possuir um piano não faz de ninguém um pianista. Um piano não faz música sozinho,
bem como um atame ou um bastão não farão nada por si só.
Comprar um caldeirão, exibi-lo orgulhosamente no meio da sala de estar e declarar-se "bruxa" é
inócuo, para não dizer ridículo. No entanto, se alguém se dispuser a aprender sobre ervas, poções
e outras práticas, provavelmente, em algum momento, terá necessidade de um caldeirão e de
outros instrumentos específicos. Ir até a loja do shopping e comprar um maravilhoso punhal, um
ornamentado bastão, um vistoso pentagrama e um cálice reluzente e dizer-se um mago, ou
sacerdote, é risível. Tentar utilizar tais instrumentos sem um conhecimento específico não
resultará em nada ou, na pior das hipóteses, pode ser mesmo perigoso. Agora, se a pessoa está
trilhando um caminho de conhecimento, adquirindo um treinamento específico, preparando-se
conscientemente para exercer um papel que, afinal, é sacerdotal, ela certamente sentirá, em
algum momento, a necessidade de possuir tais instrumentos.
No entanto, caso a pessoa sinta necessidade de possuir tais instrumentos como um símbolo, um
testemunho palpável e material de uma doutrina que ela está abraçando (da mesma forma que os
cristãos ostentam o crucifixo), não vejo mal algum nisso. Muitos livros aconselham o iniciante
em Wicca a montar um altar - falaremos sobre isso em outra parte desse curso - e nele colocar os
seus objetos mágicos, e considero que isso seja uma prática válida, já que é sempre interessante
reafirmar que nossa própria casa, como nosso próprio corpo, é um templo. É compreensível que
queiramos alguma coisa para olhar quando nos referimos à divindade, embora, no caso da Wicca,
talvez bastasse olhar pela janela e contemplar o pôr-do-sol.
Se for esse o caso, aconselho fortemente que, na medida do possível, esses instrumentos não
sejam comprados, simplesmente. É claro que hoje em dia pouquíssimos de nós dominam a arte
de forjar metais e, portanto, se torna quase impossível fazer um punhal ou uma taça, no entanto
esses objetos precisam, de alguma forma, ter a marca pessoal do seu possuidor para que sejam,
efetivamente, um símbolo da sua conexão com os elementos que representam. Portanto, pode-se
comprar um punhal, mas deve-se procurar personalizá-lo de alguma maneira: enfeitar seu cabo,
revesti-lo com seda ou couro, decorar sua bainha, gravar algum símbolo pessoal sobre a lâmina.
Isso o tornará seu, e o ato de fazê-lo com as próprias mãos reforçará o seu laço com o elemento
ar. A mesma coisa se aplica a uma taça.
Quanto ao bastão, nada mais simples que conseguir um galho razoavelmente reto de árvore. Num
simples passeio por um bosque pode-se encontrar vários, e certamente um lhe atrairá de alguma
forma. Pode-se evitar cortar um galho mas, se for necessário fazê-lo, é costume pedir licença à
árvore e deixar algo em troca: alguns fios de cabelo são o bastante. Depois disso, é fácil enfeitar
esse galho, igualmente gravar nele alguns símbolos pessoais, talvez acrescentar um prisma de
cristal à sua ponta. Basta usar um pouco de criatividade e alguma paciência, lembrando que todo
o tempo dedicado a esse trabalho estará, na verdade, criando uma relação profunda entre esse
objeto e o seu possuidor.
Hoje em dia, vende-se pentáculos até em feiras livres: eles são pingentes de cordões ou porta-
incensos. Ao invés de simplesmente comprar um, o melhor é pintá-lo sobre madeira, ou argila,
ou ainda sobre uma pedra razoavelmente plana. Além do simples pentágono estrelado envolto
pelo círculo, acrescentar outros símbolos que o identifiquem com aquele que o pintou criará
aquele vínculo ao qual nos referimos.
Por fim, voltamos a afirmar: nada disso é indispensável, nada disso é pré-requisito. Ninguém
precisa de tais objetos e, com o passar do tempo e com a experiência, eles serão cada vez mais
simples muletas, nas quais poderemos ou não nos apoiar, conforme nossos passos se tornem mais
seguros. A verdadeira força, o verdadeiro poder, a verdadeira conexão e o real espírito da Wicca
reside dentro de cada um de nós, partes integrantes que somos do Todo.

Notas:
1
in www.mitoemagia.com.br, seção "Os Textos", subseção "Bruxaria e Paganismo", sob o título
"O Caminho da Magia - Parte V".
2
Le Goff, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
3
Charpentier, Louis. Os Gigantes e o Mistério das Origens. Lisboa: Bertrand, 1974.
4
Lévy, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998.
5
justamente por causa disso as moedas são importantes evidências arqueológicas, que permitem
datar escavações e estabelecer a origem de determinadas ruínas, ou ainda com que outros povos
certos povos antigos comerciavam.

A RODA DO ANO

O principal fundamento ritualístico da Wicca, e aquele que mais aproxima esse sistema de um
princípio que poderia ser definido como "religião", é um calendário constituído por oito
celebrações, distribuídas ao longo do ano em intervalos aproximadamente eqüidistantes,
chamado comumente de A Roda do Ano. Esse calendário é constituído por uma união de
celebrações que são comuns a inúmeros povos e culturas ao redor do mundo - os equinócios e
solstícios, que marcam o auge das estações do ano - e por datas que eram celebradas,
especialmente, pelos povos de origem celta e que marcam o ponto de transição entre as estações,
ou o início real de cada uma delas.
A essas celebrações, foi dado o nome de sabás. Esse era o nome atribuído popularmente às
supostas assembléias de bruxas, desde fins da Idade Média até o período de arrefecimento da
perseguição da Santa Inquisição, em princípios do século XVIII. No imaginário popular da
época, tais assembléias eram ritos de adoração ao demônio, caracterizados por orgias e
sacrifícios humanos, e a escolha desse nome para as celebrações da Roda do Ano (provavelmente
por Gardner), deve ter se baseado na idéia corrente no início do séc. XX que tais imagens eram
apenas o exagero e a má interpretação de cerimônias pagãs que ainda ocorreriam na Europa
medieval-moderna. Hoje em dia, é bastante incerto que em qualquer época tenha havido
qualquer coisa parecida com os sabás descritos nos processos da Inquisição, sendo mais provável
que todas as descrições não tivessem nenhum fundo de realidade e fossem apenas fruto de
superstições.
Os sabás da Wicca, no entanto, apesar do nome (propositalmente ou não) polêmico, são antes
reminiscências ou tentativas de reconstituição de cerimônias de caráter religioso bastante antigas,
algumas provavelmente remontando a períodos anteriores à dominação romana da Europa
Ocidental. Obviamente, não se pode de forma alguma afirmar que venham a ser reconstituições
fiéis, uma vez que pouco se sabe de tais tradições além do que foi conservado ao longo dos
séculos através de celebrações cristãs que incorporam tais ritos em sua liturgia. Além disso, a
própria sistematização da Wicca acrescentou a estes ritos elementos de culturas diferentes, ou
ainda elementos que, por sua abrangência cultural, podem ser considerados universais.
No entanto, não é nossa intenção, nesse tópico do curso, focalizar especificamente os sabás, sua
celebração ou seus elementos. Isso será assunto do nosso próximo tópico. Nesse texto, o que
pretendemos é fazer uma explanação e uma análise geral do caráter ritualístico associado ao
conjunto das oito celebrações, bem como determinados paralelos entre essas celebrações e
aspectos da vida humana, seja individual ou coletiva.

A Roda do Ano como reflexo da Natureza


A noção de um tempo linear, que pode ser parcelado e no qual os acontecimentos se sucedem a
partir de uma ordem inflexível, onde o passado é algo irrecuperável, é bastante recente. Ela se
instalou na mentalidade ocidental a partir do cristianismo, que preconizava o tempo como uma
linha reta, que havia se iniciado com a criação e teria fim com o juízo final. Jacques Le Goff1 e
outros historiadores nos apontam como, ainda na Baixa Idade Média, essa noção de tempo linear
chocava-se profundamente com a mentalidade do camponês comum, acostumado ao tempo
cíclico, regido pelas estações e pela noção do eterno retorno. Tal apego ao tempo cíclico é
simbolizado pela imagem sempre presente na iconografia medieval da "Roda da Fortuna", ou
ainda, como nos cita o historiador, no dístico encontrado numa miniatura italiana do século XIV:
sum sine regno, regnabo, regno, regnavi2.
Em outro momento deste curso, já discutimos o fato de que sistemas de crença semelhantes ao da
Wicca apenas puderam se estabelecer após a descoberta da agricultura pelos agrupamentos
humanos. Isso se deve ao fato que o tempo agrícola é essencialmente um tempo solar: o
calendário das atividades ao longo do ano é estabelecido pelas estações, pelo tempo de duração
dos dias e, conseqüentemente, pela presença ou ausência do calor do sol. Essa é a noção de
tempo solar cíclico que é perfeitamente representada pela Roda do Ano e, em última análise, as
cerimônias que a pontuam, ao longo do ano, visavam primordialmente a manter esse ciclo,
preservá-lo, garantir que ele seria perene - em suma, eram basicamente cerimônias solares, que
visavam assegurar o retorno, a manutenção da seqüência das estações.
A lenda (ou versão romanceada) associada à Roda do Ano, no entanto, preserva a dualidade
cooperante entre o feminino e o masculino, e seus protagonistas são o Sol, como princípio
fertilizador e mantenedor, e a Terra, como princípio gerador da vida. Dessa forma, temos
espelhados os conceitos que apresentamos, anteriormente3, ao descrever as figuras do Deus e da
Deusa, na Wicca.
Antes de começarmos a descrever essa lenda, no entanto, vale lembrar que ela se consolidou em
países onde o clima é muito mais rigoroso do que o clima brasileiro, e onde as estações são
muito mais diferenciadas do que aqui. De qualquer forma, mesmo em latitudes tropicais, diversas
mudanças climáticas são perfeitamente observáveis no decorrer do ano.
Comecemos nossa história bem no início da primavera. Depois dos dias curtos e frios do
inverno, o sol vai pouco a pouco ganhando força no céu e a terra, paulatinamente, se liberta de
sua capa de gelo. Nesse momento, tanto o sol quanto à terra são crianças, nascidas há pouco, que
dão os seus primeiros passos na jornada anual. Esse processo se prolonga até o equinócio de
primavera, quando o solo já completamente descongelado pode receber plenamente os raios do
sol, e a terra pode começar a ser preparada para o plantio. Os dias, agora, são tão longos quanto
às noites, e diz-se que a Deusa-Terra e o Deus-Sol são adolescentes, que se encontram pela
primeira vez e se apaixonam. Essa paixão se consolida no início do verão: o momento do plantio
das sementes é o momento do casamento divino, quando o Deus-Sol engravida a Deusa-Terra. A
primeira metade do ano termina, portanto, com a jovem terra grávida das sementes e com o sol
assumindo seu papel de provedor e mantenedor da vida, atingindo a idade adulta - seu máximo
tempo de permanência no céu - no auge do verão.
Na segunda metade do ano, conforme a Deusa se prepara para dar à luz o seu filho divino, ela
oferece aos homens os seus frutos, sob a bênção do sol. São as colheitas, primeiramente dos
produtos de consumo rápido, no início do outono e, no auge dessa estação, daqueles grãos e
frutos que serão conservados e constituirão a reserva alimentar para o inverno que se aproxima.
O sol começa a diminuir seu tempo de permanência no céu, os dias se tornam mais curtos. No
seu papel de provedor da humanidade, diz-se que o Deus-Sol envelhece e cresce em sabedoria.
No entanto, o início do inverno marca o momento de sua morte: com a perda do seu consorte, a
Deusa-Terra se recolhe ao submundo para dar à luz a criança que cresce em seu ventre.
O auge do inverno, fim da segunda metade do ano, é o momento do mistério e da transformação.
É o momento do nascimento da criança divina, e esta é o próprio sol, o Deus-Filho e consorte,
que, tendo atingido o seu ponto mais baixo no céu, de agora em diante só irá crescer. A Deusa-
Terra, após o seu exílio, surgirá novamente como criança, dando início a um novo ciclo.
Essa alegoria, portanto, nítida representação do suceder das estações associado ao ciclo de
plantio e colheita, atribui um caráter reverencial, ou mesmo divino, a fenômenos naturais que,
com maior ou menor intensidade, são sentidos em qualquer região do planeta. Na verdade,
qualquer cultura agrícola pontuava esses momentos nodais do ano com cerimônias específicas,
realizadas nos momentos de auge das estações - equinócios e solstícios, respectivamente os
momentos de igual duração ou de maior diferença entre o dia e a noite - ou, mais raramente,
como no caso dos celtas, nos momentos de início real das estações, ou de transição entre uma e
outra estação. No caso da Wicca, como falamos, preferiu-se privilegiar ambos os momentos.

A Roda do Ano como reflexo do homem e da sociedade

Independentemente do fato que há uma óbvia diferenciação entre a forma como as estações do
ano se apresentam e a variação das temperaturas é sentida, e entre as próprias culturas e
costumes que se formaram a partir desses fatores climáticos, o mito que descrevemos acima
encontra seus paralelos, igualmente, na vida humana e na vida cotidiana das sociedades.
Costuma-se dividir a Roda do Ano em duas metades. A primeira, representando a "metade clara
do ano", estende-se desde o solstício de inverno (o nascimento do Deus) até o solstício de verão
(sua maturidade), englobando o início da primavera, seu auge (equinócio) e o início do verão. A
segunda seria a "metade escura do ano", indo desde o solstício de verão até o solstício de
inverno, e englobando o início e o equinócio de outono, bem como o início do inverno.
A metade clara do ano corresponde justamente àqueles momentos cruciais da primeira fase da
vida: nascimento, puberdade e maturidade sexual, casamento. São momentos que, não
importando a sazonalidade específica, são geralmente marcados por cerimônias próprias e
correspondem igualmente a uma fase da vida de consolidação do eu, do indivíduo. Já a metade
escura representa em especial as realizações: o nascimento dos filhos, o usufruir dos frutos do
trabalho, a substituição gradativa da força física e do vigor pela sabedoria. É, dessa forma, mais
voltada à coletividade, ao grupo familiar, do que ao indivíduo. É nessa fase, já estabelecido como
membro produtivo da comunidade, que a pessoa está apta a exercer seu papel de conselheiro,
líder ou mesmo sacerdote.
Se extrapolarmos esse raciocínio para o rol de atividades da comunidade 4, no decorrer do ano,
veremos que este estará, da mesma forma, convenientemente representado. A metade "clara" do
ano é dedicada a atividades essencialmente individuais (o preparo da terra e o plantio), ao passo
que a metade "escura" se dedica especialmente às atividades coletivas, como a colheita e o
armazenamento. Os intervalos entre essas atividades são marcados por pausas no trabalho
agrícola: os períodos do verão e do inverno, sendo o primeiro devotado a atividades que não a
agrícola e o segundo, ao recolhimento.

