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RELSI HUR MARON

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A foto utilizada na capa é de autoria de Fabrício Marcon

Publicada no Flikr

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Sob licença Creative Commons

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licença citada acima. Eu também gostaria que fosse mantido o link original do
arquivo, então, se você puder, ao invés de distribuir esse arquivo em outros
servidores, distribua o link original. Você pode criar histórias derivadas dessa, utilizar
ou citar seus personagens e acontecimentos, nesse caso, gostaria que me fosse
enviado uma cópia para que eu possa ler também.

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Para Alana, por todo amor e apoio.

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São os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpa-os.
As primeiras vozes do sabiá não tem a doçura dos seus cânticos de amor.
(Álvares de Azevedo – Lira dos Vinte Anos)

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Prólogo

O barulho da chuva nas poças de água contrastava com o barulho das


passadas largas de duas pessoas que subiam ligeiramente a Av. Borges de
Medeiros em direção ao centro. Um homem e uma mulher, Coronel Paulo Assis e
Tenente Claudia, oficiais do exército. O barulho do cantar de pneus de um carro faz
o casal sair correndo, não olham para trás, apenas correm. Aterrorizados,
arrependidos. Eles entram na rua C.el. Fernando machado em direção da Cúria
Metropolitana e podem sentir o calor dos faróis do carro em suas costas. O Coronel
Assis para por um instante e saca sua arma, olha para trás e nota que o carro não
está mais os seguindo. Desistiu? Estão a salvo? Não. Ele sabe que não. É uma
caçada, e eles são a caça. É apenas uma trégua, uma pequena pausa para que o
ritmo de seus corações volte a dar-lhes alguma esperança de sobrevivência. A
chuva cessa e um silêncio aterrorizante se faz sentir. O barulho da respiração
ofegante dos dois oficiais pode ser ouvido no ar. A Tenente Claudia toma a mão de
seu colega e os dois continuam sem correr, apenas a passos largos. Na esquina da
rua Espirito Santo: o caçador à espreita. Preparando o bote final. Ao lado do carro
preto, o sujeito em pé acende um cigarro. Ele traja um sobretudo escuro e um
chapéu de feltro da mesma tonalidade. A luz dos faróis acende, os dois oficiais
param com as mãos protegendo os olhos da luz intensa. Ele os encontrou, os fez
fugir, os fez temer. Os fez pensar que estavam a salvos, apenas para deliciar-se
com aquele momento, para poder alimentar-se do medo e da angústia dos dois
fugitivos. Claudia começa a chorar. O Coronel Assis solta a mão de sua colega e
saca novamente sua arma ao mesmo tempo que o sujeito também saca uma arma
de dentro do longo casaco preto que agora revela-se uma capa. Assis coloca-se à
frente de Claudia e dispara sua arma contra o sujeito que apenas desequilibra-se
com o impacto dos projéteis, os dois ficam perplexos quando o sujeito começa a
caminhar em direção deles como se nada tivesse-lhe atingido. Com a metade do
rosto encoberto pela aba do chapéu, ele aproxima-se dos dois. Eles não se movem,
estão perdidos, e como bom soldados resolvem aceitar seu destino, não porém sem
desferirem um último ataque, apenas em nome da honra. Assis joga sua arma para
o lado e dando um forte grito joga-se contra o sujeito tentando desferir-lhe um golpe

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com os pés, este esquiva-se e agarra Assis pelo casaco e com a coronha de sua
arma golpeia-o na cabeça, larga-o no chão e começa a chutar-lhe o tórax, para por
um instante e aproxima-se um pouco do coronel que pode fitar diretamente sua cara,
a fisionomia de Assis muda para uma expressão de pânico como se estivesse diante
da própria morte; o sujeito sorri e dispara sua arma contra Assis atingido-lhe no
peito. A tenente Claudia encontra alguma força para reagir diante a cena de seu
amigo sendo friamente assassinado, levanta-se e começa a fugir correndo em
direção a Av. Duque de Caxias, porém as forças que lhe restam não são suficientes
para fazerem ela vencer a íngreme subida da rua Espírito Santo; Claudia tropeça e
cai; fica de joelhos e começa a tatear suas costas em busca de sua arma, vem-lhe a
mente a imagem da mesma caindo ao chão durante a perseguição algumas quadras
antes, resta-lhe somente um coldre vazio, um sentimento de medo e derrota. O
sujeito do carro dispara para cima, Claudia joga-se no chão com as mãos na cabeça
pensando estar ele atirando contra ela. Deitada no chão ela ouve passos do sujeito
aproximando-se, parecem ecoar numa cadeia interrupta de medo e pavor; ela fecha
os olhos e serra os punhos, e com uma vontade inabalável de sobreviver, Claudia
levanta-se e investe contra o sujeito que está parado a uma pequena distância dela,
ela joga-se contra ele e começa a golpeá-lo no peito com socos enquanto o sujeito
tenta imobilizar seus braços. Mais um tiro é disparado. Claudia cessa seu ataque.
Uma garoa fria começa a cair como um fino véu que saíra para dançar na noite
escura. No meio da rua duas pessoas abraçadas como se estivessem amando. Uma
delas cai ao chão. Uma poça de sangue começa a formar-se rapidamente ao redor
da tenente Claudia. O sujeito abaixa-se até ela, pega-lhe pelos cabelos e arrasta-a
até próximo a esquina onde está o corpo do Coronel Assis, já sem vida. Uma trilha
fina de sangue vai se formando por onde passa o corpo inerte de Cláudia sendo
arrastado pelo sujeito. Claudia volta a ficar consciente, porém suas forças não são
suficientes para que ela esboce qualquer tipo de reação, a dor que lhe fere as
entranhas a inibem de qualquer coisa, seu grandes e brilhantes olhos não passam
agora de duas pequenas e mórbidas esferas, ela olha para o céu enquanto a fina
garoa lava-lhe o rosto, as gotas da chuva que começam a formar-se em sua face
começam a confundir-se com as gotas de suas próprias lágrimas, sim, pois agora só
lhe resta chorar.

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Chegando até onde está o corpo do Coronel Assis, o sujeito solta os cabelos de
Claudia fazendo com que sua cabeça vá bruscamente de encontro ao asfalto frio da
avenida. Claudia sente alguns de seus ossos cranianos trincarem, mas de que
importa isso agora para quem está a pouco de morrer por hemorragia interna, sim,
ela sabia de seu fim, assim como sabia que seu carrasco era uma pessoa
especialista naquilo que fazia, se ele a quisesse morta já teria o feito, mas não, ele
queria-a consciente, sem reação, mas consciente, e ela sabia o porquê.
O sujeito ajoelha-se no chão, aproxima-se do rosto dela e fala:
- Você tem duas opções. – Diz ele ao ouvido da tenente fazendo exalar de
sua boca um terrível odor de carne podre, Claudia tenta virar o rosto porém o sujeito
a detém. – Me diz onde está o livro e eu mato você agora, rapidamente como eu fiz
com seu amigo, ou levo você comigo e a deixo agonizando até me dizer o que
quero.
- Vá para o inferno! – Diz Claudia com dificuldade, devido ao sangue que,
internamente, já tomava conta de um de seus pulmões.
- Por quê? Se eu vim de lá agora. – Diz o sujeito soltando uma terrível
gargalhada. O estrondo de um trovão confunde-se com a risada deixando-a mais
forte; neste mesmo instante a garoa dançarina dá lugar a uma chuva torrencial. O
brilho dos relâmpagos, fazem revelar a cara demoníaca do sujeito. A pele de uma
tonalidade marrom escura, repleta de erupções cutâneas, exala pelos poros uma
espécie de vapor contaminando o ar com um odor de carne podre igual ao seu
hálito, sua face demoníaca reflete o terror naquela sombria noite, a verdadeira
encarnação do mal se mostra para a tenente naquele instante, no lugar dos olhos
ele tem duas esferas negras que extinguem qualquer sinal de vida daquele ser. Ele
aproxima-se de Claudia e lambe-lhe o rosto com sua língua áspera e gosmenta,
Cláudia fita-lhe os olhos e cospe em sua cara, o sujeito dá outra risada e
bruscamente joga a cabeça de Claudia contra o chão, a dor causada pelo impacto
quase faz com que ela perca os sentidos, mas Claudia fica consciente, o sombrio
ser é meticuloso e a quer consciente. Ele arranca um de seus próprios olhos e
esmaga-o com a mão, fazendo escorrer um liquido preto que cai no rosto de Claudia
e começa a penetrar em suas narinas como um verme escuro.

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Ela grita. A dor dentro de seu crânio é insuportável, era como se a coisa estivesse
comendo-lhe o cérebro. O demônio cobre-lhe a boca com a mão para impedir que
ela continue gritando. Claudia contorce-se tentando livrar-se das mãos dele, então o
eminente soar de uma sirene de viatura de policia aproximando-se faz o demônio
soltar a tenente. Ele olha em direção a um posto de policia que tem próximo dali
mas não nota movimentação. Volta-se então para Claudia agonizante no chão e
sorri. – E quem disse que precisamos de você. – Diz ele disparando um segundo
tiro contra a tenente. – O livro irá voltar a quem realmente pertence, está escrito,
não pode ser mudado. – Termina o demônio. Ele olha para o carro, que não tem
ninguém dentro, e faz um gesto com a mão; o carro liga o motor move-se até ele.
Ele entra e o carro e parte enquanto as luzes de uma viatura de policia aparecem na
esquina da Borges com a Fernando Machado. A viatura Chega na esquina aonde se
encontram os dois oficiais e pára, de dentro saem dois policiais. Claudia, agonizante,
olha para lado e vê o corpo sem vida daquele que um dia fora seu melhor amigo,
uma dor insuportável parece rachar seu crânio ao meio, ela perde os sentidos por
alguns instantes até que consegue ouvir algumas vozes ao seu redor, muito fracas,
porém. Abre os olhos com dificuldade e consegue assimilar dois borrões
movimentando-se perto do corpo de seu amigo. Ela ainda tenta dizer algumas
coisas quando os dois vultos aproximam-se dela, porém a dor volta, tirando-lhe a
única força restante. Resta-lhe somente a escuridão e o arrependimento por ter se
envolvido com aquele livro.
Parada de pé ao lado de seu corpo, Claudia observa os dois policias tentando
reanimá-la. Ela já imaginara que fosse assim: morria-se e a alma ficava observando
parada ao lado do corpo esperando por uma oportunidade para voltar. Ela, porém,
não teve essa oportunidade, nem seu amigo Assis que jazia inerte sobre uma poça
de sangue. Sua alma não estava ali, Claudia teria que partir sozinha então. Deu uma
última olhada em seu corpo, já abandonado pelos dois policiais que agora fumavam
um cigarro encostados na viatura. O que ela não daria por uma última tragada
agora. Esse foi seu último pensamento antes que um vento, vindo da direção do rio,
a levasse arrastando pelo céu escuro. Um dos policiais fechou seu casaco até em
cima por causa da rajada de vento fria.

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- Acho que a alma dela está rondando por aqui ainda – Disse o policial
Fazendo o sinal da cruz. Seu parceiro de farda apenas olhou-o e sorriu.

1.
O velho e esquálido gato Lester lambe um pedaço de pizza que sobrou na
bandeja abandonada em cima da pequena mesa de centro que fica entre a televisão
e o sofá, em cima de uma das guardas deste, um cinzeiro, quase transbordando de
tocos de cigarro, contém um cigarro aceso, ao seu lado o maço de cigarros vazio. O
barulho de uma descarga de banheiro assusta o velho gato que sai de cima da
pequena mesa abandonando a sua refeição, é seu dono que sai do banheiro e
dirige-se em direção do sofá da sala. Não é um sujeito muito grande, e não podemos
dizer também que seja o menor dos homens da terra. Diria que herdou a altura da
família de sua mãe que nunca ultrapassara os 1,80 metros, ele próprio estava na
faixa dos 1,77 bem distribuídos em um corpo não muito magro, diria que em forma,
apesar dele não freqüentar academias de ginástica, creio que herdara isso da
família de seu pai, porém seu aspecto físico não importa-nos muito, apenas
interessa saber que esse homem é dono de uma das mentes mais extraordinárias
que existem; dotado de um raciocínio lógico muito apurado ele sai-se muito bem no
que faz, seu nome é Carlos Andriatti, delegado titular da delegacia de homicídios da
cidade de Porto Alegre, e pode-se atestar com toda certeza que sua aparência
decadente não condiz nem um pouco com sua personalidade e seus talentos.
Trajando apenas um roupão encardido e cuecas, Carlos senta-se no sofá,
pega o cigarro e tira uma longa tragada deste. Tateia debaixo das almofadas do sofá
até encontrar o controle remoto da televisão. Liga o aparelho e começa a passar os
canais até parar em um que está passando um filme, Carlos atira o controle remoto
em um canto do sofá, estende as pernas em cima da pequena mesa à sua frente e
fica assistindo ao filme enquanto termina de fumar seu cigarro.
O gato Lester reaparece na sala novamente, pula no colo de Carlos que pega-o com
uma mão e arremessa-o em um canto da sala sem tirar os olhos da televisão; o gato
volta e pula em cima da mesinha onde está o pedaço de pizza que lambia antes,
Carlos notando a intenção do gato, chuta-lhe de cima da mesa, levanta-se e pega o

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pedaço de pizza almejado pelo felino. “Querendo me passar a perna pulguento?” Diz
Carlos enquanto enfia o pedaço de pizza dentro da boca. O telefone toca. É da
delegacia, comunicando que houvera um duplo homicídio no centro e que sua
presença era imprescindível.
Depois de ter sido colocado a par da situação, Carlos vestiu-se e saiu. A chuva
parecia que não ia dar trégua naquela noite, mas para ele nada poderia ser pior do
que ficar em casa olhando Charles Bronson em Desejo de Matar sabe-se lá qual
número, na companhia de seu velho gato. Primeiro achou estranho lhe chamarem
com urgência justo na noite em que não estava de plantão; o inspetor poderia tomar
conta da situação muito bem, depois restaria a ele ler o relatório. “Policial 24 horas
por dia. Quem inventou isso não tinha mesmo o que fazer”. Pensou Carlos consigo.
Fora em outros tempos, qualquer chamado desses no meio da noite seria motivo de
uma euforia enorme, mas o tempo de serviço já estava começando a frear o impulso
aventureiro de Carlos, e para ele, aquele era apenas mais um de tantos casos que
ele teria de atender. Toda a informação que lhe passaram era a de que tinham
encontrado dois corpos na rua Fernando Machado esquina com a Espírito Santo. O
porteiro do prédio estava com os olhos grudados na televisão e nem notou sua
saída.
O delegado Carlos Andriatti pode ser considerado uma pessoa normal, e
como toda pessoa normal trata de cuidar da sua vida da forma mais tranqüila
possível. Aos dezoito anos ingressou na faculdade de psicologia, porém trocou de
curso quando se apaixonou por uma garota do curso de direito. Após a faculdade,
continuaram juntos por algum tempo. Enquanto ela optou por fazer o teste para
entrar para a academia militar, Carlos fez concurso para delegado de policia
passando no primeiro teste, ela teve que esperar mais um ano ainda até que
conseguisse ingressar na academia militar. Resolveram morar juntos no
apartamento de Carlos durante esse período de espera; Separaram-se depois de
menos de seis meses de convívio sob o mesmo teto, com a alegação que deveriam
dedicar-se mais as suas carreiras. Depois disso, Carlos nunca mais teve um
relacionamento firme, suas únicas companhias freqüentes são: O gato Lester, que
ganhou de sua mãe para afastar os maus espíritos, e a própria mãe, que vai todo o
dia a seu apartamento para fazer a limpeza e especular sobre a vida do filho varão.

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Carlos passou no curso para delegado como um dos primeiros da turma o que lhe
valeu o posto de titular do departamento de homicídios da capital, após concluir o
treinamento. Como delegado titular do departamento de homicídios, nunca houve
um caso que Carlos não encontrasse uma explicação lógica para todos os
acontecimentos. Porém como toda a regra tem um exceção, ele acabaria
encontrando a sua.

2.
Palácio Piratini, sede do governo do estado do Rio Grande do Sul. Duas horas
da manhã. Em um dos cômodos da parte residencial do palácio, um homem e uma
mulher se entregam calorosamente a atividade que faz parte da vida de todos os
seres: o acasalamento para perpetuação da espécie, se bem que nós os seres
humanos fazemos disso uma coisa bem mais divertida, e quase nunca para seu
propósito real. A mulher esforça-se para que seus gemidos de prazer não ganhem
amplitude suficiente para ultrapassar as espessas paredes do palácio, pois na
posição que ocupa, viria a ser uma situação muito desagradável se descobrissem
que ela dava-se ao luxo de ter momentos íntimos com outro homem enquanto seu
marido, o governador, ausentava-se. O barulho de um telefone celular interfere os
sussurros de prazer. “Deixa tocar” sussurra a primeira dama ao ouvido do seu
amante, e em seguida introduz a língua em seu ouvido. Os movimentos dos dois
corpos tornam-se mais ligeiros. A expressão de sofrimento prazeroso na face da
mulher denuncia o êxtase. O telefone celular começa a tocar novamente dentro de
um paletó jogado ao chão. O homem interrompe seus movimentos por um instante,
a mulher protesta falando em seu ouvido: “Deixe tocar!” Implora ela puxando o
homem contra seu corpo suado. O telefone, que havia cessado por uns instantes,
volta a tocar e o homem levanta-se.
- Não posso! – Exclamou ele. Delegado Antônio Leal, chefe da segurança
do Palácio do governo, e segurança pessoal da família do governador. – Pode ser
coisa séria. – Terminou ele enquanto vestia as cuecas. A mulher vira-se para ele,
que já está de calças sentado na cama calçando seus sapatos, e começa a

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acariciar-lhe as costas com a mão, enquanto a outra passeia por entre suas próprias
pernas num frenético exercício erótico.
– Pervertida! – Disse Antônio baixinho já quase completamente vestido. A
primeira dama deu-lhe as costas e continuou acariciando-se na cama. Notou que
Antônio tentava ser o mais silencioso possível enquanto abria a porta e começou a
gemer intensamente em voz alta; Antônio fechou a porta novamente e voltou-se
para ela com ar de desaprovação.
- Vai voltar para o ninho amor? – Perguntou a Primeira Dama com o dedo
indicador chamando por Antônio.
- Me desculpe querida, mas infelizmente nem todos tem o privilégio de
mamar nas tetas do povo, alguns tem que trabalhar por esse povo.
- Nossa que amor de servidor público mais dedicado esse! – Disse ela
levantando-se inteiramente nua indo em sua direção. – Sinto-me mais segura
sabendo que tem um homem destes, destemido e gostoso, cuidando das ruas de
Porto Alegre. – Completou ela enquanto endireitava o nó da gravata de Antônio.
- Se você já terminou eu gostaria de ir. – Disse Antônio descontente.
- Pode ir, mas cuide-se, não queremos que nada aconteça com o valente
assistente do delegado aqui. – Disse ela apalpando Antônio no meio das pernas.
- Acho que ele corre mais perigo por aqui. – Respondeu Antônio rindo.
- É, exaustão também mata. – Retrucou a mulher dando-lhe as costas.
– Ainda mais para alguém com a idade dele. – Terminou ela sarcasticamente.
Antônio pensou em responder àquele comentário a altura, mas achou melhor por
calar-se pois não queria que nada mais o prendesse ali, não que os ardentes
carinhos da jovem Primeira dama lhe desagradasse, até pelo contrário, mas ele não
estava gostando era daquela chamada no meio da madrugada, havia acontecido
alguma coisa muito séria, talvez até com o próprio governador. Antônio deixou o
quarto e caminhou em direção a saída do palácio tentando não alarmar os outros
ocupantes do local pois a maioria dos assessores, que ali residiam também,
adorariam levar aos jornais a história dos encontros ardentes da Primeira Dama com
um certo encarregado da segurança, e aquilo poderia ser a ruína do governador,
principalmente se fosse descoberto também que tipo de atividade que a primeira
dama exercia antes de galgar os degraus do poder público, mas essa história havia

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sido muito bem encoberta, o próprio delegado Antônio tratara disso, e isso lhe valeu
o atual cargo e a plena confiança do governador que o encarregara de cuidar para
que a jovem esposa não cometesse excessos que pudessem prejudicar sua
imagem, Antônio cuidava bem desta parte, aliás, e o governador ficava tranqüilo
sabendo que sua esposa não traria problemas, pelo menos não em público ou na
sua presença, longe dele e entre quatro paredes a história podia ser diferente, ele
mesmo pouco se importava, para ele o que importava era passar a imagem de um
homem sério, engajado com suas funções, talvez fosse esse o motivo que levara a
jovem primeira dama a buscar conforto nos braços de outro, mesmo porque, em seu
passado, essa era uma atividade a qual ela estava habituada, e como dizem alguns:
é como vício por cocaína, não pode-se livra dele, e quem tenta acaba insano.
Quanto a Antônio não pode-se dizer que seja uma pessoa solitária a procura de
consolo, ele está sempre disposto a começar um relacionamento novo, e se esse
relacionamento puder trazer-lhe alguma complicação, tanto melhor, pois ele acredita
que a sensação de estar sempre a ser pego fazendo algo errado é a melhor coisa de
sua vida que já chegara na casa dos quarenta a um bom tempo. Ele estava disposto
a aceitar o que a vida lhe trouxesse, sem fazer muitas perguntas, para ele se
parecesse bom era bom e ponto final, o que viesse a acontecer no futuro era uma
coisa a se pensar no futuro, e pesava ainda a seu favor o fato dele ser uma pessoa
carismática e muito bem aceita por todos, além de ser um profissional muito bem
conceituado e bom no que faz.
Um jovem policial da segurança do palácio que vinha apressadamente por um dos
corredores e avistou Antônio.
- Que bom que eu o encontrei delegado! – Exclamou o jovem aflito.
- Calma garoto! Diga o que aconteceu. – Disse Antônio segurando o jovem
policial pelos ombros.
- Aconteceu um tiroteio aqui na rua de trás do palácio, e o tenente Henrrique
mandou chamá-lo.
- Vamos ver do que se trata então – Os dois entraram em um carro que
estava estacionado em frente ao palácio e saíram.

