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São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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O abecedário de Deleuze assinantes do UOL ou da Folha
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Confissões de um pensador
RECÉM-LANÇADO NA FRANÇA, "O ABECEDÁRIO DE GILLES DELEUZE" REÚNE
EM DVD MAIS DE 7 HORAS DE ENTREVISTAS DADAS PELO AUTOR DE "O ANTI-
ÉDIPO", EM QUE FALA DE SUA VIDA PESSOAL E DEFENDE A CRIAÇÃO COMO
FORMA DE RESISTÊNCIA

Alcino Leite Neto


Editor de Domingo

Eu penso que não existe governo de esquerda. Aqui, também, não há com o que se surpreender: esse
nosso governo, que deveria ser um governo de esquerda e que não é um governo de esquerda... a
esquerda não é uma questão do governo..."
Quem fala é Gilles Deleuze (1925-1995), o mais importante pensador francês desde Jean-Paul Sartre
(1905-1980). Estamos no final de 1988, na sala de um apartamento modesto em Paris, a casa do
filósofo. Na França, o socialista François Mitterrand ocupa pela segunda vez o posto de presidente.
No Brasil, o PT prepara a candidatura de Lula contra Collor. O Muro de Berlim ainda separa a
Alemanha.
Deleuze, então com 64 anos, está vestido com blusa violeta, calças pretas e meias roxas. Detrás da
cadeira onde está sentado há um armário baixo, com um abajur em forma de cálice, e um espelho
antigo, por onde entrevemos a imagem de uma mulher bastante bonita: Claire Parnet, ex-aluna de
Deleuze e, nesse momento, a sua entrevistadora.
Durante 453 minutos, ou mais de sete horas, Parnet fará ao filósofo uma centena de questões que irão
constituir um documento notável: "L'Abécédaire de Gilles Deleuze" (O Abecedário de Gilles
Deleuze, finalizado em 1989, 45 euros), entrevista filmada em película, para exibição em cinema e
televisão, mais tarde divulgada em vídeo e agora lançada em DVD na França -um formato ideal para
acompanhar essa síntese do pensamento do filósofo e passear pela série de anedotas sobre sua vida
pessoal, que ele timidamente revela, entre o capítulo "A, como Animal" e o "Z, como Ziguezague"
[leia trechos na pág. 6].
Deleuze, que não apreciava falar de si mesmo, na entrevista recorda sua convivência com o pai, um
engenheiro com idéias de direita e sentimentos anti-semitas (em "E, como Enfance-Infância").
Expressa sua paixão pela música popular e por Edith Piaf (em "O, como Ópera"), sua "dívida" para
com Scott Fitzgerald, William Faulkner e Thomas Wolfe (em "L, como Literatura"). Explica por que
comer lhe causa tanto tédio e por que detesta os queijos. Descreve três vezes o seu cardápio ideal:
língua, cérebro e tutano (em "M, como Maladie-Doença"). Compara, rindo, sua parceria com o
psiquiatra Félix Guattari com Bouvard e Pécuchet, os personagens de Flaubert (em "F, como
Fidelidade"). Entusiasma-se ao falar de seu esporte preferido, o tênis: "(Bjorn) Borg é um verdadeiro
criador, de caráter crístico, pois inventou o tênis para as massas", diz (em "T, como Tênis").
Os comentários anedóticos pontuam e refrescam essa entrevista densa e complexa, que é sobretudo
uma generosa introdução às idéias de Deleuze -feita por ele mesmo- e aos pensadores de sua
predileção: Kant, Nietzsche, Espinosa e Leibniz, sobre o qual acabara de lançar um ensaio, "A
Dobra" (1988; ed. Papirus). Professor durante toda a sua vida, Deleuze transforma a conversa com
Parnet numa espécie de curso audiovisual de filosofia, apresentando seus conceitos com clareza,
exemplificando cada idéia, repetindo e resumindo a sua análise sempre que julga necessário.
Ele faz mais do que isso, pois Parnet é uma provocadora. "Perfídia", diz Deleuze da moça, em
determinado momento. Ela incita o filósofo a discorrer sobre a vida contemporânea e o instiga a
atacar seus "inimigos" e a criticar os diluidores de suas idéias.
A psicanálise é um dos alvos preferidos de Deleuze: "Os psicanalistas falam do desejo como padres,
da castração como uma maldição sobre o desejo. É pior do que o pecado original", diz ele. E
continua: "O inconsciente não é um teatro: é uma usina, uma produção. Não é Édipo nem Hamlet.
Não deliramos a partir das figuras do pai ou da mãe. Deliramos sobre o mundo inteiro, a geografia, a
história, as raças, o deserto... O delírio é geográfico ou político. A psicanálise, que jamais
compreendeu o delírio, o coloca como um simples problema familiar. Ela tem toda uma ignorância
da multiplicidade (do desejo)".
Parnet interpela Deleuze, dizendo que a "esquizoanálise", concebida por ele e Guattari em "O Anti-
Édipo" (1972), levou estudantes a acharem que a partir de então deveriam ser "loucos", a fim de
manifestar a multiplicidade do desejo. Deleuze esclarece: "Havia os que pensavam que o desejo era o
espontaneísmo e que achavam que era a hora da festa. Mas não se tratava disso. Nunca disse a um
estudante para ir se drogar, porque sou muito sensível a coisas que fazem tirar a atenção, a distrair...
O "Anti-Édipo" é de uma prudência extrema. Era um meio de impedir a produção da esquizofrenia...
Espero que esse livro seja redescoberto". Contra a psicanálise, o filósofo evoca a psiquiatria. "Ela
tem um futuro mais certo do que a psicanálise espiritualista." E defende com todas as letras o uso de
medicamentos no tratamento psiquiátrico. "Sempre fui pelo uso do remédio, mesmo no domínio da
psiquiatria. Sempre fui a favor da farmacologia", diz ele. O segundo inimigo de Deleuze é a mídia e
o sistema de comunicação, para ele uma das bases da "sociedade de controle" (como ele define o
modo de dominação contemporâneo, pós-disciplinar, sobre os sujeitos). "Ter uma idéia não é algo do
campo da comunicação... A informação é um conjunto de palavras de ordem... A informação é o
sistema de controle", afirma na extraordinária conferência "O Que É o Ato de Criação?", de 1987,
que o DVD traz como bônus. Para Deleuze, a TV é a "domesticação em estado puro... em que todos
concorrem para produzir a mesma nulidade". Em "C, como Cultura", define nosso época como um
"deserto cultural", cujas causas assim diagnostica: "Primeiro, os jornalistas conquistaram a forma-
livro e acham muito normal escrever em livro o que simplesmente bastaria no artigo de jornal.
Segundo, espalhou-se a idéia geral de que todo mundo pode escrever, desde o momento em que a
escrita se tornou o pequeno problema de cada um, de arquivos familiares, de arquivos que cada um
tem na sua cabeça. Terceiro, os verdadeiros clientes mudaram: na TV não são mais os espectadores,
mas os anunciantes; na edição, não são mais os leitores potenciais, mas os distribuidores".

Sentimento da vida
E a esquerda no governo? Para Deleuze, o máximo que se pode esperar é que um governo seja
favorável a certas exigências da esquerda. "Mas um governo de esquerda, isso não existe", conclui
em "G, como Gauche-Esquerda". "Ser de esquerda é não deixar de ser minoritário. Isso quer dizer
que a esquerda jamais é majoritária enquanto esquerda."
A maioria é um padrão "vazio", fundado na predominância estatística -homem, adulto e urbano- e
que determina o voto. Governos são eleitos para corresponder a esse padrão abstrato. "A esquerda
não é questão de governo... É o conjunto dos processos do devir minoritário", uma forma de
resistência e reivindicação de minorias concretas e cuja função é "lutar pela jurisprudência, criar
direitos".
"R, como Resistência" é uma das partes mais comoventes do "Abecedário de Gilles Deleuze". "Se
não se experimenta a vergonha de ser homem, não há necessidade de fazer arte", diz o filósofo,
evocando Primo Levi.
Mas a palavra "resistência" não aparece só nesse capítulo. Ela percorre a conversa inteira, ao lado da
idéia de "criação" -e toda a entrevista é uma defesa da criação como forma de resistência aos poderes
que submetem as potências da vida. "A confusão entre poder e potência é ruinosa, porque o poder
sempre tem por objetivo separar as pessoas submetidas daquilo que elas podem... A potência é o
prazer da conquista, não a conquista que leva à submissão das pessoas, mas aquela que tem o mesmo
sentido de quando se diz que um pintor conquistou uma cor."
Doente, com um câncer incurável, o filósofo se suicidaria em 1995, aos 70 anos, pulando da janela
de seu apartamento. "Para mim, a doença não é algo que dá o sentimento da morte, é alguma coisa
que reforça o sentimento da vida. A doença é uma espécie de visão da vida em toda a sua potência e
beleza... O que há em comum entre a grande filosofia e a grande literatura é que elas testemunham
pela vida", diz Deleuze, com sua voz rouca, a respiração apertada, os olhos fulgurantes, enquanto
Claire Parnet, uma silhueta no espelho, acende seu centésimo cigarro.