A importância da Roda do Ano


No início deste tópico, dissemos que a Roda do Ano constitui o principal fundamento ritualístico
da Wicca. Uma vez explanados os princípios e o simbolismo geral que regem esse calendário de
comemorações, vale a pena nos determos um pouco mais na sua importância dentro da doutrina,
antes de começarmos a examinar mais detalhadamente cada um dos seus elementos
constitutivos, o que faremos no próximo tópico.
Em primeiro lugar, como já afirmamos, a observância da Roda do Ano é o principal argumento
que se poderia utilizar para defender a Wicca como uma forma de religião, e não simplesmente
como um sistema mágico com características próprias, a exemplo da Magia Cerimonial, da
Thelema e outros. Excluindo a adoração de deuses específicos e o estabelecimento de dogmas,
uma vez que existem religiões que não possuem nenhuma das duas coisas, uma das
características que podemos observar em qualquer religião é a existência de um calendário
litúrgico próprio: determinadas celebrações que são realizadas ao longo de um determinado
período, com maior ou menor regularidade, e que estão diretamente vinculadas às crenças
específicas dessa religião. Como pudemos ver ao discorrer sobre o simbolismo geral da Roda do
Ano, e como veremos ao analisar cada uma das comemorações que a compõem, esta é
justamente um sistema de compreensão e integração com a natureza, e ainda de aproximação do
microcosmo humano ao macrocosmo natural, o que é, a princípio, justamente o objetivo da
Wicca e sua principal forma de ação5.
Em segundo lugar, a tão alegada "ancestralidade" da Wicca apenas se manifesta através da Roda
do Ano. Qualquer outra tentativa de defender essa ancestralidade, como a manutenção de
ensinamentos antiqüíssimos através de tradições familiares ou sociedades secretas de qualquer
espécie, é basicamente indefensável e alheio a qualquer tipo de consideração histórica séria.
Transmissões desse tipo, através de supostas linhagens, mesmo que possíveis, resultariam
quando muito na conservação por um pequeno grupo de uma ou outra tradição específica,
necessariamente deturpada pela forma de transmissão, mas nunca no conjunto da Wicca que,
como já pudemos discutir, somente começou a ser estabelecido em meados da década de 1950.
Portanto, o único momento em que a Wicca apresenta características cuja antiguidade pode ser
traçada além da Baixa Idade Média, é justamente ao manter no seu corpo doutrinário esse
conjunto de celebrações ou, melhor dizendo, é ao buscar resgatar o sentido original dessas
celebrações.
Em especial a celebração dos equinócios e solstícios é quase tão antiga quanto à civilização, e
influenciou profundamente quase todas as religiões modernas, em especial as que se
desenvolveram no Ocidente. Vemos evidências dessas celebrações em inúmeros alinhamentos
megalíticos da Europa, em especial em Stonehenge; as encontramos nos templos maias, astecas e
incas; até mesmo entre os mais primitivos habitantes do Brasil, no sítio piauiense conhecido
como as "Sete Cidades", encontram-se evidências arqueológicas desse tipo de culto. Portanto, a
Roda do Ano é o principal (senão o único) elo de ligação da Wicca com essa antiguidade
verdadeiramente pagã, governada pelo ritmo da terra e do sol, que desconhecia o tempo linear e
vivia ao ritmo dos ciclos de plantio e colheita, de nascimento e renascimento.

Notas:
1
Le Goff, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
2
"Estou sem reino, reinarei, reino, reinei".
3
ver o tópico "As Divindades", deste curso.
4
vale lembrar que, nestas considerações, ao me referir a "comunidade", estou considerando uma
comunidade em um estágio cultural pré-urbano, ou semi-urbano, a exemplo das existentes na
Europa Ocidental antes da conquista romana, ou as sociedades indígenas, de uma forma geral.
5
basta rever os tópicos do capítulo "Fundamentos Mítico-Religiosos" deste curso.

OS SABÁS

Uma vez que, no tópico anterior, abordamos a Roda do Ano como um todo, chega o momento de
nos focarmos nas oito celebrações que a compõem, nos seus simbolismos próprios, e nas formas
como elas foram assimiladas e incorporadas ao imaginário da civilização ocidental.
De início, voltemos ao termo "sabá", nome utilizado para essas oito celebrações. Seria inócuo
tentar substituí-lo, mas vale deixar claro a sua inadequação, como aliás já aludimos
anteriormente. Em primeiro lugar, trata-se de um termo cujo significado, se relacionado com
magia ou bruxaria, é de origem marcadamente cristã. Na época de maior atuação da Inquisição,
em meados do século XVI, era indistinto para a Igreja a figura do bruxo e o judeu, ou outras
minorias étnicas indesejáveis: dessa forma, o nome do dia sagrado do judaísmo, o dia, por
excelência, consagrado ao culto - o sabbath - veio a tornar-se, igualmente, o nome do culto ao
demônio praticado pelas "bruxas". O prof. Carlos Roberto Nogueira nos lembra, inclusive, que
"o uso freqüente do termo sinagoga nos registros dos tribunais para designar a assembléia
bruxesca indica como os juízes identificavam um parentesco próximo das bruxas com outros
tipos de infiéis e heréticos, equiparando o seu culto perverso à conhecida e odiosa assembléia
dos judeus1".
Se formos além em nossa crítica, e nos detivermos na significação pura e simples atribuída ao
sabá, independente do significado que pretende lhe atribuir a Wicca, encontraremos em inúmeras
obras referências a essas supostas cerimônias, dificilmente elogiosas. No clássico estudo de Jean
Palou, A Feitiçaria, lemos que "o sabá é a missa diabólica celebrada pelo padre demoníaco que é
o feiticeiro2". Uma obra anônima, Magia e Sortilégios3, nos diz que "o essencial do sabá e de
todas as práticas semelhantes consistia em atos sexuais", e o próprio Eliphas Levi nos diz que o
sabá "tratava-se de uma assembléia de malfeitores que explorava os idiotas e os loucos4".
No entanto, o mais aceito hoje em dia é que as descrições dos sabás, encontráveis em inúmeros
registros da Inquisição, nada mais eram do que fruto de imaginações doentias, ou delírios
extraídos de mentes e corpos alquebrados pela tortura. Se em algum momento, entre a Idade
Média e o Renascimento, aconteceram sabás, esses provavelmente seriam uma reação de revolta
contra o pesado jugo imposto pela Igreja e pelo Estado, como nos diz Jacques Finné em sua obra
clássica Erotismo e Feitiçaria: "o sabá constituía, antes de qualquer coisa, uma revolução
dirigida contra vários focos, entre os quais a Igreja, as estratificações sociais, a subnutrição e a
maldição da carne5".
Independentemente da realização ou não, em tempos antigos, de cerimônias mais ou menos
diabólicas, mais ou menos libidinosas, por supostas bruxas; independentemente da continuação
de tais ritos blasfemos pelos Cavaleiros Templários e tantas outras alegações, a verdade é que a
palavra sabá tornou-se carregada de implicações tão negativas quanto à própria palavra bruxa, e
é interessante notar como ambas as palavras foram preservadas por Gardner ao sintetizar a
Wicca, o que, certamente, acabou trazendo uma série de interpretações errôneas para essa
doutrina. No entanto, não podemos nos esquecer que Gardner estava convencido da idéia que os
relatos da Inquisição eram interpretações errôneas da sobrevivência de um "culto das bruxas", e
muito do que ele escreveu baseava-se nessa idéia.
Deixando de lado, porém, as implicações ou significados que possa ter a palavra sabá, e as várias
interpretações a ela atribuídas, passemos a nos concentrar naquilo que esta palavra representa
para o nosso assunto, ou seja: a denominação utilizada dentro da Wicca para aquelas oito
celebrações, ou festivais, que marcam o calendário litúrgico conhecido como Roda do Ano, que
descrevemos no tópico anterior.
O calendário dos Sabás

Conforme dissemos, a Roda do Ano é marcada por oito pontos nodais, que reúnem os equinócios
e solstícios (auge das estações) e os pontos de transição, ou início de cada uma das quatro
estações do ano. Para uma compreensão melhor, vale dizer que o momento que atualmente, no
calendário civil, é considerado como o início de cada uma das estações, corresponde realmente
ao seu auge. Exemplificando, quando nos reportamos ao início da primavera, comumente, por
volta do dia 20 de setembro, este é, na realidade, o equinócio de primavera, ou seja, quando a
estação está plenamente estabelecida.

Dessa maneira, teríamos a seguinte ordem para os sabás:

Data Nome do Sabá Ocasião


02/02 Lughnasad ou Lammas início do outono
± 21/03 Mabon equinócio (auge) do outono
01/05 Sanhaim início do inverno
± 21/06 Yule solstício (auge) do inverno
01/08 Imbolc início da primavera
± 21/09 Ostara equinócio (auge) da primavera
31/10 Beltane início do verão
± 21/12 Litha solstício (auge) do verão

Logo de início, preciso ressaltar que a ordem que descrevi acima leva em consideração o suceder
das estações no hemisfério sul. A maior parte dos livros de Wicca que encontramos no mercado
se baseia no hemisfério norte, uma vez que são escritos por autores americanos ou ingleses,
sendo que mesmo alguns autores nacionais defendem que essa ordem deveria ser mantida, por
uma questão de "tradição". No entanto, isso é indefensável, se levarmos em consideração que o
principal objetivo dessas celebrações é estabelecer um vínculo, uma conexão com os ciclos
naturais. Obviamente, não faz nenhum sentido essa conexão com uma natureza diferente da que
nos cerca.
Conforme citamos no tópico anterior, os quatro festivais que marcam o início real das estações,
ou o momento de transição entre elas (Lughnasad, Samhain, Imbolc e Beltane), provém
especialmente da tradição celta insular, sendo essencialmente festivais do fogo, ou festivais
solares, relacionados principalmente com a figura de deuses como Lugh e Belenus. Conforme
nos narra Barry Cunliffe6, no entanto, há relativamente poucas referências arqueológicas diretas a
esses festivais, o que impossibilita sabermos com maior segurança como eles se davam
originalmente. Na verdade, no Calendário de Coligny, datado do século I a.C. e principal
referência arqueológica à divisão celta do tempo, estão indicados apenas os festivais de Beltane e
Lughnasad, o que parece indicar que, nessa época, os velhos costumes já estavam sendo
abandonados na parte mais civilizada do mundo celta. No entanto, por remeterem diretamente à
tradição celta - e dessa forma ter uma certa "ligação ancestral" com os fundadores - esses quatro
festivais são denominados, na Wicca, de Grandes Sabás.
Os quatro outros festivais (Mabon, Yule, Ostara e Litha) - os Pequenos Sabás - parecem ser
simplesmente um amálgama de diversas tradições de ritos equinociais e solsticiais, com
elementos tirados de ritos nórdicos e de outras tribos bárbaras da antiga Europa, bem como de
outras tradições não-européias, como a própria Páscoa judia. Como já citamos, festivais
marcando os equinócios e solstícios são ritos cuja antiguidade é imensa, e são comuns a quase
todas as sociedades agrícolas ao redor do mundo.
Para sermos exatos, é difícil precisar em que momento começa a haver uma sistematização
desses festivais dentro da Wicca. No primeiro livro de Gardner, "Bruxaria Hoje", há referências
aos sabás mais ou menos nos moldes das "reuniões de bruxas" descritas pela Inquisição, mas
apenas uma breve alusão a uma cerimônia específica, em verdade um Yule, ao qual o autor teria
assistido7. Obras posteriores, no entanto, como o "Oito Sabás Para Bruxas", do casal Farrar 8, já
trazem uma imagem acabada do que seriam essas cerimônias, o que reflete certamente a forma
como as idéias de Gardner foram sendo consolidadas e outras fontes folclóricas foram
incorporadas à doutrina, ao longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente.
De qualquer maneira, vale ressaltar que, embora dentro da Wicca haja uma tentativa de resgate
dos valores originais associados a essas cerimônias, elas não são, de forma alguma, estranhas ao
nosso próprio calendário civil ou mesmo àquelas datas que, comumente, associamos à
cristandade. Pelo contrário, tanto os sabás quanto às festas religiosas que se integraram à tradição
cultural do Ocidente possuem uma base folclórica comum e significados semelhantes. O que
ocorreu, na realidade, foi uma incorporação ou ainda uma "releitura" sob a ótica cristã, de datas,
ritos e festividades "pagãs", como veremos a seguir.