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3.
Enquanto Aline corre desesperada por entre a barreira quase intransponível
de arbustos que atravancam o seu caminho, ela parece sentir o que o chão aos seu
pés treme como fosse abrir-se a qualquer momento, mas ela precisa alcançar o
velho casarão de qualquer maneira, sugando até a ultima gota de forças que exala
de sua pele banhada pelo suor, ela alcança a entrada da velha construção, a porta
esta destrancada, ela entra e fica alguns instantes encostada na porta recuperando
o fôlego até o que um forte impacto do lado de fora da porta arranca-a
arremessando-a juntamente com Aline até quase o meio da sala da casa. Aline
sente que tem alguns ossos partidos mas consegue livrar-se da porta e sai correndo
por um corredor, deixando para trás o semblante de seu perseguidor iluminado pela
fria luz da lua; ela começa a clamar por ajuda, mas as paredes espessas do corredor
aprisionavam seus gritos por socorro, o limo que tornava o chão escorregadio
atrapalhava sua fuga, e nos intervalos que parava para recuperar o fôlego, ela sentia
nitidamente o bafo fétido da criatura que a perseguia; ela segue mais um pouco pelo
estreito corredor até entrar em uma espécie de salão iluminado por uma imensa
quantidade de velas. Aline detém-se por alguns instantes para poder adaptar-se com
a claridade que faz brilhar seus longos cabelos loiros. Uma porta lateral, à esquerda
de Aline, abre-se no salão, e por ela entra uma espécie de ser angelical que parece
trazer alívio ao coração palpitante da jovem; vestido de branco e com um sorriso
apaziguador o anjo estende-lhe a mão, Aline começa a caminhar até ele quando
uma outra porta abre-se à sua direita, por ela aparece seu perseguidor, um ser
demoníaco que arrasta pelos cabelos um homem jovem. O demônio lança o corpo
do rapaz quase aos pés de Aline e diz: “Troco a vida dele pela sua!” Aline olha em
direção do anjo que continua com a mão estendida para ela, com seu sorriso e
semblante apaziguador, totalmente o oposto do outro ser que encontra-se no salão,
as velas que encontram-se às costas do anjo parecem brilhar mais forte, enquanto
que as que estão do lado do demônio começam a perder seu lume enquanto
derramam sangue no lugar da parafina quente.
Aline olha para o corpo do rapaz contorcendo-se no chão, o demônio faz um gesto
com a mão e o rapaz urra com se uma lança pontiaguda atravessasse-lhe o peito.

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“E então, a vida dele ou a sua?” pergunta o demônio. Aline olha para o anjo que
agora fita o rapaz no chão com ar de tristeza, lágrimas começam a verter de seus
olhos, suas mãos agora estão juntas como se rezasse pedindo misericórdia pela
alma do pobre rapaz que parecia estar sendo torturado por todos os seres
demoníacos que habitam as profundezas do inferno. Aline Olha para o anjo e para
seu perseguidor, fita o rapaz por uma última vez e resolve voltar pelo corredor por
onde havia entrado no salão, porém o chão abre-se sobre seus pés e ela cai em
uma espécie de sala sem portas, quase que totalmente escura, uma única vela
negra libera seu escasso lume pela sala. Aline levanta-se do chão e nota que ali
também encontram-se o Anjo e o demônio, esse está carregando seu amigo pelos
cabelos novamente, o anjo caminha até ela e diz: “Você terá que escolher.” O
demônio também aproxima-se arrastando o jovem rapaz pelos cabelos: “Sempre
com medo de tomar alguma decisão quando sabe que vai perder algo.” Disse o
demônio arrancando a cabeça do rapaz jogando-a ao pés de Aline, ela grita, uma
escuridão total toma conta do ambiente e ela acorda-se em seu quarto, suando e
com a respiração ofegante.
O pesadelo tinha sido igual ao de todas as noites dos últimos quatro dias; sua
mãe dissera que sonhos sempre traziam uma mensagem, ela porém ela não
conseguia entender o que tudo aquilo queria dizer, e começara a ficar com medo,
pela primeira vez na sua vida estava com medo de alguma coisa que ela não sabia o
que era, e isso lhe preocupava, estava a costumada a lidar com coisas concretas,
não com aquele tipo de sentimento. O telefone tocou, Aline tateou o criado mudo ao
lado da cama até encontrar o aparelho e ligou o viva voz: “Alô!” disse ela ainda
tremendo devido ao pesadelo.
- Capitão. – Disse uma voz masculina do outro lado da linha. – É o
Sargento Juarez quem fala. Desculpe acorda-lhe a esta hora da noite, mas é que
encontramos os dois.
- Tudo bem Juarez, e qual a situação?
- A situação é vermelho um, capitão, mas não posso dar-lhe mais nenhuma
informação por telefone. Bem, esperamos pela senhora.
- Mande uma viatura me pegar em quinze minutos. – Disse Aline quando
um calafrio lhe percorreu pelo corpo.

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- Sim senhora. – Respondeu o sargento. – Juarez desligando capitão.
Aline ficou por alguns segundos escutando o sinal de linha do telefone.
Desligou o aparelho e caminhou até uma penteadeira antiga de madeira que havia
aos pés da cama, sentou-se em frente ao móvel e pegou um porta retrato. Nele
estava uma fotografia dela e uma outra mulher, ambas vestindo uniforme militar de
gala, uma recordação da formatura. “Claudia minha amiga, o que você andou
aprontando desta vez?” – Disse Aline enquanto uma lágrima escorria pelo seu rosto.
Aline sabia muito bem do que se tratava o código vermelho um, na mais otimista das
hipóteses era um acidente muito grave com risco de vida, mas na totalidade das
vezes tratava-se de morte mesmo. Aline apertou o porta retratos contra o peito e em
seguida largou-o em cima da penteadeira. Ao lado deste um outro porta retratos na
qual estavam Aline, mais jovem, e um outro rapaz, ambos vestindo togas de
formatura e segurando seus diplomas. Aline pegou este porta retratos e ficou
olhando para ele por alguns instantes. Largou-o juntamente com o outro e foi para o
banheiro. Lavou o rosto, arrumou os cabelos e vestiu sua farda verde oliva. Ela
estava terminando de colocar o paletó quando o interfone tocou, era o porteiro
comunicando da chegada de uma viatura para buscá-la. Aline apagou as luzes do
apartamento e desceu.

4.
Quando o delegado Carlos chegou no local do crime, havia umas trinta pessoas
entre bisbilhoteiros, jornalistas e policiais, um policial militar que controlava o acesso
ao local fez sinal para que ele parasse. Carlos mostrou-lhe sua credencial, obtendo
assim autorização para passar :
- Pode estacionar ali delegado. – Disse-lhe o policial. Carlos notou que
alguns dos homens de sua delegacia encontravam-se no local, caminhou até um
deles para saber mais sobre o acontecido.
- O que aconteceu Souza? – Perguntou ele a um sujeito baixinho que colhia
amostras do local do crime.
- Sei lá delegado, parece que foi assalto. – Respondeu o homem
enquanto ensacava alguma coisa que pegara do chão.

17
- Quem foi que avisou? – Perguntou Carlos enquanto acendia um cigarro.
- Foi o soldado Silva, ali da 2ª cia. – Disse o policial guardando as
amostras recolhidas em uma caixa térmica e apontando para um policial militar que
falava com alguns repórteres.
- Bom, vamos dar uma olhada. – Disse Carlos enquanto colocava uma luva
plástica.
- Não sem minha autorização elemento! – Gritou o delegado Antônio
Encostado em seu carro.
- Olha só, até o pessoal do palácio do governador está aqui. – Disse Carlos
sorrindo e caminhando em direção a Antônio. – Como vai Antônio? Cansou de
guardar o saco do Homem?
Antônio conheceu Carlos quando lecionava na academia de policia. Gostava do
raciocínio lógico e do pragmatismo de Carlos, o que levou-o a considerá-lo um dos
melhores da turma. Antônio, na época, era responsável pelo treinamento de campo,
era ele quem decidia quem ficaria com qual investigação, e sempre dava as mais
complicadas para Carlos, pois Sabia que o novato iria resolver rapidamente os
casos, enquanto ele podia Ter mais tempo para persuadir as alunas. Antônio ajeitou
o nó da gravata e apontando para os dois corpos respondeu a Carlos:
- Olha só quem fala, não sou eu que fico catando defunto no meio da
noite.
- Pois é, alguém tem que fazer o trabalho sujo! Você sabe quem são os
presuntos ai? – Perguntou Carlos.
- Meu pessoal já deu uma boa olhada e não encontrou nada de mais. –
Respondeu Antônio. – A única coisa que sei é que são milicos, os brigadianos
tomaram conta do pedaço e as ordens são: guardar o local e esperar o pessoal da
policia do exército chegar para levar os corpos.
- Quem é que está de responsável? – Perguntou Carlos.
- É o tenente Henrrique, aquele grandão ali. – Respondeu Antônio
apontando para um policial que encontrava-se conversando com outros dois.
- Tenente. – Falou Carlos chamando a atenção do homem para si.
- Pois não senhor? – Perguntou o policial enquanto interrompia

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momentaneamente sua conversa com os outros dois policiais. – No que posso
ser útil? – Completou.
- Delegado Carlos, da divisão de homicídios. – Disse-lhe Carlos
apresentando-lhe suas credenciais.
- Estava mesmo esperando pelo senhor. – Disse o policial fazendo
sinal com a mão para os outros dois saírem.
- Tem idéia de como aconteceu. – Perguntou-lhe Carlos. – Meu colega
Antônio disse que o pessoal do exército está envolvido.
- É verdade. – Falou o Tenente enquanto acendia um cigarro, ofereceu uma
a Carlos que aceitou. – Sou comandante ali da 2ª CIA, – disse o policial tirando uma
longa tragada do cigarro. – quem ouviu os disparos foi o soldado Silva, que está de
serviço esta noite com mais meia dúzia. A princípio pensaram que tinha sido ali na
Demétrio Ribeiro pois tem uns sujeitos meio barra pesada que ficam por ali
atormentando o povo, mas quando saíram para rua para olhar, notaram a
movimentação aqui na esquina e deslocaram a viatura para cá.
- Sabe me dizer de que quartel eles são? – Perguntou Carlos.
- A princípio da polícia do exército, mas infelizmente não estou
autorizado a dar mais informações. – Disse-lhe o policial afastando-se. – Mas fique a
vontade Delegado, vou dar um jeito de mandar um pouco dessa gente embora.
- Obrigado tenente, vou dar mais uma olhada antes que a policia do
Exército chegue. – Respondeu-lhe Carlos. – Antônio vem aqui por favor. – Gritou ele
para Antônio que encontrava-se dando entrevista para uma jovem repórter.
- Qual é meu? Não viu que estou ocupado tentando descolar um jantar. –
Disse Antônio bravo.
- Desculpe. Não era minha intenção atrapalha-lo em serviço. – Respondeu
Carlos enquanto mexia no casaco da mulher deixando à mostra duas perfurações no
peito. – O que você acha? – Perguntou Carlos.
- Sei lá. Tentativa de assalto a mão armada, os dois reagiram e se deram
mal. Caso resolvido. – Respondeu Antônio demonstrando pouco interesse com o
fato.
- Deixe-me ver. dois tiros no peito, e pelo jeito não morreu na hora. – Disse
Carlos ainda mexendo no cadáver da mulher.

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- Não mesmo. – Disse Antônio. – O cabo ali disse que ela Ainda
Resmungava alguma coisa antes de apagar.
- Cabo? – Perguntou Carlos levantando-se.
- Sim, aquele sujeito ali na viatura. – Disse Antônio apontando para um
Policial que falava ao rádio de sua viatura. Carlos caminhou até o homem e esperou
que ele terminasse de falar ao rádio:
- Posso fazer uma pergunta cabo? – Disse ele para o homem.
- Sim senhor. – Respondeu o sujeito saindo da viatura.
- Meu colega ali disse que quando o Senhor encontrou os corpos a
mulher estava viva.
- Isso mesmo. – Falou o cabo enquanto caminhava em direção dos corpos.
– A moça ainda estava agonizando quando chegamos delegado, mas não dizia
coisa com coisa, apenas palavras soltas tipo “eles tem de ser detidos...”,“...quebrem
o circulo...”. Mas o senhor sabe na hora do aperto a gente diz cada coisa. – concluiu
o cabo sorrindo.
- Obrigado pela ajuda. – Disse Carlos. Neste momento chegam no local duas
viaturas do Exército. Saem de dentro de uma das viaturas alguns militares armados
com submetralhadoras, instantes depois descem mais dois militares. O Tenente
Henrrique dirigiu-se até os dois homens prestando continência, conversaram algo, e
o Tenente e um dos militares caminharam em direção de Carlos:
- Delegado! – Disse o tenente. – Este é o Major Soares, ele veio para
recolher os corpos.
- Boa noite Major. – Disse Carlos estendendo a mão para o oficial.
- Boa noite Delegado. – Respondeu-lhe o oficial – Bem, estamos
encarregados de recolher os corpos, e tenho ordens do alto comando para começar
investigar imediatamente o que aconteceu com nossos soldados. Gostaria de saber
se o senhor quer fazer parte de nossa equipe de investigação, pois precisaremos de
alguém que conheça bem as ruas para nos ajudar.
Carlos tentava entender como alguém conseguia dizer tantas palavras sem tomar ar.
- Sem problemas Major; mesmo sem sua solicitação minha delegacia já
iria que investigar o ocorrido mesmo. – disse Carlos mostrando pouco interesse.
- Desculpe Delegado, mas tenho ordens de manter o assunto apenas em

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âmbito militar, não envolvendo as outras forças, foi-me ordenado que solicitasse
apenas a sua ajuda. – Disse o major.
- Bem não vai ser muito fácil manter isso tudo muito em segredo com esse
monte de jornalistas aqui. – Disse Carlos, enquanto ascendia um cigarro. Ofereceu
um ao major que recusou.
- Bem tudo que eles precisam saber já foi dito: os dois foram assaltados e
reagiram, só isso. – Disse o Major. – Bem, gostaria que o senhor nos acompanhasse
até o quartel da policia militar para conversar com nosso agente que vai ficar
encarregado das investigações.
- Será um prazer, Major. – Respondeu-lhe Carlos; o major apertou-lhe a
mão e saiu. Alguns militares acabavam de colocar os dois corpos dentro de uma das
viaturas que tinham chegado. O major falou-lhes alguma coisa e eles saíram.
Carlos seguiu a viatura até o quartel da policia do exército. Já dentro do
batalhão, pediram que ele aguardasse em uma grande sala que provavelmente
servia para as reuniões do comando daquele quartel, dada a presença de uma
grande mesa no centro da sala rodeada de cadeiras. Carlos levantou-se do enorme
sofá onde se instalara e começou a olhar os quadros dos antigos comandantes do
batalhão que preenchiam uma grande parte de uma das paredes. Em outra parede
havia um mapa do centro de Porto Alegre com algumas indicações, Carlos ficou nas
pontas dos pés para tentar ver o que diziam, eram apenas números seguidos de
letras. Código com certeza; seu pai sempre lhe contava uma história de que os
militares tinham construídos túneis por todo o centro de Porto Alegre, ligando os
principais quartéis da cidade com o palácio do governo, talvez fosse essa a razão
daqueles códigos no mapa, mas Carlos perdeu rapidamente o interesse no mapa
pois ao lado deste estava um organograma mostrando os principais militares
daquele batalhão, e dentre eles um rosto conhecido, o rosto de uma pessoa que ele
não via a um bom tempo, ele sorri por um instante, então a porta da sala abre-se e
entram dois oficiais, um homem e uma mulher.
- Delegado Carlos? – perguntou o homem.
- Sim. – Respondeu Carlos.
- Esta é a capitão Aline, foi designada para encaminhar a investigação, eu
sou o Major Antunes, e fornecerei a vocês tudo o que precisarem. – Disse o oficial.

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- Muito obrigado. – Falou Carlos fitando a capitão Aline que preparava um
pouco de café em uma cafeteira elétrica.
- Bem, a capitão Aline sabe onde me encontrar. Até breve. – Disse o major
saindo da sala.
- Sou todo ouvidos capitão. – Disse Carlos sentando-se no sofá.
- Aceita um café? – Perguntou-lhe Aline sem virar-se para ele.
- Sim. Por favor. – Respondeu Carlos notando a frieza de Aline.
– Importa-se que eu fume? – Perguntou ele.
- Fique a vontade. – Disse ela alcançando-lhe uma xícara de café. Abriu
uma pasta que trazia consigo e tirou de dentro alguns papeis. – Bom, os corpos
encontrados esta noite, eram do Coronel Assis e da tenente Claudia. – Disse ela
mostrando-lhe as fotos dos dois militares. – Fui designada para descobrir o que
aconteceu, tanto o coronel como a tenente eram pessoas introvertidas, e não tinham
muitos conhecidos, portanto assalto é a nossa principal hipótese. – Terminou ela.
- E costumavam sair sempre juntos. – Falou Carlos, com um tom um tanto
cínico, enquanto olhava as duas fotografias.
- Eram bem amigos, mas no que está pensando? – Perguntou Aline
tirando-lhe as duas fotografias das mãos.
- Que teriam um caso, mas isso pode não ser importante; ou talvez possa,
dependendo das circunstâncias, pois ainda não sabemos porque eles foram mortos,
talvez não tenha sido assalto. – Falou Carlos pegando as fotografias novamente.
- Eu entendo o seu ponto de vista, e até concordo com seu modo de
pensar, – Disse Claudia – mas eu conhecia o Coronel Assis a um bom tempo, o
suficiente para saber que ele não seria capaz de deixar a família para viver um
romance qualquer.
- Quer dizer que ele tinha uma família. E a tenente, algum parente? –
Perguntou Carlos.
- A família dela é do Rio de Janeiro, e já foram avisados. – Disse Aline.
- Vocês milicos são bem rápidos. – Falou Carlos sorrindo, porém seu
sorriso não foi correspondido. – E a esposa do coronel, já sabe do ocorrido? –
Perguntou ele.
- O coronel Assis era daqui de Porto Alegre, e eu pretendo dar a noticia

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pessoalmente, assim já posso fazer alguma perguntas. Você gostaria de me
acompanhar até lá? – Perguntou Aline.
- Claro, porque não, já perdi uma noite de sono mesmo. – Respondeu
Carlos olhando pela janela que deixava entrar os primeiros lumes da manhã
cinzenta. Carlos foi até um banheiro e molhou um pouco o rosto. Seguiram os dois
no carro de Carlos até a casa do Coronel. Quando chegaram no local, uma senhora
encontrava-se saindo da casa.
- Oi Maria. – Disse Aline.
- Já sei o que veio fazer. – Disse a senhora não conseguindo segurar o
pranto. – Mas a televisão foi mais rápida que você. – Aline abraçou a senhora que
continuava chorando. – Estava indo até o quartel para encontrar com você. – disse a
senhora.
- Bem não precisa mais, eu já estou aqui. – Respondeu Aline. – E não
precisa se preocupar que já está sendo tudo arranjado para o funeral.
- Carmen está na faculdade em Caxias, mas eu já mandei buscá-la. – disse
A senhora.
- Maria, este é o delegado Carlos, ele vai me ajudar na investigação para
descobrir-mos o que aconteceu com o Assis, mas precisamos de sua ajuda para
saber o que ele estava fazendo ultimamente. Podemos entrar? – Perguntou Aline.
- Claro que sim minha filha. – Respondeu-lhe a senhora. Os três entraram
Na casa. Dona Maria pediu para que sentassem enquanto ela iria preparar um café,
Aline tentou recusar, mas a senhora insistiu. – Não sei de muita coisa, – disse ela
quando voltava à sala carregando uma bandeja com um bule de café e algumas
torradas, – o Assis não comentava muito sobre o trabalho em casa, – disse ela
servindo café para os dois, – porém a mais ou menos duas semanas a Claudia
apareceu aqui muito aflita, e disse que precisava que o Assis a ajudasse, nós a
conhecemos desde garotinha, e ele não pensou duas vezes em lhe estender a mão.
Ela dormiu aqui em casa por uns dois dias depois não apareceu mais, indaguei meu
marido sobre o que estava acontecendo e ele me disse que estava quase tudo
resolvido e que assim que tudo acabasse ele iria me colocar a par dos fatos. Isso foi
ontem pela manhã. Porém eu não sei lhe dizer o que seria esse “tudo” que Assis
disse que já estava quase resolvido.

