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PAOLO CRISTOFOLINI1

Spinoza e o agudíssimo florentino

Em dois momentos do Tratado Político, Spinoza chama explicitamente Maquiavel de acutissimus Machiavellus,

e acutissimus Florentinus[1]: como sucede em Homero com os deuses e heróis, o nome de Maquiavel não

aparece em Spinoza senão acompanhado do epíteto que o caracteriza e que lhe é exclusivamente reservado.

Significativamente, ambas as passagens foram suprimidas da versão holandesa das Obras Póstumas (De

Nagelate Schriften van B. d. S., 1677). Esta, por reconhecimento geral da crítica atual, contém vários mal-

entendidos, e apresenta ainda, quanto à edição latina contemporânea (B. d. S., Opera posthuma, 1677),

supressões e modificações que fazem pensar, caso se considere o desfavorável contexto político determinado

pelo advento da monarquia “orangista”[2], em cuidados dos editores mais escrupulosos com o autor recém

desaparecido. A censura, em todos os contextos e sob todos os aspectos, é sempre utilizada para sublinhar

alguma coisa de interessante, e esta é a única, porém expressiva, utilidade que é justo que seja reconhecida

pelo menos da parte dos historiadores. O mesmo vale para a autocensura: sem os Nagelate Schriften, teríamos

um elemento a menos para avaliar a potência do impacto que mesmo a simples evocação do nome

Maquiavel podia suscitar no mundo intelectual do final do século XVII. O nome de Spinoza é amaldiçoado,

tanto que ambas as edições da obra póstuma oferecem na capa somente as suas iniciais; aquele de Maquiavel

invoca, de qualquer modo, uma maldição adicional.

A ligação e a continuidade de pensamento entre ambos são, de fato, profundas. Foi historicamente

documentada uma experimentação assídua das obras de Maquiavel junto a ambientes culturais holandeses

freqüentados por Spinoza: basta recordar o acontecimento político e intelectual de Franciscus Van den

Enden, estudioso de Maquiavel, que foi mestre de Spinoza, e as assíduas leituras dos Discorsi que se faziam

no círculo dos De la Court. Alguns estudos críticos mesmo recentes têm, pois, posto em evidência a

correspondência forte entre as obras de Spinoza (em particular o Tratado Teológico-Político) e os Discorsi

maquiavelianos. Enfim, a leitura do Tratado Político evidencia tais e tantos pontos em comum de modo que

concede razão a quem, como Giambattista Vico, por ser adverso a um, também o é em relação ao outro pelos

mesmos motivos. É quase supérfluo, portanto, recordar que as obras de Maquiavel figuram no catálogo

pessoal da biblioteca de Spinoza.

O ponto central, no qual Spinoza formula em síntese o seu juízo sobre Maquiavel, é o parágrafo 7 do capítulo

V do Tratado Político. Nós visaremos este único ponto e, a partir da decomposição e análise deste, veremos

irradiar-se a complexidade da relação com Maquiavel, que não se limita, como veremos, ao aceitamento

desta ou daquela sugestão política, mas que vai ao coração do ideal humano e sapiencial do spinozismo.

Comecemos, por conseguinte, pelo texto:


1
Tradução de Bernardo Bianchi. Publicado http://www.fogliospinoziano.it/artic9b.htm; Paolo Cristofolini nasceu em
Arezzo em 1937.
“O agudíssimo Maquiavel explicou amplamente de quais meios se deve servir um príncipe compelido pela simples sede

de domínio para fundar e conservar um estado; com que finalidade, não parece claro. Mas se o seu fim era bom, como é

de se esperar de um homem sábio, parece que tenha sido aquele de mostrar com quanta imprudência muitos procuram

eliminar um tirano sem serem capazes de eliminar as causas que fazem do príncipe um tirano, mas antes as

alimentando tanto quanto maiores forem os motivos de temor que se revelam no príncipe: por exemplo, quando o povo já

produziu manifestações de hostilidade ao príncipe e louvam o regicídio, como se fosse um alto feito. Ademais, ele quis,

talvez, mostrar quantos motivos tem um povo livre para precaver-se de confiar de maneira absoluta a própria proteção a

um único indivíduo que, se não é tão vaidoso a ponto de crer que possa agradar a todos, deve temer incessantemente os

ardis; e é, portanto, constrangido a cuidar, preferencialmente, de si mesmo, e a enganar os populares antes que atentar

para os seus interesses. E sou induzido a pensar assim sobre este sapientíssimo homem porque ocorre que era partidário

da liberdade, e que para defende-la deu sugestões muito salutares” (TP 5.7)

