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tor virtual Jean Baudrillard, o qual inicia a via- (1995). Conforme atesta a teoria de Maffesoli,
gem com uma frase que servirá de pista para se a energia vital dos momentos faz com que se es-
alcançar o destino previsto: “Eu sou um simula- tabeleçam laços de socialidade entre indivíduos
cro de mim mesmo”2 que partilham idiossincrasias. Em sua descrição
Estabelecemos um roteiro de viagem com visi- e análise das aparências nas sociedades contem-
tas por alguns pontos polêmicos da obra do pen- porâneas, o autor aponta para uma ética da es-
sador, os relacionamos com lugares, a maioria tética no domínio da vida cotidiana, em que as
deles, citados em Tela Total. Destaca-se que essa uniões se constroem pelos sentimentos, ou seja,
tour é randômica e hipertextual ao remeter-se a através de um critério subjetivo que desafia a ló-
outros livros do autor. O enunciado roteiro po- gica e o racional, demasiadamente exaltados pela
deria ter sido iniciado a partir de qualquer locali- modernidade. A partir da subjetividade e da sen-
dade, uma vez que, os caminhos complexos desse sibilidade, resgatadas dos momentos orgiásticos
novo tecido social, que se desenha a partir das e dionísiacos pela pós-modernidade, é que Maf-
novas tecnologias apresentam-se de forma nebu- fesoli (1999) conceitua as novas aglutinações de
losa, permitindo múltiplas interpretações. Siga- indivíduos como neotribais.
mos então em direção a primeira visita. Baudrillard inclina-se mais para uma herança
de pensamento na tradição crítica de Guy Debord
(2000), o qual afirma que o reinado da aparên-
1 Saravejo – Bósnia cia, definidor da contemporaneidade, apresenta-
O período contemporâneo e definido por Baudril- se como uma dimensão alienante do modus vi-
lard como uma era pós-orgiástica, no qual a so- vendi social. A essa condição de produção na
ciedade convive na simulação de um mundo real. vida societal ele chamou de sociedade do espe-
O massacre étnico, que atingiu sérvios, bósnios e táculo. “Sob todas as suas formas particulares
croatas no leste europeu é um tema recorrente em — informação ou propaganda, publicidade ou
Tela Total, e serve como um exemplo sangrento consumo direto de divertimentos — o espetáculo
da morte do real. constitui o modelo atual da vida dominante na
sociedade” (Debord, 2000).
Se fosse caracterizar o atual estado de coi- A espetacularização da cultura, da economia,
sas, eu diria que é o da pós-orgia. A orgia da arte, enfim da vida humana como um todo,
é o momento explosivo da modernidade, o da tem no circuito da mídia sua principal vitrine.
liberação em todos os domínios. Liberação Conforme sua perspectiva crítica ao espetáculo
política, liberação sexual, liberação das for- como reconstrução de material e de técnica da re-
ças produtivas, liberação das forças destruti- ligiosidade, Debord (2000) afirma que “quando o
vas, liberação da mulher, da criança, das pul- mundo real se transforma em simples imagens, as
sações inconscientes, liberação da arte. (...) simples imagens tornam-se seres reais e motiva-
Total orgia de real, de racional, de sexual, de ções eficientes de um comportamento hipnótico”.
crítica e de anticrítica, de crescimento e de A perda geral de sentido caracteriza a condi-
crise de crescimento.” (Baudrillard, 1990) ção humana na atualidade. A falta de significa-
O estado de orgia é considerado com reser- dos, de grandes narrativas e utopias — como des-
vas por Baudrillard, ao contrário de Maffesoli creveu Lyotard em fins da década de 70, na obra
A condição pós-moderna — é acelerada através
2
Frase proferida por Baudrillard na conferência da quantidade e da repetição incessante de ima-
Tela total, a cultura no estágio metereológico da in- gens. Para Baudrillard, as imagens repetidas ad
formação. Porto Alegre, PUCRS, 21 out. 1997.