Onde encomendar
A caixa com 3 DVDs "L'Abécédaire de Gilles Deleuze", lançado pelas Editions Montparnasse
(www.editionsmontparnasse.fr), pode ser encomendado, SP, na FNAC (0/xx/11/4501-3000).

O abecedário de Deleuze
Leia trechos extraídos do DVD

E COMO ESQUERDA

Quem jamais acreditou que uma revolução terminasse bem? Quem?... Os ingleses fizeram uma
revolução, mataram o rei etc. E o que tiveram? Cromwell... E o romantismo inglês é o quê? É uma
longa meditação sobre o fracasso da revolução. Eles não esperaram (André) Glucksmann para refletir
sobre o fracasso da revolução stalinista.... Não se fala jamais deles, mas os americanos, eles
fracassaram com sua revolução... Os americanos se apresentavam, mesmo antes da guerra da
Independência, como uma nova nação... E, exatamente como os marxistas contarão com a
proletarização universal, os americanos contarão com a imigração universal. São as duas faces da
luta de classes... É uma América completamente revolucionária que anuncia o novo homem,
exatamente como a revolução bolchevique anunciava o novo homem... A revolução americana deu
em quem? Deu em Reagan... Mas que as revoluções fracassem, isso não impede as pessoas de se
tornarem revolucionárias... Os historiadores não falam senão do Futuro da revolução... Mas é como
se falássemos duas línguas diferentes: o Futuro da história e o Devir atual das pessoas não são a
mesma coisa.

H COMO HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Muita gente pensa que a filosofia é uma coisa muito abstrata e para especialistas. Eu creio e vivo de
tal forma a idéia de que a filosofia não é uma especialidade que tento colocar o problema de outra
forma. Quando se crê que a filosofia é abstrata, a história da filosofia fica também abstrata... Um
filósofo não é alguém que contempla nem mesmo alguém que reflete: é alguém que cria. Cria um
gênero de coisas de fato especiais: cria conceitos. O conceito não está pronto, não passeia pelo céu,
não o contemplamos. É preciso criá-lo, fabricá-lo.

I COMO INFÂNCIA
A atividade de escrever não tem a ver com o problema pessoal de cada um. A literatura, a escrita, tem
fundamentalmente a ver com a vida. Mas vida é qualquer coisa superior ao que é pessoal... Escrever
é sempre se tornar alguma coisa. Nós escrevemos para a vida e nos tornamos alguma coisa. Escrever
é devir, é se tornar tudo aquilo que se quer, menos um escritor... Há um devir-infância da literatura,
mas não de uma infância em particular...

P COMO PROFESSOR

A relação que se pode ter com os alunos é ensiná-los a serem felizes com sua solidão. É ensiná-los a
se reconciliarem com sua solidão... Eu não quis ensinar conceitos que se tornem escola, mas que
sejam conceitos correntes, não quero dizer comuns, mas sim manipuláveis de várias formas... A
universidade deve ser hoje um lugar de pesquisa. Não é papel das universidades se adaptar ao
mercado de trabalho -esse é o trabalho das escolas técnicas.

R COMO RESISTÊNCIA

Eu creio que um dos temas do pensamento é uma certa vergonha de ser um homem. Creio que o
homem, o artista, o escritor que disse isso mais profundamente foi Primo Levi... "A vergonha de ser
um homem" é uma frase esplêndida, mas é ao mesmo tempo muito concreta, nada abstrata. Ele não
quer dizer as besteiras que querem que ele diga. Ele não quer dizer que somos todos assassinos ou
culpados... Não quer dizer que os carrascos e as vítimas sejam os mesmos. Não nos farão crer nisso,
não nos farão confundir o carrasco e a vítima. A vergonha de ser um homem não quer dizer que todos
sejam parecidos... A vergonha de ser um homem quer dizer: como os homens puderam fazer isso?
Como homens, que não eu, puderam fazer isso? E, em segundo lugar, como eu mesmo, sem me
tornar um carrasco, pude pactuar tanto para sobreviver e carrego essa vergonha de ter sobrevivido no
lugar de certos amigos que não sobreviveram? É então um sentimento muito complexo. Eu creio que
na base da arte há esta idéia ou este sentimento muito vivo de uma certa vergonha de ser um
homem... A arte consiste em liberar a vida que o homem aprisionou. O homem não cessa de
aprisionar a vida, de matar a vida...

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200406.htm

Filosofia para as massas

ENSAÍSTAS APONTAM AS MELHORES E PIORES OBRAS INTRODUTÓRIAS,


LANÇADAS NO BRASIL, ÀS IDÉIAS DE CINCO PENSADORES FUNDAMENTAIS;
COLEÇÃO "90 MINUTOS", DE PAUL STRATHERN, É A MAIS CRITICADA

O TERREMOTO NIETZSCHE
Peter Pál Pelbart
especial para a Folha

Do trio de pensadores que distribuiu as cartas teóricas do século 20, Nietzsche continua, talvez à
frente de Marx e até de Freud, como o mais pop. O que não significa que seja o mais lido entre os
três ou nem sequer o mais compreendido. Daí, quiçá, a quantidade de livros que se pretendem
"introduções" ao seu pensamento.
Da nova safra publicada no Brasil, sem dúvida o "Nietzsche" de Oswaldo Giacoia Jr. ocupa um lugar
de destaque. Num texto sem concessões, curto (92 páginas!) e grosso, denso e leve, arguto e
cristalino, o autor diz as coisas essenciais, sempre a partir das mais altas exigências que o filósofo se
colocou a cada momento de seu trajeto. Nietzsche aparece, ao final, como um pensador da cultura e
do seu destino, muito distante da imagem do bárbaro irracionalista ou de um leviano precursor do
pós-moderno. Ao contrário, nenhum filósofo sentiu tamanha responsabilidade para com o contorno
futuro do homem sobre a terra quanto o autor de "Zaratustra". Em vez de se deleitar com a fórmula
"Deus está morto", esse livro evoca as articulações histórico-filosóficas que esclarecem seu alcance.
A derrocada dos valores supremos e a perda de sentido contemporâneos aparecem como parte de um
processo de "décadence" incontornável, mas que é preciso pensar também a partir de seu
esgotamento e de sua viragem. Daí o mote da superação do niilismo, com a reapropriação da vontade
de poder e o tema do além-do-homem. Não se trata de uma utopia pré-formatada, mas de um
chamamento afirmativo, enraizado nas promessas que a história do homem não cumpriu. Donde o
aspecto crítico em relação ao presente bem como as múltiplas referências ao potencial emancipatório
ou inconformista do pensamento nietzschiano, com o que o autor nos devolve à tarefa que Nietzsche
mesmo traçou para a filosofia, vital, prospectiva, liberadora e intempestiva.
Dois outros livros, muito menos bem-sucedidos, também se propõem como introduções ao
pensamento de Nietzsche. "Nietzsche", de Ronald Hayman, vê o trajeto pessoal, estilístico e teórico
do filósofo como uma tentativa de domar suas "vozes internas". O longo monólogo escrito por
Nietzsche seria o resultado de um disciplinado esforço de auto-superação, sempre a partir das
múltiplas vozes que o povoavam (desde a voz religiosa e moralizante do entorno familiar até as
vozes libertária, profética ou didática que aparecem em sua obra), pondo em risco sua integridade
psíquica.
Nesse flerte com a loucura, que o desqualificou aos olhos de seus contemporâneos, Nietzsche
acabou, paradoxalmente, mais próximo de nossa sensibilidade. Como diz Barthes, que o autor cita, "a
invenção de um discurso paradoxal é mais revolucionária do que a provocação". Infelizmente, com
vários descuidos na interpretação filosófica e trivialidades biográficas, sem contar o excesso de
citações (quase metade do livro é... de Nietzsche!), e apesar da esmerada tradução de Scarlett
Marton, o livro fica muito aquém de sua intenção. Ademais, a letrinha miúda pede mais uma lupa do
que um leitor.
Por último, num livro mais complexo e desigual, com alguns lances originais, Richard Beardsworth
trata de retomar o conjunto do pensamento do filósofo a partir da idéia de tempo e de vida. Centrado
numa interpretação "energético-técnica", levando em conta o campo de forças afetivo e histórico, o
autor pensa poder resgatar Nietzsche de uma interpretação heideggeriana e aproximá-lo das
preocupações do presente.
Apesar das diferenças de enfoque e qualidade, a recente safra de traduções e a já rica produção
brasileira testemunham um interesse crescente por esse pensador sobre o qual se perguntou, com
razão: será ele um sismógrafo ou o próprio terremoto?

Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de, entre
outros,"Vida Capital" (Iluminuras).
OS LIVROS
Nietzsche (coleção "Folha Explica"), de Oswaldo Giacoia Jr. Ed. Publifolha (al. Barão de Limeira, 401, 6º andar, CEP 01202-001, SP, tel. 0/
xx/11/3224-2196). 92 págs., R$ 14,90
Nietzsche (coleção "Grandes Filósofos"), de Ronald Hayman. Trad. Scarlett Marton. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel.
0/xx/11/3242-7171). 56 págs., R$ 10,00
Nietzsche (coleção "Figuras do Saber"), de Richard Beardsworth. Trad. Beatriz Sidou. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-
030, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3661-2881). 28 págs., R$ 22,00
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200407.htm

MARXISMOS DE ONTEM E HOJE


Ricardo Musse
especial para a Folha

Como apresentar, de forma resumida, um autor que busca deliberadamente identificar e acompanhar
a contradição em seu movimento? Como compendiar uma inquirição na qual o resultado -mera
reposição da aparência (certeza) sensível- importa menos que os meandros da investigação?
Apesar das dificuldades da empreitada, muitos aceitaram o desafio de escrever uma introdução a
Marx. Com maiores ou menores modificações, seguiram o modelo da célebre coleção "philosophes"
da P.U.F. (fundada por Émile Bréhier e infelizmente não publicada no Brasil), que apresenta vida e
obra, expõe a filosofia e ainda seleciona trechos do pensador em pauta.
O livro de Terry Eagleton, quase um ensaio, se restringe a apresentar as idéias de Marx, tendo em
vista sua contribuição para as diferentes disciplinas do saber universitário.
Privilegiando seus textos de juventude e a interpretação de alguns autores do assim chamado
"marxismo ocidental", Eagleton destaca, na exposição do tópico "filosofia", a postura antifilosófica
do autor; no capítulo sobre antropologia, a teoria da alienação e do fetichismo; na parte sobre a
história, o papel das classes sociais; e, na política, o conceito de "praxis". As insuficiências e a
parcialidade são evidentes: Marx não intitulou o conjunto de seus escritos da maturidade de "crítica
da economia política"?
Apesar da aparência convencional de um volume centrado na exposição de "vida & obra" e na
seleção de textos, o livro de José Arthur Giannotti sobre Marx subverte as regras do gênero.
Dissolve, por exemplo, a função de "escada", própria de introduções, dada a complexidade, algumas
vezes hermética, de sua exposição. Enumera também uma série de objeções sem apresentar ao leitor
os argumentos com que Marx e os marxistas tentariam responder a essas questões. Na seleção de
textos, privilegiaram-se trechos inéditos em português, em especial o manuscrito de Marx, editado
apenas em 1939, os "Gundrisse der Kritik der politischen Ökonomie". Nem por isso o livro é
destituído de interesse. Ao contrário. Funciona perfeitamente como uma introdução à crítica de
Giannotti ao marxismo.
O "Marx" de Leandro Konder, volume de uma coleção "vida & obra", é quem oferece,
comparativamente, mais informações biográficas, em geral extraídas dos livros clássicos de Franz
Mehring e Auguste Cornu. No entanto, como foi escrito já há algumas décadas, obviamente não
incorpora as descobertas mais recentes acerca da vida de Marx. O livro foge pouco ao figurino
proposto, alicerçando-se na clareza, concisão e domínio teórico do material, embora fulgure,
esporadicamente, a verve irônica do autor. Mas, certamente, o marxismo atual de Leandro Konder,
depois de seu mergulho em autores como Georg Lukács e Walter Benjamin, é bem distinto de seu
marxismo de outrora.
Por fim, "Marx em 90 Minutos", de Paul Strathern. Uma sucessão de erros, seja de informação ou
conceituais, aliada a um rebaixamento estilístico, que pressupõe um leitor idiotizado, torna esse livro
indigno de ser comparado com os demais. De interessante apenas a sugestão do título. Em uma hora
e meia é possível ler "O Manifesto Comunista", ainda a melhor introdução ao pensamento de Marx.

Ricardo Musse é professor do departamento de sociologia da USP.


OS LIVROS
Marx e a Liberdade, de Terry Eagleton. Trad. Marcos de Oliveira. Editora Unesp. 52 págs., R$ 10,00
Marx - Vida & Obra, de José Arthur Giannotti. Editora L&PM (r. Comendador Coruja, 314, loja 9, CEP 90220-180, Porto Alegre, RS, tel. 0/ xx/ 51/
225-5777). 188 págs., R$ 12,00
Marx - Vida e Obra, de Leandro Konder. Editora Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3337-8399).154 págs., R$ 19,50
Marx em 90 Minutos, de Paul Strathern. Trad. Maria Luiza Borges. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/ xx/ 21/
2240-0226). 76 págs., R$ 14,00

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200408.htm

A TERAPIA DE WITTGENSTEIN
Bento Prado Neto
especial para a Folha

O leitor brasileiro dispõe, hoje, de variada bibliografia acerca de Wittgenstein, de livros introdutórios
a comentários mais especializados (a própria tradução do "Tractatus" pela Edusp já brinda o leitor
com uma belíssima introdução a essa obra). Os quatro wittgensteins aqui listados vêm, assim, menos
preencher uma lacuna do que diversificar as opções de acesso à obra desse autor. São todos livros
introdutórios, que se endereçam em maior ou menor grau ao leitor não especializado.
O "Wittgenstein em 90 Minutos", que se pretende "irreverente e curioso", nos dizeres da quarta capa,
é muito fraco e dispensa comentários. Os três restantes divergem no modo pelo qual enfrentam a
dificuldade básica de uma apresentação "da filosofia de Wittgenstein": temos "duas" filosofias de
Wittgenstein, uma encarnada pelo "Tractatus" (a obra de juventude) e a outra pelas "Investigações
Filosóficas" (obra de maturidade e crítica radical da primeira), e cabe então saber que peso deve ser
atribuído a cada uma delas na exposição.
O livro de Grayling é o mais equânime. Após uma breve biografia (parece irresistível, numa
apresentação da filosofia de Wittgenstein, evocar a personalidade extravagante do filósofo), o
restante do livro é dividido eqüitativamente entre as exposições do "Tractatus" e das "Investigações".
As duas exposições têm aproximadamente o mesmo andamento: uma explicação simples e acessível
da obra, seguida de uma reflexão crítica que acaba se revelando um tanto simplista, para não dizer
simplória (algo semelhante pode ser dito de sua exposição do "Tractatus").
O livro de Schmitz, por sua vez, privilegia claramente o "Tractatus". Após a famigerada biografia,
dois terços do restante do livro são dedicados à primeira obra. A apresentação do "Tractatus" é
precedida por uma exposição didática do "pano de fundo" dessa obra, a saber, a idéia de lógica, a
história dessa disciplina e as questões filosóficas que ela suscita. Esse é o fio condutor que Schmitz
propõe para entender não apenas o "Tractatus", mas também a "segunda filosofia" de Wittgenstein,
que nos é apresentada na forma de uma procura de soluções para as deficiências da concepção de
"lógica" da primeira filosofia.
Finalmente, o pequeno livro de Hacker opta pelo "segundo Wittgenstein" e de forma mais drástica.
Dessa vez, não há nem biografia nem menção ao "Tractatus": o leitor é introduzido diretamente na
"concepção radical" de filosofia sustentada por Wittgenstein como "terapia conceitual", e, a seguir,
essa concepção é exemplificada pelo tratamento que oferece às "principais questões da filosofia da
mente" (pág. 18). Os "exemplos" escolhidos nada têm de inocente: ao percorrê-los, é o próprio nervo
das "Investigações Filosóficas" que o autor pretende nos fazer apreender.
Os dois últimos livros são obras de dois comentadores "profissionais" de Wittgenstein, mas voltadas
para um público não-especializado. É claro que movimentam interpretações determinadas e que
simplificam em alguma medida, mas fazem-no de caso pensado e de forma hábil. E, caso nada se
perdesse da filosofia de Wittgenstein numa breve exposição, isso talvez depusesse menos a favor do
expositor do que contra o filósofo.