Na ordem de exposição, os elementos da análise são as seguintes:

1. Maquiavel é aqui apreendido em consideração como autor do Príncipe, ou seja, da sua obra, à primeira

vista, menos consoante com o espírito de quem, como Spinoza, cultiva o ideal da república livre.

2. Sob tal perspectiva, Maquiavel expõe o flanco a duas graves críticas: a) aparentemente, os seus agudos

conselhos são dirigidos a um príncipe ávido por domínio, com efeito, parece trabalhar para a instauração e

consolidação não das repúblicas livres, mas das tiranias; b) não é clara a razão porque o faça.

3. Estas perplexidades são provisoriamente, mas decididamente, afugentadas com duas afirmações: a

primeira é hipotética e a segunda, que rege a primeira, categórica; ou seja, que a finalidade deve ter sido boa

(afirmação hipotética), vez que o homem era sábio (afirmação categórica).

4. Ambas as afirmações ora expostas são, pois, justificadas mediante a enunciação de duas ordens de

sugestões dadas por Maquiavel, e que Spinoza avalia como sendo, com certeza, perfeitamente razoável,

tanto que, por sua conta, as apresentou e, igualmente, as discutiu em outros momentos da obra referida. A

advertência dos perigos inatos, por um lado, ao tiranicídio e, por outro, à delegação dos direitos da

coletividade a um déspota: unem Spinoza a Maquiavel o anti-jesuitismo e, do mesmo modo, um inegável

anti-hobbesismo.

5. Mas tudo isso não basta ainda para conformar as perplexidades do ponto 2 com a categórica afirmação do

ponto 3, na qual Maquiavel é incidentalmente designado como “homem sábio”. A conexão decisiva é

fornecida por uma elogiosa expressão posterior: Maquiavel era partidário da liberdade, e os

seus bons conselhos derivam dessa sua orientação. Agora, efetuada esta decomposição dos elementos da

passagem, uma desconstrução e uma reconstrução podem torná-lo inteligível e inseri-lo de modo mais pleno

dentro do texto e do desenho estratégico do Tratado Político.

As passagens serão revisitadas do seguinte modo:

1. Não são apenas justas as sugestões do ponto 4, que são retomadas e raciocinadas em momentos bem

precisos do Tratado Político, mas a obra no seu conjunto se move ao longo de uma linha que retoma e

desenvolve a inspiração maquiaveliana.


2. Apresentando sugestões deste gênero e atendo-se a elas, Maquiavel demonstra trabalhar pela liberdade e

o bem, portanto, os fins perseguidos por Maquiavel são bons.

3. Os bons conselhos de Maquiavel, assim como a sua manifesta indiferença em dá-los a homens passionais

ou a homens livre (isto é, na passagem considerada, implícito), decorrem de um profundo conhecimento da

natureza humana; ademais, este profundo conhecedor da natureza humana obra, como já o sabemos, tendo

em vista a liberdade, logo, não pode ser senão um homem livre; agora, homem livre é exatamente aquele

que, na Ética, caracteriza-se como sapiens, sábio. Passemos agora a revisar tudo isso em detalhe.

1. Maquiavel inspirador de Spinoza. Spinoza não se limita a tornar suas as sugestões de Maquiavel contra o

tiranicídio e contra a tirania: mais a fundo, junto a este conjunto de problemas, elabora uma verdadeira e

própria filosofia do medo. Os soberanos são temíveis quando amedrontados. Um povo que atemoriza quem

o governa induzi-lo-á a comportamentos ferozes; e, pelo contrário, um tirano feroz tem tudo a temer do

povo, não apenas de quem o cerca de perto. O medo é um monstro que se reproduz, e quem, sendo potente,

é induzido a ter medo, provoca medo. Os exemplos abundantes, extraídos da historiografia da Roma

imperial, induzem Maquiavel, e com ele Spinoza, a visar o tema do medo não na acepção, no final de contas

positiva, que acaba por assumir em Hobbes – segundo quem, do medo da morte violenta surge a renúncia

ao bellum omnium contra omnes[3], logo, o contrato, logo, o estado civil e o Estado — mas naquela, em tudo

negativa, de quem (diversamente de Hobbes) tem no coração, antes de tudo, a liberdade e vê no medo o

principal obstáculo a ela.