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qual a verdade, a verossimilhança e a credibili- Baudrillard classifica esse estado como deserto,
dade fundem-se ilimitadamente de forma virtual, na concepção metafórica da palavra.
contribuindo, desta maneira, para que “a meteo-
rologia tornou-se um roteiro de referência.” Anulação da paisagem, desertificação do ter-
Sendo assim, as informações de qualquer tipo, ritório, abolição das distinções reais. O que
principalmente as jornalísticas, por meio das no- até agora se limita ao físico e ao geográfico,
vidades tecnológicas como a internet e os progra- no caso de nossas auto-estradas, tomará toda
mas de edição dos computadores, ficam sujeitas a sua dimensão no campo eletrônico com a
a chuvas e trovoadas. Com a possibilidade de abolição das distâncias mentais e a compres-
alterá-las a qualquer instante, tornam-se tão im- são absoluta do tempo. (Baudrillard, 1997)
previsíveis quanto a natureza, perdendo seu cará-
ter de realidade ao repousar apenas em uma cre- Vamos então apertar o botão de nossa viagem
dibilidade instantânea, como por exemplo, a in- conceitual e trocar de canal, ajustando a sintonia
dicação de sol ou neve para o próximo final de da antena para o ciberespaço.
semana.
4 Deserto, o universo do
Assim a informação meteorológica talvez
possa ir de encontro ao que vemos pela ja- ciberespaço
nela, mas é verdadeira em simulação, posto O total vazio do conceito de real faz com que se
que deriva dos diversos dados de um cená- perca controle sobre o que a transformação do
rio modelo, onde entram, de resto, muitas ou- virtual pode causar. Diz-se que o virtual é res-
tras considerações estranhas à meteorologia. ponsável por todas as representações que se tem
(Baudrillard, 1997) do mundo. A única chance que resta, a fim de
que as coisas continuem a existir, é a simulação
A fetichização da imagem por parte da maio-
do seu desaparecimento, isto é, a ilusão da sua
ria silenciosa e indiferente encontra-se apenas na
existência.
veloz sucessão de frames que perpassa o controle
Em função da aceleração descontínua do
remoto em um zapping contínuo do mundo. Bau-
tempo, pensar na realidade é impossível, pois
drillard (1997) chama atenção para essa edição
o virtual a elimina, assim como acaba também
non-stop do real, afirmando que “vemos, de fato,
com a imaginação do real, do político e do
a proliferação das redes, dos cabos, dos progra-
social, no passado e no futuro. Denominado
mas, com o desaparecimento e a liquidificação
como tempo real, essa referência de passagem de
dos conteúdos. O zapping quase involuntário do
tempo caracteriza-se pela falta de realidade ob-
telespectador fazendo eco ao zapping da TV so-
jetiva, na qual os fatos não conseguem ter um
bre si mesma.”
tempo próprio para realizar-se, ocorrendo assim,
Ao término da viagem por lugares, onde ainda
operações simultâneas que não dão conta de ex-
é possível se ter alguma dimensão real, num
pressar algum sentido.
concentrado de informações e paisagens virtuais,
Nada mais desaparece pelo fim ou pela morte,
chega-se, enfim, ao chamado ciberespaço. Aqui,
mas por proliferação, contaminação, saturação e
ou seria lá, não se tem nenhuma certeza do que é
transparência, por epidemia de simulação, condi-
real ou virtual. As duas esferas estão completa-
ção de um modo fractal de dispersão. Para Bau-
mente integradas, uma à outra, o que torna a se-
drillard, essa condição leva à derrota do pensa-
paração algo ininteligível, pois não se sabe nem
mento histórico e crítico, ao passo, que o tempo
o começo nem o fim do espaço real ou virtual.
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real toma conta de qualquer forma de articulação sistema maquínico. Esquece-se que o erro, a
coerente das condições reais. sensibilidade e a intuição, sentimentos exclusi-
Todavia, pela mesma razão que faz do vir- vos dos homens, o definem enquanto ser humano
tual, um estado exagerado da falta de sentido, ele e, alem disso, são responsáveis pelas conquistas
não pode ser considerado como uma ameaça real. e derrotas da historia da humanidade. A vitória
Porque o sistema está condicionado a destruir o de Kasparov é resultado da possibilidade de utili-
que encontrar pela frente, a sua própria força o zação da linguagem não matemática, daquilo que
impulsiona na eliminação a possibilidade de ca- não é sentido pela máquina, limitada a encontrar
tástrofe final. soluções lógicas, as quais na maioria das vezes
não são suficientes, nem para ganhar um jogo de
Significa dizer que é inútil procurar uma po- xadrez, nem para criar soluções em ocasiões es-
lítica do virtual, uma ética do virtual, etc., peciais, não programadas.