Yule, o Solstício de Inverno

O sabá comemorado na noite mais longa do ano é o sabá do renascimento. É interessante reparar
que essa época do ano, para inúmeras religiões nascidas de civilizações agrícolas, está associada
ao nascimento de seu deus-solar, de alguma forma. A verdade é que a associação do
renascimento à noite mais longa do ano é bastante natural, posto que ela é o ápice da estação fria
e, a partir desse momento, os dias começarão a alongar-se e a natureza progressivamente se
revitalizará.
No hemisfério norte, o solstício de inverno ocorre próximo ao Natal cristão. Aliás, Janet e
Stewart Farrar9 usam mesmo o termo natal, ao invés de Yule. Essa data, em especial, foi uma das
mais sincretizadas pela cristandade, já que podemos afirmar que a "data de nascimento" de Jesus
foi convencionada para se ajustar ao solstício. Basicamente todos os símbolos associados ao
Natal têm origem pagã e refletem justamente aqueles elementos naturais que permanecem vivos
ao longo do inverno, ou que mantém os homens durante esse período. Assim, temos o pinheiro,
que se conserva verde durante o inverno, e as frutas secas, as nozes e outros alimentos, bastante
calóricos e de fácil conservação.
A celebração do Yule pode parecer dúbia, por se situar numa época do ano que incita ao
recolhimento, principalmente nos lugares de clima mais frio, e ser também a alegre celebração
do nascimento do Deus. No entanto, deve-se ter em mente que ela é o início de uma fase de
recuperação e crescimento, e é justamente isso que se saúda: a chegada do auge do período de
estagnação, numa concepção cíclica, representa que o seu fim igualmente chegará.
Um antigo costume reza que as cinzas da fogueira acesa na noite do Yule devem ser espalhadas
pelos campos, o que nos traz justamente o espírito dessa celebração: o calor, simbolizado pela
fogueira, está prestes a retornar e, ao espalhar as cinzas dessa fogueira, a idéia é que o sol venha
fertilizar a terra, na primavera vindoura. A troca de presentes parece trazer, igualmente, a idéia de
fortalecimento do espírito de coletividade, o compartilhar das reservas para a superação da fase
de privações10.
Imbolc

Como vimos anteriormente, os solstícios e equinócios marcam o auge das estações, apesar de
serem atualmente considerados como o início destas. Assim, o sabá Imbolc comemora a chegada
da primavera e o final do inverno. Temos ainda as noites mais longas que os dias, mas o ciclo de
aquecimento, a metade clara do ano, já começou.
O Imbolc é um festival do fogo, representando o Deus que começa a crescer e, com o seu calor,
prepara a fertilidade da terra. Há relatos de que, entre os celtas insulares, era uma data dedicada à
deusa Brigid (posteriormente cristianizada como Santa Brígida), divindade do fogo, comemorada
com procissões onde os participantes portavam tochas. Tradicionalmente, também, fazia-se nessa
época a limpeza ritual dos locais de culto, simbolizando que as reminiscências negativas do ciclo
anterior deviam ser apagadas, para que um novo ciclo de vida possa se instalar.
Em relação a este sabá, várias considerações interessantes podem ser feitas. Da deusa Brigid diz-
se que teria nascido exatamente ao nascer do sol, e uma grande torre de chamas teria se elevado
aos céus do topo de sua cabeça. Diz-se também que sua respiração traria nova vida para os
mortos. Eis aqui claras alusões ao retorno do sol, após o inverno. É interessante também notar
que aproximadamente nesta data os Astecas celebravam o seu ano-novo, onde vemos mais uma
alusão a um período de reinícios. A alegria pelo final do inverno também transparecia nas
Lupercalia romanas, que vieram depois dar origem ao Carnaval.
Comemorado no hemisfério norte a 2 de fevereiro, essa data ficou marcada para a cristandade
como a purificação de Maria - a idéia da limpeza ritual, que se reflete no Brasil em festas como a
da Lavagem do Bonfim, que ocorre aproximadamente na mesma época - e como a apresentação
de Jesus no Templo (a idéia do deus-solar que deixa a infância), em mais uma tradução cristã dos
ritos pagãos. O cristianismo associou igualmente a figura de Iemanjá (cuja festa acontece no
Brasil em 2 de fevereiro) à Maria. Levando-se em conta que tanto Iemanjá como a deusa celta
Brigid eram associadas pelos povos que as cultuavam a rios locais, esse é um interessante
paralelo.

Ostara, o Equinócio de Primavera


O sabá do equinócio de primavera parece ter o seu nome derivado da Deusa Eostre, deusa
saxônica da fertilidade, cujos símbolos eram o ovo e o coelho. É portanto, um festival de
fertilidade, um festival de plantio, onde se pediam as bênçãos para a germinação das sementes
recém-plantadas.
Pela tradição da Roda do Ano, poderia-se dizer que em Ostara anula-se de vez a imagem da
Deusa como mãe e do Deus como filho. A face de mãe ou de anciã da Deusa, ou ainda a de
criança virginal, que prevaleciam até aqui, é substituída pela face da donzela, pronta a assumir
seus atributos sexuais, como a própria terra a ser semeada. O Deus por sua vez, encontra-se aqui
na figura do jovem vigoroso, apesar de ainda não apresentar a plena força e maturidade. A
duração igual de dias e noites, alcançada neste período, é mais um aspecto a ser levado em conta,
visto que pode ser interpretado como o próprio equilíbrio da natureza se restabelecendo. A partir
daqui, o Sol e a Terra caminharão juntos, como casal divino.
A festa cristã da Páscoa, que no hemisfério norte coincide aproximadamente com o equinócio de
primavera, traz em si símbolos que pertencem tanto às tradições pagãs européias quanto à Páscoa
judaica. O simbolismo do ovo e do coelho foi assimilado das tradições pagãs e por isso, hoje,
parecem deslocados do ritual cristão, que nesse ponto se assemelha mais à imolação do cordeiro,
típica da Páscoa judaica. Convém lembrar, no entanto, que os cristãos celebram nesta época a
morte e a ressurreição de Jesus (o cordeiro de Deus), e que a lebre é um antigo símbolo de
ressurreição. Da mesma forma, diz-se que Jesus morreu como Filho, tendo ressuscitado como
Deus - o que tem um inegável paralelo com a situação descrita para o Deus pagão, que nesta
época deixa de ser o filho divino da Deusa e torna-se seu futuro deus-consorte.
De qualquer forma, este sabá e o próximo são dos poucos que preservaram, no hemisfério sul,
comemorações independentes das datas estabelecidas no hemisfério norte, o que mostra a força
das tradições ligadas a eles. O equinócio de primavera, aqui, acontece em setembro, e existem
inúmeras comemorações no Brasil nessa época que, de uma forma ou de outra, remetem a
antigos ritos pagãos, como o próprio costume de eleger-se nas escolas uma Rainha da Primavera.

Beltane

Beltane representa a transição entre a primavera e o verão e simboliza a consumação da união


sexual entre a Deusa e o Deus. Poderia-se mesmo dizer que o verão, estação da frutificação,
começa a manifestar-se aqui, para atingir o seu ápice no próximo solstício. Dessa forma, toda a
simbologia do Beltane tem, inegavelmente, um cunho sexual. Enquanto em Ostara a fertilidade
era apenas palpável e desejada, aqui ela se transforma em ato, representando que o calor do sol
penetrou na terra para nela engendrar seus frutos (plantio).
Embora diversos costumes da celebração de Beltane tenham subsistido e sido assimilados pelo
ocidente cristão, as celebrações típicas de Beltane, que ocorrem em 1º de maio no hemisfério
norte, foram empurradas pela cristandade para o mês seguinte, dando origem às festas juninas.
As fogueiras de Beltane subsistiram nessas festas, bem como o costume de pulá-las. Os
Maypoles, em torno dos quais dançava-se, tornaram-se os mastros onde colocam-se "bandeiras"
dos santos católicos, costume ainda popular no interior do Brasil, e em torno dos quais dança-se
a "quadrilha". Esta é, de forma inegável, uma mistura de dança circular com elementos de dança
de salão francesa, e há de se notar que o elemento central sobre o qual as "quadrilhas"
desenvolvem-se é o casamento. Vale dizer, ainda, que este "casamento", na versão humorística
das quadrilhas, não é um casamento consensual, mas sim um casamento obrigado (e geralmente
associado a uma gravidez prematura): talvez aqui tenhamos uma lembrança dos ritos sexuais de
Beltane, e de uma posterior "moralização", associando o sexo obrigatoriamente ao casamento.
A adivinhação era igualmente uma prática comum nesse festival pagão, e isso manteve-se na
tradição popular, pois é comum acreditar-se que as moças solteiras, nas noites de festa dos santos
"casamenteiros", poderão visionar seus "futuros maridos". O método usado para isso, à
visualização na água, é hoje basicamente o mesmo daqueles tempos.
Talvez esse deslocamento da data para o mês seguinte tenha origem na tradição celta que proibia
casamentos no mês de maio, por ser este consagrado unicamente ao casamento da Deusa e do
Deus, ou ainda às uniões sexuais "sem compromisso". Dessa forma, nada mais natural que o mês
seguinte fosse dedicado aos casamentos e, posteriormente, aos "santos casamenteiros". Por outro
lado, a celebração do casamento divino ficou nitidamente marcado, pois maio é hoje considerado
o Mês das Noivas pelos cristãos, bem como é o mês dedicado a Maria (a esposa-divina).
Outro aspecto interessante a ser lembrado é que o 1º de maio é, hoje, comemorado
internacionalmente como o Dia do Trabalho. Lembrando-se que o Beltane era um festival de
plantio, a associação entre agricultura e trabalho é bastante notável, visto ter sido esta atividade
um dos primeiros trabalhos organizados do homem, ou mesmo a atividade que introduziu, para a
humanidade, a noção de trabalho obrigatório e sistematizado.

Litha, o Solstício de Verão

O dia mais longo do ano marca o auge do poderio do sol. Em Litha, o Deus atinge a maturidade e
prenuncia o seu declínio, ao passo que a Deusa, grávida, assume a face da futura mãe. Como no
solstício de inverno, o solstício de verão marca uma pausa, um momento de repouso entre as
duas metades da Roda do Ano. Aqui, o período não é o repouso forçado pelo inverno, mas sim o
repouso prazeroso do verão, o intervalo entre o plantio e a colheita. É de se notar que até hoje, se
considerarmos os calendários escolares, teremos férias justamente nesses dois períodos (auge do
inverno e auge do verão).
Segundo uma das tradições ligadas ao solstício de verão, esse seria o momento em que o Rei do
Carvalho, aspecto do Deus que reinou durante a primeira metade do ano (a fase de crescimento,
ou seja, do nascimento à maturidade), seria derrotado e substituído pelo Rei do Azevinho, que
governará a outra metade (da maturidade à morte). Há aqui um interessante sincretismo apontado
por Robert Graves, conforme citado por Stewart Farrar11: ocorrendo sempre em torno de 20 de
junho, no hemisfério norte, a data deste sabá praticamente coincide com o Dia de São João
Batista. É interessante notar que, segundo a mitologia cristã, João Batista, o feroz pregador, foi
substituído em sua missão por "aquele que veio depois dele", ou seja, o sábio e manso Jesus. Eis
aqui, portanto, uma assimilação ou um notável paralelo na doutrina cristã da derrota do
impetuoso Rei do Carvalho pelo sábio Rei do Azevinho.

Lammas ou Lughnasad

O Lammas é o sabá que comemora a chegada das primeiras colheitas, juntamente com a chegada
do outono. Marca, portanto, a chegada dos primeiros frutos da Mãe-Terra que alimentarão os
homens, bem como a transição do Deus-Sol para o papel de protetor e provedor. Convém
lembrar que o termo Lammas já é um nome um tanto moderno (e mesmo cristianizado) para esse
sabá, motivo pelo qual pode-se dizer que ele foi antes absorvido do que anulado ou sincretizado,
mantendo-se vivo entre a cristandade na forma de inúmeros festivais de colheita, em todo o
mundo ocidental.
Entre os celtas insulares, porém, era conhecido e celebrado como Lughnasadh. Este festival era
dedicado ao deus Lugh, deus guerreiro associado ao sol, que teria tido importância decisiva na
vitória dos Thuatha De Dannan sobre os Fomorianos (duas tribos míticas que haveriam povoado
a Irlanda). Uma das lendas associadas a Lugh conta que ele teria poupado a vida do chefe
inimigo Bres, em troca do segredo de arar a terra, semear e colher. Eis aqui, portanto, uma
referência direta à agricultura neste festival, mesmo em sua forma mais ancestral.
Aliás, pesquisadores independentes como Louis Charpentier e Juan G. Atienza, no que pesem as
críticas que podem ser feitas a um certo diletantismo de seus trabalhos, apontam interessantes
paralelos entre a figura de Lugh e numerosas divindades ou "heróis" civilizadores, como, por
exemplo, o egípcio Osíris ou o grego Héracles12. Esses autores nos mostram toda uma série de
similaridades entre essas divindades solares e sugerem uma ligação destas a uma suposta raça de
"construtores de megalitos" que teriam trazido as técnicas da agricultura à Europa Ocidental. A
levar-se em consideração tais hipóteses, não de todo absurdas, teríamos uma forte razão para que
este festival fosse um dos que subsistiram mais fortemente nas tradições populares.

Uma outra tradição ligada ao Lammas era o costume de se atear fogo a uma roda de madeira e
fazê-la rolar colina abaixo. Essa prática representava a descida do sol, o encurtamento
progressivo dos dias, significando que o Deus entrava em sua fase de decadência.

Mabon, o Equinócio de Outono

O Mabon é o festival da segunda colheita, ou ainda do encerramento da colheita iniciada em


Lammas. Aqui se colhiam os alimentos que garantiam o sustento durante o inverno, bem como
se sacrificavam aqueles animais domésticos que não resistiriam à próxima estação, consumindo-
se ou conservando-se a sua carne. De uma forma geral, pode-se dizer que, apesar da aproximação
do tempo de privação, o Mabon seria o momento de maior fartura de todo o ano, estando as
colheitas completas e o alimento estocado. Dessa forma, a celebração do Mabon resulta num
agradecimento pelas dádivas proporcionadas pela Deusa e pelo Deus no decorrer do ano.
No Mabon, temos novamente o equilíbrio entre o dia e a noite, significando aqui que ambos os
aspectos entram em sua fase final. O Deus encaminha-se para a morte próxima, enquanto a
Deusa assume seu aspecto de anciã, preparando-se para a jornada no mundo interior, onde
passará o inverno aguardando o nascimento de seu filho. Apesar da origem do nome do sabá ser
celta, o folclore do Mabon remete à lenda grega de Perséfone, que conta que esta deusa passava
metade do ano proporcionando a fertilidade dos campos e outra metade do ano no Hades (mundo
interior) em companhia de seu marido. A época do equinócio de outono era justamente o início
do período do ano em que ela morava no submundo. Na Grécia, nessa época, eram celebrados os
Ritos de Elêusis, talvez o mais importante festival religioso grego, que perdurou por mais de
2000 anos.
Na cristandade, essa data é dedicada ao arcanjo Miguel, considerado pelos cristãos o vencedor de
Lúcifer (o portador da luz). É interessante notar que uma das lendas celtas associadas ao Mabon
contava que, no equinócio de outono, o deus Lugh (o sol, a luz) era derrotado por seu irmão
gêmeo, o deus da escuridão Tanist. De uma maneira ou de outra, surge aqui à idéia da noite
sobrepondo-se ao dia.
Samhain