Maquiavel é o clássico de referência que ensina (conferir o capítulo XIX do Príncipe) os perigos para o

príncipe que derivam do essere rapace et usurpatore della roba e delle donne de’ sudditi [4]; responde-lhe Spinoza

invocando o exemplo funesto de Nero: para quem governa o Estado não é menos impossível,

simultaneamente, dar-se a escapadelas com prostitutas nu ou bêbado, bancar o comediante, violar e pisotear

publicamente as leis promulgadas por ele mesmo, e, no entanto, conservar a majestade, do que ser e não ser

ao mesmo tempo. O extermínio dos súditos, as espoliações, os raptos de mulheres e semelhantes

malfeitorias, transformam o temor em indignação, e retroagem, conseqüentemente, do estado civil ao estado

de hostilidade (TP 4.4). Para Spinoza e, primeiramente, para Maquiavel, uma fonte comum é Tácito (ANN.

XIII, 25; XIV, 14-16; XVI, 4); de Maquiavel se devem, logo, ver também os Discorsi (1;45), onde avalia: cosa di

malo esemplo non osservare una legge fatta, e massime dall’autore di essa [5]. É, portanto, ele o interlocutor ideal de

Spinoza quando se trata de desenvolver uma relação, cara a ambos, entre paz e liberdade.

Vale a pena, aqui, seguir algumas passagens spinozanas significativas. A liberdade e a paz são termos

praticamente indissociáveis (constituem quase uma endiadi [6]) no subtítulo geral do Tratado Político: No qual

se demonstra quais instituições devem ser dadas à sociedade na qual vige o estado monárquico, assim como àquela onde

governam os aristocratas de modo que não caiam na tirania e se mantenham invioladas a paz e a liberdade dos cidadãos.

(In quo demonstratur, quomodo Societas, ubi Imperium Monarchicum locum habet, sicut et ea, ubi Optimi imperant,

debet institui, ne in Tyrannidem labutur, et ut Pax, Libertasque civium inviolata maneat). Este subtítulo, que é

acessório ao título geral, junto com um outro que antecipa o conteúdo do capítulo VIII, foi contestado como
sendo apócrifo em 1954 por Madeleine Francès, no comentário à sua tradução da obra dada pela Pléiade: sem

elementos filológicos, mas por razões trazidas do conteúdo, que considerava politicamente desbalanceados a

favor da aristocracia, a ilustre estudiosa francesa concluiu que não poderiam ter sido escritos por Spinoza,

mas por um dos responsáveis da edição, entusiasta da aristocracia; Spinoza devia ser democrático! Esta tese

de Francès foi largamente acolhida por sucessivos editores e tradutores do Tratado Político. Mas a firme

convicção de que o autor não pode ser Spinoza apóia-se, para terminar, apenas sobre o fato de que nesses

dois títulos, a democracia não é enunciada, e que, pelo contrário, no segundo vem evidenciada a

superioridade da aristocracia sobre a monarquia, sem a precedência da democracia. É efetivamente muito

pouco o que ela argumenta. Muitos estudiosos esforçam-se para observar (mas ocorre de observarem) que

na grande e complexa personalidade de Spinoza, o teórico coexiste com o cidadão apaixonado: o primeiro

trabalha tendo sempre em mira a inteireza, tanto que para ele, o quadro deverá ser completado com o

tratamento da democracia; o segundo é um pensador militante, solícito aos destinos do seu país, e, ademais,

um homem que aprendeu a lição de Maquiavel e que olha para a realtà effettuale [7] das coisas. Ora, na