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- Muito obrigado Dona Maria, se souber de mais algo nos comunique por
favor. – Disse Aline levantando-se.
- Cuide-se minha filha. – Disse a senhora enchendo os olhos de lágrimas.
- Pode deixar. – Disse Aline abraçando-a. Os dois saíram e foram para o
carro.
No caminho de volta os dois ficaram quietos dentro do Carro por alguns
momentos até que ao parar em uma sinaleira Carlos quebrou o silêncio:
- Bom podemos descartar a hipótese de assalto, pois sabemos que eles
estavam envolvidos em alguma coisa.
- Só precisamos descobrir no quê. – Disse Aline.
- Mas isso só depois que eu tomar um banho e tirar um cochilo. Onde você
quer que eu te largue? – Perguntou ele sorrindo.
- Pode me deixar por aqui mesmo. – Disse Aline abrindo a porta do carro. –
Eu pego uma taxi para casa.
- Você é que sabe. Qualquer coisa sabem onde me encontrar.
– Respondeu Carlos. Aline sacudiu a cabeça concordando. O sinal abriu e ele partiu.
Pelo espelho retrovisor ainda deu uma última olhada em Aline parada no sinal a
espera de um taxi. Pensou em voltar e dizer-lê uma porção de coisas que estavam
presas em sua garganta, pois embora muito tempo já tivesse passado, ele ainda não
a tinha esquecido.

5.
Carlos entrou em seu apartamento e encontrou sua mãe limpando a louça.
- Carlos, você andou matando alguém meu filho? – Perguntou ela sorrindo.
– Andou uma pessoa ai telefonando para você a respeito de um assassinato. Ligou
umas quantas vezes agora de manhã.
- Não matei ninguém mãe. É um assassinato que eu estou investigando.
– Disse ele indo para o banheiro. – Essa pessoa não deixou um telefone para mim
entrar em contato? – Gritou Carlos do banheiro.
- Não, mas disse que ligaria mais tarde. – Respondeu sua mãe.
- Homem ou mulher? – Perguntou Carlos entrando na cozinha enrolado

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Numa toalha.
- Nem um nem outro, ou os dois, depende do ponto de vista. – Respondeu
ela.
- Como assim mama? – Perguntou ele intrigado.
- Era uma bichinha meu filho, a voz igual do meu cabeleireiro e parecia
estar muito aflito.
- Bem eu vou tirar um cochilo, tente não me acordar por favor. – Falou ele.
- Tudo bem, eu já estava de saída mesmo. Tem lasanha no microondas. E
vê se não esquece de visitar o teu pai. A semana passada tu não apareceu nem um
dia por lá. – Disse a senhora beijando-lhe o rosto. Carlos trancou a porta, jogou-se
no sofá e apagou, acordou-se mais ou menos seis horas da tarde com o telefone
tocando.
- O delegado Carlos, por favor. – Falou uma voz fina do outro lado da linha.
- É ele mesmo. – Disse Carlos protegendo os olhos da claridade que
entrava pela janela.
- Delegado, é sobre o assassinato desta noite, eu acho que tenho algumas
Informações, liguei para sua delegacia e me deram seu número. – Disse a pessoa
no telefone.
- Então pode falar. – Disse Carlos fechando as cortinas da sala.
- Não pode ser por telefone, e eu preciso saber se vou ter algum tipo de
proteção. – Falou a pessoa quase sussurrando.
- Olha, eu só posso te garantir alguma coisa depois de me inteirar dos fatos
que tens para me relatar. – Disse Carlos.
- Tudo bem. Esteja essa noite na Usina do Gasômetro por volta das dez
horas. – Respondeu o sujeito.
- Como é que você vai estar? Como faço para te encontrar? – Perguntou
Carlos levantando as almofadas do sofá em busca de seu maço de cigarros.
- Deixa que eu encontro você.
- Posso pelo menos saber seu nome? – Perguntou Carlos.
- Lulu, pode me chamar de Lulu Star. – Respondeu o sujeito.
- Tudo bem senhor Lulu, às dez horas então. – Respondeu Carlos, mas o
Lulu já tinha desligado o telefone.

25
6.
Carlos voltou ao quartel do exército onde lhe informaram que a Capitão
Aline estava no local do crime. Carlos dirigiu-se ao local. Aline, com roupas civis,
estava perto de onde tinham caídos os corpos, ela tirava algumas fotografias. Carlos
desceu do carro e andou até ela.
- Tirando suas conclusões? – Disse ele.

- Ora vejam só se não é meu belo adormecido. Pois saiba o senhor que
alguém tem que trabalhar. – Respondeu ela com a cara fechada.
- Continua a mesma megera arrogante. Depois o culpado do nosso
relacionamento ter acabado fui eu. – Disse ele enquanto acendia um cigarro.
- Carlos meu querido, não era eu que desaparecia por noites seguidas sem
dar notícias. – Disse ela levantando-se.
- Eu me virava feito um louco na academia, você sabia disso.
- Tudo bem Senhor delegado, enfim, isso é passado, não vamos deixar que
atrapalhe no resto não é mesmo?
- Como queira senhora oficial. – Neste instante eles notam a presença de
Antônio que está do outro lado da rua batendo palmas.
- Ei! Estou perdendo uma calorosa discussão aqui. – Grita ele enquanto
atravessa a rua em direção dos dois. – Deixando de lado suas fervorosas
lembranças, me digam ai encontraram alguma coisa, o governador está aflito em
saber que estão matando gente tão perto de sua linda residência. – disse Antônio
enquanto tirava uma maçã do bolso do casaco, ele limpa a fruta em seu casaco e
começa a comê-la.
- O governador devia preocupar-se com outros bandidos que rondam os
corredores do palácio á noite. – Falou Carlos.
- Um dia esses bandidos acabam tendo o que bem merecem. – Falou Aline
enquanto guardava suas coisas dentro do porta malas de seu carro.
- Alguém levantou com o pé esquerdo hoje. – Falou Carlos.
- Se os senhores me dão licença tenho mais o que fazer. Adeus. –
Respondeu Aline. Ela então entrou em seu carro e saiu cantando pneus.
- Pelo jeito você conseguiu irritar ela. – Falou Antônio.

26
- Eu sempre consigo, eu sempre consigo. Tu por acaso sabe para onde
levaram os corpos dos dois milicos?
- Para o necrotério, o que tu acha? – Respondeu Antônio.
- Temos autorização para fuçar?
- Não, estão trancados a sete chaves, e guardados por dois brutamontes da
guarda pretoriana da policia do exército, mas nada que eu não possa
Resolver com um telefonema para a pessoa certa.
- Babar o saco do governador tem suas vantagens não é? – Disse Carlos
sorrindo. Os dois entram no carro de Carlos e saem.

7.
Eles tiveram que esperar umas duas horas até que Antônio desse um jeito
para os dois conseguirem autorização para olhar os corpos, pois os militares haviam
proibido qualquer um que não fosse militar de entrar na sala onde encontrava-se os
oficias mortos. Carlos e Antônio entraram no prédio do necrotério e dirigiram-se até
um rapaz que estava sentado em uma mesa no fim do corredor da entrada do
prédio.
- Boa noite, sou o delegado Antônio e este é o delegado Carlos. Viemos dar
uma olhada nos corpos que chegaram hoje cedo. – Disse Antônio para o rapaz.
- Boa noite delegado. A primeira Dama me comunicou de sua vinda – disse
o rapaz levantando-se e apertando a mão de Antônio, eles caminharam pelo
corredor até a sala onde ficavam os cadáveres – fiquem a vontade, o pessoal que
esta ai não se importa muito com visitas. – Respondeu o rapaz abrindo uma pesada
porta metálica que dava para uma sala refrigerada onde eram depositados os corpos
para a autópsia antes de serem engavetados, como explicou o rapaz para os dois
delegados como se eles não soubessem nada sobre o assunto.
- Primeira dama é? Pelo jeito o serviço está lhe agradando não é mesmo?
– Ironizou Carlos esfregando os braços por causa da mudança de temperatura
- Um dia você também receberá recompensas pelo seu árduo trabalho.

27
– Respondeu Antônio sorrindo, os dois começaram a andar por entre alguns corpos
que jaziam em cima de algumas mesas .
- Estão aqui, Ângelo Assis e Claudia Rodrigues. – Falou Carlos lendo duas
etiquetas fixadas nos dedos dos pés de dois corpos deitados lado a lado em cima de
uma mesa cirúrgica.
- Até que ela era gostosa Carlos. – Disse Antônio após remover o tecido
que cobria o corpo da tenente, deixando a mostra seus seios.
- Quer dar um tempo seu tarado. – Ralhou Carlos enquanto colocava um
par de luvas.
- Credo meu! Que mau humor. Assim eu vou pensar que você nem gosta
mais de mulher, fica o tempo todo alisando aquele gato pulguento, só falta ir a
missa todo o domingo também. – Respondeu Antônio enquanto colocava um par de
luvas também. – Hum... ruivinha, bem do tipo que o papai gosta. – Antônio olha para
Carlos e sorri, este no entanto parece nem Ter notado seu último comentário.
- De uma olhada nisso aqui, o que te parece? – Perguntou Carlos
apontando para o braço esquerdo da tenente Claudia onde figurava uma tatuagem.
- Uma tatuagem. Parece um desenho Egípcio. – Respondeu Antônio
chegando mais perto para olhar melhor o que parecia a figura de duas pessoas
segurando um livro, e a forma com que eram pintadas, de perfil, lembrava uma
antiga pintura egípcia.
- Parece que é, o que será que significa? Parece ser a marca de alguma
seita ou coisa parecida. – Disse Carlos.
- Seita? Putz! Cara tu anda olhando muita televisão. Deixa eu decifrar para
você, vou usar meu poder paranormal. – Falou Antônio fechando os olhos e
colocando o dedo indicador na testa. – Descobri! – Gritou ele abrindo os olhos
derrepente. – é uma passagem do livro dos mortos: ”Aquele que encostar no meus
peitinhos sofrerá com a ira dos deuses!”. – Falou ele com os olhos arregalados como
um morto vivo caminhando com os dois braços estendidos em direção de Carlos que
olhava-lhe com um ar desaprovador. – Tá! Não precisa me olhar com essa cara. –
Disse Antônio assumindo a postura normal. – Foi só uma brincadeirinha, perdeu o
senso de humor também? Isso que nem tem minha idade, imagina quando tiver. –
Completou ele.

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- Precisamos descobrir o que quer dizer Esse desenho. – Disse Carlos
olhando a tatuagem mais de perto.
- Ora Carlos, esses milicos adoram essa coisa de tatuagem para se
Identificarem entre si. – Falou Antônio demonstrando um certo tédio. Estes anos
todos na policia apagaram o fogo que ele sentia quando era apenas um novato
ansioso para desvendar um caso e aparecer em todas as primeiras páginas dos
jornais da capital, agora contentava-se apenas em ser o segurança de luxo do
governador, ele acreditava já ter dado sua cota de sacrifício pela sociedade.
- Os homens, as mulheres não costumam fazer isso. – Disse Carlos, seus
olhos começavam a brilhar novamente tamanha era a euforia diante da possibilidade
de um caso novo, diferente de todos os outros que ele estava acostumado a
investigar nos últimos anos .
- Nunca se sabe, quem vai imaginar o gostos dessa daí. – Falou Antônio
tirando suas luvas.
- Tem um papel ai? – Perguntou Carlos enquanto tirava um caneta do bolso
do seu casaco.
- Vai pedir o telefone dela? – Perguntou Antônio sorrindo.
- Cara eu já estou perdendo a calma!
- Ta bom, tá bom. Mas não fica muito nervozinho, e não esqueça de que
você só está aqui por causa do super influente delegado Antônio. Vou ver se o
guarda defunto tem alguma coisa para o Sherlok Holmes ai copiar seus desenhos. E
pensar que eu que te apoiei na academia, se soubesse que ia se tornar este chato,
tinha te indicado para uma delegacia lá ns quinto dos infernos” – Carlos sorriu
enquanto Antônio saiu da sala a procura do guarda defuntos, ainda resmungando
algumas coisas. O telefone celular de Carlos tocou. Era Aline dizendo que havia
encontrado a mãe de Carlos no centro e que esta havia lhe convidado para tomar
um café no apartamento do delegado. Ela disse que esperaria ele lá pois tinha
algumas coisas para lhe perguntar.

29
8.
Antônio desceu do carro de Carlos na frente do palácio do governo.
Antes de sair olhou para Carlos e disse:
- Se quiser eu conheço umas garotas. – Carlos empurrou-o para fora do
carro, fechou a porta e saiu cantando pneus deixando Antônio falando consigo
mesmo na calçada enquanto olhava o carro de Carlos distanciar-se. – Fala com ela
amigão, ela também está com esse mesmo brilho apaixonado nos olhos. – Disse ele
sorrindo. Antônio ajeita seu casaco e sai assobiando alguma coisa pela rua.
Carlos chegou em seu prédio e deixou o carro estacionado em frente ao edifício pois
havia perdido o controle remoto da garagem e o porteiro levaria alguns séculos para
abrir-lhe a porta com muita má vontade, desceu do carro e entrou no prédio.
- Ó chegou o filhinho da mamãe, - disse dona Franccesca sorrindo
enquanto ele entrava no apartamento – você tem visitas. – completou ela apontando
para Aline que estava sentada no sofá
- E então Aline, especulando um pouco? – Disse Carlos enquanto
despia-se de seu casaco.
- Passei para tomar um café com minha amiga dona Franccesca. – Disse
ela sorrindo.
- Me poupe de sua ironia e vá direto ao assunto. – falou Carlos atirando-se
no sofá.
- Bem vocês me dêem licença, mas eu vou me retirar antes que comece a
baixaria. – Falou a mãe de Carlos retirando-se para a cozinha do apartamento.
- Eu gostaria de saber que história é esta de que alguém andou lhe ligando
para lhe passar informações sobre o caso? - Perguntou Aline levantando-se – Que
eu saiba estamos juntos nesta investigação, e você não pode ficar me escondendo
fatos, isso é um assunto federal. – Completou ela olhando feio para Carlos que
olhava-a com desaprovação.
- Pois então me diga senhorita federal, porque eu não tinha autorização de
ver os corpos? – perguntou ele. – Sabia que tive que ficar quase duas horas sentado
em um banco duro como um novato que espera pelas migalhas de um grande caso?
– terminou ele enquanto levantava-se e dirigia-se até um pequeno móvel que
continha algumas garrafas de bebida.

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- Você teria a autorização em menos tempo se tivesse me pedido. – Disse
Aline voltando a sentar-se. O gato de Carlos subiu no sofá e Aline pegou-o no colo.
- Está bem do jeito que tu gosta não é mesmo? Continua a mesma
mandona, tudo tem que ser feito do seu jeito. – Disse Carlos enquanto servia uma
dose de Vodka.
- Carlos, você esta confundindo as coisas, está levando para o lado
pessoal. – Disse Aline levantando-se novamente com o gato nas mãos e dirigindo-se
até ele.
- Você está certa, me desculpe, - falou Carlos tomando a dose de Vodka
numa golada só, – eu só estou um pouco cansado só isso. – Completou ele. –
Agora por favor pare de apertar o pescoço do Lester. Me dá ele aqui. – Disse ele
sorrindo tomando o gato das mão de Aline.
- E quanto ao tal informante? – Perguntou Aline ainda séria.
- Pelo jeito eu vou precisar ter uma conversinha com uma certa senhora
que freqüenta esta casa. – Gritou Carlos em direção da cozinha. Dona Franccesca
apenas colocou a cabeça na porta e sorriu. – Bem o cara que me ligou é um tal de
Lulu Star. – completou ele.
- O Lulu Star? O que ele teria para dizer? – Falou Aline pensativa.
- Você conhece o sujeito? – Perguntou Carlos servindo mais uma dose de
Vodka, pegou seu maço de cigarros acendeu um e sentou-se ao lado de Aline.
- Claro que conheço o cara! – Respondeu ela. – Ele é o cabeleireiro mais
badalado de Porto Alegre, em que mundo você vive? – Disse ela abanando a
fumaça do cigarro de Carlos com a mão. – Claudia costumava ir no salão dele
sempre.
- Vocês se falavam? – perguntou Carlos enquanto tentava fazer o gato
tomar um gole de Vodka.
- Não, eu fui lá uma vez só, mas nem foi ele que me atendeu. – Respondeu
ela olhando para o pobre gato que tentava livrar-se a todo custo das mãos de
Carlos.
- Bem eu tenho um encontro com esse Cara dentro de vinte minutos,
- disse Carlos atirando o gato no chão – se você estiver a fim de um passeio noturno
vista sua capa e vamos até lá.

31
9.
Já na frente do prédio colocaram a mãe de Carlos em um taxi e desceram a
Avenida Duque de Caxias a pé, pois a usina do gasômetro ficava umas três quadras
do edifício de Carlos, nesse momento começa a cair uma fina garoa. Um pouco
antes de chegarem na usina, notaram que havia uma movimentação de viaturas da
policia perto do local.
- O que você acha que é? – Perguntou Aline.
- Sei lá talvez uma batida de rotina, tá sempre cheio de garotos de
programas ali. – Respondeu Carlos acendendo um cigarro. Chegando mais perto
puderam constatar que tinha ocorrido um acidente ou coisa parecida pois tinha um
corpo estendido no chão e um carro civil parado no meio da rua um pouco atrás do
corpo, encostado neste havia um homem que falava alguma coisa a um policial que
anotava tudo em um bloco de notas. Carlos e Aline aproximaram-se de um dos
policiais da brigada militar que conversava com algumas outras pessoas e também
anotava algo em um pequeno bloco:
- Com licença soldado, eu sou o delegado Carlos, – disse Carlos
mostrando suas credenciais para o policial, este pegou-a olhou e fez um sinal com a
cabeça de que estava tudo bem, – e esta é a capitão Aline, da policia do exército,
poderia nos dizer o que está acontecendo. – o policial ficou em posição de sentido e
prestou continência para Aline.
- Às suas ordens Capitão! – Falou o policial como se ignorasse a pergunta
de Carlos.
- À vontade soldado! Agora responda a pergunta do delegado. – Falou
Aline para o policial.
- Pois não senhora! – Disse o policial – Pelo que disseram as testemunhas,
esse elemento ai desceu a Avenida Duque de caxias correndo feito um louco, era
como se algo estivesse o perseguindo e o atacando, só que nem uma das
testemunhas viu coisa alguma perseguindo o elemento; bem, daí ele atravessou a
avenida correndo e esse cidadão que vocês podem ver ali com o cabo Matias, não
teve tempo de parar o carro e deu na merda que vocês estão vendo.
- Podemos dar uma olhada? – Perguntou Carlos.