Bento Prado Neto é professor na Universidade Federal de São Carlos e autor de "Fenomenologia em
Wittgenstein" (editora UFRJ).
OS LIVROS
Wittgenstein (coleção "Mestres do Pensar"), de A.C. Grayling. Trad. Milton Camargo Mota. Ed. Loyola (r. 1.822, 347, CEP 04216-000, SP, tel.
0/ xx/11/ 6914-1922). 157 págs., R$ 12,10
Wittgenstein (coleção "Grandes Filósofos"), de P.M.S. Hacker. Trad. João Vergílio Gallerani Cuter. Editora da Unesp. 61 págs., R$ 10,00
Wittgenstein em 90 Minutos (coleção "Filósofos em 90 Minutos"), de Paul Strathern. Trad. Maria Helena Geordane. Jorge Zahar. 69 págs., R$
14,00
Wittgenstein (coleção "Figuras do Saber"), de François Schmitz. Trad. José Oscar de Almeida Marques. Ed. Estação Liberdade. 183 págs., R$
25,00

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A BEATITUDE DE ESPINOSA
Marcos André Gleizer
especial para a Folha

A filosofia de Baruch Espinosa (1632-1677) é uma das mais extraordinárias produções do espírito
humano. Sua obra principal, a "Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras", ocupa uma posição
ímpar na história da filosofia. Sua forma dedutiva constitui a exemplificação mais perfeita do ideal
de sistematização do saber, característico da modernidade. Seu conteúdo, encadeado rigorosamente
ao longo das cinco partes que a compõem, constrói um espaço teórico inovador que rompe
radicalmente com o universo conceitual da tradição metafísico-moral judaico-cristã. Partindo do
conhecimento de Deus e de sua relação imanente com a natureza, a "Ética" pretende "conduzir-nos,
como que pela mão, ao conhecimento da alma humana e de sua beatitude suprema".
Trata-se, ao longo desse percurso, de conquistar o conhecimento verdadeiro de nós mesmos como
partes da natureza, como expressões certas e determinadas do absoluto, conhecimento do qual
nascem os afetos ativos que constituem o núcleo da experiência da beatitude, a saber: o
contentamento íntimo e o amor intelectual de Deus. Espinosa reconhece que o caminho proposto é
extremamente árduo, pois a ele se refere ao término da "Ética" com a célebre afirmação: "Todas as
coisas notáveis são tão difíceis como raras".
Essa dificuldade não deve espantar o leitor. Afinal, o objetivo proposto vale o esforço. Além disso, há
livros que pretendem auxiliar o iniciante a dar os primeiros passos nesse árduo caminho. Auxílios são
evidentemente bem-vindos, com a condição de que ofereçam um mapa confiável do caminho a ser
trilhado, isto é, um retrato fiel do pensamento de Espinosa. O que se espera de uma breve introdução
ao pensamento de um autor?
Que seja escrita em linguagem clara e acessível, que apresente de forma sintética as principais
questões e teses por ele defendidas, que evite juízos sumários, precipitados e preconceituosos a
respeito da validade das teses apresentadas (afinal, elas estão sendo apresentadas sem os argumentos
que as sustentam) de modo a despertar o interesse do leitor em aprofundar os primeiros
conhecimentos recém-adquiridos. Tomando esses elementos como requisitos mínimos de uma boa
introdução, examinemos rapidamente três livros que se encontram em circulação atualmente.
O livro de Paul Strathern dificilmente pode ser considerado uma introdução a Espinosa. Com efeito,
o retrato pintado de sua vida e obra contém uma tal quantidade de informações histórica e
filosoficamente incorretas que é preciso considerá-lo antes como uma caricatura (em perfeita
conformidade, aliás, com a caricatura de Espinosa que serve de frontispício ao livro) do que como
um autêntico retrato.
Apesar de alguns lugares-comuns laudatórios ("Espinosa é o filósofo dos filósofos"), o tom adotado
pelo livro prefere ridicularizar o pensamento de Espinosa a compreendê-lo e, sem deter-se na
exposição deste pensamento, se apressa em tentar "refutá-lo" a partir de vagas opiniões acerca da
ciência contemporânea e de preconceitos filosóficos apresentados de forma simplória como verdades
evidentes. Passemos, portanto, a algo mais interessante.
O livro de Roger Scruton leva-nos a um outro patamar. Trata-se de um livro escrito com bastante
clareza (apesar de alguns problemas de tradução) e de âmbito bem delimitado. Após uma brevíssima
introdução histórica (pouco informativa e pouco precisa), o autor se concentra na apresentação das
principais questões que norteiam a construção da "Ética" e das principais teses propostas como
respostas. Essa concentração permite apresentar um retrato mais amplo e detalhado do projeto global
da "Ética" do que o oferecido pelas duas outras introduções aqui comentadas. Além disso, Scruton
não se contenta simplesmente em apresentar as teses, mas procura oferecer também um esboço de
interpretação. Embora as interpretações sugeridas suscitem vários problemas (aos olhos do
especialista), elas não deixam de ser estimulantes e de lançar com proveito o leitor na dinâmica
reflexiva própria da filosofia.
Por fim, o livro de André Scala oferece a mais substancial e abrangente das três introduções, sendo
útil não apenas ao leigo, mas também aos que já possuem algum conhecimento da obra de Espinosa.
Partindo de uma breve reflexão acerca das diversas relações entre o filósofo e o não-filósofo, ele
organiza os quatro capítulos de seu livro em torno dessas relações, mostrando engenhosamente como
cada uma delas está envolvida em uma das principais obras de Espinosa. Assim, o primeiro capítulo
oferece uma análise interessante do preâmbulo do "Tratado da Emenda do Intelecto", no qual o
jovem Espinosa (ainda não-filósofo) descreve o movimento existencial e reflexivo que o conduz à
filosofia. O segundo capítulo aborda alguns aspectos da complexa relação entre Espinosa e
Descartes, suscitados pela exposição dos "Princípios da Filosofia de Descartes", que Espinosa -já
então filósofo maduro- ditou a um jovem estudante que desejava se introduzir à filosofia. O terceiro,
ao apresentar o "Tratado Teológico-Político", examina a relação combativa do filósofo com os não-
filósofos (teólogos, políticos) que encarnam os obstáculos ao exercício da filosofia, isto é, à liberdade
de pensamento. O último capítulo, dedicado à "Ética", mostra que uma certa relação de composição
entre o filósofo e os não-filósofos é condição para que ele possa formar as idéias adequadas que o
conduzem da perspectiva da parte à perspectiva do todo. Infelizmente, em vez de expor com clareza
as grandes linhas dessa perspectiva, isto é, da ontologia de Espinosa, o autor se debruça aí sobre
considerações técnicas acerca do método, das tentativas de formalização empreendidas por Espinosa,
das dificuldades da prova da existência da substância etc., levantando problemas que, ultrapassando
em muito o nível da mera introdução, confundem desnecessariamente, com esse tropeço expositivo,
o iniciante que ensaia seus primeiros passos em direção à beatitude espinosista.

Marcos André Gleizer é professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de
"Verdade e Certeza em Espinosa" (L&PM).
OS LIVROS:
Espinosa em 90 Minutos (coleção "Filósofos em 90 Minutos"), de Paul Strathern. Trad. Marcus Penchel. Jorge Zahar.68 págs., R$ 14,00
Espinosa (coleção "Grandes Filósofos"), de Roger Scruton. Trad. Angélika Elisabeth Könke. Editora Unesp. 56 págs., R$ 10,00
Espinosa (coleção "Figuras do Saber"), de André Scala. Trad. Tessa Moura Lacerda. Editora Estação Liberdade. 136 págs., R$ 22,00

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200411.htm

A MATRIX CONCEITUAL
Publicado na Alemanha, "O Universo de Kant", de Manfred Geier, defende que o filósofo
construiu um modelo de universo mecânico que busca superar a intervenção divina

José Galisi Filho


especial para a Folha

Deus não joga dados", afirmou kantianamente Albert Einstein ao estabelecer as regras do jogo de seu
modelo do universo. Se a vida inteligente é uma febre de matéria auto-reflexiva na tentativa de
afirmar sua identidade provisória no contínuo espaço-temporal, a pergunta sobre as condições de
possibilidade e validade de seu conhecimento não está apenas na base de sua atividade mental
espontânea, mas, sobretudo, de sua natureza moral.
Em outras palavras, o conhecimento científico é um corretivo dessa febre metafísica na construção e
desconstrução de modelos verossímeis do mundo dentro dos limites de experiência sensível. "Kants
Welt" (O Universo de Kant, ed. Rowohlt, 9,90 euros), de Manfred Geier, ilumina os fundamentos
empíricos da cosmologia subjacente à arquitetura dos críticos como uma gigantesca "matrix"
espontânea, expandindo-se na diferença entre pensar e conhecer. Geier é professor de literatura alemã
moderna na Universidade de Hanover.