Holanda, no momento histórico em que vive Spinoza, a realtà effettuale, ou seja, as alternativas efetivamente

presentes, não são senão duas, a monarquia e a aristocracia. Uma alternativa democrática não é atual, a

mesmo se o fosse, consistiria, no horizonte de Spinoza bem como no de Maquiavel, em uma forma

desenvolvida de aristocracia que reconhece somente a uma parte da população (excetuadas as mulheres, os

trabalhadores manuais e outras categorias de pessoas, entre os quais os surdos-mudos) os títulos de acesso

ao governo da coisa pública. O subtítulo é autêntico. O Spinoza que o escreveu é aquele mesmo que, nos

primeiros parágrafos da obra, traça um drástico confronto entre os filósofos e os políticos, favorecendo os

segundos em relação aos primeiros. Os filósofos escrevem: tutto quel che sanno fare è lodare in mille modi una

natura umana inesistente e fustigare quella che c'è davvero. Non concepiscono gli uomini per come sono, ma per come

li vorrebbero [8](TP 1.1) e, conseqüentemente, são hábeis com a sátira ou com a utopia, mas não com a teoria

política. A este ataque, definitivamente antiplatônico, que, contudo, implica em um conjunto surpreendente

todos os “filósofos”, se contrapõe a louvar os “políticos”, os quais “sanno per esperienza che ci saranno vizi

finché ci saranno uomini. E dunque, mentre si adoperano a prevenire l'umana perfidia - e lo fanno con quelle arti,

apprese per lunga esperienza, che solitamente praticano gli uomini guidati dalla paura più che dalla ragione - sembrano

andare contro la religione, ed in specie contro i teologi, i quali credono che i detentori del potere sovrano debbano

trattare gli affari pubblici secondo le stesse regole di condotta cui deve attenersi un privato. E' peraltro indubbio che

proprio i politici hanno scritto sulle questioni politiche con risultati assai migliori che non i filosofi. Ammaestrati

dall'esperienza, essi non hanno infatti insegnato mai nulla che fosse distante dalla pratica[9]" (TP 1.2).

A natureza humana como é realmente (quae reversa est). A experiência contraposta à teoria abstrata. O olhar

desencantado, conciso, sobre a natureza humana (vitia fore donec homines). Todos são motivos para uma

estreita vizinhança com Maquiavel. E, junto à orientação metodológica geral, a busca comum pela paz e pela

liberdade. Também, aqui, uma censura dos Negelate Schriften é esclarecedora. Na tradução holandesa do

discurso do subtítulo, em lugar de um termo que corresponda ao latino libertas encontramos Veiligheit, ou
seja, “segurança”. Mas a segurança, para Spinoza e para Maquiavel, é subordinada à liberdade, e é da

liberdade que depende a paz. Não são raras as passagens do Tratado Político em que se confronta o tema

da paz em consonância com Maquiavel. Podemos ver algumas.

Como para Maquiavel, a paz encontra condições mais favoráveis nas repúblicas livres do que nas

monarquias. Já o Tratado Teológico-Político (conferir, particularmente, a célebre conclusão do capítulo XVIII)

era muito claro sobre isto; no Tratado Político, um argumento forte contra a monarquia decorre do fato de que

um rei interessa-se por fazer guerra, enquanto uma democracia interessa-se pela paz.

É sinal, ao contrário, de ignorância aquilo que fazem com freqüência: eleger um rei tendo em vista a guerra,

considerando que os reis conduzem as guerras com sucesso muito mais brilhantes; mas estes, a fim de obterem sucesso

na guerra, estão dispostos a serem escravos na paz; a menos que se possa falar de paz no caso de um Estado no qual o

poder soberano é transferido, por motivos marciais, a um único indivíduo, o qual, portanto, necessita da guerra para por

em evidência o seu valor e corresponder às expectativas que todos depositaram nele. Já o Estado democrático, por outro

lado, tem de eminente o fato de que o seu valor sobressai muito mais com a paz do que com a guerra (TP 7.5).

Com efeito, um forte motivo que induz um rei a preferir a guerra à paz são os nobres que o cercam (TP 7.20).

O exército, para Spinoza bem como para Maquiavel, deve ser composto apenas por cidadãos (TP 6.10; e

7.12); o Estado, ou seja, a força do direito que deriva da potência do povo (TP 2.17) é o único sujeito

legitimado a decidir acerca da guerra e da paz. E, deve-se entender que a paz depende da estabilidade

política, e é defendida até mesmo com o recurso ao mais resoluto uso da força: os clássicos da tradição greco-

romana são, a este ponto, familiares a Spinoza bem como a Maquiavel.