32
- Fiquem à vontade. – Disse o policial prestando continência para Aline.
- Merda! – Disse Aline enquanto retirava o tecido que cobria o corpo do
sujeito ensangüentado no chão.
- O que foi Aline? Ele não está tão estropiado assim, até parece que
nunca viu um presunto mutilado. – Disse Carlos sorrindo.
- Não é isso Carlos, – falou ela limpando as mãos na capa – é que este ai
é o seu informante: O Lulu.
- Droga! Mas eu tenho uma sorte do cacete mesmo hein? Porque que essa
bicha louca não olhou para os dois lados da rua antes de atravessar a rua? – xingou
Carlos aumentando o tom da voz – Não lhe ensinaram no colégio que tem que olhar
para os dois lados? – Terminou ele falando para o corpo sem vida do cabeleireiro
Lulu. Aline apenas observava a cena dantesca de Carlos falando com o corpo.
- Receio que ele não possa te ouvir agora Carlos. – Disse Aline sorrindo.
- Obrigado pela informação! – Disse Carlos num tom áspero.
- Vê ai na bolsa dele esse negócio que está aparecendo, parece um livro.
– Disse Aline apontando para um objeto volumoso na bolsa do Lulu. Carlos
abaixou-se e pegou o objeto que realmente era um livro de aparência bem antiga,
suas capas tinha um acabamento nos cantos feitos de um metal dourado que a
primeira vista parecia ouro, uma pequena fechadura deste mesmo metal mantinha o
livro fechado mas não trancado pois a fechadura era apenas presa em sua outra
extremidade; o resto era de uma tonalidade vermelho fogo. Mas o que causo
espanto em Carlos fora o desenho da capa.
- Ora vejam só, nosso amiguinho aqui sabia mais do que imaginávamos.
– Disse Carlos alisando a capa do livro.
- O que é que tem ai? – Perguntou Aline abaixando-se junto a Carlos.
- Ta vendo este desenho aqui da capa? – Disse ele mostrando-lhe a figura
que representava duas pessoas de perfil segurando um livro com as mãos – Pois
sua amiga Claudia tinha um igualzinho tatuado no braço.
- Coloca aqui na minha bolsa antes que vejam. – Disse Aline abrindo sua
bolsa.
- Nossa que pistolão! – Disse Carlos olhando para dentro da bolsa de Aline

33
que deixava a mostra alguns de seus pertences, entre ele uma pistola calibre nove
milímetros, de uso das forças armadas. – Sabe usar ou é só de enfeite? –
Completou ele enquanto colocava o livro dentro da bolsa dela.
- Alguém precisa saber por aqui não é? – Disse Aline fechando a bolsa
rapidamente. A única fraqueza do delegado Carlos era sua falta de habilidade com
armas de pequeno porte, porém ninguém era melhor que ele com uma arma de
grosso calibre, porém não fica bem para a polícia que seus membros transitem pelas
ruas com uma espingarda calibre doze no ombro, sua sorte era nunca ter se
envolvido em uma situação em que fosse necessário dispor do poder de fogo de seu
pequeno trinta e oito, que portava apenas por exigência do ofício.
- Cadela. – Sussurrou Carlos sorrindo sem que ela percebesse.
- Tem mais umas coisas ai pega também. – Disse Aline apontando para
alguns papéis que haviam saído junto com o livro e que agora encontravam-se
soltos no chão ao lado da bolsa de Lulu.
- Fique sabendo que tirar provas do local do crime pode me dar uma
suspensão. – Disse Carlos juntando os papéis e colocando-os no bolso.
- Pode deixar que eu seguro as pontas, vamos sair logo daqui que eu acho
que o brigadiano viu a gente. – Disse Aline apontando com a cabeça para o policial
que havia atendido-os e que agora caminhava em direção dos dois. Acenaram para
o policial e saíram em direção ao centro pela rua dos Andradas.
- E o que vamos fazer agora, assaltar Uma velhinha? – Perguntou Carlos.
- Vamos até o apartamento da Claudia ver se a gente acha mais alguma
coisa. – Falou Aline andando um pouco mais rápido.
- Eu vou poder olhar melhor estes papéis que nós pegamos da bichinha ou
isto é confidencial também? Perguntou Carlos tirando do bolso os papeis que havia
pegado junto ao corpo.
- Se pedir com educação. – Disse Aline arrancando-lhe os papéis da mão e
colocando-os em sua bolsa também.
- Esse apartamento fica longe, essa garoa já tá me enchendo o saco. –
Disse Carlos erguendo a gola de sua capa.
- Vamos pegar meu carro ali no comando militar, o apartamento dela fica na

34
vinte e quatro de outubro perto da praça Júlio de Castilhos. – Disse Aline. Os dois
chegaram no prédio do Comando Militar, que fica situado a poucas quadras do local
aonde o cabeleireiro havia sido atropelado, e Aline solicitou que um militar fosse
pegar seu carro.

10.
Enquanto subiam a avenida Independência, Carlos dava uma folhada no livro
que pegaram com o cabeleireiro Lulu. As páginas do livro estavam todas grafadas
com uma espécie de símbolos semelhante às escritas cuneiformes dos assírios, e
por sua vez, eram bem diferentes dos hieróglifos egípcios que estavam na capa ao
redor da figura.
- Descobriu alguma coisa? – Perguntou Aline num tom de voz irônico.
- Nadica de nada, – Respondeu Carlos – deixa eu dar uma olhada nos
papeis que a gente pegou lá também. – Pediu ele quando Aline virou o carro
repentinamente para a esquerda entrando na contra mão da rua vinte e quatro de
outubro que por sorte estava vazia àquela hora, apenas um mendigo que estava
sentado num dos bancos da praça observou o malabarismo repentino de Aline que
andou uns cem metros na contra mão e parou na frente de um luxuoso prédio.
- Agora não. – Disse ela desligando o carro. – O prédio é este dai. –
Completou ela apontando para o prédio em que haviam parado. Eles desceram do
carro e foram até a entrada do prédio.
- Oxalá! – comentou Carlos diante do luxuoso prédio – Para quem vivia
do salário do governo até que ela morava bem.
- Era de família importante no Rio de Janeiro, gente da alta. – Respondeu
Aline enquanto forçava a maçaneta da porta do prédio que não abriu.
- Não tem porteiro, como é que vamos entrar? – Perguntou Carlos olhando
para dentro do prédio através da vidraça da porta.
- Pela porta, como toda pessoa bem educada. – Disse Aline tirando da
bolsa um pequeno estojo de metal.
- E como toda pessoa bem educada, eu acredito que vamos ter de

35
Arrombar? – Disse ele enquanto Aline abria o estojo metálico que continha
pequenas ferramentas das que são utilizadas por chaveiros para abrir as fechaduras
mais simples.
- Vamos não, você vai, pois eu fiz minhas unhas ontem.
- Dá um bico pra ver se não vai vir ninguém. – Disse Carlos pegando as
ferramentas e enfiando-as na fechadura da porta.
- Tá limpo! Vai firme.
Carlos abriu a fechadura e os dois subiram até o apartamento da tenente
Claudia. Tiveram que arrombar a porta também. Ao entrarem no apartamento um
forte cheiro de vela queimada fez com que os dois recuassem um pouco antes de
prosseguirem. O apartamento estava impregnado por aquele cheiro em todos os
cômodos, era como se a tenente não abrisse a janela em nenhum momento do dia
ou da noite. Talvez não quisesse que notassem que ela estava em casa, pensou
Carlos enquanto observava o aspecto sombrio do apartamento, ele pegou uma das
muitas velas dispostas em cima dos móveis, acendeu e começou a percorrer o
apartamento. Em um dos quartos do apartamento havia algumas estatuetas, que
Carlos logo as identificou como sendo arte egípcia, ele não sabia muita coisa sobre
isso, mas os documentários que assistia na tevê, vez que outra, forneciam o
conhecimento necessário de que ele precisava para chegar a uma conclusão tão
simplória. No centro do cômodo, desenhado no chão com giz azul, um símbolo, que
constituía-se de uma estrela de seis pontas dentro de um circulo com alguma coisa
escrita em volta, Carlos ia observar o símbolo mais de perto quando Aline chegou no
quarto.
- O que tu acha que é? – Perguntou Aline um tanto assustada com o que
vira.
- Como diz minha mãe: macumba da brava. – Respondeu Carlos. Ele então
pegou uma pequena maquina fotográfica digital do bolso e fotografou o símbolo
- Vai sair bem bom com toda essa luz. – exclamou Aline.
- Tecnologia digital minha querida, diferente dos museus que vocês ainda
usam na caserna. – Carlos alcançou a máquina para Aline que olhou a imagem que
tinha sido registrada pela pequena câmera através de um visor atrás de mesma.

36
– Vamos dar mais uma olhada, talvez a gente encontre mais alguma coisa. – disse
ele.
- Que nem isso aqui? – disse Aline mostrando-lhe uma espécie de punhal
que juntara no chão de outro cômodo, e que tinha sua bainha feita de um material
que imitava marfim.
- Um punhal. E daí?
- Pode ser importante. – Falou Aline já abrindo a bolsa para guardar o
punhal. Carlos pegou o punhal.
- Duvido que seja . – Disse Carlos virando-lhe o cabo do punhal para
mostrar a Aline as inscrições: “MADE IN CHINA” – Tu pode comprar um desses por
dez reais ali no brik da redenção. – Completou ele. – Me diz uma coisa Aline, essa
tua amiga dava entender que freqüentava alguma seita ou coisa parecida?
- Não, muito pelo contrário – disse Aline com ar de uma certa incerteza,
quase gaguejando. – Claudia era a pessoa mais cética que eu já conheci.
- Bem, não é o que está parecendo. Vamos continuar? – Perguntou Carlos
notando o ar de aflição de Aline que encostava-se em uma das paredes do cômodo
com um ar pensativo.
- Não! Vamos embora. – Disse ela energicamente. – Já esquentamos a
cabeça demais por hoje. – Virou as costas para Carlos e saiu do apartamento.
Carlos deu mais uma olhada ao redor para ver se conseguia encontrar alguma coisa
útil porém apenas com luz da vela não conseguia enxergar nada direito no vasto
apartamento. Apagou a vela e saiu. Aline esperava-o ao lado do carro na frente do
prédio. – Quer uma carona até em casa? – Perguntou ela.
- Não. Pode deixar que eu tomo um taxi ali na praça. – Respondeu Carlos.
- Tudo bem então. Se tiver alguma novidade me liga. Tchau. – Disse Aline
entrando no carro e saindo.
Carlos, caminhou até um pequeno mercado na esquina da 24 de outubro com
a Ramiro Barcelos; comprou duas cerveja e um pacote de batata frita. Ele saiu do
mercado e caminhou até a praça do outro lado da rua. A garoa havia cessado,
apenas um vento frio cortava os céus da noite sem estrelas. Carlos sentou-se em
um banco da praça e abriu uma cerveja quando notou a presença de um mendigo
que se aproximava lentamente dele enrolado em um roto cobertor.

37
- Está frio né amigo. – disse o mendigo esfregando os braços.
- Bastante. – respondeu Carlos sem dar-lhe muita atenção.
- Seria melhor uma boa cachaça nesse frio. – disse o mendigo olhando
para a cerveja de Carlos.
- Eu diria que seria melhor uma boa sopa.
- Mas uma sopa não faz a gente esquecer da dor. – Respondeu o mendigo.
- A dor? – Perguntou Carlos agora dando mais atenção para o
mendigo, um pouco por pena daquele pobre homem abandonado pela sorte.
- A dor da solidão. – respondeu o mendigo. – As vezes ela aperta tão forte
que não adianta nada, a gente tem que tomar uma purinha para afogar a danada. –
completou o farrapo.
- E tá sentindo alguma dor agora?
- Uma bem fraquinha. – respondeu o sujeito sem tirar os olhos da garrafa
de cerveja e do saco de batatas que estavam ao lado de Carlos.
- Bom então eu acho que uma cerveja pode resolver o caso por enquanto.
– Disse Carlos abrindo outra garrafa de cerveja e alcançando para o mendigo que
sentara ao seu lado. Esse desenrolou-se de seu velho cobertor e ofereceu-o para
Carlos cobrir-se, esse recusou sorrindo.
- Alguma coisa preocupa o doutor. – disse o mendigo. – Se quiser eu posso
ajudar. Já fui doutor também, cuidava da cabeça dos outros, porém acabei
descuidando da minha e terminei aqui debaixo desse céu sem estrelas.
- Um hora as nuvens tem que ir embora, então você poderá ver as estrelas
novamente. – disse Carlos.
- Minhas estrelas se apagaram faz tempo doutor. Meu céu é sempre escuro
e solitário. – disse o mendigo enquanto tomava mais um gole de sua cerveja.
– Aceita um salgadinho doutor? – perguntou ele a Carlos.
- Agora não obrigado. – respondeu-lhe Carlos sorrindo.
- E o senhor não se importa se eu comer sozinho?
- Fique a vontade. – disse Carlos sorrindo, meio sem entender a
exclamação do pobre homem.

- Então com licença. – respondeu o mendigo enquanto pegava o pacote de

38
batatas de Carlos e abria. Carlos olhou para ele com uma cara de admirado, porém
não disse nada diante da face faminta do pobre mendigo enchendo a boca de
batatas. Em seguida fechou o saco e colocou ao seu lado.
- Satisfeito? – Perguntou Carlos.
- Vou guardar para mais tarde. Posso Ter visitas. Nunca se sabe.
- Algum paciente quem sabe. – disse Carlos sorrindo.
- E por falar em paciente, em que posso lhe ajudar? Em troca da birita.
– Disse o mendigo sorrindo, deixando amostra uma bela arcada dentária acusando
que ele tinha muito cuidado por seus dentes.
- Infelizmente em nada.
- Não subestime a sabedoria dos ratos da rua. – Disse o mendigo. –
Podemos não estar dentro de casa, mas sabemos exatamente onde está o mais
bem guardado o queijo.
- Devo acreditar que vocês tem um bom olfato então.
- Não se trata de olfato, apenas olhamos para onde os outros não se
importam em olhar, pois sabemos que as coisas estão onde a gente menos espera
encontrá-las.
- E as vezes essas coisas estão bem na frente da gente. – disse Carlos
baixinho.
- É mulher. Eu sabia. – disse o mendigo rindo. – O homem pode passar por
todas as batalhas da vida sem sofrer nenhum arranhão, mas quando enfrenta as
garras de uma mulher, o mundo não viu até hoje um que saiu ileso.
- Inclusive você. – Disse Carlos sorrindo.
- Inclusive eu. – Disse o mendigo mudando a fisionomia alegre para uma
triste e depressiva. – E tudo que me restou foi esse céu sem estrelas. – disse ele
olhando para o céu novamente. Tomou mais um gole de cerveja e cobriu-se com
seu cobertor.
- Bem o papo está bom mas eu tenho que ir. – Disse Carlos, que sabia que
se ficasse mais um pouco ali ia acabar levando o mendigo para seu apartamento
com pena do homem.
- Me consegue um real ai. – Pediu o mendigo.
- Um real um não tenho, mas se eu te der cinco reais você vai comprar algo

39
para comer?
- Eu vou comprar cachaça. – Respondeu o mendigo.
- Bem pela sua sinceridade eu vou te dar dez, mas compra alguma coisa
para comer também. – Disse Carlos alcançando duas notas de cinco para o homem.
- Obrigado doutor, se precisar de alguma coisa é só me procurar, eu estou
sempre por aqui no meu escritório. – disse o mendigo.
- Pode deixar. – disse Carlos. Ele saiu andando em direção a um ponto de
taxi que tinha na esquina mas parou por uns instantes e voltou novamente até o
mendigo. – Você disse que está sempre por aqui não é mesmo? – perguntou Carlos.
- Vinte e quatro horas por dia doutor. – respondeu o mendigo.
- Então deve conhecer a maioria dos moradores. – disse Carlos.
- Quase todos, principalmente os que me dão alguma coisa.
- Por acaso conhece alguém mora naquele prédio ali em frente? –
Perguntou Carlos apontando para o prédio da tenente Cláudia.
- Gente da alta. Mas não dão muita bola para gente como eu, geralmente
evitam passar por aqui quando estou com mais uns amigos jogando um carteado,
mas tem uns dois ou três que me trazem algum lanche de vez em quando. Na
verdade só dois mesmo, uma “milica” e um velho judeu que tem uma loja de jóias no
centro, eu sei que ele é judeu porque uma vez ele me deu isso aqui ó. – o mendigo
tira dentro o casaco uma corrente de ouro que traz um estrela de Davi. – É de ouro
puro, e ele me disse que era para me proteger dos demônios noturnos. A “milica” faz
uns dias que não aparece, deve estar doente.
- Pode me falar um pouco mais dessa mulher? – Perguntou Carlos
sentando-se novamente no banco. Ele pega um maço de cigarros, acende um e
oferece para o mendigo que pega o maço, tira um cigarro e acende devolvendo
apenas o isqueiro para Carlos que pensa em pedir-lhe o maço de cigarros de volta
porém desiste pois o mendigo já havia colocado-o dentro do casaco.
- O nome dela é Claudia. É muito bonita, muito inteligente também. Ela sai
para correr todo o dia de manhã, é quando me traz alguma coisa para comer.
Sempre tem uma coisa diferente, geralmente são frutas, não como o velho judeu
muquirana que sempre traz pão com presunto, não estou reclamando, é um
presunto saboroso, é apenas para fazer uma comparação.

40
- Notou que a Claudia agia de modo estranho ultimamente? – perguntou
Carlos.
- Estranho todo mundo é doutor, porém eu notei que a “milica” tinha
mudado o comportamento sim. Nessas últimas semanas ela andava como se
estivesse sempre sendo seguida. Um dia ela até estava falando com o velho judeu
sobre espíritos ou coisas assim, eu escutei os dois conversando. Mas aconteceu
alguma coisa com ela doutor Policial? – perguntou o mendigo.
- Como sabe que eu sou policial? – Perguntou Carlos intrigado.
- Quando vi que o senhor estava armado eu pensei que era um bandido,
que havia assaltado o mercadinho, mas só um bandido estúpido ia assaltar o
mercadinho e vir para a praça para tomar cerveja.
- Então achou que eu era Policial. – disse Carlos.
- Na verdade não, pois qualquer um anda armado pela rua hoje em dia,
quando vi que o doutor falava bem e me deu um cerveja e esmola pensei que
tratava-se de um traficante, pois os traficantes sempre são bondosos com os pobres,
pois precisam da gente, e eu acho que já tinha visto sua foto no jornal, na parte
policial sabe. Mas daí você veio e me perguntou das pessoas que moram nesse
prédio ai da frente que o senhor arrombou a pouco, e depois me perguntou
exclusivamente da tenente Claudia, cujo o apartamento o senhor visitou a pouco
também, eu logo tratei de deduzir que o doutor só podia ser um policial investigando
alguma coisa. Ou um assaltante muito estranho. – terminou o mendigo com um tom
sério.
- Pelo que vejo você está bem por dentro dos fatos, mas como sabia que eu
havia estado no apartamento da tenente Cláudia? – perguntou Carlos intrigado.
- Quando acende-se uma luz, ilumina-se uma janela. – respondeu o
mendigo enquanto tirava outro cigarro do maço e acendia.
- Mas como sabia que era o apartamento da tenente? Já havia estado lá?
- Uma vez só, ela tinha uma coisas para jogar fora e pediu minha ajuda
para descer para baixo com os caixotes. – respondeu o mendigo.
- E quando você esteve lá notou alguma coisa estranha?
- Sei lá, não reparei muito, só numa bicha loca que andava de um lado para
outro falando ao celular. – disse o mendigo sorrindo.

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- Bem, você gostaria de ganhar mais algum trocado? – perguntou Carlos
levantando-se.
- Mas claro doutor. – disse o mendigo sorrindo.
- Eu preciso que você fique de olho nesse prédio principalmente em quem
entra ou sai, e se ver alguma coisa estranha, principalmente no apartamento da
tenente Claudia me comunique. – Disse Carlos alcançando um cartão para o
mendigo. – Pode me ligar a qualquer hora.
- Pode deixar doutor, qualquer coisa eu ligo. – respondeu o mendigo. – mas
à cobrar. – Terminou ele.
- Tudo bem, mas ligue. – Disse Carlos saindo.
- Ei doutor! – Chamou o mendigo. Carlos parou e olhou para ele: - Fala pra
ela o que está sentindo, eu sei que não faz parte da nossa natureza, mas é por
seguir a natureza é que eu estou aqui agora. – Carlos ficou olhando para o mendigo
e então sorriu.
- Vou ver o que vou fazer.
- Tudo bem meu amigo, mas faça a coisa certa. – disse o mendigo
enrolando-se em seu pano e caminhando em direção do prédio que iria vigiar.
Carlos ficou algum tempo parado observando o mendigo que se acomodava em um
banco da praça que dava de frente para o elegante prédio. Ele riu e caminhou até o
ponto de taxi.
Carlos pegou um taxi e seguiu para casa. Pelo caminho ia pensando em
todos os fatos acontecidos até aquele momento, em sua cabeça ele traçava uma
linha cronológica dos acontecimentos, aonde encaixava todas as peças que havia
recolhido nas últimas horas, em poucos instantes de raciocínio chegou a conclusão
de que a Tenente com certeza havia se metido com algum tipo de seita secreta,
dessas que não vêem com bons olhos os membros que, de alguma forma, acabam
não concordando com algumas de sua práticas doutrinárias e tentam se desligar do
grupo. Não era a primeira vez que ele se deparava com um caso desse tipo, e ele
sabia como ninguém que alguns grupos iam ao extremo para conservar em segredo
suas práticas, restava a ele apenas descobrir por onde a Tenente andava
procurando pelos mistérios da existência humana, quanto ao Coronel, ele já sabia
que era apenas uma peça que acabou ficando no meio do caminho e teve que ser

42
eliminado juntamente com a Tenente. Carlos olhou no relógio que marcava quase
meia noite, nem tinha notado que as horas haviam passado tão rápido desde que
haviam estado com o corpo do cabeleireiro. O taxi havia parado em frente a seu
prédio, e Carlos surpreendeu-se quando o motorista virara para falar com ele.
- Chegamos doutor, é dez pila. – Disse o motorista.
- O parceiro tu conhece o cabeleireiro Lulu Star? – Perguntou Carlos
enquanto pagava o homem.
- Claro chefe, quem não conhece.
- É, parece que nessa cidade, apenas eu. – respondeu Carlos sorrindo
- Por quê? Se tá pensando em cortar o cabelo não vai dar não, – disse o
homem rindo alto – o cara bateu as botas. – Completou o sujeito. – Aliás, já está
sendo até velado ali na assembléia legislativa, escutei no rádio agora pouco. O cara
era um figurão mesmo, se fosse pobre, estava até agora jogado lá no asfalto, esse
ai não foi nem “pro” necrotério.
- Você disse ali na assembléia? – Perguntou Carlos.
- Tá a fim de ir lá fica ai que eu ti largo. – Disse o homem. – É de graça –
disse ele sorrindo – já vou embora mesmo.