O que significa o sistema kantiano como "matrix" de um universo fractal?


Ao observar o firmamento e com base na literatura astronômica mais avançada de seu tempo, Kant
construiu um modelo próprio do universo mecânico de Newton, tentando superar um de seus
dilemas, a saber, a intervenção providencial do "dedo de Deus", como causa última que justificasse a
origem do movimento. Kant não estava satisfeito com essa intervenção "ex machina" e encontrou
uma saída: "Dêem-me matéria e construirei um universo". Esse ato de criação quase demiúrgico se
assemelha a uma gigantesca "matrix" conceitual em que o micro e o macrocosmo se espelham,
subtraindo-se a qualquer conjectura metafísica do que estaria antes ou fora desse universo.
Kant foi um dos primeiros a formular esse problema da simulação de um ponto de vista
essencialmente moderno em sua "Teoria do Firmamento", a experiência da percepção de um mundo
no qual as fronteiras entre a virtualidade de um modelo do universo, subjacente a qualquer
construção teórica matemática, e o universo real se diluem.
Até então, o conhecimento astronômico descrevia apenas nosso sistema solar e não se sabia ainda
que aquelas manchas nebulosas, ainda difusas para o alcance dos telescópios do tempo, eram "ilhas-
mundo", galáxias, provavelmente povoadas, como já supunha Kant. Kant acreditava, com base nos
pré-socráticos, que, no início desse universo, haveria um caos da matéria primordial em seus
elementos constituintes em "movimentos conflituosos", que se seguiria ao nada, mas esse caos não
poderia ser totalmente homogêneo, pois, se assim fosse, não haveria como justificar, em última
instância, o movimento.
O que me parece que não foi percebido até hoje é que essa manobra de Kant já antecipava o que
somente 200 anos depois se tornaria a outra revolução copernicana da cosmologia no século 20: o
modelo do universo inflacionário, como hoje o compreendemos desde Hubble, quando a cosmologia
rompeu definitivamente suas fronteiras metafísicas e se tornou ciência, com a prova irrefutável do
desvio para o vermelho das galáxias que se afastam de nós e das flutuações da radiação de
microondas de fundo, um vestígio fóssil de como o universo era 300 mil anos depois do instante
zero.

Na trilogia "Matrix", Morpheus abre para Neon a porta do "deserto da realidade". Mas a
tessitura da realidade é muito mais aparente do que imaginamos e a "matrix" cria simulações
simultâneas "ad infinitum". Para Kant, esse limite do caminho seguro da ciência não seria
também uma última artimanha da "matrix" do pensar?
Não, porque é o único recurso de que dispomos para conhecer. Para decepção de muitos, o "happy
end" hollywoodiano terminou com um retorno à velha metafísica que Kant desconstruiu. É nesse
sentido que tomo de empréstimo a metáfora em relação à primeira parte da trilogia. A diferença entre
pensar e conhecer estabelece para o pensamento o limiar da coisa em si como fronteira de
inteligibilidade do texto do mundo. Kant soube contornar habilidosamente a censura de ateísmo, pois
o assim chamado arquiteto da "matrix", para Newton, o "dedo de Deus", é apenas um sonho, uma
exorbitância da experiência sensível no "espaço vazio das categorias do entendimento puro", na
remissão da "Crítica da Razão Pura" ao mundo das idéias puras de Platão. A guinada copernicana
consiste na pergunta: "O que posso conhecer?", "quais são, enfim, as condições de possibilidade
desse conhecimento?".
Esse seria um programa de uma "meta-física", que não visa a ultrapassar a física como experiência
científica nos limites do mundo natural, não criaria uma hiper-realidade com base num sujeito
transcendental que pensa a totalidade ou a eternidade de Deus, mas de um pensamento que se auto-
engendra e cria para si um novo território como "caminho seguro da ciência". O que é
essencialmente moderno nisso é que o nomadismo do pensamento metafísico encontra seus limites
numa espécie de nova aurora.
A filosofia kantiana busca um limiar no horizonte de uma clareza que se anuncia como a manhã,
dissipando os fantasmas do submundo das sombras, das crendices, do fantástico, que nos mantêm
atrelados ao medo por meio de conceitos e juízos claros.

A imaginação de Kant colonizou esses outros mundos com habitantes, segundo a idéia de que,
quanto maior a distância do centro, menor a gravidade e, portanto, menor seria o efeito sobre a
inteligência e a moralidade desses seres imaginários. Não seria exatamente o contrário, como
observamos sobre a superfície deste planeta?
De fato, trata-se de uma mera especulação imaginativa, mas a argumentação kantiana é
rigorosamente antitética. Ele parte da contradição entre os limites de nossa existência material
corpórea, quase insignificante diante da infinitude em sua experiência sensível, nossas faculdades de
conhecimento, mas sobretudo de nosso sonho de eternidade espiritual nesta ilha do universo. O
modelo de que ele dispunha era ainda Newton, no qual a gravitação exigiria de nós uma consistência
física robusta que faria o sangue circular de maneira mais lenta, nossa massa e nossos músculos
teriam de ser necessariamente mais fortes para sobreviver nessas condições.
A argumentação busca demonstrar que nossa espécie se encontra num estágio intermediário do
desenvolvimento cósmico, pois é o confronto com essa infinitude esmagadora que destrói, como
afirma, "minha importância como uma criação animal". No século 18, muitos acreditavam que o
cosmo era povoado. A suposição de que apenas um planeta como a Terra fosse povoado ia de
encontro ao princípio do descentramento do pensamento, o homem não poderia estar
necessariamente mais no centro desde Galileu. Esse descentramento do homem seria compensado
por uma colonização estelar imaginária.

Se o projeto homem, nessa arquitetura, só se justifica em razão de sua liberdade, como uma
obra de arte da natureza, o desenvolvimento das novas tecnologias genéticas não estabeleceria
um limite a essa racionalidade?
Kant não descartaria por completo a intervenção nesse material genético, mas partiria do princípio de
que a liberdade, no limite, não pode ser deduzida empiricamente. O homem é, nesse sentido, uma
obra de arte da natureza, mas não de si mesmo. Ele está na posição de se auto-educar do ponto de
vista moral, questionar se os princípios de sua ação têm ou não validade universal, mas haverá
sempre um limite nessa intervenção, sem o qual não podemos mais definir a fronteira do que seja
humano. Podemos mudar nossa moral, mas não nosso genoma.