O Samhain costuma ser considerado pela Wicca, hoje, como o sabá mais importante. Se formos
buscar razões "tradicionais" para isso, dificilmente as encontraremos, uma vez que, como já
dissemos anteriormente, esse festival ao menos era citado no calendário de Coligny, principal
referência que temos à contagem do ano celta. No entanto, se formos buscar tais razões no
simbolismo específico desta data, sua prevalência talvez se justifique.
O Samhain era o ano-novo celta. Num aspecto puramente prático, isto significava que as
colheitas estavam encerradas, os animais domésticos guardados em seus abrigos de inverno, e as
provisões estocadas. Um ciclo de vida estava encerrado, portanto, e restava aguardar o início do
novo ciclo. No aspecto místico, no entanto, esta data é carregada de significações.
Apesar do Samhain ser celebrado como o final do ano, supõe-se que não se comemorava o início
de um novo ano até o próximo Yule, haja visto esse período entre os dois sabás ser considerado
como sendo um tempo fora do tempo, um período de suspensão da vida, repleto de magia e de
perigos. A relação com os perigos do inverno, com o recolhimento exigido nessa estação nos
países de clima frio, com a duração das longas noites invernais, é patente. O próprio nome
gaélico significa, literalmente, "fim do verão", evocando o final dos dias de calor. Assim, o
momento de maior fartura relativa, em todo o ano, marcava igualmente o momento de maior
comedimento, já que os estoques deveriam durar até a próxima primavera.
Na noite de Samhain, considerava-se que o véu entre os mundos estaria em seu momento mais
tênue, possibilitando a comunicação com os antepassados. Lanternas eram acesas e colocadas
nas janelas, para guiar os que já partiram até suas antigas casas. As mesas eram postas com
lugares extras para os antepassados, e comida era ofertada a estes. A própria celebração do sabá
tem a característica de ser um misto de pesar pela morte e alegria pelo renascimento vindouro -
refletindo o que seria o momento da morte do Deus solar e do auto-exílio da Deusa no
submundo, aguardando o seu retorno.
De uma forma geral há, nesse período de inverno e nas celebrações que surgiram a partir do
tema, uma característica geral de inversão, ou de subversão da realidade. Os mortos convivem
com os vivos, a autoridade (simbolizada pelo poder divino) está ausente, e assim por diante. No
entanto, essas características, que se encontram em todas as festividades (muitas das quais
permanecem até hoje) que abrangem o período de novembro a fevereiro, no hemisfério norte, são
por si só um assunto por demais extenso para tratarmos dele aqui13.
Nos atendo ao nosso ponto de interesse, essa dualidade do Samhain nos fala justamente do tema
central da Wicca, da revelação do mais profundo dos mistérios. O momento da morte do Deus é
o momento do conhecimento que ele gera a si mesmo, pois é ele a criança que gesta no útero da
Deusa e nascerá no Yule. O simbolismo da perpetuação da vida, da cadeia circular que se auto-
sustenta, da natureza que é inextinguível pois está continuamente gerando a si própria, se
expressa aqui tanto no plano divino quanto no plano humano. A mensagem passada é: somos
eternos pois aqueles que partiram continuam vivos em sua descendência, e poder-se-ia dizer que
o encontro com nossos antepassados é o próprio encontro com nossos filhos.
Ecos desse festival estão ainda bastante presentes no imaginário popular. O Dia das Bruxas, o
Halloween, tão tradicional nos países de língua inglesa, mostra-nos isso na forma de crianças
fantasiadas de seres fantásticos - fantasmas - o que seria uma forma distorcida de se interpretar
os antepassados mortos e mesmo, como dissemos acima, de representar as crianças como
continuadoras da presença dos que se foram. Além disso, a tradição cristã associou a essa data
tanto o Dia de Todos os Santos (01/10) quanto o Dia de Finados (02/10). Pode-se ver nas duas
celebrações cristãs o culto aos antepassados, tanto na forma de "santos" - antepassados protetores
- quanto na forma direta, ou seja: a reverência aos mortos.

A celebração dos Sabás

Independentemente do caráter simbólico de cada uma dessas celebrações, ou mesmo do fato que
elas possam ser utilizadas como condutoras de um calendário litúrgico, ou seja, como bases para
estabelecimento de um culto religioso, há ainda um aspecto que considero fundamental ao nos
referirmos aos sabás da Wicca: seu cunho congregatório - como cerimônias de participação
coletiva - e, ainda, seu caráter que poderíamos chamar de lúdico.
No Ocidente, acostumamo-nos a um formalismo religioso. É impossível negar que qualquer um
de nós é herdeiro do Cristianismo, já que toda a nossa civilização se estabeleceu sobre bases
cristãs. Mesmo aqueles raros que, entre nós, não possuíam pais ou avós cristãos, certamente os
tinham professando alguma forma religiosa que já foi, ao longo dos últimos séculos, fortemente
influenciada pela prevalência civilizatória do cristianismo. Dessa maneira, acostumamo-nos a
separar o que é divino do que é profano, a separar o que é religião do que é o nosso dia-a-dia.
Nunca é demais dizer que essa não é, em absoluto, uma visão pagã da religiosidade. A crença nos
seus deuses, os ritos a eles dedicados, são partes tão corriqueiras da vida de - digamos - um
aborígene australiano, quanto qualquer outra de suas atividades. O formalismo excessivo,
manifestado através do "tempo para o louvor", da contrição, da subserviência ou mesmo do
"temor" à divindade é essencialmente características cristãs.
Se quisermos considerar a Wicca como uma forma de religiosidade pagã, ou ainda (o que seria
mais apropriado) como uma forma de resgate de uma religiosidade pagã, adaptada aos tempos
atuais, a primeira coisa a fazer é se libertar desse formalismo. Celebrar os sabás não é nem pode
ser, de forma alguma, uma prática que incorpora um clima de profunda introjeção e introspecção,
para louvar deuses todo-poderosos através de ritos pré-estabelecidos que demonstram nossa
submissão e adoração a esses deuses. Se fizermos isso, estaremos apenas estabelecendo uma
espécie de corruptela de uma missa católica ou de um culto protestante.
A celebração de um sabá é, antes de mais nada, uma festa. É o momento de congregação de uma
determinada comunidade, em momentos específicos do ano, para celebrar seus objetivos comuns
e sua integração com a natureza. Na verdade, é o momento de dizer: "estamos juntos,
compartilhamos de determinados ideais e estamos felizes por causa disso". Um sabá é uma
reunião de amigos e, dessa forma, é o momento de bebermos juntos, de comermos juntos, de
trocarmos idéias sobre temas que nos são comuns, de privarmos de uma interação que - como
nas reuniões de verdadeiros amigos - chega a ser licenciosa. É a manutenção do ciclo
comunitário, daquilo que transcende a existência individual.
Embora possa haver um tema, ou mesmo um momento explicitamente ritual num sabá, isso
quando muito pode ser um fio condutor para a celebração, mas nunca o motivo desta. Nesse
ponto, tenho visto muito mais sentido em festinhas de Halloween em escolas do que em rituais
seriíssimos de "bruxas" vestidas de preto e altamente compenetradas, condoendo-se pela "morte
do deus". Estas últimas talvez estivessem mais bem ambientadas em alguma igreja, igualmente
vestidas de preto e com um véu sobre o rosto, lamuriando-se em alguma novena na sexta-feira
santa.
Por mais que possa soar estranho aos que buscam na Wicca uma "religião", celebrar um sabá, ou
participar de um, não é muito diferente de ir a uma festa junina, ou a uma rave, ou a um baile de
carnaval: afinal, todas essas manifestações derivam, de uma forma ou de outra, daquelas
comemorações que deram origem aos chamados sabás. A diferença está na existência de um
objetivo simbólico definido, que deve estar presente - o porquê de celebrar - e da existência de
um grupo definido a ser reunido - o com quem celebrar. Satisfeitos estes dois pontos, teremos as
condições necessárias para um sabá, deixando para outras ocasiões específicas aquelas reuniões
que terão um objetivo "mágico" ou "ritual" mais explícito.
Estas, no entanto, serão assunto de nosso próximo tópico.

Notas:
1
Nogueira, Carlos Roberto F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário, 1995.
2
Palou, Jean. A Feitiçaria. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
3
publicada no Brasil pela Editora Fase, provavelmente em 1982. A edição que possuímos não
possui nenhum dado bibliográfico mais acurado.
4
Levi, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998.
5
Finné, Jacques. Erotismo e Feitiçaria. São Paulo: Mundo Musical, s/d.
6
Cunliffe, Barry. The Ancient Celts. New York: Oxford University Press, 1997.
7
Gardner, Gerald. A Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras, 2003.
8
Farrar, Janet e Stewart. Oito Sabás para Bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999.
9
idem.
10
Lembremo-nos, a esse respeito, da conhecida fábula da cigarra e das formigas e dos seus dois
finais. Num deles a cigarra, que cantou durante o verão para alegrar o trabalho das formigas, é
acolhida por estas durante o inverno, numa representação da importância do papel social de cada
membro de uma coletividade. No outro final, ao contrário, a cigarra é abandonada para morrer de
frio e fome pelas formigas. Enquanto o primeiro final nos parece remeter a uma noção de
solidariedade típica de comunidades pagãs, o segundo parece ser uma releitura já contaminada,
em especial, pelos ideais até certo ponto individualistas do protestantismo, refletindo talvez a
época em que essa fábula foi recolhida e publicada.
11
Farrar, Janet e Stewart. opus cit.
12
ver, a esse respeito, Os Gigantes e o Mistério das Origens, de Louis Charpentier (Lisboa:
Bertrand, 1974).
13
é interessante consultar, a esse respeito, meu artigo "Os Ritos de Inverno e a Preservação da
Vida", na seção "Os Textos" da Mito e Magia, subseção "Bruxaria e Paganismo".
OS ESBÁS

No tópico anterior, ao discorrermos sobre os Sabás, apresentamos uma visão geral daquilo que
constitui o que chamamos de calendário litúrgico da Wicca. Embora, como dissemos, esses
festivais constituam o principal foco ritualístico da doutrina, eles não são - nem poderiam ser,
como ficará mais claro adiante - os únicos momentos de celebração ou "culto" associados a
Wicca.
Dentro do conceito de tempo cíclico, que já explanamos, a Roda do Ano e os sabás representam
o grande ciclo solar anual, na verdade presente em todas as concepções religiosas surgidas nas
sociedades pós-agrícolas. Poderíamos dizer, grosso modo, que este ciclo solar reflete a
coletividade, a vida social ou comunal. No plano individual, ou interno, no entanto, existem
também ciclos a serem considerados, igualmente na intenção primordial de harmonização e
integração da nossa "natureza interna" com a natureza que é, de certa forma, externa a nós..
Para atender a essa busca de harmonização pessoal, existe na Wicca um tipo de cerimônia
específica, que recebe o nome de Esbá. Em contraponto ao grande ciclo solar figurado nos sabás,
os esbás estão ligados ao ciclo lunar, mais restrito, o que faz com que suas bases remetam a um
período pré-agricola da humanidade, onde o paralelo entre os ciclos lunares e a fertilidade eram
vitais para os grupos de caçadores-coletores.
Dessa maneira, se os sabás representam o caminho solar, um caminho de realização coletiva,
social e material, os esbás seriam a ritualização do caminho lunar, por excelência o caminho da
realização interior, do desenvolvimento pessoal e, sobretudo, dos mistérios da vida, do
nascimento e, em última análise, da magia.

O Caminho Lunar
O conhecido autor Raven Grimassi nos afirma que "a Wicca é, entre outras coisas,
essencialmente um culto lunar"1. Essa afirmação, amplamente difundida, chega a parecer
paradoxal quando nos defrontamos com o caráter solar da Roda do Ano, e apenas se torna
parcialmente verdadeira ao levarmos em consideração o caminho lunar representado nos esbás.
Mas o que é, exatamente, o caminho lunar? Maria Nazaré Alvim de Barros, no seu premiado
estudo "As Deusas, as Bruxas e a Igreja"2, nos mostra como foram as fases da Lua, em seu
"eterno retorno, que propiciaram ao homem tomar contato com um tempo concreto". Além da
simples contagem do tempo, no entanto, o suceder das fases da lunares e sua relação com o ciclo
menstrual e à fertilidade, ficou associado ao feminino e à Deusa-Mãe.
O papel da mulher nas sociedades primitivas como geradora da vida espelhava o próprio papel
da Terra. O mistério do sangramento mensal, sem ferimento e sem debilitação, evocava o
controle sobre a morte, transformava a mulher, sob o signo da Lua, num ser mágico. Dessa
maneira, os primeiros objetos de culto manufaturados que se têm notícia são representações de
atributos femininos, muitas vezes exagerados, diretamente ligados à fertilidade e, portanto, aos
ciclos lunares.
Ainda segundo a mesma autora, o desaparecer da Lua por três dias, a cada ciclo, durante a Lua
Nova, veio a estabelecer associações, igualmente, com a idéia de renascimento e de
transformação:

"A morte da Lua, como a dos homens, é provisória, implica transformação,


modificação da existência, logo, é morte iniciática, (...) que permite incorporar as
forças desconhecidas e obscuras. (...) Como a mulher, ela é o cálice, o ventre, o
receptáculo dos germes do renascimento cíclico, que contém a bebida da
imortalidade."3

Dessa maneira, o caminho lunar, que se procura evocar com a celebração dos esbás, é um
caminho da interiorização, o caminho iniciático por excelência. Representado no tarô pela
seqüência dos arcanos de XII à XXII, ele nos fala das provas que devemos enfrentar em nossa
busca do que transcende a existência cotidiana. Aliás, além da própria carta da Lua (arcano
XVIII), encontramos nessa seqüência a carta do Louco - o lunático - símbolo do próprio caminho
iniciático e do eterno recomeço.
O caminho lunar é, portanto, um caminho de aprendizado e desenvolvimento pessoal (que
poderíamos chamar de autoconhecimento). Ao contrário do caminho solar, cujas fases e a
sistemática estão prévia e seguramente traçadas, existe aqui uma grande individualização e,
mesmo, uma insegurança implícita. Basta imaginarmos, traçando um paralelo, o seguinte: se
olharmos uma paisagem durante a noite, tendo exclusivamente a luz da Lua, muitas vezes nos
surpreenderemos com a mesma paisagem, à luz do dia. À noite, perdemos nossa noção de
profundidade; objetos que estão distantes entre si podem parecer estar lado a lado. Para nos
guiarmos à noite, não basta ver o caminho, é preciso conhecê-lo, e conhecê-lo com segurança o
suficiente para que possamos segui-lo sem confiar na visão.
A tônica dos esbás, portanto, é o aprendizado desse caminho lunar, o desenvolvimento pessoal e
individualizado de percepções e aptidões que, mais do que servirem simplesmente ao culto,
evocam diretamente a transcendência do cotidiano e do cognoscível apenas pela experiência
direta.

Os esbás e a Deusa Tríplice


Numa abordagem prática, os esbás seriam basicamente reuniões, ou encontros rituais, marcados
de acordo com as fases da Lua, em especial na Lua Cheia. Em Gardner 4, eles são citados
brevemente em um trecho não creditado, retirado da obra "Aradia, o Evangelho das Bruxas" 5, do
folclorista inglês Charles Leland. Nessa obra, publicada em 1899, esse trecho aparece como uma
exortação de Aradia, filha da deusa Diana - apresentada como a "rainha de todas as bruxas" -, aos
seus seguidores:

"Uma vez por mês, quando a Lua estiver plena,


Reuni-vos em algum lugar deserto,
Ou em assembléia num bosque
Para adorar o poderoso espírito de sua rainha,
Minha mãe, a grande Diana.
Àquela que de bom grado
Aprender toda a magia, mas que ainda não domina
Seus mais profundos segredos, minha mãe irá
Ensinar, na verdade, todas as coisas ainda desconhecidas."