dado que a própria política torna-se virtual, De acordo com Baudrillard, nesse interminá-
a ética mesma tornou-se virtual, no sentido vel campeonato homem-máquina, a internet ape-
de que ambas perdem o princípio de ação e nas simula um espaço de liberdade e de desco-
a força de realidade. Mesmo no que se re- berta. Para toda busca, o que se considera uma
fere á técnica: fala-se das “tecnologias do navegação sem fronteiras e ilimitada, há um ro-
virtual”, mas a verdade é que em breve só teiro pré-estabelecido. Ao acessar, por exemplo,
existirão técnicas virtuais. Ora, não há mais o site Alta Vista, ou Google, sites de busca de
pensamento do artifício num mundo em que o dados, tem-se a sensação de possuir o mundo no
próprio pensamento, a inteligência, torna-se monitor, porem, ao clicar tópicos escolhidos, já
artificial. Nesse sentido, podemos dizer que o existe um caminho, uma rota a ser seguida, previ-
virtual nos pensa, e não o inverso. (Baudril- amente produzida. A sensação de liberdade pode
lard, 1997) tornar-se, mais uma vez, uma falácia das novas
tecnologias.
Para Baudrillard, a relação do homem com a Em oposição a esse pensamento, encontra-se
máquina é simbólica. Pode-se afirmar que a ocor- Lévy (1999). O autor acredita na possibilidade
rência da pseudo interação é nula, e, principal- de interconexão entre indivíduos a partir da ade-
mente, caracteriza um confronto entre cria e cri- são ao ciberespaço. A rede se constituiria um
ador. Um dos exemplos para essa situação é co- novo meio, capaz de proporcionar a um numero
nhecido como o desafio entre o computador Deep elevado de usuários, uma comunicação democrá-
Blue e o mestre do jogo de xadrez, Kasparov. Ao tica e universal ao possibilitar que o mundo se
depender da técnica, institui-se o caráter de riva- interligue, simultaneamente, em função de seus
lidade homem versus maquina e a dominação da interesses e causas. Com o advento da comuni-
técnica sobre o ser humano. O pensador condena cação impressa, o homem interrompe seu papel
o comportamento simplista do homem frente a imediato de receptor e, passa então, a ser inter-
um instrumento desenvolvido por ele para lhe po- pelado, de maneiras diversas, pelas mensagens.
tencializar capacidades e estruturas. Para Lévy, o resgate da instantaneidade, presente
Justamente o software do ser racional, distin- na internet, implica a construção de uma inteli-
tamente daquele programado e restrito do com- gência coletiva que remete ao ideal proposto, em
putador é que o torna vencedor. Entretanto, o 1960, por McLuhan, de “aldeia global”.
homem insiste na busca pelo aperfeiçoamento da A interatividade virtual, que aparentemente si-
linguagem e da memória, com a intenção de al- mula uma relação entre o que antes era separado,
cançar a equivalência da perfeição, presente no
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diferente e oposto apresenta-se como uma ame- quina. O fenômeno a que se esta submetido, seja
aça porque incide na colisão e na confusão de pó- a tela do computador ou com a televisão, implica
los expostos, ocorrendo uma impossibilidade de na transformação do objeto de referência. O texto
estabelecimento de juízos de valor. A repercus- na tela do computador deixa de sê-lo como uma
são de um fato em tempo real, pela internet ou forma de escrita anterior para tornar-se uma ima-
pela televisão, cria uma condição de virtualidade gem. No entanto, sabe-se que o espectador é ator
para o acontecimento, resultando na subtração do somente quando há separação entre palco e pla-
seu sentido histórico. téia. A transformação corpórea e de identifica-
Baudrillard afirma que a interatividade vir- ção dos seres humanos que mergulham nesse mar
tual, aparentemente simula uma relação entre o profundo e revolto chamado ciberespaço torna-se
que antes era separado, diferente e oposto e, então, quase que inevitável.