O terceiro capítulo da "Dialética do Esclarecimento", de Horkheimer e Adorno, sobre


"Juliette", de Sade, ou a moral burguesa kantiana sedimentou uma interpretação do
imperativo categórico como protótipo do fascismo. Qual é o sentido atual do imperativo
categórico, diante de uma maximização hedonista da sensibilidade?
Para mim, trata-se de uma interpretação essencialmente falsa. O imperativo categórico não é a
expressão estática e gélida de um olhar "pervertido" desse sujeito, ele não paira acima de nós como
uma ameaça, mas como uma promessa de liberdade. É preciso ler Kant literalmente para entender
como na "Dialética do Esclarecimento" três coisas incompatíveis se misturam, como se fossem uma
"prova histórica" inequívoca do projeto, para Adorno e Horkheimer, "totalitário" da razão. "Aja como
se seu agir fosse uma máxima universal." Em primeiro lugar, não se trata aqui de uma moral
coercitiva, mas de uma moral da consciência, como se aquilo que desejamos para nós também se
estenda aos demais e mantenha inviolada sua liberdade de agir. Em segundo, é uma moral da
responsabilidade da consciência que reconhece o outro. Em Sade ocorre o contrário, pois a moral
libertina vive parasitariamente, pela violência, ou seja, pela poder coercitivo, às custas da consciência
e da liberdade do outro para anulá-lo. O sadismo exige a vítima, para descartá-la como sujeito, e
nenhum dos libertinos se coloca no papel da vítima.
Por outro lado, a moral da fraternidade libertina é exclusivista, privada, não extensiva aos demais
grupos. Em terceiro lugar, o conceito de esclarecimento do capítulo sobre Ulisses desliza num
equívoco grosseiro sobre o próprio sentido do ato de esclarecer como reconhecimento do outro. Kant
diria, provavelmente, que o protótipo de Ulisses não tem nada a ver com a auto-emancipação do
sujeito esclarecido.
Ulisses seria muito mais um aventureiro, um ilusionista dos sentidos, quando muito um jogador do
destino, pois trapaceia com os troianos, seu truque com o cavalo não é um ato de esclarecimento em
relação ao outro, isto é, de reconhecimento do outro, ou seja, os troianos, mas uma simples trapaça de
sua astúcia. Se entendi bem o que Kant formula com o imperativo categórico, o esclarecimento é um
ato que permite ao outro expressar livremente seu juízo com base nesta universalidade da razão. Para
Kant, a trapaça do cavalo não seria, provavelmente, uma mentira defensável no jogo do livre diálogo.

Onde encomendar
Livros em alemão podem ser encomendados, em SP, na livraria Bücherstube (r. Bernardino de Campos, 215,
Brooklin, CEP 04620-001, tel. 0/ xx/11/ 5044-3735).
José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na Alemanha.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200412.htm

+ livros

Clássico da filosofia contemporânea, "Visão a partir de Lugar Nenhum", de Thomas


Nagel, defende, contra a ciência, a irredutibilidade do dualismo mente-cérebro

Sujeito em primeira pessoa


João de Fernandes Teixeira
especial para a Folha

David Chalmers e Thomas Nagel são os dois filósofos da mente contemporâneos que, remando
contra a maré, resolveram defender seriamente o dualismo mente-cérebro. Em "Visão a partir de
Lugar Nenhum", publicado em 1986 e agora traduzido para o público brasileiro, Nagel, 66, aborda
uma das questões centrais que motivam sua posição dualista: a irredutibilidade da perspectiva em
primeira pessoa para uma perspectiva em terceira pessoa. Em outras palavras, a experiência subjetiva
seria irreconciliável com o discurso da ciência, sempre público e em terceira pessoa. A experiência
subjetiva é incompatível com a visão científica do mundo, que tem uma perspectiva definida; a visão
do sujeito tem a peculiaridade de não estar em nenhum lugar definido, porque nos acompanha e pode
estar em todos os lugares. A visão subjetiva é como um olho desencarnado que olha para o mundo,
uma visão a partir de lugar nenhum e que, paradoxalmente, poderíamos dizer que está "em toda parte
e nenhuma", lembrando do título de um famoso artigo de Merleau-Ponty.

Ser como um morcego


Logo nos primeiros parágrafos de seu livro o autor nos afirma que seu livro "trata de um único
problema: como combinar a perspectiva de uma pessoa particular, inserida no mundo, com uma
visão objetiva desse mesmo mundo, em que a própria pessoa e seu ponto de vista estão inclusos"
(pág. 1). A tensão entre o subjetivo e o objetivo e a natureza da experiência subjetiva e seu lugar no
mundo parecem ser temas recorrentes na obra de Nagel, cujo início pode ser situado em 1974, com a
publicação de seu artigo "What Is It like to Be a Bat?" (O Que É Ser como um Morcego?), que o
celebrizou nos meios acadêmicos e filosóficos americanos. Nesse artigo ele argumentava em favor da
idéia de que nossa linguagem -especialmente a linguagem intersubjetiva da ciência- seria incapaz de
captar a natureza última da experiência subjetiva, no caso, o ponto de vista que um morcego tem
acerca do mundo. Por mais que estudássemos a fisiologia do olho do morcego, não poderíamos saber
o que é ter suas experiências visuais, não poderíamos vivenciá-las ou assumir a perspectiva de
mundo do morcego; poderíamos, no máximo, imaginá-las. No nosso caso, deparamos com uma
experiência consciente que é imediata, todos sabemos que a temos, mas ela é, ao mesmo tempo,
irredutível à linguagem, que, incapaz de descrevê-la plenamente, apenas resvala nela, pois cada um
de nós tem uma perspectiva única sobre o mundo.

Como poderíamos descrever o


gosto do sal para alguém que
nunca o experimentou? No
máximo, o que poderíamos
dizer é que o gosto do sal é
"salgado"

Em nenhum momento Nagel defende um dualismo cartesiano, ou seja, a doutrina que postula a
existência de uma substância imaterial diferente do mundo físico. Contudo, no terceiro capítulo,
percebemos sua inclinação em favor da chamada teoria do aspecto dual, ou seja, a proposta de um
dualismo de propriedades, segundo o qual uma única e mesma porção de matéria, qual seja, o
cérebro, pode instanciar propriedades físicas e, além destas, propriedades mentais ou estados
subjetivos. No capítulo sobre mente e corpo, em que Nagel expõe a teoria do aspecto dual,
encontramos também uma interessante teoria acerca da natureza da identidade pessoal. Trata-se de
um ponto de vista bastante original, baseado na proposição "Eu sou meu cérebro". O cérebro, por ter
propriedades físicas e mentais, de acordo com a teoria do aspecto dual, permite conciliar os aspectos
interno e externo envolvidos na construção de nossas identidades pessoais. Do ponto de vista
externo, ele é garantia de continuidade temporal para minhas experiências subjetivas, mesmo quando
estas estão sujeitas a inesperadas interrupções de memória. Do ponto de vista interno, é ele que
garante uma referência, mesmo que inescrutável, da idéia de um "eu subjetivo". "Eu sou meu
cérebro" faz com que a sucessão de experiências subjetivas se torne minha -que "pertença" a um eu.

Livre-arbítrio
Os outros capítulos do livro de Nagel podem ser lidos como a continuação desse longo exercício
filosófico de mostrar o aspecto irreconciliável das perspectivas subjetiva e objetiva. O autor percorre
vários temas filosóficos importantes, como, por exemplo, a questão da natureza do conhecimento, as
relações entre pensamento e realidade etc. No capítulo sete é discutida a questão da liberdade
humana, ou seja, do livre-arbítrio como base para a moralidade e para a responsabilidade. A liberdade
também é considerada a partir de uma duplicidade de perspectivas subjetiva e objetiva, da liberdade
(autonomia) própria e da liberdade dos outros (concebida em termos de responsabilidade). O
determinismo da ordem natural, enquanto perspectiva objetiva, é apresentado num confronto com a
liberdade e autonomia que caracterizam nossa perspectiva acerca do mundo e de nossas ações. Há
uma ambigüidade que percorre o texto de Nagel e faz com que o leitor oscile, por vezes, entre o
fascínio e o desapontamento. O livro fascina por ser bem escrito, com uma prosa filosófica leve e
agradável, e por abordar temas instigantes. Não há dúvida de que a questão da perspectiva de
primeira pessoa e da natureza da experiência consciente continua sendo o ponto cego das filosofias
da mente materialistas. Estas continuam se valendo de promessas da neurociência -promessas que
ainda não foram cumpridas-, o que sugere que problemas como, por exemplo, o da natureza da
consciência continuarão por muito tempo sendo o último bastião dos dualistas.

Assimetria
Tampouco podemos duvidar de que a experiência subjetiva nos apresenta aspectos inefáveis, que
escapam da teia da linguagem. Como poderíamos, por exemplo, descrever o gosto do sal para alguém
que nunca o experimentou? Certamente qualquer descrição seria redundante e, no máximo, o que
poderíamos dizer é que o gosto do sal é "salgado". A descrição aproximada do gosto do sal
pressupõe, como pano de fundo, uma experiência comum partilhada por duas pessoas, sem o que ele
permaneceria inescrutável -tão inescrutável quanto as experiências subjetivas do morcego.
O desapontamento surge quando consideramos a proposta dualista de Nagel. O aspecto mais
problemático do dualismo é o fato de ele ser um programa filosófico sem agenda.
Ou seja, tudo o que o dualista pode fazer é tentar provar a existência de uma assimetria entre o físico
e o mental, mesmo que este seja uma propriedade de algumas coisas físicas, como supõe a teoria do
aspecto dual. "O mental não é redutível ao físico" -essa seria a única proposição que comporia as
teorias dualistas. A mente seria excluída do domínio da ciência e nada poderíamos afirmar acerca da
natureza do mental além do fato de ele ser distinto da matéria.