Independentemente da validade do relato de Leland, grandemente contestada, no trecho


transcrito encontramos alguns elementos que dão idéia da tônica de um esbá. Em primeiro lugar,
temos a idéia já referida de uma reunião realizada na noite de Lua Cheia. Em segundo lugar, essa
reunião, aparte o seu caráter de culto, possui igualmente um caráter de aprendizado, de ensino de
determinados "segredos" ou "técnicas" de magia. Por fim, surge implícito no trecho a figura de
uma Deusa Lunar, tanto no aspecto da mãe (Diana) como no da filha (Aradia).
Essa idéia de uma deusa lunar de várias faces, que possui grande antiguidade, é bastante
difundida na Wicca e deve ser bem compreendida, por possuir uma ligação profunda com a
ritualística dos esbás. Claudio Crow Quintino6 nos fala, por exemplo, que todas as deusas celtas
são tríplices em sua essência, e cita o caso da Morríghan, que em algumas passagens dos mitos
que citam seu nome aparece como uma jovem e sedutora donzela, em outras como uma
imponente guerreira e ainda, em outras, como uma desfigurada anciã. Examinando os mitos
gregos encontraremos, igualmente, por diversas vezes essa figura de três deusas, ou de uma
divindade tripla: temos as três Parcas, as três Graças, temos a tríade formada por Perséfone
(donzela), Deméter (mãe) e Hécate (anciã) no mito sazonal da descida ao Hades, ou mesmo as
três deusas que disputam o Pomo de Ouro sob o julgamento de Páris: Afrodite (o amor), Hera (o
poder) e Atena (a sabedoria).
De uma maneira ou de outra, essas trindades femininas divinas nos remetem às fases da Lua e ao
simbolismo que a elas, ao longo dos séculos, foi associado. Dessa maneira, teríamos o período
compreendido entre a Lua Nova e a meia-Lua correspondendo à Donzela, o período entre esta e
a meia-lua seguinte, passando pela Lua Cheia, correspondendo à Mãe, e por fim, o período entre
a meia-lua minguante e a próxima Lua Nova, correspondendo à Anciã.

No gráfico, além da associação com as três faces das deusas lunares, indiquei igualmente os
quatro "momentos", ou as quatro características que podem ser distinguidas num ciclo lunar
completo. Se fizermos, neste ponto, uma comparação com o gráfico do ciclo solar que
apresentamos no tópico sobre a Roda do Ano, veremos que essas características são semelhantes:
o que o ciclo solar nos mostra através de uma perspectiva coletiva e abrangente, o ciclo lunar nos
traz através de uma perspectiva pessoal e individualizada. Se lá aprendíamos a lidar com o
coletivo, através do suceder das estações e da saga do deus solar, espelhados nos festivais, aqui
aprendemos a lidar com o microcosmo, com o desenvolvimento pessoal, através do suceder das
fases lunares e dos aspectos da deusa tríplice, espelhados nos esbás.

As energias lunares e a celebração dos esbás

Há muito se fala na influência da Lua sobre a personalidade humana. Mesmo não levando em
conta considerações místicas ou mesmo astrológicas sobre essa influência, é certo que a Lua,
pela sua proximidade com a Terra, possui um papel relevante em diversos processos físicos do
nosso planeta, a exemplo das marés. Na verdade, várias pesquisas conseguiram demonstrar que
determinados acontecimentos, tais como partos, crises psicóticas e outros parecem ser, de alguma
forma, afetados pelas fases lunares. O próprio termo "lunático", aplicado aos loucos, vem de um
conhecimento ancestral da influência da Lua nos humores humanos. Donna Cunningham7,
referindo-se ao trabalho do Dr. Arnold Lieber, nos diz que:
"Lieber cita dezenas de estudos que mostram um aumento do estresse emocional
durante as Luas cheia e nova. Um hospital psiquiátrico da rede pública no Texas,
constatou um significativo aumento de internações durante a Lua cheia e o quarto
minguante. Outro psiquiatra, M. H. Stone, registrou aumento de episódios maníacos
durante as Luas cheia e nova. A pesquisa de Lieber também mostrou que a
criminalidade segue as fases da Lua. (...) Em Nova York, Filadélfia, Los Angeles e
Miami os incêndios criminosos aumentam durante a Lua cheia."
Se tais efeitos, comprovados estatisticamente, devem-se à atração gravitacional da Lua ou a
outros fatores conhecidos ou não, não cabe a nós discutir. Dentro do nosso interesse imediato, o
que poderíamos dizer é que, aparentemente, existe uma espécie de "energia" lunar que, de
alguma maneira, influencia no comportamento humano. Essas energias, que a sabedoria popular
retratou em suas deusas lunares e associou a períodos de crescimento, plenitude, recolhimento e
transformação, é o que se busca trabalhar nos esbás.
Embora a palavra esbá se refira especificamente a reuniões realizadas na Lua cheia, estamos
empregando aqui esse termo com o significado de qualquer reunião realizada em sintonia com as
fases lunares. Na verdade, não existe qualquer padrão geral na periodicidade com que grupos de
praticantes da Wicca, círculos ou covens8 se reúnem: alguns o fazem semanalmente, outros
quinzenalmente ou mensalmente. No entanto, mesmo respeitando as conveniências de seus
membros, essas reuniões costumam ser marcadas, de alguma maneira, de acordo com o
calendário lunar. Isso tem uma razão prática específica: utilizar a característica lunar dominante
no momento para ser o fio condutor geral da temática da reunião.
Dessa maneira, associando-se o momento do ano que se atravessa, caracterizado pelo ciclo solar,
ao período específico determinado pela fase da Lua, abre-se um amplo leque de possibilidades
temáticas para cada reunião o que, obviamente, resulta numa diversidade de assuntos a serem
abordados. Levando em consideração que o período compreendido entre cada sabá abrange
quase dois ciclos completos da Lua, temos, ao longo de um ano, cerca de 53 diferentes
conjugações entre o momento solar e o momento lunar que podem ser aproveitadas para
aprendizagem ou para "trabalhos mágicos" específicos.
De uma maneira geral, aceitando-se a validade da influência da Lua como "reforço" em tais
ocasiões, ou apenas adotando-se um significado simbólico, o que normalmente se observa é que
em rituais realizados na Lua cheia trabalha-se em prol de objetivos a serem plenamente
concretizados, privilegiando a idéia de abundância, plenitude ou prosperidade. Na Lua
minguante, normalmente são enfocadas aquelas coisas que precisam ser tolhidas, controladas ou
abandonadas, como vícios ou comportamentos e atitudes prejudiciais, ao passo que na Lua
Crescente, ao contrário, o enfoque é dado para tudo aquilo que precisa ser reforçado e
incentivado. Por fim, na Lua Nova, a tônica é geralmente a mudança, a transformação, ou ainda a
eclosão de potencialidades ocultas.
Note-se que as características descritas para essas reuniões são de cunho marcadamente pessoal.
Ao contrário do que dissemos sobre os sabás, dificilmente um determinado grupo que se reúna a
algum tempo admitirá a presença de estranhos a uma delas, não apenas pelo seu caráter mais
marcadamente ritual como, igualmente, pela provável exposição de particularidades pessoais de
seus membros. Na verdade, em alguns grupos, mesmo os novos membros são admitidos nas
reuniões de "luas escuras" (minguante e nova) apenas após algum tempo de convivência. Nesse
ponto, mais do que em qualquer outro, deve-se aplicar uma máxima da Wicca que preconiza que
entre os participantes de um coven haja "perfeito amor e perfeita confiança".
Por fim, vale dizer que, sendo por excelência os momentos em que se desenvolve o aprendizado
e a prática dentro da Wicca, além das potencialidades individuais e da convivência dentro de uma
célula comunitária de características quase familiares - e deve ficar claro que a idéia primordial
da Wicca é a criação dessas células e não a de um culto coletivo nos moldes das religiões
estabelecidas - os esbás são, igualmente, o protótipo do ritual wiccan. Ao contrário dos sabás,
que embora possuam simbologia e elementos próprios têm uma estrutura muito mais aberta, os
esbás possuem uma ritualística específica, constando de determinadas fases ou partes que devem
suceder-se e que têm finalidades específicas. Tais fases ou etapas de um ritual típico, seu
simbolismo e seus desdobramentos, serão o nosso próximo assunto.

Notas:
1
Grimassi, Raven. Os Mistérios Wiccanos. São Paulo: Gaia, 2000.
2
Barros, Maria N. A. As Deusas, as Bruxas e a Igreja. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001.
3
idem.
4
Gardner, Gerald. A Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras, 2003.
5
Leland, Charles G. Aradia, o Evangelho das Bruxas. São Paulo: Outras Palavras, 2000.
6
Quintino, Claudio C. A Religião da Grande Deusa. São Paulo: Gaia, 2000.
7
Cunningham, Donna. A Lua na sua vida. Rio de Janeiro: Record, 1999.
8
A palavra coven, de origem não muito precisa, tem sido utilizada para designar associações ou
grupos regulares de praticantes da Wicca, geralmente com regras determinadas para ingresso de
novos membros e métodos próprios de ação.
ESTRUTURA DE UM RITUAL

Podemos entender um ritual, dentro da Wicca, como uma conjugação de diversos elementos,
dentre os quais três se destacam: ele é um momento de culto simbólico, um momento de
aprendizagem e também um momento de prática mágica. Para suprir essas funções, ele é
constituído de fases, ou partes específicas, que detalharemos nesse tópico de nosso curso. No
entanto, dependendo de sua finalidade e da concepção particular de quem o celebra, um ou mais
desses elementos podem não estar presentes em um ritual: um sabá, por exemplo, que possui um
caráter intrínseco principal de celebração, não é o momento mais apropriado para se fazer magia
e, dessa forma, dispensaria aquelas partes que se referissem unicamente a ela.
Pode-se dizer que o "ritual típico" é aquele que é realizado por um coven, ou grupo de
praticantes, que se reúne regularmente no contexto das cerimônias lunares, ou esbás, como
descrevemos no tópico anterior, e que é parte de um processo mais ou menos longo de instrução
e de convivência mútua entre os seus membros. Dessa maneira, ele precisa ter um objetivo, que
se encaixe e coadune com o fio condutor do próprio grupo, e não ser uma mera repetição de
fórmulas pré-estabelecidas.

O local e os participantes

Seria inútil dizer que, por ser basicamente um ato de integração com as forças naturais, um ritual
wiccan deveria ser realizado, de preferência, em um local aberto e junto à natureza. Um bosque
ou parque seria certamente o ideal, mas isso nem sempre é possível, por motivos que vão desde
as condições climáticas até a privacidade.
De qualquer maneira, seja ao ar livre ou em um local fechado, esse local escolhido estará, de
algum modo, fazendo as funções de templo pelo período do ritual. Dessa forma, ele precisa ser
convenientemente preparado para isso, exatamente da mesma forma que, ao darmos uma festa,
arrumamos nossa casa para receber os convidados: providencia-se espaço para que todos possam
se acomodar, deixa-se à mão tudo que será necessário, coloca-se para tocar a música
conveniente.
Como poucos são os grupos que dispõem de um lugar fixo, destinado exclusivamente a estas
reuniões e já preparados para isto, essas recomendações se tornam mais importantes. O "clima",
ou seja, o ambiente específico de um ritual é certamente diferente daquele que reina
habitualmente na sala de estar de uma casa. Embora muito se possa teorizar a respeito disso, a
verdade é que as atividades normalmente desenvolvidas em um determinado local parecem
"impregnar" de alguma forma esse local, não importando se isso acontece realmente ou se é
apenas a impressão que nos passa. Basta lembrarmos que a sensação que temos dentro de uma
igreja é certamente diferente daquela que temos no pronto-socorro de um hospital. Seja como
for, uma vez que o componente psicológico é parte essencial da magia, é importante que o
ambiente propício esteja formado.
Dentro dessa linha de pensamento, costuma-se proceder, além de uma limpeza "real", uma
"limpeza ritual" no local onde será celebrado um ritual. Uma das maneiras de fazê-lo, embora
existam várias outras, é utilizar uma vassoura especificamente destinada para este fim e "varrer"
o local com movimentos circulares no sentido anti-horário, visualizando que todas as "energias"
estranhas ao objetivo desejado estão sendo removidas pelo movimento. Elementos que são
tradicionais em diversas manifestações de caráter ritual, como o uso do incenso, foram
igualmente incorporados a Wicca para se criar esse ambiente propício.
Da mesma maneira que o local, é importante que as pessoas que participarão do ritual passem,
igualmente, por esse processo de limpeza. Para isso, a própria pessoa que oficiará o ritual ou
alguém por ela designada repetirá em cada um dos participantes o processo de "limpeza ritual",
geralmente antes que eles sejam admitidos no local onde os ritos se darão. O processo de limpeza
pessoal comporta ainda mais variações do que o do local, mas geralmente admite-se que essa
limpeza será feita com o auxílio de um ou mais dos quatro elementos: movimentos em torno da
pessoa com um bastão de incenso aceso ou com o atame caracterizariam uma limpeza através do
elemento Ar; movimentos semelhantes com o bastão teriam o caráter de uma limpeza através do
Fogo; aspergir-se algumas gotas de água do cálice seria uma limpeza pelo elemento Água e o uso
de uma pitada de sal, ou cinzas, teriam o efeito de uma limpeza pela Terra.
É importante acrescentar que não se pode, de forma alguma, afirmar que qualquer uma dessas
práticas produza qualquer resultado efetivo a não ser começar a criar um clima psicológico
apropriado, entre os participantes, para a cerimônia que se realizará. Quando se fala em ritual,
fala-se em um conjunto de atos estabelecidos pelo uso, que têm uma finalidade em si, e não
necessariamente nos efeitos palpáveis de cada um desses atos.