Assim, não deve surpreender a dureza de uma passagem, mesmo se esta pode perturbar certa

visão estereotipada e angelical da personalidade de Spinoza agora em voga:

Não se deve mover guerra senão tendo em vista a paz, de modo que, terminada esta, cessem as ações armadas. Assim,

uma vez conquistadas as cidades por direito de guerra e derrotado o inimigo, devem ser estabelecidas condições de paz

tais que não seja necessário fortificar as cidades ocupadas; mas se deve ou bem conceder ao inimigo, uma vez aceito o

tratado de paz, a faculdade de resgata-las pagando um preço, ou (quando não tiver sido desaparecido o temor de um

ataque inesperado) arrasa-las completamente e deslocar os habitantes (TP 6.25).

Tem mais. No final de um excerto (TP 9.13), encontramos esta lição do texto latino: At urbes jure belli captae, et

quae imperio accesserunt, veluti imperii Sociae habendae, et beneficio victae obligandae, vel Coloniae, quae jure

Civitatis gaudeant, eo mittendae, et gens alio ducenda, vel omnino delenda est. Os editores, unanimemente,

emendam a conclusão da passagem. Gebhardt: vel urbs omnino delenda est; Wernham: vel omnino delendae sunt

(scil. urbes)”; Zac: vel urbs omnino delenda est. Na base da intervenção, sempre, os Nagelate Schriften que

alternam plaatsen (cidade). Todas as traduções italianas (Droetto, Pezzzillo, Montano), a espanhola de

Domínguez, a francesa de Moreau etc. pretendem que a destruição refere-se às cidades e não às populações.

Wernham, que, todavia, tem o mérito de relembrar Maquiavel, Príncipe III e V e Discorsi, II, 23, considera

que genocide seems an extreme measure for Spinoza to advocate [11]; Zac considera já trop cruelle [12] a prescrição

de destruir as cidades, que propõe adoucir [13] através da referência à passagem análoga precedente (TP
6.35), que vimos acima. Mas há pouco para suavizar. A mesma passagem de Maquiavel (Discorsi, II, 23)

referida por Wernham e Zac fala claramente: E deve-se evitar o caminho do meio [14], o qual é danoso, como o fora

aos samnitas quando acuaram os romanos nas Forças Caudinas; quando não quiseram seguir o parecer daquele velho

que os aconselhou a, ou bem deixar os romanos evadirem-se honrosamente, ou massacra-los totalmente.

Somente uma opinião preconceituosa sobre uma pretensa personalidade “doce” de Spinoza pode impedir o

aprendizado, segundo a lógica e o rigor científico, a crua lição latina legada nas Opera Posthuma. Mas se

renunciamos a ensinar a moral aos nossos autores, e nos dispomos a lê-los mais modestamente, não

podemos senão registrar, aqui, uma forte ligação entre Spinoza e Maquiavel. E esta não em contraste, mas

em plena consonância com o ideal da liberdade por ambos proposto, e com aquele da sabedoria que é

típico de Spinoza. Mas, disto, trataremos ordenadamente.

Maquiavel, partidário da liberdade.

As sugestões de Maquiavel tidas por Spinoza como “salubríssimas” poderiam ocupar uma longa lista de

comparações entre as obras dos dois autores. Àquelas já consideradas, nos limitaremos, aqui, a adicionar

uma de grande importância teórica, que diz respeito a uma questão ética fundamental: o respeito à palavra

dada. O capítulo XVIII do Príncipe indica, a esse propósito, aquela demarcação entre ética e política que

confere ao maquiavelismo a sua marca inconfundível: observa-se, ‘por experiência’, o sucesso daqueles príncipes

que dão pouca importância à boa-fé. Em uma carta célebre à princesa Elisabeth da Boêmia e do Palatinato,

Descartes manifestará toda a sua desaprovação em relação a este ponto. Não como Spinoza:

O compromisso firmado com alguém a quem, apenas pela palavra, se promete fazer diferentes coisas às

quais antes se podia eximir de fazer, ou o contrário, permanece em vigor até o momento em que mude a

vontade daquele que prometeu. Pode, de fato, quebrar um compromisso aquele que não renunciou à própria

autonomia, mas empenhou apenas a palavra. Portanto, se alguém que, pelo direito natural, é juiz de si

mesmo julgar, acertada ou erradamente (errar é humano), que do compromisso firmado derivam mais danos

do que vantagens, decidirá, segundo o próprio arbítrio, que o compromisso deve ser quebrado, e, segundo o

direito natural... quebrá-la-á (TP 2.12). É o autor da Ética este que acata, nesta passagem, o mais “imoral” dos

preceitos maquiavelianos. O autor daquela Ética que intitula a sua 5ª parte: De libertate humana, e que faz

consistir na liberdade o mais alto grau de virtú. Fixa a atenção sobre isto, vez que o juízo favorável sobre

Maquiavel não versa sobre questões de detalhe ou sobre simples intuições felizes do “agudíssimo

florentino”, mas sim sobre o essencial. Pro libertate fuisse constat. Spinoza tem em mente, seguramente, a

conclusão do Príncipe, con a Exhortatio ad capessendam Italiam. É verdade que naquele capítulo não se fala da

palavra “liberdade”, mas antes de “redenção” e de “redentor”; a ele, todavia, deveria convergir o apoio ativo

do povo. E o povo, como lê-se nos Discorsi (I, 5) é a mais segura salvaguarda da liberdade.

O centro é, por conseguinte, a convergência de Spinoza com Maquiavel no tratamento destas duas

expressões: república popular e república livre, como manifestações de um único e mesmo conceito.
Mas como fazer para a liberdade ser confiada ao povo se, como pensa Maquiavel (Príncipe, XVIII), “no

mundo não existe nada senão o povo”? E se, como pensa Spinoza (para o qual a liberdade não se separa da

capacidade de dominar as paixões), homines necessario affectibus sunt obnoxii (TP 1.5)?

Salta aos olhos de quem lê o Tratado Político uma expressão que aparece (duas vezes, na passagem 5.6 e 7) na

página na qual figura Maquiavel, e somente ali: libera multitudo. Como podemos, com legitimidade, chamar

de “livre” uma massa popular caracterizada pelo predomínio das paixões? A única explicação reside no

circuito vicioso que o Tratado Teológico-Político instituiu entre a liberdade das instituições e a liberdade dos

cidadãos. Como os judeus durante a escravidão no Egito não podiam ter espírito livre e estavam sujeitos aos

fantasmas da imaginação, exatamente por causa do estado de escravidão, da mesma forma, para Spinoza,

quem vive em uma república livre e goza as vantagens dessa vivência é naturalmente induzido, mesmo se

permanecendo sujeito às paixões, a defendê-la. A virtù contra a fúria dos versos de Petrarca tal como se

apresentam no desfecho do Príncipe encontram correspondência com a vida livre dos cidadãos de Amsterdã,

evocada no final do Tratado Teológico-Político.

Maquiavel, homem sábio.

Maquiavel é qualificado, no texto que examinamos, como homem sábio — de viro sapiente, de forma, à

primeira vista, problemática (arbitror), depois elementar (constat), pois o seu fim era a liberdade e, no interior

dessa certeza, o adjetivo prudentíssimo se conecta de forma sinonímica ao título de sabedoria, eliminando

qualquer sombra de dúvida da mensagem que Spinoza quer transmitir aqui. É uma mensagem ousada e

comprometedora. Se o epíteto acutissimus vale para caracterizar individualmente Maquiavel; de quem a

penetrante inteligência é, indiscutivelmente, para os admiradores bem como para os detratores, somente

para ser transmitida em provérbio, geralmente com uma marca de satanismo; a evocação da idéia de

sabedoria abre um outro registro. A sabedoria (sapientia) é, de fato, na Ética de Spinoza, o momento

culminante da realização, portanto, da perfeição humana. Procuremos, agora, por toda a obra de Spinoza,

verificar quantas vezes a palavra sapiens foi usada para designar uma personalidade histórica. Na história

sacra, tem Salomão, evocado no Tratado Teológico-Político. Mas, na pagã, não existe nenhum outro. Nem os

grandes filósofos gregos, porque mesmo Sócrates, e com ele Platão e Aristóteles, recebem um tratamento

severo em uma carta[15] que exprime, contra eles, uma preferência pelos atomistas Demócrito, Epicuro e