João de Fernandes Teixeira é professor no departamento de filosofia da Universidade Federal de São


Carlos e autor de, entre outros livros, "Filosofia e Ciência Cognitiva" (editora Vozes).
Visão a partir de Lugar Nenhum
418 págs., R$ 47,50 de Thomas Nagel. Trad. Silvana Vieira. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho,
330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3241-3677).

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200413.htm

+ livros

Eduardo Giannetti da Fonseca lembra a influência de Nagel em sua formação e diz


que ele pode ajudar os filósofos brasileiros a superarem seu "vício ocupacional"

Humildade analítica, arrogância dialética


Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha
Em enquete do caderno Mais! [publicada em 11/4/1999], que pedia a alguns dos principais
intelectuais brasileiros que listassem o que seriam para eles os dez mais importantes livros do século
20, Eduardo Giannetti da Fonseca pôs "Visão a partir de Lugar Nenhum", de Thomas Nagel, no topo,
à frente de clássicos como "O Mal-Estar na Civilização", de Freud, e "A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo", de Max Weber.
Como mostra na entrevista a seguir, os motivos do economista e professor do Ibmec -que fez a
revisão técnica da edição brasileira da obra- para essa escolha são muitos.

Por que "Visão a partir de Lugar Nenhum" é o livro mais importante do século 20?
Foi o livro, dentre aqueles editados no século 20, que mais me influenciou, o livro mais importante
em minha formação. As questões mais interessantes da epistemologia, da ética, da filosofia da mente,
da linguagem, da metafísica, da filosofia política se prestam a uma elucidação a partir desse conflito
entre o ponto de vista interno do sujeito e o ponto de vista da objetividade, ou seja, a tentativa de se
ver de fora, a partir de um ponto de vista neutro, impessoal.
Acho que ele conseguiu unificar as grandes preocupações da filosofia a partir de um fio subjacente,
que é essa dualidade que ele elabora e que lhe permite cortar transversalmente os mais diversos
temas. Nagel é um dos autores com os quais, quando o leio, me sinto diminuído, porque ele me
parece de uma clareza, consistência, rigor, elegância, que eu jamais vou alcançar, ele realmente me
oprime, mas ao mesmo tempo me instiga, me provoca a ser melhor.
Ele me dá essa clara sensação de quanto me falta como pensador e autor. Uma mistura de opressão e
provocação intelectual. Acho Nagel o mais importante filósofo vivo hoje no mundo. Na tradição
analítica, que é a de Nagel, diferentemente da tradição dialética (mais continental), a questão importa
mais do que a história da idéia. Ele, por exemplo, escreveu um livro inteiro de introdução à filosofia
["What Does It All Mean", lançado no Brasil pela editora Martins Fontes com o título de "Uma
Breve Introdução à Filosofia"] sem se referir a nenhum filósofo, porque ele quer mostrar para o
estudante a importância do problema filosófico [em si]. Acho essa abordagem magnífica, essa é a
maneira de fazer filosofia, senão você descamba para o que é o vício ocupacional do filósofo
brasileiro, que é a exposição sedentária de doutrinas alheias, para usar a expressão de Mário de
Andrade. O que Nagel faz é o inverso disso. O problema tem precedência sobre a história das idéias.

O sr. diz que o lançamento de "Visão a partir de Lugar Nenhum" pode marcar uma boa
oportunidade para "termos uma filosofia mais esclarecida no Brasil". A seu ver, quais são as
principais carências intelectuais nacionais que esse livro pode ajudar a sanar?
Sobretudo uma filosofia que se preocupe mais com problemas do que com reconstruções
historiográficas. Também a questão da clareza; o filósofo tem que ser claro e saber convencer quanto
à relevância dos problemas que ele traz. Uma coisa que Nagel faz -e que acho que pode inspirar um
jovem a se preocupar com filosofia- é mostrar que os problemas da filosofia são pertinentes, são
coisas que qualquer pessoa lúcida pode perceber por si mesma e começar a pensar, porque são coisas
que importam. Para mim, como estudioso de economia, a filosofia relevante para as ciências é essa
[da linha analítica], e não a continental, dialética. E há muita empáfia, muita confusão entre
profundidade e obscuridade. Acho que a história da filosofia tem seu papel, é muito importante que
seja feita, mas isso é diferente de filosofia propriamente dita, o historiador de idéias quer resgatar o
sentido original de uma obra em seu contexto intelectual e prático.
Agora, o que nos falta no Brasil é o filósofo que tenha capacidade de enfrentar problemas filosóficos
e de pensar a partir de problemas, e não de uma reconstrução historiográfica.

Como se deu seu encontro com o livro?


Eu estudei filosofia na graduação [Giannetti se formou em ciências sociais e economia na USP], mas
em meados dos anos 70, no Brasil, filosofia era sinônimo de filosofia continental européia, franco-
germânica. Estudei muito Marx e, para entender Marx, Hegel. Eu era marxista, na minha geração não
havia como não ser marxista, todos nós disputávamos para saber qual era o verdadeiro e ortodoxo
marxista. Ao ir para a Inglaterra, li três vezes mais filosofia do que economia, mas percebi que, todos
os autores que eu tinha estudado aqui na minha juventude, era como se não existissem. A própria
Escola de Frankfurt, o objeto de minha grande admiração então, não era lá nem considerada filosofia,
mas sim sociologia.
Lá havia uma outra tradição, que eu desconhecia quase por completo, que era a filosofia analítica.
Para justificar minha existência acadêmica lá, tive que recomeçar do zero e começar a estudar,
aprender e até participar dessa abordagem. Descobri Nagel nessa época, mas o li com mais afinco
depois de escrever "Vícios Privados, Benefícios Públicos" (1993). A presença de Nagel já é muito
forte em "Auto-Engano" e em "Felicidade" [ambos lançados pela Cia. das Letras].

É correto dizer que Nagel preenche, em seu desenvolvimento intelectual pessoal, um papel
estratégico de intermediação entre o rigor argumentativo da filosofia analítica e os grandes
temas da tradição crítico-dialética (em que o sr. se criou), até mesmo do romantismo, por
exemplo quando ele denuncia os excessos da ciência moderna?
Os filósofos dialéticos, da tradição hegeliana, e o próprio Marx olham para a ciência com uma
arrogância, um ar de superioridade, como se os cientistas fossem meros empiristas, positivistas.
Hegel, na "Filosofia da Natureza", se dá ares de que entende mais de física do que Newton. Na
tradição analítica, olha-se com humildade para a ciência e busca-se aprender o que a ciência pode
oferecer para a reflexão filosófica. O filósofo não se põe num pedestal olhando para os meros
cientistas como se fossem ratinhos de laboratório que não sabem muito bem o que estão fazendo e
pensando.
Nagel de novo aí tem uma posição muito interessante. Ao mesmo tempo em que respeita
enormemente as conquistas do pensamento científico, ele mostra os seus limites, o que nós podemos
esperar da ciência. E ele acaba mostrando que as questões que mais nos importam a ciência jamais
nos responderá, são as perguntas acerca do sentido, do bem, do que importa. Mas não se coloca
naquela posição frankfurtiana de olhar para os cientistas como se fossem bebês incapazes de dar um
passo sem tropeçar.

Mas Nagel denuncia o "cientismo"...


Sim, ele critica o cientismo, isto é, transformar a ciência em fé e dogma, a idéia de que a ciência vai
dar respostas para as perguntas da filosofia. Eu resumiria a posição de Nagel dizendo que não há
nada mais irracional do que ignorar os limites da racionalidade. Há uma interioridade no mental que
é diferente da interioridade do cérebro dentro da caixa craniana. E a ciência é constitutivamente
incapacitada para lidar com essa interioridade do sujeito. Esse é o irredutível da experiência humana.
E ele é o que mais importa, é nesse plano que nossa vida transcorre. Ele dá até um exemplo, em
"Uma Breve Introdução à Filosofia": imagine uma pessoa comendo chocolate -e tudo o que o
chocolate significa para ela, em termos de ressonâncias, de memória, de associações subjetivas- e um
cientista que queira ter uma "visão científica" do cérebro sob o estímulo do chocolate.
Imagine se um cientista consegue abrir, lamber esse cérebro e sentir o gosto de chocolate; o gosto de
chocolate que ele vai sentir não é o mesmo da pessoa, é apenas um gosto de chocolate que o cérebro
da pessoa tem enquanto ela como chocolate. E há um poema de um heterônimo de Fernando Pessoa,
Álvaro de Campos ["Tabacaria"], que diz: "Come chocolates, pequena;/ Come chocolates!/ Olha que
não há mais metafísica no mundo senão chocolates./(...) Pudesse eu comer chocolates com a mesma
verdade com que comes!". É exatamente a mesma coisa que Nagel diz!