O Altar

No local onde se realizará o ritual wiccan, costuma-se dispor alguns elementos de forma
determinada, constituindo um altar, em torno do qual se realizará a cerimônia. Vários praticantes
costumam, mesmo, ter um altar fixo em suas casas, geralmente servindo como depositário de
seus instrumentos mágicos e de outros objetos representativos do culto. Os objetos e o próprio
altar são dispostos de acordo com os pontos cardeais, referindo-se à ligação de cada um desses
objetos com os elementos e suas direções, como já explanamos em outro tópico deste curso1.
Além dos instrumentos mágicos, há uma relativa diversidade nos objetos que são colocados no
altar.
Os elementos que representamos são aqueles que consideramos básicos, tanto pelo seu
significado quanto pela sua possível utilização efetiva em um ritual. Temos visto vários
acréscimos, de acordo com cada pessoa que monta o seu altar e com a ocasião específica para o
qual ele é montado: pedras, galhos e sal são acrescentados ao elemento Terra; incenso, penas de
pássaros, sinos e outros instrumentos musicais colocam-se no elemento Ar; determinados tipos
de cristais, bem como alguns símbolos fálicos são esporadicamente colocados juntos ao bastão e
conchas e cristais transparentes junto à taça. No centro, junto ao caldeirão e às velas, não é
incomum acrescentar-se estátuas ou imagens representando a Deusa e o Deus, ou símbolos
correspondentes, como, por exemplo, um chifre para o Deus e uma concha em forma de vulva
para a Deusa. Em certas situações, coloca-se igualmente no altar alimentos que serão
consumidos após o ritual, e sua decoração pode variar de acordo com a estação específica do ano
que se está atravessando.
Independentemente dos acessórios que se coloque num altar, o essencial é que ele é um tipo de
síntese dos próprios elementos formadores e significativos da doutrina, uma representação do
macrocosmo, tendo, em si, um alto grau de simbolismo. Nesse ponto, embora seja inegável o
paralelo entre o altar wiccan e a mesa de trabalho dos ocultistas, ou da Magia Cerimonial2, o
primeiro transcende o aspecto puramente prático desta última, não sendo, em absoluto, um
simples local de apoio dos instrumentos a serem utilizados durante o ritual, mas antes
consistindo no próprio centro focal do local onde este será realizado.

A Invocação dos Elementos e o Círculo

Conjurar, ou traçar, um círculo mágico, no interior do qual o ritual se processa, é uma prática
wiccan que remete diretamente àquelas influências da Magia Cerimonial em sua formação. Por
isso mesmo, é um elemento ritual que provoca alguma controvérsia, sendo muitas vezes bem
pouco compreendido mesmo por praticantes experientes da Wicca. Isso se dá porque o costume
de traçar o círculo já se tornou arraigado o suficiente para não ser mais motivo de discussão em
seus significados.
Na verdade, o significado do círculo mágico, na Magia Cerimonial e mesmo em outras formas
mais antigas de magia, é proporcionar proteção ao mago. Seria um espaço de isolamento, onde
ele estaria a salvo das próprias energias ou seres que ele pretende, com seu rito, invocar e
dominar. Encontramos vestígios dessa prática até mesmo na literatura, o que atesta o quanto ela é
popularmente difundida: nos capítulos finais do seu Drácula, Bram Stoker faz seu personagem,
Dr. Van Helsing, traçar um círculo de sal em torno da jovem Mina Harker, para protegê-la da
aproximação das vampiras3.
Paralelamente a essa idéia, a noção de locais circulares de culto, ou círculos rituais, é quase tão
antiga quanto à humanidade e diretamente ligada à cultura megalítica da Europa Ocidental.
Inúmeros cromlechs, popularmente conhecidos como "círculos das fadas", dos quais o mais
popular é certamente Stonehenge, atestam o uso das delimitações circulares espacialmente
orientadas de acordo com os pontos cardeais e com eventos astronômicos específicos para fins
rituais.
Na Wicca, ambos os significados devem ser conciliados. Os livros sobre o assunto costumam
tratar o círculo como um "espaço entre os mundos", o que parece privilegiar a idéia de um
espaço de culto, de interligação entre o visível, cotidiano e individualizado, e o invisível,
abrangente e coletivo. Por outro lado, tratam-no também como uma barreira de isolamento e
proteção, e o casal Farrar (de tradição Gardneriana), ao descrever seu Rito de Abertura4, admite
abertamente que suas invocações são derivadas daquelas constantes nas Chaves de Salomão5 e
em ritos semelhantes da Golden Dawn.
Essa conciliação não significa necessariamente, no entanto, mistura ou falta de critério. A criação
de um círculo envolve, de qualquer maneira, um dispêndio de energia por quem o faz e, ainda,
uma certa habilidade ou preparo específico para fazê-lo. Dessa forma, erguermos pesados muros
quando nada nos ameaça é simplesmente um desperdício, bem como nos expor ao perigo quando
não temos a habilidade para enfrentá-lo é pura temeridade. Um praticante consciente há de
distinguir entre as características específicas de um círculo ritual e de um círculo mágico, bem
como o momento de se utilizar cada um dos dois, e ainda ser capaz de avaliar a sua própria
capacidade de fazê-lo.
Não há a menor necessidade de se erguer às barreiras protetoras de um círculo mágico quando
tudo que se pretende é uma simples comemoração de um Sabá, ocasião em que um círculo ritual,
como delimitação de um espaço de culto, é mais do que suficiente. Por outro lado, estando
envolvido no ritual um trabalho mágico, que envolva a preservação da individualidade (ou
mesmo da integridade) de cada um dos presentes, deve se levar em consideração se algum dos
participantes tem o conhecimento e o preparo necessário para traçar um círculo mágico
conveniente, ou talvez seja melhor desistir.
Obviamente, não estamos aqui advocando a existência real de "forças ocultas" e, de alguma
forma, "sobrenaturais", que possam intervir benéfica ou prejudicialmente em cada uma das
pessoas que participam de um ritual wiccan. Isso, de qualquer maneira, continua dentro do
campo das crenças pessoais de cada um, no qual não pretendemos nos imiscuir, e ainda dentro de
um grau de conhecimento que não seria possível adentrar num curso como este. Pretendemos
apenas alertar que, dependendo da intensidade do trabalho que se pretende fazer - e cada ritual,
como já falamos, tem um objetivo específico - há de se ter em mente a graduação do isolamento
que se busca, bem como a capacidade pessoal do celebrante para se obter esse isolamento. Esse
isolamento, de qualquer forma, pode ser relacionado com o alto grau de sugestão envolvido em
um "trabalho mágico" e com a concentração necessária para obtê-lo.
Deixando de lado, no entanto, as considerações teóricas sobre o círculo, que de qualquer forma
seriam demasiadamente longas para serem convenientemente abordadas, concentremos-nos no
que é em termos práticos traçar o círculo.
Algumas obras aconselham que o espaço do círculo seja efetivamente delimitado, traçando-se
um círculo no chão com giz ou mesmo delimitando-se seu perímetro com objetos, como peças de
mobília. Outras, por sua vez, geralmente aquelas que se referem a tradições específicas, dão
instruções até mesmo quanto às dimensões que ele deve ter. Eu diria que tudo isso é opcional, em
especial se tratando de um círculo ritual: basta ter-se em mente as fronteiras do local destinado
ao ritual e, levando-se em conta que, na maioria das vezes, estes são celebrados em locais
fechados, tais fronteiras são óbvias.
Estabelecido o local, o celebrante procede à invocação dos elementos. Apontando com o seu
atame (ou espada, ou bastão) para cada uma das quatro direções, ele chama os quatro elementos
para o círculo, um de cada vez, geralmente começando pelo Ar. Embora o Ar seja o ponto cardeal
mais comum para iniciar-se o traçado do círculo, podem ocorrer variações de acordo com a
tradição específica e com o tipo de ritual que se realizará. Um ritual, por exemplo, em que
predominam as correlações normalmente associadas ao elemento Terra, poderá ter seu círculo
aberto por esse elemento. Existem fórmulas próprias para o chamamento, usadas por tradições
distintas, mas de uma forma geral, não há nenhuma regra estrita a ser seguida, ficando a cargo do
celebrante as palavras que usará. Uma vez invocados os quatro elementos, costuma-se saudar ou
invocar as duas outras direções - acima e abaixo - e pronunciar-se uma frase que marque o
fechamento do círculo.
Obviamente, a descrição feita é uma simplificação extrema. A performance do celebrante, ao
traçar o círculo, certamente será determinante no próprio sentimento de participação de cada uma
das pessoas que assistem o ritual, e poderíamos dizer que, depois de preparados individualmente
pela limpeza, os participantes começarão (ou não) a assumir uma postura de grupo de acordo
com a forma como o círculo foi traçado. Eu arriscaria a dizer que um círculo traçado de forma
pobre acarreta uma dispersão natural dos participantes do ritual.
Algumas outras considerações ou recomendações de ordem prática poderiam ser feitas, em
especial se tratássemos especificamente de um círculo mágico. No entanto, pelos motivos que já
apresentamos, não nos estenderemos nessa distinção, ainda mais que, para o participante neófito,
nenhuma diferença explícita ficaria clara. No entanto, vale dizer que algumas regras são
geralmente seguidas: após fechado o círculo, não se costuma permitir que ninguém entre ou saia
dele, a não ser em ocasiões extremas. Além disso, todos os movimentos dentro do círculo, desde
objetos que são passados de mão em mão até a própria movimentação efetiva das pessoas, devem
ser feitos no mesmo sentido em que o círculo foi traçado. O sentido que normalmente se utiliza é
o horário, mas vale dizer que esse sentido tem suas raízes no hemisfério norte (representando o
caminho do Sol) e que poderia ser reavaliado em termos de hemisfério sul, a exemplo das
direções associadas aos elementos.

Harmonização e Meditação

Uma vez traçado o círculo e os participantes tendo assumido os seus lugares no seu interior, o
celebrante costuma fazer uma breve preleção sobre o sentido e o objetivo do ritual. Isso é
especialmente importante se houverem novatos ou convidados na cerimônia. A isso, segue-se
uma fase geralmente conhecida como Harmonização.
A harmonização destina-se a completar o trabalho que já foi iniciado pela limpeza ritual e pelo
traçar do círculo, ou seja: "colocar em sintonia" todos os participantes do ritual, libertando-os das
preocupações cotidianas e trazendo-os para o estado de espírito apropriado para a celebração ou
para a prática mágica. Poderia-se dizer que a harmonização consiste em uma fase de relaxamento
e congraçamento entre os participantes, e diversas técnicas podem ser utilizadas para isso,
embora o canto e a dança em conjunto sejam as mais comuns.
Em grupos fechados, ou com objetivos específicos como o aprendizado, essa harmonização pode
ser feita também através do debate entre os participantes de algum tema já colocado, ou do tema
em pauta no dia do ritual. Porém, o mais comum é que a harmonização assuma realmente um
aspecto de catarse, de libertação do mundo exterior, para que se possa penetrar com maior e
melhor intensidade nos domínios do que é interno, ou ainda sagrado.
Em geral, a essa fase segue-se uma meditação. Essa, ao contrário do aspecto catártico, já busca a
introjeção. Normalmente dirigida pelo celebrante, sua intenção é que cada um dos participantes
vivencie os objetivos do ritual e, se for o caso, assimile determinados pressupostos que foram
anteriormente explanados. Uma forma que é normalmente adotada para essa meditação é a
visualização criativa, a qual, inclusive, é um componente essencial na prática da magia.
É costume, após essa meditação, que os participantes partilhem as suas experiências individuais,
a forma como se conectaram mentalmente ao objeto e as sensações vivenciadas. Além de
fortalecer ainda mais a noção de grupo, essa prática propicia a oportunidade para que dúvidas
sejam esclarecidas e considerações sejam feitas, em geral por parte do celebrante.

O trabalho mágico

Se tomarmos um ritual wiccan como um tipo de celebração religiosa, devemos admitir que ele
pode ou não envolver algum tipo de prática de magia. Caso o trabalho mágico venha, no entanto,
a ser parte do ritual, poderíamos levar em consideração três níveis distintos desse trabalho.
Num primeiro nível, teríamos o tipo de magia praticada em rituais "abertos", ou seja, onde não é
exigida uma filiação a um grupo ou mesmo conhecimento prévio entre os participantes. Esse é,
na verdade, o tipo de ritual que mais se aproxima da noção geralmente aceita de cerimônia
religiosa. Nesse nível, seria mais exato se falar em direcionamento de energia coletiva em prol
de um objetivo comum do que, propriamente, em magia. Surgiriam, então, expressões como
"cura da Terra", ou "prosperidade" e "fartura" como objetivo desse trabalho mágico, expressões
que são, certamente, lugares-comuns, mas que, em verdade, acabam sendo as únicas que
caberiam nesse tipo de reunião. Não há, aqui, nenhum tipo de menosprezo aos rituais "abertos":
deve-se levar em consideração, por exemplo, que a maior parte das cerimônias religiosas dos
povos indígenas visam justamente esse tipo de objetivo de caráter amplo e coletivo.
Num segundo nível, teríamos o trabalho mágico que é praticado em rituais "fechados", ou
restritos a um determinado grupo, onde já existe uma interação entre os participantes e onde os
propósitos, normalmente, são mais específicos. Nesse nível, a prática da magia pode ser parte de
um processo de aprendizagem, como ensino de técnicas mágicas a novos membros, ou ainda
como uma forma de fixação ou introjeção da temática ritual. Mais raramente, pode ocorrer um
aproveitamento e direcionamento da vontade coletiva para um determinado objetivo de algum
dos membros do grupo, mas de uma forma geral pode-se dizer que tais rituais se enquadram
dentro de um processo de preparação para a iniciação6.
Por fim, teríamos o ritual que é feito unicamente na intenção da prática da magia. Nesse caso,
dificilmente ele será feito por um grupo, mas antes por uma única pessoa, geralmente um
sacerdote iniciado. Esse nível, no entanto, e a preparação e conhecimento que ele envolve para
que não se torne uma pantomima auto-ilusória, a exemplo dos inúmeros "feitiços" amplamente
descritos na literatura wiccan, foge ao escopo do nosso curso.
Partindo desses princípios e levando em consideração as infinitas variações possíveis na
preparação de um trabalho mágico, é mais importante nos concentrarmos no seu desfecho, uma
vez que este tem um significado ritualístico muito mais palpável. A esse desfecho costuma-se
chamar "erguer o cone de poder": em geral, os participantes dão-se as mãos em círculo e
visualizam a sua intenção como uma energia palpável, que permeia esse círculo e o percorre, de
forma cada vez mais rápida ou mais concentrada. Por fim, a um só tempo, todos arremessam as
mãos para o ar, "liberando" essa energia como uma flecha, na direção de seu objetivo.
Para manter a coerência, preciso deixar claro que estou usando as palavras "energia", "intenção",
"vontade", etc., num sentido amplamente figurativo. O mais correto talvez fosse falar-se em uma
tensão psicológica, que é progressivamente acumulada no decorrer do ritual, ao longo de suas
outras fases, e que é repentinamente aliviada, ou liberada, através do cone de poder. Isso,
logicamente, é proposital, pois já vimos em outro ponto7 que o componente psicológico é
essencial para a magia. De qualquer forma, se a prática mágica dentro de um ritual efetivamente
provoca algum tipo de transformação, seja lá por meio de quais mecanismos, ou se essa
transformação se dá apenas na percepção de cada um dos participantes, isso é irrelevante e seria
inócua uma discussão nesse sentido.