Lucrécio. Contudo, nem mesmo esses são coroados com o título da sabedoria. Descartes, o único antecessor

que teve a honra de emergir do anonimato na Ética é, alternadamente, celeberrimus, clarissimus e vir

philosophus; mas, juntamente com os outros viri praestantissimi nos quais se reconhece

uma dívida, não é jamais chamado de “sapiens”.

Somente a Maquiavel é reservado este tratamento. Isto não significa que, na perspectiva spinozana, não

existam no passado e no presente outros sábios além dele. No Tratado Político, fala-se, em um determinado

momento, dos veri sapientes que, convém designar como membros dos conselhos: logo, é claro que se, de um

lado, o planejamento constituinte não deve pressupor a sabedoria dos cidadãos nem confiar na virtù dos
governantes, por outro, a sabedoria mesma não deve ser mistificada: homens sábios existem em qualquer

grupo social, e é muito conveniente sabe-los identificar e beneficiar-se de suas contribuições. Não somente

homens. Na própria página onde o Tratado Político se interrompe com exclusão das mulheres do poder

político, exprime-se com clareza um reconhecimento indireto à sabedoria das mulheres:

Se, ademais, consideramos os afetos humanos, ou seja, o fato de os homens amarem as mulheres em geral apenas por

motivos da ordem dos afetos sexuais, e que apreciam nelas o engenho e a sabedoria (earum ingenium, et sapientiam)

somente enquanto forem ornadas pela beleza; e consideremos, ademais, que os homens muito dificilmente suportam que

as suas mulheres amadas tenham, de qualquer maneira, preferência a terceiros, e assim por diante, veremos, sem esforço,

como não seria possível que homens e mulheres governassem em pé de igualdade sem grave prejuízo à paz (TP 11.4).

Os homens, seres passionais, não toleram ter de compartilhar o poder com as mulheres porque são incapazes

de reconhecer o seu ingenium, et sapientiam, ou seja, a sua personalidade autônoma e a sua sabedoria. A

contradição existe, porque se são sábias, elas também deveriam também ser aceitas no governo da coisa

pública. Mas, o raciocínio que as exclui é, mais uma vez, maquiavélico: Spinoza concorda com Maquiavel ao

afirmar, no início do Tratado Político, que nada de novo será inventado, vez que a experiência já demonstrou

todas as formas de governo possíveis, e as coisas limitam-se experiência (TP 1.3); por realismo político, não

é, logo, considerado oportuno por Spinoza propor novidades que estivessem em contraste com certas

constantes consolidadas e reconhecidas na natureza humana. O reino das Amazonas, mesmo se levado a

sério por autores como Hobbes, permanece entre as utopias e as história fantásticas. Após considerar tudo,

porém, a sabedoria das mulheres é indiscutível: a gestão do poder não é o essencial, em termos de realização

e de perfeição humana. Esta última série de considerações nos leva, entretanto, a um problema: com que

legitimidade Maquiavel, que é mestre de uma disciplina particular, a ciência do Estado, a qual não absorve

em si o essencial da perfeição humana, merece, com exclusividade, dentre todos os autores citados por

Spinoza, o título de sábio?

É a própria avareza de Spinoza ao atribuir este reconhecimento, e o fato em si de que caiba a um

personagem que não pratica o amor de Deus no sentido no qual comumente se entende a expressão, que

estimulam uma reflexão. O último escólio da Ética (V, 42, Escólio) traça a distinção entre o sábio (sapiens) e o

ignorante (ignarus). Diferentemente deste último, o sábio sui et Dei et rerum aeterna quadam necessitate conscius.