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3005200415.htm
+ livros

Hegemonia norte-americana é discutida em ensaios do cineasta Michael Moore, do


sociólogo Immanuel Wallerstein e do lingüista Noam Chomsky

O império balança, mas não cai


Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Três livros abordando o mesmo assunto -a atual e irrefreada beligerância de Washington- escritos por
autores norte-americanos com diferentes perfis ideológicos e estilísticos, mas visceralmente anti-
George Bush e seus aloprados e reacionários falcões. Os EUA são um país sobre o qual o mundo
inteiro está compelido a tematizar e decifrar. Afinal que esfinge é essa? Michael Moore coloca em
foco o petróleo na relação EUA-Arábia Saudita e os laços de amizade entre a família Bush e Bin
Laden. O chato é quando o autor se mete a nos dar conselhos, a nós, brasileiros: "Parem de gastar
dinheiro com o Exército". Ele quer um Brasil desarmado, mas a quem interessa um país com farturão
de terra, de sol e de água desguarnecido de Forças Armadas? Segundo Moore, tudo o que aconteceu
de bélico lá com os EUA, antes e depois do 11 de Setembro, está vinculado ao petróleo. De seus
compatriotas, 80% não sabem apontar no mapa onde fica o Iraque. A verdade é que os Estados
Unidos param em pouco tempo sem as últimas reservas petrolíferas do Oriente Médio, enquanto por
aqui os badamecos no poder acreditam que esse combustível fóssil é eterno e infinito. Toda a
agricultura dos Estados Unidos está baseada no petróleo. E, diz o autor, não me venham com essa
conversa mistificadora de que o hidrogênio é fonte de energia. E mais: a fissão nuclear é coisa de
maluco. Essa alternativa não substitui o petróleo. A geopolítica da energia, e o que nela existe de
capacidade de matar, irá se transladar dos desertos do Oriente Médio para as florestas úmidas dos
trópicos. Os brasileiros que se cuidem. Nossa maldita "dívida externa", ao contrário do que
pontificam os economistas perfunctórios, não é apenas dispositivo monetário, mas sim instrumento
de conquista territorial. Discípulo de Paul Lazarsfeld, o sociólogo Immanuel Wallerstein desmonta a
ilusão de que os norte-americanos são amados pelo mundo afora. Essa ilusão implodiu em 11 de
setembro, marco do declínio dos Estados Unidos, e que não teve nada a ver com o Iraque, assim
como é mentira a existência das armas letais de posse de Saddam Hussein. "As pessoas responsáveis
pelo ataque não representavam uma potência militar. Eram membros de uma força não-estatal." Para
a megalomania do império era inconcebível um ataque ao território norte-americano. Até então as
invectivas contra os EUA eram puramente verbais, por conseguinte os norte-americanos poderiam
dar-se ao luxo de ignorá-las; todavia, a partir de 11 de setembro de 2001, eles são obrigados a se
perguntar: por que nós somos tão odiados?

Semântica do imperialismo
Autodefinindo-se intelectual de esquerda, mas não marxista, Wallerstein não pode ser tachado de
antiamericanismo paranóico e conspiratório, pois está longe de acreditar que os EUA sejam a causa
das misérias e injustiças do mundo. "Os Estados confiam em si próprios, mas não confiam em mais
ninguém." Supremacia militar não basta para assegurar o domínio do poder mundial. É preciso
legitimidade. Bush e os seus belicosos falcões (aliás, quase todos civis) estão convertendo os EUA,
aos olhos do mundo inteiro, numa nação de satã, aterrorizadora, capaz de provocar uma catástrofe de
proporções inimagináveis.
O chato é quando Moore se
mete a dar conselhos aos
brasileiros: "Parem de gastar
dinheiro com o Exército"

O que apavora Wallerstein é a semântica da palavra "imperialismo", a qual até então significava algo
eticamente pejorativo e politicamente deslegitimador. Mas eis que agora Bush e seus falcões
começam a dar conotação positiva ao termo "imperialismo". A potência imperialista do dólar é
assumida sem o menor constrangimento, e isso é um sintoma alarmante de violência e degradação.
"A verdadeira questão não é se a hegemonia dos EUA está em declínio, mas sim se os Estados
Unidos conseguirão encontrar uma fórmula de cair graciosamente com danos mínimos para o mundo
e para si próprios." O curioso é ele ter se lembrado da coincidência: foi também num dia 11 de
setembro que a CIA metralhou Salvador Allende no palácio, no Chile, em 1973. De Noam Chomsky,
tido como intelectual antiamericano pelas corriolas de Reagan e Bush, vem a advertência barra-
pesadíssima de que os Estados Unidos e nós todos, a humanidade inteira, estamos diante do seguinte
dilema: ou a hegemonia imperialista do "fundamentalismo mercadológico" é erradicada, sabe-se lá
por que meios, ou senão a sobrevivência da espécie humana estará biologicamente comprometida.

Pulsão antinatureza
Isso nos remete a outro dilema que foi colocado por pensadores humanistas, o dilema entre o
socialismo ou a barbárie. Mas Chomsky não se apresenta como um intelectual marxista interessado
na substituição do modo de produção capitalista por um socialista. O traço que o define é o seu
antiimperialismo, aliás esse antiimperialismo norte-americano é bastante radical e verdadeiro,
singularizando-o no meio do pessoal de esquerda, inclusive marxista. Chomsky sente vergonha e
indignação diante de um país imperialista, cometendo atrocidades terríveis.
Ele fornece como exemplo eloqüente o ecológico Protocolo de Kyoto [acordo internacional que
pretende regular as emissões de gases que provocam o efeito estufa] e a "possibilidade de
sobrevivência decente para nossos netos". O presidente Bush, em sua pulsão antinatureza, foi contra
reduzir a poluição do carvão mineral sob o argumento de que as medidas preconizadas no protocolo
prejudicariam a economia norte-americana.
A cúpula da elite dirigente norte-americana está empenhada em manter a hegemonia. Ela atribui
valor zero (calculado em dólar e voto) às gerações futuras. Essa ideologia dos ricos em minoria
corresponde à política externa agressiva da potência vilã, cujo imperialismo projetado pelas grandes
empresas é adversário do amor e da paz.
Esse quadro sombrio e realista pintado por Noam Chomsky aponta no entanto para uma luz no fundo
do túnel: a opinião pública. E, nesse aspecto, ele não quer exercitar o estilo sutil da ironia quando
afirma que a "segunda potência" hoje é a opinião pública. Essa "segunda potência", que não se
identifica a um país, como foi o caso da extinta União Soviética, forçará a escolha a favor da
sobrevivência, não obstante o controle midiático do poder imperialista, ou seja, a conexão mídia e
Casa Branca.
Chomsky não tem receio algum de ser romântico: a única maneira de romper o monopólio da
violência exercido pelo imperialismo norte-americano -e o seu "sócio júnior, a Grã-Bretanha"- é por
meio da opinião pública, dos movimentos populares, dos protestos, da cultura dos direitos humanos e
do sentimento de solidariedade. Fora daí não há outra saída para evitar a catástrofe, segundo o
renomado lingüista, que deve estar com a pulga atrás da orelha aguardando os resultados das urnas
presidenciais neste ano de 2004 nos EUA.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora
(MG) e autor de, entre outros livros, "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela).
Cara, Cadê o Meu País?
276 págs., R$ 34,00 de Michael Moore. Vários tradutores. Ed. W11 (r. Ernesto Nazaré, 31, CEP 05462-000,
São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3812-3812).
O Declínio do Poder Americano
316 págs., R$ 40,00 de Immanuel Wallerstein. Trad. Elsa T.S. Vieira. Ed. Contraponto (r. Franklin Roosevelt,
23, sala 1.405, CEP 20021-120, RJ, tel. 0/xx/21/ 2544-0206).
O Império Americano
288 págs., R$ 49,00 de Noam Chomsky. Trad. Regina Lyra. Ed. Campus (r. Elvira Ferraz, 198, CEP 04552-
040, São Paulo, SP, tel. 0800-265340).

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