11.
Além de duas peruas histéricas chorando em cima do caixão do cabeleireiro
Lulu, tinha bastante gente da alta sociedade no velório, inclusive gente conhecida de
Carlos:
- Carlos! – chamou-lhe Antônio que encontrava-se ali vestindo um elegante
terno preto. – Não sabia que gostava de ir em cabeleireiros.
- Não sabia que você gostava de ir também, meu caro amigo.
- Bem eu tenho uma desculpa, tenho que manter protegida a primeira
Dama, nosso governador está viajando.
- Sei. E quem vai proteger ela de você? – perguntou Carlos sorrindo.
- E que vai proteger-me dela? – perguntou Antônio quando a mulher
acenou para ele.

43
- Me diz uma coisa Antônio, você conhecia bem o sujeito, esse tal de
Lulu?
- A Madame vivia indo no salão dele. – Disse Antônio puxando Carlos para
um corredor fora da sala. – Mas eu só largava ela lá nunca conversei com o cara.
Mas diz ai, qual o teu interesse? – Completou ele.
- Esse cara me ligou hoje de tarde, disse que tinha algo a dizer sobre a
morte do milicos. Daí hoje de noite, Aline e eu estávamos indo ao encontro dele e a
única coisa que encontramos foi um defunto estendido no chão.
- Bem infelizmente não posso te ajudar em nada a respeito disto, mas vou
ver o que descubro com minhas fontes, me ligue pela manhã para conversarmos, e
vê se dorme um pouco, tua cara tá horrível. – Disse Antônio batendo levemente nas
costas de Carlos.
- Antes vou fazer algumas perguntas. Alguma dica?
- Aquele morenão ali com ares afeminados, era o namorado do Pula
pocinhas. – Disse Antônio apontando para um homem negro, alto e careca que
chorava amparado por outras pessoas. Carlos entrou novamente na sala e foi ao
encontro do sujeito.
- Senhor. Poderia lhe falar um momento? – Perguntou Carlos
cutucando no ombro do homem que virou-se para ele.
- Ele era uma graça de pessoa, não merecia isso. – Falou o sujeito
chorando.
- Eu concordo, mas daria para parar de chorar um pouco e me responder
alguma perguntas. – Disse Carlos com impaciência.
- Você é jornalista ou da policia? – Perguntou o homem enxugando as
lágrimas com um lenço que Carlos lhe dera. – Se o senhor for da policia fique
sabendo que Lulu estava careta a bastante tempo, não vão conseguir manchar a
imagem dele. – Terminou o homem entregando o lenço para Carlos.
- Sou o delegado Carlos do Departamento de homicídios, e não estou
interessado em manchar a imagem de ninguém, acontece que estou investigando
um assassinato e...
- Lulu não era assassino, ai meu Deus o que falta inventarem. – Falou o
homem interrompendo Carlos e voltando a chorar novamente.

44
- Calma moço. Por favor pare de chorar e me escute, você notou alguma
coisa estranha com seu amigo durante o dia de hoje?
- Não, Lulu acordou com um ótimo humor, teve muito movimento pela
manhã, ficamos cansadérrimas.
- Algum estranho esteve no salão de beleza de você?
- Não, todos nossos clientes tem hora marcada, e são quase sempre os
mesmos. Espere um pouco, – Falou o sujeito pensativo – agora que você falou
nisso eu estou me lembrando, hoje um pouco antes do almoço um senhor bem
velhinho esteve lá .
- E você conhece esse senhor que esteve lá?
- Não, mas temos gravado a imagem dele no circuito interno de TV, vai lá
amanhã para dar uma olhada, aproveita já faz uma massagem você está com uma
cara tensa, tenho umas mão maravilhosas. – Disse o sujeito colocando um cartão
dentro do bolso do casaco de Carlos.
- Estarei lá com certeza, mas quanto a massagem... – Carlos abriu o paletó
deixando a mostra sua arma. O sujeito olhou e fez uma expressão com o rosto de
quem diz: “Já vi pistolas maiores que essa coisinha ai!” Carlos arrependeu-se por
uns instantes por causa da atitude infantil que havia tomado mas apenas sorriu para
o sujeito e saiu. Voltou para seu apartamento para dormir as poucas horas que lhe
restavam.

12.
Carlos acordou-se com Aline cutucando-lhe as costas com o cabo de uma
escova para cabelos. O sol já estava alto, pelo que percebera pela janela do quarto
que estava com as cortinas todas abertas. Nem se dera conta que tinha dormido de
roupa, na verdade nem lembrava-se como tinha chegado em casa. Isso acontecia
desde os tempos em que era apenas um aluno da academia, não foram poucas as
vezes que tivera que recorrer a ajuda médica para se recuperar das estafas a que se
submetia quando estava envolvido em um caso um pouco mais complexo, mas
depois de alguns anos de experiências ele já chegara em um ponto em que apenas
uma boa noite de sono já resolvia para que ele volta-se a plena forma; agora porém

45
Carlos sentia-se como nos tempos em que estava na academia, e por um momento
ele achou graça da situação em que notara que apesar de mais velho ele estava
fisicamente quase igual a quando era um novato inexperiente. Aline cutuca-o
novamente com o cabo da escova.
- Vamos acordando Sherlok Holmes tupiniquim, já é quase meio dia. –
Falou Aline abrindo o vidro da janela deixando um vento frio invadir o quarto que fez
com que Carlos se encolhesse nas cobertas.
- Aline, por favor me deixe em paz. – Ralhou Carlos tapando a cabeça com
um travesseiro.
- Pelo jeito a noitada estava boa, o porteiro disse que tu chegou quase
seis horas da manhã.
- Fui no velório da bichinha Lulu, porque, está com ciúmes? – Disse ele
levantando-se.
- Vai te catar abusado, e ai o que tu tá sabendo? – Falou Aline atirando um
travesseiro em Carlos.
- Por enquanto nada, mas vou lá no salão do tal Lulu, – disse procurando
no bolso do casaco o cartão que o sujeito havia lhe dado – parece que esteve
alguém estranho lá fazendo umas perguntas. E o livro, você ainda está com ele ?
- É claro tá bem aqui – Aline pegou um pacote que havia colocado em cima
do criado mudo – e eu gostaria que Tu ficasse com ele, esse troço tá me dando
arrepios. – Completou ela atirando o pacote em cima da cama.
- Como assim? – Perguntou Carlos pegando o pacote.
- Sei lá, tive umas sensações estranhas ontem a noite...
- Como se alguém tivesse te observando o tempo todo? – Perguntou Carlos
interrompendo Aline.
- Exatamente, porque? – Perguntou ela intrigada.
- Eu também senti a mesma coisa. Vim para casa a pé ali da Assembléia,
depois do velório, e tinha a nítida sensação de que alguém saíra de lá atrás de mim
mas sempre que eu olhava para trás não tinha ninguém, mas eu juro que podia
escutar nitidamente os passos me seguindo.
- Então vamos logo neste salão, que quanto antes acabar esta história

46
melhor. – Disse Aline levantando-se e saindo do quarto. Carlos apenas passou uma
água no rosto, escovou os dentes e os dois saíram.

13.
No caminho para o salão Carlos notara que Aline parecia um pouco abatida,
seu aspecto era a de uma adolescente que acabara de fazer algo errado e que
estava pensando nas conseqüências de seus atos, temendo mais pela punição do
que pelo próprio ato em si. Carlos sabia que Aline nutria um afeto muito grande pela
tenente assassinada, e que de alguma forma ela se sentia culpada pelo que tinha
acontecido a sua amiga, e agora ficava se martirizando pelas coisas que podia Ter
feito mas não fez; por outro lado havia também o fator do desgaste físico, se ele,
que era conhecido com uma rocha, já estava se sentindo cansado, o que estaria
passando com sua jovem parceira, que passava a maior parte do tempo atrás de
uma escrivaninha tratando de casos de militares faltosos com a disciplina, e que
agora tinha sido colocada para trabalhar em campo lidando com acontecimentos
totalmente novos para ela. Mas o que estava mais lhe preocupando no momento era
sem dúvida o aspecto psicológico de Aline, que demonstrava não ter dormindo
muitas horas desde que aconteceram os assassinatos. Carlos começara a pensar
no que o mendigo havia lhe dito na noite anterior, e procurava uma forma de dizer
algo consolador para Aline, porém resolveu manter-se em silêncio, talvez por não
Ter as palavras certas ou talvez por não Ter coragem de dize-las . Aline por fim
quebrou o silêncio que reinava no carro para o alívio dele:
- Carlos, você acredita que possam existir certas coisas que não tem
uma explicação lógica? – Perguntou ela com um aspecto um tanto triste.
- Tipo o quê?
- Fenômenos sobrenaturais.
- Você quer saber se acredito em fantasmas? – Perguntou Carlos enquanto
acendia um cigarro no isqueiro do carro.
- Quase isso. – Respondeu Aline sem jeito.
- Quer fazer o favor de falar claramente.
- Está bem, mas não vai ficar pensando que eu estou ficando louca. – Disse

47
Aline mais convicta desta vez.
- Aline, você já é louca, pior que isso não fica.
- Tu é um amor sabia.
- Claro que sei, mas não estamos falando de mim, conte o que aconteceu
contigo afinal. – Disse ele tirando uma longa tragada do cigarro sem olhar para Aline
que ficou uns breves instantes olhando para ele; por fim resolveu falar:
- Como eu te disse, ontem fui para casa com aquela sensação de que
alguém estava me observando, – fez uma pequena pausa e continuou – parecia que
tinha alguém no banco de trás do meu carro, sei lá parecia que eu podia sentir a
respiração, os movimentos alguma coisa desse tipo.
- E o que você fez?
- Bem, de vez em quando eu arriscava dar uma olhada pelo retrovisor louca
de medo do que eu poderia ver. Quando eu cheguei em casa estava tão apavorada
que tomei um calmante para dormir, e quando eu estava quase pegando no sono,
ou talvez já estivesse até dormindo sei lá, escutei uma voz me chamando.
- E o que ela dizia?
- Era uma voz de criança, chegava ser até angelical, o que mais me
apavorou é que parecia que ela vinha de todas as direções do quarto, hora parecia
que vinha da porta, outra parecia que estava deitada ao meu lado na cama, ela dizia
que o que eu tinha não me pertencia, e que era para eu me desfazer ou sofreria as
conseqüências.
- Você se levantou? – Perguntou Carlos mostrando um pouco mais de
interesse pelo fato.
- Claro que não, eu estava apavorada, cheguei até a rezar para meu anjo
da guarda, e que no outro dia eu ia me livrar do que não me pertencia pois eu sabia
muito bem o que era, por isso que eu quero que tu fique com o tal livro. – Concluiu
um pouco mais aliviada por Ter desabafado com alguém.
- Que bom. Que ótima idéia você teve, vou achar maravilhoso ficar com o
tal livro e ter um fantasma pentelho me enchendo o saco de madrugada. E eu que
nem tenho um anjo da guarda pra aliviar minha barra – Disse Carlos enquanto
estacionava em frente a um elegante salão de beleza que ostentava na porta um
letreiro luminoso de néon com os seguintes dizeres: “Templo de Narciso”.

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- Todo mundo tem um anjo da guarda Carlos, é só acreditar nele.
- Pode me tirar desse círculo minha querida. – Disse Carlos sorrindo. – Se
eu tive um anjo da guarda algum dia, ele deve ter fugido com uma piranha qualquer.
- É bem provável, pois dizem que os anjos acabam adotando em parte a
personalidade de quem protegem. – Exclamou Aline.
- E tem mais, esse negócio de anjo da guarda é uma coisa meio sem nexo.
- Como assim? – perguntou Aline.
- Se existem anjos da guarda que estão sempre no “nosso bico” para que
não soframos mal algum, como é que existem as pessoas que acabam sofrendo
algum tipo de desgraça?
- Bom, é que os anjos tem que também tem que respeitar os desígnios de
Deus. – Respondeu ela.
- Ah! Daí a gente vai entrar no caso que Deus escreve certo por linhas
tortas.
- É por ai. – Respondeu Aline.
- Bem vamos deixar esse papo divino para mais tarde e vamos ver
o que as bichinhas tem pra nós. – Disse Carlos enquanto fechava a porta do carro.
Entrando no salão foram recebidos por uma loira exuberante, com o rosto
“carregado” de maquiagem que não conseguia esconder a barba mal feita, na
verdade isso nem chamou a atenção de Carlos, mas sim o par de seios siliconados
de dar inveja em muita mulher que existe por ai. Os dois identificaram-se para a
“moça” e pediram para falar com o sujeito com quem Carlos tinha estado na noite
anterior. Carlos entregou o cartão que havia ganhado e a loira saiu gritando pelo
salão.
- O Priscila, tem um bofe aqui querendo falar com você. – Falou ela para o
sujeito que saíra de uma porta no fundo do salão. – E é cana. – Completou ele
baixinho ao pé do ouvido do outro que fez sinal de que estava tudo bem.
- Delegado! – Gritou Priscila com uma voz agudíssima. – Querido eu já
estava “anciosérrima” esperando por ti. Vai topar a massagenzinha? está com uma
cara tão tensa – disse Priscila apertando as bochechas de Carlos que não fez nada
para impedir, ainda estava tentando entender como é que um marmanjo podia Ter

49
um par de seios tão perfeitos como aqueles – deixa essas mãos de veludo fazerem
um trabalhinho neste corpo. – Completou Priscila.
- Puxa Carlos, pelo jeito tu já é bem conhecido da galera ai. – Falou Aline
sorrindo.
- Bem dona.... Priscila. Essa é minha colega Aline, ela está me ajudando na
investigação da morte de seu namorado. – Disse Carlos voltando a realidade.
- Ex, queridinho. Agora a bicha aqui está livre e desimpedida. – Disse
Priscila imitando o bater de asas de um pássaro com os braços. – Prazer criança.
– Completou ele estendendo a mão para Aline.
- Será que pode nos dar a Fita de vídeo, estamos com um pouco de pressa.
– Disse Carlos olhando em volta do salão para ver conseguia dar um última olhada
na loira.
- Não vão nem aceitar um chá? – Perguntou Priscila fazendo beiço.
- Não obrigado. – Respondeu Carlos num tom sério. – Estamos a serviço e
não podemos perder muito tempo.
- Carlos deixa de ser mal educado! Aceitamos sim Priscila. – Disse Aline
beliscando o braço de Carlos.
- Fiquem à vontade pombinhos. – Falou Priscila retirando-se. – Vou ir
buscar o chá. – Completou ele.
- Qual é Aline? – Disse Carlos esfregando o braço que havia levado o
beliscão.
- Fica frio querido, eu também quero fazer algumas perguntas. – Disse
Aline sorrindo.
- Vê lá o que você vai aprontar. – Disse Carlos tirando a carteira de cigarros
do bolso quando Priscila vinha chegando com uma bandeja de chá. Carlos colocou a
carteira de cigarros no bolso novamente sem tirar nenhum.
- Aqui está queridinhos, açúcar ou adoçante? – Perguntou Priscila
passando uma xícara de chá para Aline.
- Adoçante por favor. – Disse Aline enquanto Priscila pingava-lhe alguma
gotas de adoçante na xícara dela.
- Quer também Delegado? – Perguntou Priscila oferecendo o frasco de
adoçante para Carlos.

50
- Pode ser, pode ser. – Respondeu Carlos seriamente.
- Ui. Como está tenso. Relaxa paixão. – Disse Priscila sorrindo.
- Priscila, quanto ao Lulu, notou algum comportamento diferente nos
últimos dias? – Perguntou Aline chamando a atenção de Priscila para si.
- Depois que eu falei com o lindinho ai – disse Priscila apontando com a
cabeça para Carlos – eu me lembrei de uma coisa. Lulu andava lendo esses livros
esotéricos ultimamente, sabe estes negócios de alma, espíritos e coisa e tal, ele
nunca foi chegado nisso, mas sei lá, sabe como são as pessoa né, uma hora nunca
ouviram falar do assunto, em outra se torna fascinado. Foi assim comigo quando
descobri a depilação com cera fria. – Concluiu Priscila.
- E ele comentou alguma coisa com você sobre qual seria o interesse dele
nestes assuntos? Você notou algum comportamento estranho? – Perguntou Aline.
- Não que eu me lembre, – disse Priscila servindo-se de um pouco mais de
chá – mas uma noite ele se acordou e ficou falando sozinho umas coisas estranhas,
sei lá que coisa era aquela, parecia algum tipo de reza. Rezava e olhava pela janela,
como se estivesse cuidando alguém ou alguma coisa. – Terminou Priscila.
- Priscila, você por acaso Você conhecia a tenente Claudia? – Perguntou
Aline.
- Claudia... de nome assim não estou me recordando, como ela era? –
Perguntou Priscila tentando lembrar-se de algo.
- Loira, assim tipo eu. – Disse Aline passando as mãos nos cabelos. Carlos
olhando a cena sorriu.
- Nada pessoal queridinha, mas dezenas de pessoas, tipo você, vêm aqui
todos os dias. – Disse Priscila. Carlos acabou afogando-se com o chá devido ao
comentário de Priscila, ninguém como ele sabia o quanto Aline detestava ser
comparada com outras pessoas, ela era do tipo que considerava-se única, o
comentário de Priscila provavelmente atravessou-lhe o coração como uma espada
afiada. “As duas” ficaram olhando por alguns instantes para a fisionomia dantesca
de Carlos com o rosto completamente vermelho tentando recuperar-se do engasgo.
- Reconhece esse livro? – Perguntou Aline mostrando-lhe o livro que trazia
na bolsa.

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- Mas claro! – Disse Priscila pegando o livro nas mãos – Depois que o
velho foi embora, Lulu pediu que eu pegasse esse livro que estava escondido
embaixo da cama e colocasse na bolsa dele. Perguntei do que tratava-se e ele não
me respondeu nada, apenas disse que queria ficar um pouco sozinho. Mas era esse
livro ai. Como conseguiram?
- Segredo de justiça, não podemos revelar.
- Que legal, que nem naquela séries de TV né? – Comentou Priscila sorrindo.
- Mais ou menos. – Respondeu Aline
- Aline, precisamos ir! – Disse Carlos levantando-se.
- Claro, desculpe tomar seu tempo Priscila, poderia nos dar a fita de vídeo
agora. – Disse Aline sorrindo.
- Claro fofinha. Esperem aqui. – Priscila levantou-se e dirigiu-se para o
fundo do salão entrando em outra peça.
- Viu, não doeu nada. – Disse Aline passando a mão no casaco de Carlos
que ainda tinha respingos de chá.
- Sim não foi você que quase morreu engasgado. – Disse Carlos afastando
a mão de Aline.
- Se não tivesse tirando sarro de mim, meu anjo da guarda não teria lhe
castigado. – Disse Aline. Priscila apareceu no salão novamente trazendo um pacote
em sua mão.
- Aqui está fofos. – Disse Ele entregando o pacote para Aline. – Qualquer
coisa que precisar estarei a disposição ouviu delegado. – Disse ele piscando os
olhos para Carlos.
- Pode deixar. – Falou ele pegando Aline pelo Braço e puxando-a para fora
do salão.