apresenta-se como uma ameaça por incidir na co- Baudrillard afirma que a própria imagem do
lisão e na confusão de pólos expostos, ocorrendo mundo converte-se em algo hiper-real, em que a
uma impossibilidade de estabelecimento de juí- significação e tão transparente que se anula iro-
zos de valor. A repercussão de um fato em tempo nicamente no banal, na mediocridade, servindo
real, pela internet ou pela televisão, cria uma con- ao florescimento dessa cultura tecnológica sem
dição de virtualidade para o acontecimento, re- oferecer nenhuma reistencia, enquanto o publico
sultando na subtração de seu sentido histórico. parece amortecido por um vírus de indiferença
Dois exemplos citados anteriormente, os con- contagiante.
flitos na Bósnia e no Golfo Pérsico, demonstram
o vazio da informação quando a notícia é repe- De qualquer maneira, a ditadura das ima-
tida exaustivamente pelos meios de comunica- gens é uma ditadura irônica. Mas essa ironia
ção, causando uma espécie de indiferença nas não integra mais a parte maldita, faz parte do
massas. delito de iniciado, dessa cumplicidade oculta
e vergonhosa que liga o artista explorando
Diferentemente da fotografia, do cinema e da sua aura de derrisão com as massas estupefa-
pintura, onde há uma cena e um olhar, a tas e incrédulas. A ironia também faz o com-
imagem-vídeo, como a tela do computer, in- plô da arte. (Baudrillard, 1997)
duz a uma espécie de imersão, de relação
umbilical, de interação tátil, como já dizia A indiferença dos seres humanos em relação
McLuhan sobre a televisão. Imersão celular, a sua própria espécie os torna menos humanos,
corpuscular: entramos na substância fluida perdidos em suas referencias sobre o passado e
da imagem para, eventualmente, modificá-la descrentes quanto ao futuro. O incansável desejo
(...) desde o momento em que estamos di- por experimentação e por ampliação dos horizon-
ante da tela, não percebemos mais o texto tes científicos e tecnológicos transformam o ho-
enquanto texto, mas como imagem. Ora es- mem em um laboratório de si mesmo, no qual
crever torna-se uma atividade plena na sepa- os experimentos são ilimitados. Com o ponto fi-
ração estrita do texto e da tela, do texto e da nal do roteiro de viagem chega-se, então, a ques-
imagem - nunca uma interação. (Baudrillard, tão principal: O homem estaria comprometendo
1997) a natureza do seu conhecimento e a sobrevivência
da sua espécie em função do avanço desmedido
O papel original do espectador torna-se, a cada das novas tecnologias, as quais são de inteira res-
clique, ainda mais obsoleto devido à interativi- ponsabilidade da humanidade? Seria o fim do
dade, supostamente benéfica, entre homem e má-
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homem como enunciaram Nietzsche, Heidegger BAUDRILLARD, Jean. Tela Total. Mito-ironias
e Foucault em tempos anteriores? da era do virtual e da imagem. Porto Ale-
O discurso irônico, e talvez, exagerado de gre: Sulina, 1997.
Baudrillard ao longo da jornada virtual não apre-
senta respostas definitivas, apenas reitera e acen- DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio
tua situações conflitantes as sociedade contem- de Janeiro: Contraponto, 2000.
porânea. Este texto apenas desconstrói algumas LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: editora
de suas questões principais e polemicas, apresen- 34, 1999.
tando oposições ao seu discurso com a finalidade
de compreender porque o pensamento desse au- MAFFESOLI, Michel. A contemplação do
tor e tão duramente criticado. Longe de ser um mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
pessimista, ele dá pistas sobre o que pode acon- 1995.
tecer no caminho do homem e do universo e, faz
um apelo para que haja uma reação humanista MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências.
por parte da sociedade, no seu entender vazia de Rio de Janeiro: Vozes, 2a ed., 1999.
sentimentos. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra.
Não há vítimas quando o homem procura um São Paulo: Martin Claret, 2000.
caminho sem volta, mesmo sabendo que a obscu-
ridade e o perigo são seus companheiros eternos SILVA, Juremir Machado da. O pensamento do
na busca pelo desconhecido, neste caso, o mundo fim do século. Porto Alegre: L&PM, 1993.
virtual. A sedução das tecnologias merece ser
avaliada, pois esse artifício pode esconder uma
condição de servidão voluntária do homem, de
criador de máquinas avançadas à ratinho de labo-
ratório.
5 Referências Bibliográficas
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias
silenciosas. O fim do social e o surgimento
das massas. São Paulo: Brasiliense, 4 e.d.,
1994
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