Maquiavel corresponde ao modelo? Para Spinoza, evidentemente que sim. No centro está a consciência da

necessidade eterna, ou seja, da existência de leis universais, que é aquilo que constitui a ciência. O sábio,

assim como pensa Spinoza, é conscius sui, já que tem consciência das leis que governam a própria natureza,

que é a natureza humana; é conscius Dei, pois inscreve as leis da natureza humana dentro da necessidade da

natureza em geral, à qual a idéia de Deus se reconduz. E, em suma, é consciente da eterna necessidade das

coisas, e dentro desta necessidade inscreve o projeto ativo da liberdade. Não existe sábio que não seja, antes

de tudo, livre, e Maquiavel, já o vimos, conquistou, em primeiro lugar, este título para si. O homem que age

tendo em vista a liberdade e que, ao mesmo tempo, conhece a necessidade da natureza dentro da qual age, é

sábio. Sabedoria é possuir a ciência intuitiva, ou seja (Ética, II, 42, Escólio 2), saber deduzir, do conhecimento
da natureza, o conhecimento adequado da essência das coisas singulares. O saber, do qual Maquiavel dá

exemplo, é um conhecimento das paixões humanas combinado à experiência da história: daqui se

desenvolve a atividade proposicional em termos de arquitetura institucional. Maquiavel não parte de

modelos abstratos da natureza humana e do ótimo governo, mas desenvolve um modo de abordagem que

Spinoza, por sua vez, sintetiza no Tratado Político dessa forma: as causas e os fundamentos naturais do Estado

serão analisados através dos ensinamentos da razão, mas serão deduzidos da natureza comum, ou seja, das condições

dos homens (imperii causae, et fundamenta naturalia non ex rationis documentis petenda, sed ex hominum communi

natura, seu conditione deducenda sunt). (TP 1.7). Proceder deste modo significa simplesmente, na linguagem da

Ética de Spinoza, realizar um conhecimento de terceiro gênero, ou ciência intuitiva. Por isso, não deve

surpreender o fato de que um filósofo como Spinoza, “ébrio de Deus” só para certos romântico ébrios de si

mesmos, não reconheça o título de sabedoria a ninguém senão ao agudíssimo florentino.

Notas do Tradutor

[1] Agudíssimo Maquiavel e agudíssimo florentino.

[2] Referência ao fim da República dos De Witt e ascensão da casa aristocrática d’Orange.

[3] guerra de todos contra todos.

[4] indivíduo rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos.

[5] não observar uma lei é dar mal exemplo, sobretudo quando quem o faz é autor dela.

[6] figura retórica que exprime, com dois termos coordenados, uma única idéia.

[7] realidade efetiva.

[8] tudo o que sabem fazer é louvar insistentemente uma natureza humana inexistente e atacar aquela que de fato existe. Não

concebem os homens tais como são, mas tais como gostariam que fossem.

[9] sabem, por experiência, que existirão vícios enquanto existirem homens. E, por conseguinte, enquanto se empenham em evitar a

perfídia humana – e o fazem com aquele talento, aprendido pela grande experiência, que habitualmente demonstram os homens

dirigidos mais pelo medo do que pela razão – parecem opor-se à religião e, particularmente, aos teólogos, os quais crêem que os

detentores do poder soberano devam tratar os assuntos públicos segundo as mesmas regras de conduta às quais deve ater-se um

particular. É, todavia, inquestionável que os políticos escreveram sobre questões políticas com resultados muito melhores do que os

filósofos. Instruídos pela experiência, eles, de fato, não ensinaram jamais nada que fosse distante da prática.

[10] È segno invece di ignoranza quel che fanno spesso, di eleggere un re in vista della guerra, considerando che le guerre i re le

conducono con successi molto più brillanti: ma costoro pur di avere successo in guerra sono disposti a essere servi in pace, ammesso

che di pace si possa parlare nel caso di uno stato il cui potere sovrano è stato trasferito per ragioni di guerra a uno solo, il quale

dunque ha bisogno della guerra per mettere in evidenza il suo valore e rispondere alle aspettative che tutti hanno riposto in lui;

mentre al contrario lo stato democratico ha questo carattere preminente, che il suo valore emerge assai di più in pace che in guerra.

[11] Genocídio parece ser uma medida por demais exagerada para ser defendida por Spinoza

[12] Muito cruéis

[13] suavizar

[14] Na edição UNB, o tradutor preferiu usar o termo meias medidas, melhor para fins didáticos.

[15] Trata-se da famosa Carta LVI.

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