O Grande Rito

O Grande Rito é, simbólica e estruturalmente, o ponto alto de um ritual. Segundo os Farrar8, o


Grande Rito é há um tempo um ritual de polaridade masculino-feminino e um rito sexual, onde o
casal que o representa está "oferecendo a si mesmo como expressões dos aspectos de Deus e
Deusa da Fonte Suprema, (...) fazendo de si próprios canais para aquela polaridade divina em
todos os níveis". Pode-se dizer que o Grande Rito, na Wicca, é um reflexo e uma reminiscência
de inumeráveis formas de sexo ritual, encontradas em diversas manifestações religiosas, que
celebravam a união das polaridades, sem a qual a vida não poderia existir.
O Grande Rito, portanto, é a própria representação do hieros-gamos, do casamento sagrado entre
a Deusa Lunar e o Deus Solar, ou entre a Deusa geradora da vida e o Deus mantenedor, na forma
como é apresentado no mito da Roda do Ano. A união dos opostos, sua integração, como
representação máxima da continuidade dos processos naturais, a sacralidade do sexo e do próprio
corpo, por serem causa e conseqüência desses mesmos processos, é o que é celebrado.
Por motivos óbvios, pouquíssimos rituais comportariam um Grande Rito "real", ou seja, que
envolvesse efetivamente a cópula entre um sacerdote e uma sacerdotisa. Dessa maneira, não vale
a pena tecermos considerações sobre essa prática, bastando nos deter sobre aquilo que é comum
e usual, ou seja, o Grande Rito "simbólico". Neste, o atame, erguido pelo sacerdote, representa o
pênis, enquanto a taça, empunhada pela sacerdotisa, representa a vagina. Após determinadas
invocações rituais, que podem variar grandemente, o sacerdote introduz o atame no cálice.
Retira-o em seguida e, colocando ambas as mãos em torno das mãos da sacerdotisa, em volta da
taça, ambos bebem um gole de seu conteúdo, cada um por sua vez.
Simbolicamente, esse gesto traz em si a analogia entre o corpo da mulher e a Terra, ambos como
o próprio altar da vida, onde se depositam as oferendas sob a forma de sementes, bem como a
analogia entre o corpo masculino e o céu fecundador. O simbolismo vai além, referindo-se,
igualmente, ao plantio e, mesmo, aos mistérios da morte, quando a Terra acolhe em seu seio os
que já partiram, modificando-os e revertendo os seus corpos em vida. Os próprios instrumentos
utilizados, o punhal e a taça, são representações dessa dualidade cooperativa e dinâmica
necessária, um sendo a energia dos inícios e o outro a fluidez e a continuidade.

Ritos de encerramento

Após o Grande Rito, a taça é passada entre todos os participantes do ritual, bem como parte dos
alimentos que foram trazidos, geralmente pães ou bolos. Não se trata, nesse momento, de um
efetivo "banquete ritual", ou refeição coletiva, mas antes de um gesto simbólico, significando
que todos os presentes compartilham daquela integração representada pelo Grande Rito. É,
portanto, uma forma de comunhão, mal comparando com outras cerimônias religiosas similares.
Feito isso, o sacerdote geralmente procede à abertura do círculo: agradece a participação das
forças elementares no ritual e as dispensa, no sentido inverso ao qual traçou o círculo, no início.
Em seguida, costuma-se pronunciar a frase "o círculo está aberto mas não foi quebrado. Feliz
encontro, feliz partida e um feliz reencontro!", e os participantes trocam entre si o beijo circular,
ou seja, cada um dos presentes beija a face daquele que está à sua esquerda, até completar o
círculo.
Essas práticas encerram o ritual, mas não necessariamente a reunião, sendo costume, então,
haver ainda um momento de congraçamento, em que os presentes distribuem entre si a comida e
a bebida restantes que foram trazidas para o ritual. Particularmente, achamos essa parte
específica da reunião de especial importância, tanto por dar oportunidade para que os
participantes se conheçam melhor e troquem idéias sobre o que acabaram de vivenciar, fora do
formalismo que costuma permear os rituais, quanto pelo fato que refeições comunitárias são uma
forma antiqüíssima de criar e manter um espírito de comunidade.
Aliás, é importante observar esse aspecto social dos rituais, que muitas vezes é menosprezado ou
esquecido em detrimento do seu aspecto "religioso" ou devocional. Um ritual pagão é, ou deveria
ser, antes de mais nada, uma expressão coletiva de integração com a natureza e, igualmente, de
integração entre os participantes, e não uma vetusta cerimônia de adoração a deuses. Todos os
elementos que descrevemos, se coerentemente analisados, reforçam e buscam promover essa
idéia, desde a criação de um espaço privado, compartilhado por aqueles que o ocupam, até a
execução de vários atos coletivos buscando polarizar e dirigir para um único foco as intenções
dos participantes. Na verdade, um "bom ritual", aquele do qual os participantes saem com uma
sensação de vigor renovado, costuma ser justamente aquele que foi conduzido com habilidade
suficiente para que essa "consciência grupal" fosse atingida.
Por fim, a idéia privilegiada pelo ritual não é a do indivíduo que busca o seu encontro pessoal
com a divindade ou mesmo a sua "salvação", como observamos em outras formas religiosas, mas
sim a do grupo de indivíduos que, agindo como grupo e procurando sua integração, celebra
igualmente a integração desse grupo no conjunto da natureza. O objetivo que se busca não é o
ingresso em um local privilegiado onde se pode ter um contato pessoal com o divino, mas sim o
reconhecimento que o divino está presente em cada um de nós e que é a união dessas diversas
partes que o constitui e caracteriza.

Notas:
1
Ver o tópico "Os Instrumentos Mágicos".
2
Consultar, a respeito, Levi, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998.
3
Stoker, Bram. Drácula. São Paulo: L&PM, 1998.
4
In Farrar, Janet e Stewart. Oito sabás para bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999.
5
As Chaves de Salomão é um grimório ou compêndio medieval sobre magia, traduzido no
século XIX a partir de manuscritos do Museu Britânico por MacGregor Mathers.
6
A Iniciação será tema do nosso próximo tópico.
7
Ver o tópico "A Magia", deste curso.
8
Farrar, Janet e Stewart. opus cit.
INICIAÇÃO
O assunto "iniciação" é um dos mais mistificados e mais mal compreendidos na Wicca. Muitas
pessoas, por desconhecerem seu verdadeiro significado, associam iniciação a uma cerimônia ou
ritual necessário para começar a prática da Wicca. Outras, mesmo tendo uma visão melhor sobre
o assunto, acabam por menosprezar ou banalizar o seu sentido, dando origem a cursos - às vezes
até por correspondência - e workshops que prometem a iniciação, ou ainda defendendo e
preconizando o instituto indefensável de uma auto-iniciação.
Por ser um tema de constante interesse e que suscita sempre uma série de dúvidas e
questionamentos pelas pessoas que travam um primeiro contato com a Wicca, ele precisa ser
convenientemente explanado, em todas as suas possíveis variações e significados.

O significado tradicional de iniciação


A palavra iniciação, na verdade, possui uma série de sentidos, que vão desde "preparação pela
qual se inicia alguém nos mistérios de alguma religião ou doutrina e a cerimônia dela decorrente"
até "admissão em uma sociedade secreta", passando por "recebimento das primeiras noções de
uma ciência, uma arte ou uma prática". A iniciação wiccan comporta esses três sentidos, como
veremos adiante, mas nos deteremos, por enquanto, numa outra definição: "processo, ou série de
processos de natureza ritual, que efetivam e marcam a promoção de indivíduos a novas posições
sociais, como, por exemplo, sua passagem às diferentes fases do ciclo de vida e, em particular,
sua incorporação à comunidade dos adultos ou o acesso a determinadas funções religiosas ou
políticas".1
Essa última definição, que pertence em especial ao campo da Antropologia nos dá uma noção
bastante precisa de qual seria o significado clássico, ou tradicional, de iniciação. Nesse sentido, a
palavra se confunde com o termo rito de passagem, ou seja: uma cerimônia que marca a
transição entre duas fases da vida. Essas cerimônias estão presentes e são extremamente
importantes em todas as sociedades de caráter tribal e aparecem igualmente na nossa sociedade,
embora já despidas de grande parte do seu significado. Especial importância têm aqueles ritos
que marcam o início da idade adulta, no qual os jovens deixam a companhia exclusiva do grupo
familiar imediato e integram-se ao clã, ou à tribo.
Segundo Joseph L. Henderson2, o rompimento com o mundo infantil pode provocar um dano (de
ordem psicológica) com o arquétipo parental, e este dano é sanado pelo rito que transforma o
grupo em um segundo pai ou mãe. Para isso, "o ritual faz o noviço retornar às camadas mais
profundas da identidade original existente entre a mãe e a criança (...) forçando-o, assim, a
conhecer a experiência de uma morte simbólica". Ainda segundo o autor, o jovem iniciando é
então retirado desse estado de inconsciência e morte, onde "a sua identidade é temporariamente
destruída", pelo grupo, no rito solene de um novo nascimento.
Morte e renascimento, portanto, são a tônica dos rituais de iniciação. Através de práticas e
cerimônias específicas, o que se busca é dissolver a identidade que servira para o indivíduo
conduzir sua vida até aquele momento, e reagrupá-la em uma nova forma, que passará a ser
válida dali por diante. Para isso, muitas vezes esses ritos são marcados pela dor e pelo isolamento
reais, como no caso da circuncisão dos aborígines australianos. Em outros casos, essa dor e
isolamento se apresentam principalmente em nível psicológico, como nas cerimônias religiosas
de ordenamento.
Sintetizando, podemos dizer que a iniciação, em seu sentido tradicional, consiste num rito que
marca profundamente, através de práticas de forte impacto emocional, a passagem de uma a
outra fase da vida. O simbolismo nela contido, portanto, é o da morte do estado anterior, ou do
indivíduo que existira até então e sua concepção específica do mundo, e do nascimento de um
novo indivíduo, apto a assumir novas responsabilidades e olhar o mundo com novos olhos,
estando inserido em uma realidade distinta da anterior.

Iniciação como processo de aprendizagem


Nas sociedades ditas "primitivas", bem como na nossa, a iniciação está igualmente associada a
um processo específico de treinamento ou aprendizagem, que precede ou se sucede ao rito em si.
No caso que citamos da circuncisão dos jovens aborígines, após o ritual de iniciação eles são
isolados do conjunto da tribo e, por um período determinado, passam a conviver apenas com
aqueles membros mais velhos que podem passar-lhes os ensinamentos - de caráter prático ou
filosófico - que lhes permitirão conviver no "mundo dos adultos". A eles são ensinadas as
habilidades necessárias a desempenhar suas novas funções, bem como são introduzidos nos
mistérios da religião tribal.
Entre algumas etnias nativas da América do Norte dava-se processo semelhante, porém
precedendo o rito em si, com a formação dos jovens guerreiros. Estes, ao atingirem determinada
idade, passavam a conviver com os mais velhos e a participar das expedições de caça,
primeiramente como valetes ou carregadores e, conforme a instrução avançava, exercendo
funções cada vez mais complexas. Finalmente, se provavam o seu valor, precisavam enfrentar a
mata sozinhos e caçar um animal específico, sendo geralmente "batizados" com o sangue deste
ao retornarem ao grupo e, assim, passando a fazer membro do clã dos guerreiros.
Esse processo de aprendizagem é, portanto, necessário e complementar ao rito de iniciação em
si. Obviamente, não se poderia esperar que o simples fato de participar de uma cerimônia,
mesmo sendo ela extremamente marcante, fornecesse ao neófito as qualidades esperadas para
exercer suas novas funções. Por outro lado, ele surge como uma forma de preservação de
conhecimentos específicos, ao restringir a obtenção desses conhecimentos a um grupo limitado,
que terá a obrigação de conservá-los e passá-los às gerações vindouras.
Um exemplo dessa preservação de conhecimento através da ritualização do ingresso em um
determinado grupo, já no escopo da sociedade ocidental, são as corporações de ofício, surgidas
na Europa medieval. Artesãos, tais como ferreiros e seleiros, reuniam-se em sociedades fechadas,
onde havia uma hierarquia rígida e regras bastante precisas quanto ao ingresso de novos
membros e a ascensão aos diversos postos. Dessa maneira, evitava-se não apenas que o
conhecimento daquelas artes e técnicas se dispersasse e degradasse ao se tornar público, como se
instituía um certo padrão de qualidade para a manufatura. É claro que tal organização visava,
igualmente, manter o domínio dessas técnicas dentro de um círculo restrito que, dessa maneira,
reservava aos seus membros um status especial e garantia sua sobrevivência.
De qualquer maneira, pensemos no clã dos guerreiros, nos mestres-artesãos medievais ou nos
atuais sindicatos e conselhos de classe, bem como nas ordens religiosas de todos os tempos, a
idéia de se restringir o acesso a determinados conhecimentos ou a prática de determinadas artes a
um grupo restrito, no qual os membros são selecionados através de provas de valor, destina-se
fundamentalmente a manter mais ou menos intocada uma tradição. É notório que, quanto mais
um conhecimento é disseminado, mais ele se modificará a partir das interpretações pessoais de
cada pessoa que a ele tiver acesso, podendo vir, ao longo desse processo, a diferir radicalmente
da noção original.
Se isso, em determinados grupos, se tornou uma forma de obtenção de poder ou de se conseguir
uma estagnação que era politicamente conveniente, há de se levar em conta que, em sociedades
onde a única forma de transmissão de conhecimento era a tradição oral, é indispensável essa
relativa imutabilidade como forma de preservação da memória coletiva e da própria identidade
do grupo. Disseminar aleatoriamente as tradições específicas de um grupo seria, de qualquer
forma, condenar esse grupo à extinção.
Esse processo de aprendizado de conhecimentos que são exclusivos de um determinado grupo de
pessoas, no qual o postulante deve mostrar possuir certos requisitos ou provar ter o valor
necessário para adquiri-los ou colocá-los em prática, cobre portanto aquelas definições de
iniciação que colocamos no início. Devemos frisar, no entanto, que qualquer dessas definições
pressupõe basicamente a existência de um grupo, que é o detentor coletivo desses conhecimentos
e técnicas.