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14.
Carlos deixou Aline no quartel da policia do exército com a fita que haviam
recebido de Priscila no salão de beleza. Ela ficou encarregada de pegar a imagem
do tal velho e passar para alguns contatos do serviço de informações do Exército
para ver o que conseguia descobrir. Carlos rumou para o mercado público para fazer
uma visita para um bom amigo e tomar alguma “coisa forte” pois estava precisando
revitalizar as baterias. Chegando no mercado subiu até o segundo piso e entrou em
uma pequena cantina onde foi recebido por um senhor de uns cinquenta e poucos
anos com um belo sorriso no rosto, o senhor na verdade era uma cópia de Carlos
numa versão mais velha, e não poderia ser por menos, tratava-se de seu Giulliano,
pai de Carlos. Aquele tipo bonachão com sorriso encantador era o anti-depressivo
semanal de Carlos, ele amava o pai mais do que tudo, sua trajetória de vida servia-
lhe de inspiração, Giulliano é um imigrante italiano que aportou nesses lados na
metade do século passado, com um pouco de dinheiro e esperança de um futuro
melhor, seu espírito empreendedor fez o dinheiro render o suficiente para comprar
algumas propriedades no interior do estado, aonde cultivou algumas centenas de
vinhas e criou gado de leite. Sentindo o peso da idade, e com um filho adolescente
para prover educação, resolvera mudar-se para a capital para poder oferecer um
pouco mais de conforto para sua família. Com o dinheiro da venda suas
propriedades, o senhor Giulliano se estabeleceu como comerciante na capital, e
logo figurava entre as pessoas mais bem sucedidas da cidade, com pontos
comerciais estabelecidos em uma grande quantidade de lugares; depois que seu
varão e único filho decidiu seguir outro rumo que não o da administração de seus
negócios, o velho Giulliano decidiu que já era hora de entregar-se à aposentadoria,
que para ele não significava parar de trabalhar, mas sim trabalhar um pouco menos,
e ele também sabia que em pouco tempo o seu empreendimento iria acabar
sufocado pelas grandes redes com seus supermercados cheios de novidades e
modernidade; fechou negócio com uma pequena rede local que estava em
expansão e entregou-se a pensar no que poderia fazer para não tornar-se um velho
chato e ranzinza que não é suportado nem por seu próprio cão, resolveu então
adquirir a pequena cantina no segundo piso do mercado público, que pertencia a um
amigo seu, e é ai que encontramos-lhe na maior parte de seu tempo.

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Na pequena cantina apenas uma pessoa encontrava-se no balcão tomando
uma bebida e lendo um jornal.
- Bambino mio, que bono que apareceu. – Disse Giulliano com um sotaque
carregado.
- Oi papa, me serve ai um daqueles tintos que tu tem guardado em baixo do
balcão. – Disse Carlos sentando-se ao lado do homem que estava no balcão, os
dois apenas se olharam e cumprimentaram-se com a cabeça. A pequena cantina
tentava conservar-se com um ar agradável e acolhedor das velhas cantinas do
interior do estado. A frente do balcão, em uma pratelheira, uma fileira de garrafas
de vinhos, conhaques e Vodka mostrava o que a casa servia. Algumas pernas de
lingüiça calabresa encontravam-se dependurados logo abaixo da prateleira de
bebidas. Uma pequena abertura na parede deixava-se ver o movimento na pequena
cozinha da cantina que servia apenas para preparar pequenos aperitivos.
- Pelo jeito a coisa tá preta hein, tu mama tá te enchendo os tubos? –
Perguntou o pai de Carlos debaixo do balcão escolhendo uma das garrafas que
estavam guardadas ali no meio do pó e de teias de aranhas.
- Até que não, é um caso ai que estou investigando. – Disse Carlos
pegando um pedaço de queijo que seu pai havia colocado em cima do balcão.
- O da bicha ou o dos milicos? – Perguntou o pai de Carlos enquanto
lavava uma garrafa que havia pegado em baixo do balcão. Havia certos momentos
em que seu Giulliano não apresentava nenhum sotaque, geralmente quando ficava
mais interessado em certos assuntos, então queria que o locutor entendesse bem o
que ele questionava, mas na maior parte do tempo ele insistia em utilizar-se de
palavras, e as vezes até mesmo frases inteiras, do idioma de sua pátria mãe,
“Apenas para não esquecer das raízes.” justificava ele sorrindo.
- Praticamente os dois. – Respondeu Carlos indiferente.
- Porca miséria, e com o soldo que tu ganha não prefere vir aqui laborá
con tu papa? – Perguntou o senhor sorrindo enquanto servia um pouco de vinho em
um cálice e alcançava para Carlos. Carlos levou o cálice até o nariz cheirou, colocou
um pouco na boca e fez sinal para que seu pai colocasse mais.
- Quem sabe depois dessa história terminar. – Disse ele.
- Já tene alguma pista? – Perguntou seu pai.

54
- Nada ainda, só esse livro velho. – Disse Carlos mostrando ao seu pai o
livro que Aline havia dado-lhe para guardar.
- Parece coisa do Egito. – Disse Giulliano pegando o livro nas mãos.
- Também acho, conhece alguém entendido no assunto? – Perguntou
Carlos enquanto tomava o resto do vinho num gole só.
- Tem um vecchio que as vezes vene qüi, ele tem um sebo ali na rua
riachuelo esquina com a Borges. – Respondeu o pai de Carlos enquanto servia-lhe
um pouco mais de vinho. Pegou um copo e serviu-se de um pouco também.
- Vou dar uma passada lá depois que sair daqui. – Falou Carlos cortando
mais um pedaço de queijo. Seu pai pegou um prato e entrou na pequena cozinha
para trazer para Carlos algo mais para comer.
- Pelo menos os milicos não viraram lingüiça. – Falou o velho que estava
sentado no balcão e que até o momento estava apenas escutando a conversa dos
dois. Como se tivesse falado consigo mesmo, o velho virou a folha do jornal e
continuou lendo, sem virar-se para Carlos que olhava para ele como se esperando
que ele explicasse o que tinha dito. Passados alguns instantes, e notando que o
velho não diria mais nada, Carlos questionou-lhe:
- Desculpe senhor. Não entendi o que o senhor falou. – Disse Carlos
para o velho que continuava a ler seu jornal. Nesse instante o pai de Carlos sai da
cozinha trazendo um prato com algumas fatias de pão mais salame e presunto:
- Ma non da attenzione pra este ubbriaco vecchio, ele está sempre
delirando, io só aturo ele aqui perché é o único amico que ainda não bateu as botas,
não é mesmo Giancarlo? – Disse o pais de Carlos pegando um copo e servindo um
pouco de vinho para o velho que largou o jornal e pegou o cálice tomando um
grande gole da bebida.
- Fale o que quiser – disse o velho - mas lingüiça eu não como mais. Pelo
menos até prenderem o sujeito que anda matando as pessoas por ai.
- Ainda estou boiando. – Disse Carlos tomando mais um gole de vinho.
- Ma tu nunca ouviu parlare dos crimes da rua do arvoredo? – Disse o pai
de Carlos limpando o balcão.
- Claro que sim, mas o que tem a ver uma coisa com a outra? – Perguntou
Carlos.

55
- É que os crimes aconteceram ali na Fernando Machado, que antes se
chamava rua do arvoredo. – Respondeu o pai de Carlos.
- Eu sei disso papa, eu fui a escola, lembra-se? Só não sei o que tem a ver
uma coisa com a outra.
- Era um demônio meu filho, matava as pessoas para fazer linguiça. –
Disse Giancarlo, estendendo a mão para que Carlos alcançasse-lhe o prato que seu
pai havia lhe trazido antes.
- E o senhor acha que estão novamente matando as pessoas para fazer
lingüiça? – Perguntou Carlos enquanto alcançava-lhe o prato. – Mas nem levaram
os corpos. – Concluiu Carlos. O velho pegou um pedaço de pão, colocou na boca e
tomou um gole de vinho.
- Sei lá, mas que tem alguma coisa a ver isso tem. Até os jornais estão
falando disso, olha só. – Respondeu o velho mostrando a primeira página do jornal
que figurava em letras grandes a frase: “Rua do Arvoredo - A mesma rua, um novo
crime.” Carlos pegou o jornal e leu um pedaço da matéria que tentava fazer uma
conexão entre os recentes crimes e os fatos passados no século dezenove, na
mesma rua Fernando Machado, que na ocasião se chamava Rua do Arvoredo.
- Bem o papo está bom mas vou indo, tenho muito trabalho pela frente. –
disse Carlos levantando-se. O velho apenas levantou a mão em sinal de que para
ele estava tudo bem. O pai de Carlos sorriu e disse para ele aparecer no outro dia
para tomar um café e para eles conversarem melhor, ele concordou com a cabeça e
saiu.

56
15.
Carlos tinha ficado com aquela história do velho na cabeça, mesmo que não
fizesse sentido algum ele achava que tinha que averiguar melhor a hipótese
levantada pelo velho, pois mesmo sabendo que a história podia não fazer sentido
nenhum, não custava nada dar uma pesquisada, quem sabe não surgisse algum
fato novo que ele havia deixado passar despercebido, pois tratando-se de um caso
dessa natureza, nenhuma hipótese poderia ser descartada, quem garantiria que não
pudesse ter surgido um maluco achando ser a reencarnação do açougueiro
assassino. Notando que havia chegado na rua Riachuelo, mesmo sem Ter pensado
em passar por ali, Carlos resolveu entrar num dos primeiros, de vários, sebos que
existem por ali. O cheiro de mofo e papel velho fez com que ele recuasse alguns
instantes antes de entrar. O ambiente tinha um certo ar sombrio de abandono, e as
poucas janelas que haviam davam a nítida certeza de que não eram abertas a muito
tempo devido as teias de aranha acumuladas nos cantos e sobre as dobradiças, a
grande janela da frente da loja estava aberta, mesmo assim apenas uma de suas
metades, e seus vidros eram mantidos fechados. As pilhas de livros acumulavam-se
pelos cantos. Nas estantes haviam alguns novos, mas na sua maioria eram livros
velhos. Um rapaz que empilhava alguns livros no fundo da loja, gritou a Carlos que
já viria atendê-lo; era um rapaz jovem, adolescente ainda, na faixa de seus quinze
ou dezesseis anos. Sua aparência era de um jovem subnutrido; era alto e muito
magro. Ostentava na face um pesado par de óculos com as lentes sujas; Carlos
ficara imaginando como ele fazia para poder enxergar através daquelas lentes
imundas. Retirando o avental que usava enquanto empilhava os livros, o jovem
rapaz dirigiu-se até Carlos que perguntou-lhe pelo proprietário da loja, Ele
informou-lhe que o dono não se encontrava, tinha ido comprar alguns livros no
interior do estado. Carlos deu uma boa olhada nas várias estantes repletas de livros,
tentava entender como é que alguém conseguia viver no meio de tanto livro velho,
num lugar que apesar de conter boa parte da sabedoria da humanidade mantinha
uma aspecto decadente e solitário. Carlos acenou com a cabeça para o rapaz e
dirigiu-se para a saída da loja, lembrou-se então de mostrar ao rapaz o livro que
trazia junto consigo, quem sabe podia lhe esclarecer alguma coisa sobre aquela

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obra que tantos calafrios havia causado em Aline, tirou o livro de dentro do pacote
que trazia debaixo do braço e mostrou ao rapaz.
- Saberia me dizer do que se trata esse livro? – Pergunto Carlos
Diante do velho livro, o jovem atendente do sebo empalideceu. Evitou toca-lo, e
começou a afastar-se lentamente na direção oposta de Carlos. Carlos notou a
mudança em sua fisionomia e resolveu colocar o livro no pacote novamente.
- Está tudo bem guri? – Perguntou Carlos Apreensivo.
- Sim senhor. Apenas um mal estar.
- E então pode me ajudar com esse livro ou não?
- Não senhor, não sei nada a respeito dele não. O senhor me desculpe mas
já estamos fechando. – Respondeu o rapaz conduzindo Carlos pelo braço até a
porta, e mesmo sem entender o motivo da aflição do rapaz, Carlos resolveu sair sem
resistência, porém percebeu que o jovem tinha alguma coisa a esconder, e que o
simples mal estar causado pela visão do livro não seria devido a seus poderes
maléficos que Aline imaginava que ele possuía, fora causado sim pela surpresa de
ver algo que talvez fosse a resposta para tudo o que havia acontecido. Carlos foi
para seu apartamento a fim de tomar um banho e preparar-se para mais uma noite
sem sono, pois estava disposto fazer campana perto do sebo para ver se descobria
o que havia deixado o jovem atendente tão apavorado.

16.
Depois de tomar um banho e Ter dormido umas duas horas, pegou um pouco
de munição a mais para sua arma. Voltou até o sebo a pé. Eram mais ou menos
onze horas da noite. Notou que havia uma luz acesa no andar superior do sebo, logo
ainda deveria ter alguém lá, ajeitou-se na escadaria de um prédio vizinho ao sebo e
esperou. Uma fina garoa começara a cair nesse momento, Carlos então levantou a
gola de seu casaco e encolheu-se contra a parede fria do prédio. Não demorou
quinze minutos e a luz que havia no sebo se apagou. Alguns instantes depois uma
pessoa saiu pela porta da frente, Carlos conseguiu reconhecer o rapaz que havia
atendido-lhe horas antes. O rapaz saiu do prédio olhando para todos os lados.

58
Cuidava para ver se não estava sendo seguido. A intenção de Carlos era vasculhar
o sebo em busca de alguma pista, porém resolveu seguir o rapaz, sua intuição dizia-
lhe que talvez fosse mais proveitoso do que ficar revirando um sebo cheio de livros
velhos e fedorentos. O rapaz andou pela Av. Borges até o viaduto Otávio Rocha.
Subiu as escadarias que dão na Av. Duque de Caxias e pegou para a esquerda em
direção a Floriano Peixoto. Ali na Floriano Peixoto quase esquina com a Duque, para
o lado do centro, tem mais alguns sebos. O rapaz entrou num deles e ficou lá dentro
por mais ou menos uma hora e meia, enquanto Carlos aguardava dentro de um
pequeno bar que havia perto dali; já passava da meia noite quando o rapaz saiu,
olhou para os lados para ver se não tinha ninguém, atravessou a rua e entrou num
velho casarão abandonado que ficava em frente a este mesmo sebo. O bar em que
Carlos estava já havia fechado, ele resolvera aguardar na frente do mesmo, e mal
podia-se ver seu semblante coberto pela escuridão da noite, apenas o braseiro de
seu cigarro iluminava a noite fria como se fosse um solitário vagalume de inverno, se
eles existissem é claro, ele esperou uns cinco minutos e resolveu ir atrás do rapaz.
Pulou o portão lateral da casa, pois a pesada porta de madeira da entrada com
certeza denunciaria sua presença; entrou na casa pela porta dos fundos, que
encontrava-se aberta, e começou a vasculhar os cômodos da casa á procura do
rapaz. A escuridão atrapalhava-lhe e fazia-o a todo momento localizar alguma ponta
de madeira com suas canela, porém ele não podia arriscar-se a acender o isqueiro
pois poderia chamar a atenção. Carlos continuou caminhando pela casa até
encontrar uma escada que dava acesso aos dois outros pavimentos superiores, ele
subiu cuidadosamente até o primeiro pavimento, pois a escada não dava sinal de
ser muito firme, quando chegou até o pavimento, notou que de um dos cômodos
vinha o som de duas vozes e uma fraca luz, ele então subiu o último lance de
escadas até o pavimento que ficava acima do andar aonde estava. Contou os
cômodos daquele andar até chegar no que ficava bem acima daquele onde ele havia
notado os movimentos. Entrou no quarto e fez um pequeno ruído quando pisou no
assoalho apodrecido, enrugou a face como se aquilo fosse ajudar de alguma
maneira a cessar o ruído; manteve-se imóvel por uns instantes e então começou a
pensar em uma forma de caminhar por ali sem acabar parando na parte debaixo
devido a podridão do assoalho. Olhou para o centro do cômodo e notou que por uma

59
fresta do assoalho, subia uma luz vindo do andar de baixo. Ele deu mais um passo a
frente cuidando para ser silencioso e quando ia dar o próximo passo um gemido
agudo e aterrorizante de alguém que parecia estar sofrendo terrivelmente, fez-lhe
levar a mão até sua arma e sacá-la, olhou em direção do corredor e pode constatar
que eram apenas alguns gatos vadios brigando dentro da casa, porém aquilo fez-lhe
saltar o coração do peito, ele ainda levou algum tempo até recuperar totalmente sua
calma; secou o rosto que suava muito apesar do frio, e antes de entrar novamente
no cômodo fora surpreendido novamente por alguém que aparecera às suas costas,
porém constatara que tratava-se apenas de sua sombra pregando-lhe um peça,
devido a repentina aparição da lua cheia por detrás das negras nuvens de chuva,
não custou muito e a lua voltou a ser encoberta novamente e o lugar voltou a
entregar-se as trevas mais uma vez; Carlos guardou sua arma e voltou para o
cômodo. Ficou alguns instantes parado, encostado em uma das paredes, ele não
conseguia entender a causa de tanto temor, já havia se envolvido em uma dezena
de situações como aquela, e nunca seu coração mantinha um compasso acelerado
como aquele, Carlos recupera o fôlego e resolve seguir em frente. Entrou na escura
peça e fitou o buraco no assoalho que deixava passar em direção do teto um
pequeno facho de luz; aquele buraco, à pequena distância de apenas dois metros,
parecia estar a dois quilômetros, tanto era o cuidado que Carlos tinha para chegar
até ele.
Chegando a uma distância que já fazia-o enxergar dois homens sentados no meio
do cômodo do andar debaixo. Carlos reconheceu o rapaz que estava seguindo: ele
conversava com um velho, os dois estavam sentados ao chão um de frente para o
outro; a luz que saia do cômodo era de uma vela acesa ao lado do velho que comia
algo. Carlos deitou-se no assoalho para ouvir melhor o que os dois diziam:
- Você está se arriscando demais vindo até aqui. – Falou o velho depois de
beber algo de uma garrafa.
- Eu sei vovô. – Disse o jovem. – Mas não tive outra escolha, papai está
viajando.
- E o livro Francisco, Conseguiu recuperar? – Perguntou o Velho.
- Não. Mas não se preocupe. Sei aonde está, eu vi ele com meus próprios

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olhos essa tarde. Confesso que cheguei a ficar assustado. Sabe, parece que ele me
encontrou. Estava com um sujeito que chegou na loja fazendo algumas perguntas,
tratei de livrar-me dele, mas depois segui-o até o prédio onde mora, vou dar um jeito
de fazer-lhe uma visita. – Disse Francisco.
- Como vai convencê-lo a entregar o livro? – Perguntou o velho.
- Ainda não sei, mas vou dar um jeito não se preocupe. – Respondeu
Francisco.
- Seja rápido, viu o que acontece quando o livro cai em mãos erradas,
temos que impedir que o circulo se feche. – Disse o velho.
- Pode deixar vovô. Tudo vai correr bem eu prometo. – Respondeu-lhe
Francisco recolhendo as coisas que havia trazido para seu avô em um pacote, o
velho deitou-se em canto do cômodo em cima de um pequeno colchão e Francisco
cobriu-lhe com um cobertor, em seguida sentou-se ao lado dele, pegou um livro e
começou a ler alguma coisa, Carlos não conseguia entender o que o rapaz estava
lendo pois tratava-se de um idioma desconhecido para ele, notou porém que a
ladainha iria demorar, virou-se de costas, e ainda deitado, resolveu esperar até que
Francisco saísse para poder interrogar o velho, fechou os olhos por alguns instantes
e quando voltou a abri-los novamente, os primeiros raios de sol da manhã invadiam
as frestas do telhado apodrecido da velha mansão. Alguns pombos voavam por
entre os espaços sem forro do cômodo. Ainda deitado, Carlos teve a sensação de
que estava sendo observado, levantou-se rapidamente olhando em volta do cômodo
vazio, silenciou-se por alguns instantes até que apenas o barulho do bater de asas
dos pombos e de sua própria respiração quebravam o silêncio do local. Carlos olhou
pela fresta do assoalho e constatou que seus misteriosos amigos não estavam mais
lá; resolveu dar uma vasculhada geral na casa para ver se meus misteriosos
suspeitos haviam deixado algo, porém sua busca foi em vão, a velha mansão sequer
oferecia sinal de que tinha sido visitada por alguém.
Carlos saiu da velha mansão e voltou para seu apartamento, seu corpo estava todo
dolorido pela noite de sono passada no apodrecido e úmido assoalho da mansão.
Deu uma olhada no espelho, sua cara parecia com um porco espinho. Olhou para o
barbeador dependurado na parede mas não estava com nem um pouco de vontade
de fazer a barba, não agora, agora ele só queria dormir confortavelmente em sua

61
cama. Olhou no relógio, marcava sete horas da manhã, ajustou-o para despertar às
onze horas. Tirou o telefone do gancho, jogou-se na cama e apagou.

17.
Aline levou a fita de vídeo para um colega no setor de inteligência do exército
para que ele isolasse a imagem do tal velho para que ela pudesse Ter uma
fotografia nítida.
- Vai ser meio complicado. - Exclamou o jovem tenente.
- Complicado em que sentido? - Perguntou Aline.
- É que assim ó, a senhora está vendo que a qualidade do vídeo não está
muito boa, e que por algum motivo a cara ai sabia que está sendo filmado, por isso
ele evita de passar muito em frente da câmera.
- Não tem como dar um jeito?
- Bem, posso isolar as partes em que ele aparece e fazer uma montagem
tri-dimensional de seu rosto, mas devo dizer que isso não pode ser usado como
prova, é que nem retrato falado sabe.
- Então faça o que tem que fazer. - Disse Aline.
- Sim senhora. - O jovem tenente começou rodar a fita enquanto isolava
algumas partes das imagens que iam formando em um rosto em um outro monitor
ao lado deste.
- Eu vou pegar café, você quer um? - Perguntou Aline. O jovem oficial
apenas acenou negativamente com a cabeça, pois estava totalmente absorvido em
seu trabalho. Após aproximadamente trinta minutos o colega de Aline conseguiu
fazer uma montagem com várias partes da foto, e eles tinham no monitor a imagem
do velho que havia estado no salão do cabeleireiro Lulu.
- Bem, não está muito boa mas é o que dá para fazer. - Exclamou o tenente
enquanto imprimia uma cópia da foto.
- Se é o que tem vamos trabalhar com isso. Vê com o pessoal do S2 se
eles conseguem levantar alguma coisa para mim. - Disse Aline.
- Pode deixar Tenente. - Respondeu o oficial prestando-lhe continência.
Aline retribuiu o cumprimento e saiu da sala.

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18.
Saindo do quartel, Aline resolveu ir até o apartamento de Carlos, pois
tinha ligado diversas vezes para lá e o telefone estava ocupado, e aquilo estava lhe
intrigando, embora já soubesse que Carlos cultivava o hábito de tirar o telefone do
gancho quando estava imerso no trabalho, não custava nada passar por lá para
averiguar, de qualquer forma teria de falar com ele de qualquer maneira. Chegando
ao prédio fora informada pelo porteiro que Carlos havia saído à noite e não havia
regressado até o momento, ela resolveu então seguir para o mercado público, pois
sabia que em momentos de estresse Carlos tinha o hábito de ir até a cantina de seu
pai encher a cara, provavelmente estaria por lá deitado, bêbado, em uma das mesas
da cantina. Entrou no mercado público e começou olhar em volta tentando lembrar-
se onde ficava localizado o estabelecimento, Carlos havia trazido-a apenas uma vez
até ali, e ela não tinha o hábito de ir até o mercado público. Subiu até o andar
superior e dirigiu-se até o pequeno bar que ostentava em cima da porta uma
tabuleta com os dizeres, entalhados na madeira: “Cantina do Giulliano”, era ali, não
tinha como esquecer o Jeito rústico da envelhecida placa. Entrou na cantina. O pai
de Carlos estava servindo um casal que estavam sentados em uma das quatro
mesas do local.
- Bom dia senhor Giulliano. – Disse Aline sorrindo. O pai de Carlos fitou-a
tentando lembrar de quem tratava-se. O rosto e voz não lhe eram estranhos mas a
idade pregava-lhe estas peças as vezes. Notando a dificuldade do senhor em
recordar-se Aline completou: – Sou eu, Aline. Era namorada de seu filho Carlos
lembra-se.
- Ma que bella. – Disse seu Giulliano estendendo-lhe os braços e beijando
lhe o rosto. – Perdoe este caducon, é que nesta idade a gente tem que andar com
um caderninho para anotar as cosa. – Disse ele dando uma alta risada.
- Tem um cafezinho ai? – Perguntou Aline sorrindo.
- Para ti, tem tudo, bella mia. E então, como tem passado, a vida de
abacate do governo é boa? – Perguntou Ele enquanto servia uma xícara de café a
Aline.
- Não tenho o que reclamar. – Disse ela agora tendo certeza de que ele
realmente lembrava-se dela.

63
- Tu sabe que ontem mesmo mio bambino esteve qüi, ele está trabalhando
no caso daqueles militares que foram assassinados, você os conhecia? – Perguntou
ele enquanto cortava duas fatias de pão e alcançava para Aline.
- Sim. Eu conhecia os dois, – disse Aline – aliás, Carlos e eu estamos
trabalhando juntos nas investigações. – Completou Ela.
- Madona mia, e ainda não se mataram? – Perguntou seu Giulliano
surpreso.
- Não, até que agente está se entendendo. – Respondeu Aline sorrindo.
– Pelo menos quando eu encontro ele, pensei que ele estivesse por aqui hoje, por
isso resolvi dar uma passada, passei pelo prédio dele agora pouco, mas o porteiro
disse que no apartamento ninguém responde ao interfone e que ele não havia visto
o Carlos chegar. – Completou ela.
- Mia Franccesca passou aqui hoje cedo e falou a mesma coisa. Disse que
foi lá arrumar o apartamento dele e que não tinha ninguém, e questo era presto de la
matino, umas seis horas, tu conhece a mama, cuida daquele bambino como se
fosse um vaso da dinastia Ming, ela passa tanto tempo na casa dele que às vezes
eu me esqueço que tenho una Donna.
- Mas me diz ai papa, Carlos falou alguma coisa para o senhor a respeito
do andamento da investigação? – Perguntou Aline meio sem jeito.
- Acha que ele tá te escondendo alguma coisa non é? – Respondeu
seu Giulliano percebendo a intenção maliciosa de Aline em arrancar-lhe alguma
informação que Carlos não quisesse compartilhar como ela.
- Não é isso, só perguntei por perguntar. – Disse Aline com o rosto corado
de vergonha por ter sido desmascarada. - É que o Carlos as vezes é tão fechado.
- Questi moglie, sempre pensando que ás traímos vinte e quatro horas
per giorno. – Disse seu Giulliano sorrindo. – A única cosa que ele disse é que ia dar
uma passada ali na rua Riachuelo para ver um vecchio que vem sempre qüi, ele é
bem entendido em assuntos egípcios, perché um tal livro lá que ele tinha encontrado
tem algo com questo.
- Por acaso é esse velho aqui? – Perguntou Aline mostrando-lhe a foto do
velho que tinha estado no salão do Lulu. – É uma montagem, não está muito nítida.
- Está bem feio, ma não é o sujeito... – Respondeu seu Giulliano

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pausadamente – mas acho que este é parente do outro, um irmão ou coisa assim ,
perché costumava vir qüi junto, mas depois não apareceu mais, acho que ficou meio
doente, e dopo, nunca mais tive noticia, ma Io nem perguntei também, esses turcos
não eram muito de conversa. Mas creio que seja ele sim.
- E o senhor poderia me dizer aonde é essa tal livraria? Perguntou Aline
guardando a foto.
- Ma Claro, vou anotar para você. – Respondeu seu Giulliano e enquanto
pegava um pequeno bloco de papel ele notara Carlos, veindo em direção da cantina.
– Ma olhe para trás bambina, falamos tanto no diavolo que ele acabou aparecendo.
– Disse seu Giulliano apontando para Carlos que acabava de entrar na cantina.
- Espero que tenham falado de bem pelo menos. – Disse ele sentando-se
ao lado de Aline. Olhou para o casal que estava sentado em uma das mesas, o
homem cumprimentou-o com a cabeça sendo correspondido por Carlos.
- Ma claro bambino, esta ragazza qüi só falou bene de ti até agora. –
Disse seu Giulliano sorrindo.
- Eu acredito, e coelinho da páscoa também existe. – Disse Carlos
rindo – Me vê um tinto seco ai. – Pediu ele a seu pai.
- Già mangiò alcuni cosa almeno? Tua mama disse que passou lá
Stamattina i solamente fondò quel tu gatto secco, matto di fame, prepara per
l'interrogazione quando lei incontra. – Falou seu Giulliano enquanto servia um copo
de vinho para Carlos. Enquanto Aline observava os dois sorridente.
- Porque o senhor insiste em misturar os idiomas papa? Sinceramente eu
não entendo metade do que o senhor fala, juro que eu me esforço, mas não
entendo. Fale meu idioma seu italiano caduco.
- Olha os modos guri! Se tu desse um pouco mais de valor para tuas
origens trataria de aprender, ao menos. – Exclamou sr Guiulliano com um português
impecável sem um sotaque sequer.
- Se a Itália é tão boa assim porque vocês vieram tudo para cá? –
Perguntou Carlos sorrindo enquanto pegava um pedaço de pão que Aline não havia
comido.
- Não seja cruel com seu pai Carlos! – Ralhou Aline. Seu Giulliano apenas

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sorriu e atingiu a cabeça de Carlos com o pano que utilizava para limpar o balcão, e
retirou-se para dentro da cozinha, o velho homem sabia que por um certo lado
Carlos tinha razão, no passado sua pátria não oferecia muitas condições para uma
vida boa, porém, conforme lera uma certa vez na traseira de um caminhão: não
odeie sua pátria, ela não tem culpa dos filhos que tem.
- Não está mais aqui quem falou então.
- Mudando de assunto, posso saber aonde o senhor andava?
- Claro, depois que eu tomar meu café. – Disse Carlos com a boca cheia de
pão, Aline fez uma cara de mau estar diante da infantilidade dele.
- Qüi está bambino, queijo e vinho lá di casa, pão com torresmo da tia
Alzira e lingüicinha calabresa. – Disse seu Giulliano sorridente.
- Lingüiça calabresa mesmo ou de outras carnes? – Perguntou Carlos
cheirando um pedaço de lingüiça.
- Ma Deixa de ser locon! Tu acha que eu te daria lingüiça de carne de
gente? – Falou seu Giulliano com uma voz séria. O casal que ainda estava no bar
ficou prestando atenção no assunto dos dois, pois eles também estava comendo um
prato de aperitivo feito basicamente de lingüiça e queijo picados.
- Sei lá, daria? – Perguntou Carlos ironicamente.
- Ma Claro que não, é molto difficitile incontrar defunto de primeira hoje em
dia. – Disse seu Giulliano.
- Querem parar com isso seus nojentos, que história é essa? – Falou Aline
já sentindo-se intrigada com aquela conversa sem sentido.
- Questo tuo fidanzato acha que estão matando nostra gente para fazer
lingüiça. – Falou seu Giulliano sorrindo.
- Carlos, que história é essa? – Perguntou Aline intrigada.
- Papa. Em primeiro lugar ela não é minha namorada, e segundo ninguém
está dizendo nada, foi apenas uma piadinha. – Falou Carlos descontente com os
rumos que a conversa tinha tomado. O casal notando tratar-se de uma brincadeira, a
conversa dos dois, resolveram a atentar-se novamente para seu assunto.
- Piadinha? Pensa que eu não vi que você arregalou os olhos com a história
daquele pinguço. – Disse seu Giulliano sorrindo.
- Tá papa, acha que eu acreditei naquela história? Que tipo de idiota tu

66
acha que eu sou? - Disse Carlos seriamente.
- Sei lá, quanti tipi existem? - Respondeu seu Giulliano sorrindo.
- Que história é esta, alguém pode me explicar o que está acontecendo? –
Falou Aline levantando-se e demonstrando um certa impaciência.
- É que os jornais estão noticiando a provável volta do linguiceiro da rua do
arvoredo, o que é um absurdo, diga-se de passagem – Disse Carlos.
- É um absurdo mas tu acredita!
- Não acredito em nada papa.
- Carlos, por favor, estou cada vez mais confusa.
- Tudo bem, vou contar a história, mas você já deve conhecer, ocorreram,
aqui em Porto Alegre, uma série de assassinatos que ficaram conhecidos como os
crimes da rua do arvoredo. Quando o assassino foi capturado, começou correr o
boato de que depois que ele assassinava as vítimas e roubava todos os seus
pertences, ele usava a carne da pessoas para fazer lingüiça, e acontece que estes
crimes ocorreram na Fernando Machado, onde encontraram os corpos do Assis e da
Claudia, e que em 1864 chamava-se rua do arvoredo, entendeu agora? – Concluiu
ele.
- Si, e o Carlos está achando, que mataram os dois para fazer lingüiça. –
Disse seu Giulliano rindo.
- Dá para parar papa. Eu não estou achando nada. – Disse Carlos
levantando-se irritado. – Bom é melhor irmos andando Aline, antes que saia mais
alguma bobagem da boca deste velhaco. – Carlos pegou seu casaco e os dois
saíram.
- Se cuidem crianças. – Disse seu Giulliano para os dois, mas apenas Aline
olhou para trás para responder para o velho.

19.
Seguiram os dois caminhando em direção a rua Riachuelo. Aline pensara em
perguntar aonde estavam indo, porém ela sabia muito bem que esse tipo de
pergunta irritava Carlos, e a única resposta que arrancaria dele seria um rancoroso:
“Você vai saber quando chegar lá!” Mas Carlos não ostentava na face aquele ar de

67
superioridade de outrora quando ela o conhecera. Ele estava quieto, em outros
tempos estaria falando consigo mesmo em voz alta em busca de respostas; curioso
para saber do que se tratava o maldito livro que eles haviam encontrado com o
cabeleireiro Lulu.
- Algum problema Carlos? Você está pensativo demais hoje. – Perguntou
Aline tentando ser simpática e já se preparando para receber uma resposta
desaforada.
- Só um pouco de sono, o que você descobriu sobre o velho do salão?
– Perguntou Carlos um pouco abatido.
- Consegui isolar a imagem dele, mas não deu para fazer uma boa foto,
porém seu Giulliano disse que conhecia o velho. – Respondeu Aline.
- Deixa eu ver a foto dele ai. – disse Carlos.
- Aqui ó, tá meio escura mas da para ver direitinho. – Disse Aline lhe
entregando uma foto que tirara da bolsa.
- Mas é o velho que eu vi ontem. – Falou Carlos quase que consigo mesmo.
- Viu aonde? – Perguntou Aline intrigada.
- Depois eu te conto a história toda, vamos até aquele sebo ali – disse
Carlos apontando para um sebo que ficava relativamente próximo ao que ele havia
estado na noite anterior, apenas do lado oposto da rua. – O papa me disse que tem
um velho que pode saber do que se trata esse livro velho, e te prepara que o cheiro
de mofo é terrível. – Completou ele. Enquanto atravessavam a rua, Carlos deu uma
boa olhada para o outro sebo para ver se conseguia ver o magricela e o velho da
noite anterior, mas os únicos a circular por ali eram os jovens de um colégio próximo,
Carlos notou porém que as portas do sebo que estivera no dia anterior estavam
fechadas; Aline apenas observou o colega parado olhando para o outro lado da rua,
logo Carlos virou-se para o sebo em que estavam parados à frente e entraram os
dois, subiram uma velha escada de madeira, que parecia que ia ceder a qualquer
momento com o peso deles. Na parte superior da loja, logo na entrada, duas colunas
de livros velhos e empoeirados serviam de pés para uma pequena mesa
improvisada onde uma senhora, um tanto gorda, fazia alguns cálculos em uma velha
máquina de somar. Carlos notara que ela estava sentada em uma pilha de livros
também, e lembrou-se de seu professor de letras que sempre dizia que a boa

68
literatura era o alicerce dos grandes homens, naquele caso, de uma grande mulher.
Aline notou que Carlos sorria feito uma criança que acabara de fazer uma
travessura.
- Bom dia senhora, o proprietário está? – falou Carlos notando que a velha
não iria atendê-los
- Só um momento por favor. Samuel, querem lhe falar! – Gritou ela sem tirar
os olhos da maquina de somar. Depois de alguns instantes uma movimentação no
fundo da loja fez Carlos e Aline prestarem atenção em um magro senhor de paletó e
gravata borboleta que vinha ao seu encontro. O Velho trazia em uma das mãos um
espanador surrado, e vez que outra passava em um ou outro livro.
- Pois não, no que posso lhe ser útil? – Perguntou o velho inclinando a
cabeça levemente para frente para enquadrar os dois em seu pequeno óculos de
meia lente.
- Oi. Meu nome é Carlos, sou filho do seu Giulliano da taberna ali do
mercado público, e esta é minha colega Aline estamos fazendo uma pesquisa sobre
o antigo Egito, e o pai disse que o senhor poderia nos ser útil. – Falou Carlos.
- Então o velho Giulliano tem um filho hein? – Disse o Velho indo em direção
a uma estante de livros. – Temos diversas obras sobre o Egito aqui, tem algum
assunto específico? Múmias, Deuses? – Perguntou o velho. Carlos correu os olhos
pela estante do velho e notou que em um dos cantos, em cima de uma almofada de
veludo vermelho, estava um livro quase idêntico ao que eles tinham, porém sua cor
era preta, com os mesmos detalhes de metal mas provavelmente de prata.
- O que o senhor poderia me dizer a respeito daquele livro que o senhor
tem ali. – Disse Carlos apontando para o livro.
- Bem aquele ali é um exemplar raro de uma edição muito antiga, dizem
que é um livro mágico, mas não está a venda não, faz parte de minha coleção
particular. Tenho outros semelhantes muito bons ali atrás. – disse o velho apontando
para o fundo Corredor.
- Mágico em que sentido? – perguntou Carlos Rapidamente.
- Ora , temos um homem muito curioso aqui, e do tipo que não se contenta
com respostas curtas. – disse o velho sorrindo. – Pois bem, vou lhes contar a
história, por favor sentem-se. – concluiu ele enquanto alcançava para Carlos e Aline

69
dois banquinhos de madeira. Ele sentou-se em cima de uma pilha de livros que
ajeitou na frente dos dois. Respirou fundo e começou: – A muito tempo atrás, muito
antes da história começar a ser registrada, florescia na região do rio Nilo uma
civilização muito avançada.
- Os Egípcios? – perguntou Carlos Afoito.
- Não. – Disse o velho um tanto seco, descontente por Ter sido
interrompido. – Mas acredito que os egípcios eram um ramo dessa mesma
civilização. – Concluiu ele mais amavelmente. – Bem, essa civilização dominava
todos os segredos da natureza. Tinham poderes sobre todos os acontecimentos. Um
dia porém, o conselho dos homens sábios e mágicos dessa civilização, prevendo o
fim de tão magnífica gente, pois eles sabiam que todas as raças na terra caminham
para a extinção, resolveu colocar todo o seu conhecimento em três livros: o primeiro,
continha todo o conhecimento sobre o começo da vida e a criação do mundo, o
segundo, continha o conhecimento sobre a morte, tudo que era preciso para se
preparar para a grande jornada na terra das almas. o terceiro, e mais importante de
todos, ensinava a administrar esses dois conhecimentos em conjunto, pois
isoladamente o poder dos três livros não é muito forte, porém de posse dos três
juntos, quem administrasse o conhecimento de todos poderia ser considerado como
um Deus.
- E o que esse livro ai que o senhor possui tem a ver com a história toda? –
Perguntou Carlos apontando para o livro que o velho tinha na estante.
- Esse é o livro dos mortos, é muito antigo, foi encontrado em uma
escavação junto às grandes pirâmides por um amigo de meu pai já falecido. Creio
que devem conhecer o livro dos mortos. – falou o velho.
- Claro, mas o senhor acredita então que o livro dos mortos pode ser um
dos livros. – perguntou Carlos.
- Acredito que sim. – respondeu o velho.
- O livro dos mortos pertencia ao egípcios – disse Aline, o livreiro concordou
com a cabeça - E os Egípcios tinham os outros dois livros? Perguntou ela.
- Creio que não, você por acaso soube de alguma múmia que

70
Ressuscitou? – perguntou o velho sorrindo. Carlos também não se conteve e riu de
canto de lábios pois sabia que Aline estava se remoendo de raiva por dentro por
terem caçoado dela.
- Não. A única história de ressurreição que conheço foi a de Jesus. – Disse
ela um tanto fria.
- Arrá! temos aqui uma moça inteligente. – disse o velho sorrindo. Ele
levantou-se e tirou um livro de uma outra estante que tinha atrás de Carlos e Aline. –
De todas as pesquisa que eu fiz, acabei chegando ao uma fonte que indicava que os
antigos Essênios, um povo muito avançado, espiritual e cientificamente, e
contemporâneos de Jesus, tinham posse de um conhecimento especial, e sabe-se
agora, através de pesquisas, que alguns insistem em chamar de especulações por
desconhecerem a seriedade e comprometimento das entidades discretas que se
esforçam para desvendar tais mistérios, que Jesus Cristo passou parte de sua
infância sendo educado por tutores Essênios. Tudo indica que eles possuíam o
primeiro livro: o que tratava da vida, ou seja, de como fazer surgir a vida, e, no caso
de uma ressurreição, temos nada mais nada menos que o surgimento da vida, não é
mesmo? – terminou o velho enquanto mostrava, no livro que acabara de tirar da
estante, uma foto do livro que os dois haviam pegado do cabeleireiro: o livro da vida,
Carlos e Aline se entreolharam mas não disseram nenhuma palavra.
- Mas me diz um coisa seu Samuel, como o senhor tem tanta certeza que
este livro ai que o senhor tem, realmente foi escrito por essa tal civilização? Pode
ser uma cópia barata. Não acha meio complicado ele ter séculos e séculos de
idade? Perguntou Carlos.
- Isso não tem a menor importância meu filho, O material não importa
o que importa é o conteúdo, claro que esse ai tem o seu valor, pois trata-se de um
artefato muito antigo, mas o que importa é seu conteúdo, não a idade. – respondeu
o velho. – Aliás ele não tem valor magico nenhum se não for usado junto com o livro
da vida, e os dois não tem grande valor se não houver o terceiro livro, o livro da
sabedoria. – completou o velho enquanto pegava e espanava o seu livro dos mortos.
- E quanto a essa tal livro que ensina a usar essa coisa toda, imagina com
quem ficou? – perguntou Carlos.
- Esse livro, conta a lenda que o próprio Deus criador o tirou da terra, pois

71
sabia que os homens formariam suas próprias teorias e acabariam se afastando
dele, mas tudo faz parte do plano divino. – disse o velho.
- Mas o senhor acredita mesmo nisso? – Perguntou Aline.
- Todos tem sua fé não é mesmo menina? Você mesmo acredita no seu
Cristo ressuscitado. – Respondeu o velho sorridente.
- E me diga seu Samuel, já que o senhor crê tanto nessa historia, se
hipoteticamente o senhor colocasse a mão nesses livros, o que faria? – perguntou
Carlos, enquanto levantava-se para pegar o livro do velho.