Iniciação como processo de integração em um grupo


Seja o novo adulto, o novo guerreiro ou caçador, o novo artífice, ou ainda o novo sacerdote, seria
impossível imaginar tais figuras sem a existência de outros adultos, guerreiros, artífices ou
sacerdotes que, tendo obtido tal distinção antes dos neófitos, os introduziriam ou aceitariam em
seu próprio grupo, como vimos até aqui.
Não se pode, portanto, de forma alguma, falar de iniciação como um processo que não seja
coletivo, envolvendo transmissão de conhecimento e integração em uma nova classe social,
distinta da que se pertencia antes. É indiscutivelmente um processo que envolve a aceitação de
um elemento por um grupo, o qual admitirá esse elemento no seu convívio e passará a ele
conhecimentos, regras de conduta e uma "filosofia" que lhe é própria, mediante um compromisso
de zelar por essas coisas, e de não repassá-las para os que não pertencem ao grupo.
Por outro lado, poderia-se argumentar que, hoje em dia, existe uma difusão de conhecimentos,
através da imprensa tradicional e eletrônica e da mídia. Tais meios fixam o conhecimento,
impedindo a sua deterioração, e o torna acessível a uma quantidade cada vez maior de pessoas,
ao contrário de restringi-lo a pequenas comunidades. Defender que essa disponibilidade torna a
relação interpessoal da iniciação desnecessária é, no entanto, uma rematada tolice: mal
comparando, seria defender que qualquer pessoa que lesse todas as revistas médicas disponíveis
poderia clinicar.
O conhecimento iniciático, por definição, não está acessível. Em primeiro lugar, ele só é
compreensível para aqueles que possuem as noções prévias indispensáveis para compreendê-lo.
Em segundo lugar, ele parte da transmissão da experiência pessoal. Por último, ele depende da
autorização de um determinado grupo para ser transmitido e para ser posto em prática, e da
prova de capacidade de um indivíduo para recebê-lo. Dessa forma, ainda mal comparando, não
será médico quem não conseguir ingressar numa faculdade de Medicina, cursar os anos de
estudo sob a orientação dos professores, passar por um período de prática, provando que tem
competência para fazê-lo e, assim, obter o reconhecimento da comunidade médica com a
obtenção de um diploma e de uma licença. Havemos de nos lembrar que trotes acadêmicos (hoje
em desuso mas que, antigamente, chegavam a ser bastante violentos) e cerimônias de formatura
são, em essência, ritos de passagem.
A partir desses pressupostos, podemos já comentar sobre uma noção que se difundiu no meio
wiccan: a idéia que seria possível à auto-iniciação, ou seja, um rito através do qual o neófito "se
declararia" praticante da Wicca, "bruxo" ou mesmo "sacerdote"(!). Por tudo que já vimos, essa
noção é inconcebível e francamente sem sentido. Consistiria, antes de mais nada, em declarar-se
aceito por si mesmo em um grupo do qual apenas o declarante faz parte. Além disso significaria
dizer que bastam os conhecimentos que estão disponíveis para toda e qualquer pessoa para
formar a identidade desse grupo, ou seja: "bruxos" seriam todos aqueles que leram os livros
sobre Wicca disponíveis no mercado, tendo compreendido ou não o seu conteúdo e podendo,
cada qual a sua maneira, interpretar esses conhecimentos como bem lhes aprouvesse. Dessa
forma, o "auto-iniciado" seria o participante de um grupo indistinto, cujos integrantes
compartilham noções básicas sobre um assunto e que não possui nenhum tipo de coesão, a não
ser a declaração pessoal de cada um de acreditar-se parte dele. Por fim, se auto-declarar
sacerdote é tão inútil quanto se declarar médico, exceto para os que porventura se arriscarem a
aceitar essa condição em alguém.

A iniciação na Wicca
Diante do exposto, já possuímos elementos suficientes para caracterizar o que é a iniciação no
contexto da Wicca, sem corrermos o risco de sermos compreendidos como se enunciássemos
algum tipo de conceito exclusivista ou elitista.
Muitas vezes, os defensores da "auto-iniciação" a propagam como uma forma de democratização
da Wicca, de torná-la acessível a qualquer pessoa, em qualquer lugar, mesmo que não haja por
perto nenhum grupo de praticantes onde essa pessoa pudesse obter sua iniciação. Existe uma
falácia básica nesse argumento: ninguém precisa ser iniciado para praticar a Wicca como
religião, ou, na verdade, para praticar qualquer outra religião, embora todas contenham, em seus
ritos específicos, alguma forma de iniciação.
Se tomarmos a Wicca simplesmente como forma religiosa, os elementos constantes de qualquer
um dos livros populares sobre o assunto, ou mesmo deste curso (embora não seja essa a sua
finalidade), são mais do que bastantes para se estabelecer um ritual e, em conseqüência, um
sistema de aproximação com o "divino". Por outro lado, que se tenha notícia, não existe religião
alguma no mundo que contenha o conceito de que seus fiéis precisam de uma "autorização" dos
deuses para cultuá-los, como parece estar expresso, pelo menos de forma implícita, em diversas
obras que propõem a auto-iniciação. Pelo contrário, se tomarmos o cristianismo como exemplo,
essa doutrina, embora possua ritos de passagem específicos para os seus membros leigos, como o
batismo ou a eucaristia, não proíbe que ninguém assista os seus ritos ou creia nos seus
pressupostos. Tomando o budismo como exemplo, veremos que para esta doutrina basta se
declarar budista para ser aceito e reconhecido como tal.
Portanto, um wiccan não precisa ser um iniciado. Temos falado exaustivamente, aqui e em
outros lugares, sobre as diferenças existentes entre o caminho solar e o caminho lunar, sendo o
primeiro um caminho de integração na coletividade através de realizações cotidianas e o segundo
um caminho pessoal e, na verdade, opcional, calcado em realizações espirituais ou introjetivas.
Pois bem, dentro dessa ótica, a escolha de uma religião e a resolução de segui-la ou professá-la
faz parte, indubitavelmente, do caminho solar. Embora possua um caráter certamente pessoal e
particular, faz parte daquelas decisões que dizem respeito à nossa vida social. A iniciação, por
outro lado, é o passo além, aquilo que representa um anseio individual que transcende o coletivo.
Apesar disso, poderíamos ainda distinguir duas facetas na iniciação, no contexto da Wicca. Uma
delas, que se aproximaria mais do conceito que acabamos de expressar, é a iniciação como
entronização no sacerdócio. A outra é a iniciação como rito de aceitação em um determinado
grupo. Ambos os casos ocorrem, porém com diferentes graus de aplicação e mesmo com nomes
distintos. No primeiro caso, teríamos a "iniciação propriamente dita", sendo nesse caso
aparentada aos ritos de ordenação de sacerdotes de qualquer religião. No segundo, teríamos a
cerimônia bem mais simples, algumas vezes chamada "dedicação", e que se aparentaria a um
noviciado.
De qualquer forma, ambas as cerimônias (e os processos que as antecedem ou sucedem) somente
fazem sentido no contexto de um coven, envolvendo a participação direta de um ou mais
iniciados, como orientadores do processo. Não se trata, nesse caso, de simplesmente "seguir a
religião", mas sim de partilhar conhecimentos e práticas mais profundos, que não estão
acessíveis através da literatura comum, inclusive por fazerem parte da própria vivência
particular daquele grupo.
Entre a prática, portanto, e a iniciação, existe uma lacuna que pode ou não ser preenchida, que
procuraremos deixar o mais clara possível, para que seja bem entendida.

Entre a prática e a iniciação


No seu contexto original, estabelecido em meados da década de 1950, a Wicca não tinha
pretensões de se tornar uma religião de massas. Na verdade, poderíamos mesmo questionar se,
de alguma forma, havia em seus precursores qualquer interesse em, efetivamente, criar uma
religião. No máximo, creio poder afirmar que a intenção original era que ela se restringisse a
algumas células bastante fechadas e relativamente independentes - os covens - no interior das
quais o culto se desenvolveria. Nesse ponto, não havia grande diferença entre a organização
original da Wicca e a de outras sociedades esotéricas ou ocultistas que eram comuns na
Inglaterra de meados do século XX, como a Golden Dawn, os Rosacruzes e outras tantas.
A divulgação da Wicca ao longo das décadas que se seguiram à sua criação acabou por modificar
substancialmente esse quadro. Ao lado dos covens originais e suas ramificações, que acabaram
por formar as assim chamadas tradições principais - como Gardnerianos e Alexandrinos - surgiu
toda uma profusão de covens, círculos e grupos de estudo que não tinham ligações diretas com
estas, e ainda uma multidão de "praticantes solitários". Várias pessoas, bem intencionadas ou
não, a partir principalmente da década de 1970, começaram a propagar a idéia da independência
entre a prática wiccan e o convívio em um determinado coven, procurando mostrar que a Wicca,
enquanto doutrina de caráter religioso, era acessível a toda e qualquer pessoa que por ela se
interessasse.
Criou-se então, de forma calculada ou não, uma separação entre a "Wicca dos covens", ou das
tradições, e a "Wicca religião", a primeira sendo muitas vezes enxergada como uma vertente
elitista, praticada no âmbito de uma sociedade secreta, e a outra como sendo popular e acessível.
Embora seja louvável e até bastante preclara a idéia de que a doutrina pudesse ser assimilada e
praticada, em suas bases, por qualquer pessoa que por ela se interessasse, a existência do coven
como local de formulação e conscientização dessa doutrina não deveria, nunca, ter sido
menosprezada.
A partir disso, o que se observa, hoje em dia, é que uma pessoa tem o seu interesse despertado
pela Wicca principalmente através da mídia. Através dessa mesma mídia, ela pode ter acesso a
uma ou outra reunião aberta (ou "ritual público") praticada por algum grupo de sua região ou,
caso não exista nenhum, conseguir informações suficientes para orientar a sua própria prática.
Em ambos os casos, essa prática desenvolvida através de um contato esporádico com outros
praticantes, ou por conta própria, pode ser o bastante para essa pessoa. Em outros, ela sentirá
necessidade de um aprofundamento.
O que pretendo deixar bem claro é que esse aprofundamento não se fará por conta própria, nem
através dos recursos disponíveis pela mídia. É justamente nesse momento que se separam os que
serão iniciados dos que nunca precisarão ser, pois os primeiros, por mais difícil que seja o acesso
a quem possa lhes orientar, buscarão esse acesso, enquanto os demais seguirão perfeitamente
bem na sua prática, tendo feito a sua opção religiosa e completado o seu "caminho solar". Não há
aqui, quero frisar, nenhum tipo de prevalência entre os que buscam uma religião na Wicca e
aqueles que buscam uma iniciação: trata-se de uma opção pessoal, que somente será válida de
acordo com os parâmetros de cada um.
Uma vez feita à opção, no entanto, o futuro iniciado precisará buscar um coven, um grupo que
lhe orientará na caminhada. Nesse ponto, não farei distinção entre os grupos "tradicionais" (se é
que se pode falar em tradição a respeito de algo que tem menos de 50 anos) e aqueles que,
norteados por princípios legítimos, se estabeleceram com o propósito específico de propiciarem a
iniciação, a partir de uma figura que possui o carisma pessoal e o conhecimento necessário para
isto. Nesse aspecto, eu diria que a Wicca é jovem o suficiente para seus mentores serem antes
pesquisadores (como o próprio Gardner o era) do que místicos.
Durante algum tempo, tendo de início provado que pode ser aceito por esse grupo por suas
qualificações prévias, essa pessoa participará de algumas reuniões do grupo, como postulante,
mas não de todas. A ele serão vedadas aquelas que disserem respeito aos seus mais íntimos
segredos... E não devemos nos iludir ou fantasiar: tais segredos não dizem respeito à magia,
simplesmente, mas sim à individualidade de cada um dos membros, à convivência em "perfeito
amor e perfeita confiança", que só pode ser conquistada através de um tempo de convívio que
este novo membro ainda não possui. No interior e na privacidade de um grupo verdadeiro e
nobre de princípios, nada será dogma, e tudo será assunto de discussão... o que nem sempre é
agradável para algumas pessoas. Por outro ângulo, que verdadeira integração com a Natureza (e
com a divindade) seria possível sem uma integração verdadeira entre fragmentos desta, ou
pessoas?
Passado esse tempo necessário, e resistindo ainda o novato no grupo, ele será convocado a uma
cerimônia. É a sua "dedicação" - uma primeira iniciação, poderíamos dizer. A partir desse
momento, ele será aceito como membro do grupo em sua plenitude, podendo compartilhar de
tudo que o grupo compartilha, já que assumiu o compromisso de se preparar para a escolha (ou
não) da iniciação. A partir desse momento, ao contrário da convivência no grupo ser sua meta,
ele passará a ser a meta do grupo: todos aqueles mais antigos se voltarão para que ele possa
atingir o mesmo nível que todos já atingiram. Normalmente, nesse momento, será dado para ele
um prazo... Esse prazo é, de forma geral, de um ano e um dia (um ciclo solar) de aprendizado e
convivência plena, ao fim do qual ele escolherá ser iniciado ou não.
Embora haja esse prazo, o iniciante já saberá que este é um prazo mínimo. Não cabe a ele
reivindicar que cumpriu os requisitos necessários, mas apenas ao seu sacerdote (como porta-voz
dos demais) caberá dizer o momento exato de sua iniciação. Pois, agora, já não falamos de uma
iniciação como algo que lhe permite participar do grupo, mas sim como algo que lhe dá a
prerrogativa de falar pelo grupo, de ser seu tradutor e seu intérprete, de ser um exegeta da
doutrina. Enfim, de ser um sacerdote.
Chegado o momento, a escolha é dele. Alguns preferirão não abraçar o sacerdócio, uma vez que
ele não é necessário, e prosseguirão na sua prática. Alguns escolherão justamente esse momento
para se afastar do grupo, já que chegaram ao fim do caminho que poderiam traçar junto a ele.
Outros seguirão em frente, rumo à morte e ao renascimento. Tudo se torna uma questão de
escolha, e toda escolha será igualmente respeitada, já que qualquer um deles sabe que o último
passo será apenas para os que desejarem morrer, e que não têm a menor certeza do que será a
vida após a morte...
Notas:
1
Todas as definições retiradas do Dicionário Aurélio - Século XXI, versão eletrônica, 1999.
2
Henderson, Joseph L. Os mitos antigos e o homem moderno in Jung, Carl G. O Homem e seus
Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

5) Paralelos:

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