- Os destruiria é claro. – disse o velho. Carlos, com o livro nas mãos, notou
que apenas o desenho da capa era semelhante ao que ele possuía, o conteúdo
deste, era todo grafado com caracteres egípcios.
- Mas por quê? Esses livros poderiam nos trazer esclarecimento a cerca de
muito assuntos. – disse Carlos sem tirar os olhos do livro, pois notara pelo tom de
voz do velho que esse tinha ficado um tanto tenso pelo fato de Carlos estar com eu
livro nas mãos, e ele sabia muito bem que as melhores respostas são obtidas de
pessoas tensas que estão a ponto de perder alguma coisa.
- E em mãos erradas poderiam trazer a desgraça. – disse o velho puxando
o livro das mãos de Carlos, mantendo-o junto ao peito.
- Mas se diz que o que importa não são os livros e sim o conteúdo, podem
existir outros exemplares mesmo que destrua alguns, restariam outros que
poderiam ser usados para esse tão terrível propósito.
- Mas claro, mas apenas os livros que possuem os textos originais sem
alterações tem o poder de abrir os portais e invocar o terceiro livro, e muitos poucos
sabem distinguir o conteúdo verdadeiro, até existem grupos de pessoas com o
intuito de reunir os três livros, e algumas até com idéias não muito boas, pois nós
não estamos evoluídos a ponto de assimilarmos todo o potencial que essas obras
tem para nos oferecer, infelizmente. – disse o velho recolocando o livro na estante.
- Ainda bem que ele não está na terra então. - Disse Carlos
- Ainda bem. - Respondeu o homem.
- O senhor falou de grupos com interesse em reunir os três livros, conhece
algum em especial? – perguntou Carlos.

72
- Sim, e sinto-lhes dizer que a maioria deles não tem boas intenções. –
disse o velho enquanto tirava o pó de alguns livros na estante, mostrando que já não
estava mais interessado em conversar.
- Bom seu Samuel. O senhor foi de grande ajuda muito obrigado. – Disse
Carlos para o velho, pois sabia que não conseguiria mais nem uma informação.
- Quando precisarem sabem aonde me encontrar, e mande um abraço para
o seu pai por min. – disse o velho sorrindo.

20.
O jovem Francisco olhava atentamente por um fresta da grande janela de
madeira quando Carlos e Aline saíram do sebo do velho Samuel. Antes de sair
Carlos ainda deu uma última olhada em sua direção, e por um momento ele teve a
impressão de que Carlos havia notado que estava sendo observado, mas isso era
impossível, tinha sido apenas uma coincidência. Ele esperou que os dois virassem
na Borges de Medeiros e então saiu de sua loja e correu até o sebo vizinho. Quando
entrou vira que o velho Samuel tratava de enrolar o seu livro em um pano de veludo
preto; o velho não notara a presença de Francisco que, com seu terno xadrez, mais
parecia um espantalho a espreita dos corvos. O velho Samuel assustou-se quando
reparara que estava sendo observado, ele abraçou-se no livro e virou
vagarosamente esperando pelo pior, porém aliviou-se quando notou que tratava-se
de uma pessoa conhecida:
- O que você contou para eles velho? – Perguntou Francisco antes que o
velho Samuel dissesse alguma coisa.
- A verdade ora, o que mais poderia contar? Me diga, conseguiu recuperar
o outro livro. – Disse o velho colocando seu livro em uma caixa de madeira.
- Não. Vasculhei todo o apartamento, mas acredito que os outros tenham
chegado na nossa frente. – Respondeu Francisco desconsolado, e pela primeira vez
mudando sua fisionomia séria para a de um jovem derrotado.
- Merda. Você sabe o que isso significa, não é? - Disse o Velho trancando

73
a caixa em que acabara de colocar seu livro com um pesado e antigo cadeado, em
seguida ele fez alguns gestos com a mão em cima da caixa e disse algumas
palavras incompreensíveis.
- Claro, o que faremos? – perguntou o jovem Francisco.
- Teremos que recuperá-lo. Só que agora será mais difícil. Talvez a gente
tenha que recorrer a eles. – Respondeu o velho.
- Eu não vou me envolver com o pessoal do Clã nem sonhando. Não
podemos confiar nessa gente, você sabe muito bem qual a intenção deles.
- Agirei sozinho então. Como está o velho Isau?
- Cada vez pior, mas já estou assimilando todo o ritual, provavelmente
poderemos poupá-lo do esforço. – Respondeu Francisco. – Agora preciso ir. –
completou ele enquanto descia pela velha escada do sebo.

21.
Aline e Carlos retornaram ao apartamento de Claudia, Aline havia conseguido
uma autorização para que eles pudessem entrar livremente e vasculhar o local sem
precisarem se ocultar nas sombras da noite como dois ratos sorrateiros. Apesar das
fitas de interdição colocadas pelos investigadores do exército, tudo parecia estar
como antes. Os dois vasculharam o apartamento de cima a baixo e não encontraram
nada que pudesse dar uma pista concreta; quando já estavam quase desistindo da
busca, Carlos notou um quadro no final de um pequeno corredor, e pensou consigo
mesmo: “Já que mora em um condomínio de luxo como este, porque não ter um
cofre.” Ele foi até o pequeno quadro e o retirou parede, mas não havia nada lá.
Descontente Carlos voltou para a sala e jogou o quadro em cima de um dos sofás e
sentou-se em outro para acender um cigarro. Enquanto tragava e pensava no que
eles poderiam estar procurando ali, Carlos olhou para o quadro, que tinha caído com
sua parte traseira virada para cima, e notou que o papel que forrava o quadro pela
parte traseira havia se desprendido e deixava a mostra a ponta de um papel
amarelo. Carlos pegou o quadro novamente e começou a arrancar o papel que
forrava o fundo do querto deixando cair no chão o pequeno envelope de papel

74
amarelo. Carlos terminou de tirar o papel do quadro para ver se não tinha mais
alguma coisa, ele então pegou o envelope e constatou que dentro deste tinha um
pequeno mapa manuscrito.
- Carlos o que você achou ai? – Perguntou Aline saindo da cozinha do
apartamento.
- Um mapa. Parece uma espécie de sala. Deve ser algo importante, pela
precaução com que fora guardado – Disse Ele colocando o mapa de volta no
envelope sem dar muita atenção para as coisas que havia escrito no mesmo.
- Ótimo. Veja encontrei esse papel numa lata de biscoito, veja o que diz:
”quando encontrar o livro traga-me. Use o mapa para me encontrar pois o sorriso da
porta de entrada esconde a face do mal. Frei Martinho.” E aqui em baixo está o
endereço. – Falou Aline mostrando o bilhete para Carlos.
- Mosteiro Franciscano da Boa Esperança, acho que já ouvi falar, fica á
umas cinco horas de carro daqui num vilarejo da cidade de Santa Cecília, é um local
turístico, fica um tanto isolado e possui algumas construções do século passado. -
disse Carlos depois de lêr o bilhete.
- Tudo bem, mas agora vamos sair daqui que isso tudo está me dando
arrepios, e não aguento mais o cheiro de vela queimada. – Disse Aline.
- Certo, mas antes vamos falar com um informante meu. – Disse
Carlos sorrindo. Aline lhe entregou o papel que havia achado e os dois saíram.
Carlos procurou pelo mendigo na praça, mas não o encontrou; falou com alguns
taxistas e lhe informaram que o mendigo não era visto a um bom tempo, o que era
muito estranho, pois ele raramente saía dali, mesmo quando o pessoal da prefeitura
vinha recolher os desabrigados, ele sempre ficava. Aline e Carlos resolveram então
ir para o apartamento dele e quando chegaram foram surpreendidos pela desordem
do apartamento, os móveis todos bagunçados, papeis e objetos jogados pelo chão,
alguém havia estado ali a procura de algo, e não tratara de ser sutil em sua busca.
Carlos imediatamente pensou no livro, ele então correu até a cozinha para ver se
ainda estava no lugar aonde ele tinha escondido, porém que estivera ali tinha tido
sucesso em empreitada, pois o saco de ração de gato havia sumido, aliás, o gato
também.
- Você guardou o livro dentro do saco da ração do gato? – Perguntou Aline

75
brava depois de saber do acontecido.
- Nunca pensei que alguém fosse procurar um livro dentro de um saco de
ração. – Respondeu Carlos desconsolado.
- Talvez o ladrão tivesse ficado com pena daquele gato seco e resolveu dar
comida para ele e acabou encontrando o livro. – falou ela ainda brava.
- Agora você quer dizer que a culpa é do meu gato. – reclamou Carlos
aumentando o tom de voz.
- Não, eu estou querendo dizer que a culpa é sua, se tratasse bem do
coitado ele não seria seco daquele jeito, e o ladrão não ia precisar dar comida para
ele, resumindo: agora nós ainda teríamos o livro. – Disse Aline ironicamente.
- Tudo bem. Não podemos nos alterar. Vamos falar com o porteiro talvez
ele tenha visto alguém. - Disse Carlos enquanto saia do apartamento em direção do
elevador. Aline foi atrás.
Enquanto o elevador não vinha, voltara o pressentimento de Carlos de
estar sendo observado, porém nunca havia ninguém, por mais rápido que ele se
virasse ou procurasse, nunca havia ninguém e ele já estava começando a ficar
intrigado, pois aquilo já estava ultrapassando todas as barreiras do seu bom senso.

22.
O porteiro jurava de pés juntos que não havia entrado ninguém estranho no
prédio, mas Carlos sabia exatamente quem poderia ter estado em seu apartamento
na sua ausência, pois a conversa que escutara na noite anterior, entre o jovem
Francisco e seu avô, não deixava nenhuma dúvida de que o guri havia feito a visita
que informou ao velho que faria, ele então saiu do prédio e subiu a Duque de Caxias
correndo em direção a riachuelo. Aline teve uma certa dificuldade em correr de salto
alto atrás dele.
Quando parou na frente do sebo, aonde tinha estado no dia anterior, o jovem
Francisco estava na janela da loja. Seu olhar pareceu congelar quando enxergou
Carlos do outro lado da rua, que sem pestanejar, atravessou correndo e entrou sebo
a dentro como quem está a fim de quebrar tudo. O jovem tremia como vara curta
denunciando sua parcela de culpa no acontecido. Carlos empurrou-o para um canto

76
da loja e notou de canto de olho que sua investida tinha causado um certo espanto
nas pessoas que ali estavam, fazendo com que a atenção de todos se voltasse para
aquela cena violenta, um outro rapaz, alto e magro como pau de virar tripa, começou
a agredir Carlos com um cabo de vassoura, porém suas investidas, de tão fracas,
apenas incomodaram Carlos, que tirou a vassoura da mão do rapaz e a atirou num
canto, o jovem assustado disse que iria chamar a policia caso ele não se retirasse.
- Poupe seu trabalho garoto, sou da policia, e estou prendendo seu
amiguinho aqui por invasão de propriedade particular. – Disse Carlos mostrando-lhe
sua identificação.
- E o senhor tem mandato? – Perguntou o rapaz que novamente pegara
sua vassoura e afrontava Carlos com o cabo da mesma.
- Tenho sim está bem aqui. – Carlos levantou sua jaqueta e deixou
aparecer sua arma, e foi o que bastou para que o jovem aquietar-se em um canto.
Nesse momento Aline entrou no sebo respirando rapidamente e com muita
dificuldade, trazia nas mãos os sapatos, pois um dos saltos havia se desprendido
enquanto corria.
- Você esta ficando louco! Não poderia ter me esperado, quem é esse daí?
– Disse ela ofegante enquanto olhava para o amendrontado Francisco.
- Esse é nosso jovem ladrão. – Falou Carlos.
- O senhor não tem prova nenhuma contra min. – Disse O jovem Francisco
enérgico.
- Tenho sim, tem várias imagens sua revirando meu apartamento, está tudo
lá gravado no meu circuito interno de TV. E então, o que me diz campeão?
- Mas eu não peguei nada eu juro. – Falou o jovem assustado.
- O que você estava procurando lá, o livro? Era o livro né seu ladrãzinho?
Vamos, desembucha tudo o que tu sabe – disse Carlos cutucando o jovem
Francisco com um espanador que pegara em uma estante.
- Sim. Eu estava atrás do livro sim, mas juro que quando entrei lá já estava
tudo revirado. Eu não peguei nada, juro pela alma de minha mãe. – Disse o rapaz se
afastando.
- Mesmo assim. Entrar em propriedade privada sem autorização é crime, e

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eu vou te enquadrar. – Falou Carlos puxando um par de algemas do bolso das
calças.
- Por favor. Eu não tinha intenção de provocar dano algum, eu só queria o
livro. – Disse o rapaz fazendo uma cara de choro.
- O que tem aquele livro de tão importante? Sabe que foi encontrado junto
com uma pessoa morta? Sabe que se você está tão interessado nesse livro, pode
muito bem Ter sido você que a matou, apenas para pegar o livro? – Disse Carlos
rodeando as algemas em um dos dedos.
- Eu juro que não fiz nada. Por favor me deixe em paz. – disse o rapaz
sentando-se em uma pilha de livros velhos e empoeirados, enquanto isso entraram
na loja dois brigadianos, que por certo foram chamados por algum cliente aflito.
- Qual o problema aqui ‘cidadões’? - Disse um dos policiais com uma voz
tão firme que faria qualquer religiosa repensar sua vocação.
- Sou o delegado Carlos Andriatti da delegacia de homicídios, e essa é
minha colega Aline Schults, estamos recolhendo o elemento ai por invasão de
propriedade particular, e possível cumplicidade em um homicídio. – Disse Carlos
estufando o peito e ajeitando as calças, Aline teve que se conter para não perder-se
em risos no meio de tanta virilidade de ambos os policiais tentando impor sua
autoridade, acima de tudo máscula.
- Quantos anos você tem filho. – Perguntou o soldado.
- Quinze, senhor. - Respondeu o jovem Francisco com voz trêmula. Nesse
momento entra na loja um velha senhora gorda muito aflita em direção de Francisco:
- Meu filho. Meu filho querido. Você está bem? O que aconteceu foi um
Assalto? – Perguntou a mulher enquanto acariciava a cabeça do rapaz.
- Nada disso senhora, o seu filho está sendo acusado de invasão de
domicilio pelo delegado Carlos ali. – Disse o Brigadiano apontando para Carlos.
- Mas não é possível seu Brigadiano meu chiquinho seria incapaz de
maltratar uma mosca. – Disse a mulher aflita.
- Sinto muito moça. Mas o doutor ai é que manda. – Falou o brigadiano.
- Por favor seu delegado não prenda meu filho. Me leve no lugar dele então.
– falou a mulher estendendo os braços para que Carlos algemasse-a.
- Calma dona. Ele não vai ser preso, vamos levá-lo apenas para responder

78
algumas perguntas. – Disse Carlos tentando acalmá-la, nesse instante um cidadão
que acabara de entrar na loja instantes depois dos policiais se pronunciou:
- Com sua permissão doutor delegado. – Quando Carlos ouviu ele falando a
palavra doutor com tanta pompa, já se preparou para a bomba: o maldito era um
advogado. - O nobre colega deve saber tanto quanto eu, que por sinal também sou
bacharel em direito, que se o acusado não foi pego em flagrante e se o senhor não
mostra provas concretas de que o mesmo esteve em seu apartamento, acho então
que o nobre colega necessite de um mandato judicial para levar o rapaz para a
delegacia. – Disse o homem. – O senhor o tem? – concluiu ele cinicamente.
- Não. Mas o rapaz ai afirmou Ter realmente estado em meu apartamento.
– disse Carlos tentando ser educado – e isso já basta para levá-lo.
- Não queira me levar na lábia, doutor, que eu sei muito bem os trâmites
legais que envolvem a situação, sem mandato o senhor não pode levá-lo, pois o
mesmo confessou ter estado no seu apartamento, bem como também afirmou não
ter pego nada. – retrucou o outro.
- Claro mas estava atrás de um objeto que foi encontrado junto com uma
pessoa morta, objeto esse que também havia pertencido a uma outra pessoa que
também foi encontrada morta. – Respondeu Carlos já ficando impaciente
novamente. – Além do mais o simples fato dele Ter invadido uma propriedade
particular já resulta em crime.
- Desculpe colega. Mas volte aqui quando tiver um mandato. Eu agora
represento este rapaz, todas as perguntas que quiser fazer para ele, deverá fazer
diante minha presença, nos comprometemos a nos apresentar na sua delegacia
segunda feira pela manhã, caso o senhor não tenha um mandato que force-o a ir
para lá imediatamente. Aqui está meu cartão. – falou o homem estendendo-lhe um
cartão de visitas que Carlos pegou bruscamente.
- Como quiser distinto advogado, eu só aconselho que seu cliente não saia
da cidade. Quanto a ida a delegacia, não tenho tanto tempo assim para esperar,
voltaremos em breve com o mandato. – Disse Carlos que virou as costas e saiu do
sebo acompanhado de Aline que antes de sair do sebo quebrou o outro salto do
sapado e os calçou novamente. Durante o caminho Carlos notara que Aline estava

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se segurando para não falar nada, mas vez que outra deixava escapar um sorriso
sarcástico de satisfação que se formava nos seus delicados lábios.
- Não sabia que tinha circuito interno de TV. – Disse ela se segurando para
não soltar uma gargalhada da situação embaraçosa em que Carlos havia os metido
invadindo o sebo como se fosse um daqueles policiais de filmes noir louco para
fazer justiça com as próprias mãos.
- E não tenho. – disse Carlos sério.
- Ei cidadão. Não precisa ficar assim. Mas diz ai qual é essa de ficar
surrando garotos dentro de livrarias? - Perguntou Aline tentando animá-lo.
- Nos apaixonamos um dia desses e ele me deu um fora. Tem um celular
ai? – Respondeu Carlos ainda fechado.
- Tá aqui ó. – Disse ela lhe entregando o telefone. – Tenho quase certeza
que tem alguma coisa a ver como seu sumiço de ontem. Não é? – Completou ela.
- Me de um minuto. Alô. Antônio? Oi cara. É o Carlos, preciso de um
mandato de busca e apreensão para ontem. É, andei fazendo uma cagadas sim.
Consegue rápido? Ótimo, estou indo para ai. – terminou Carlos.
- Vai me dizer o que está acontecendo ou não? – Perguntou Aline enquanto
guardava o telefone na bolsa novamente.
- Temos que ir para o palácio do governo, Antônio vai me conseguir o
mandato. Te conto toda a história no caminho. – respondeu Carlos.
Enquanto subiam a riachuelo em direção ao palácio para buscar o mandato,
Carlos relatou sua aventura para Aline. Disse também que achava que sua amiga
Claudia, Assis e o Lulu, tinham morrido por causa do tal livro que eles acharam com
o tal cabeleireiro, porém que uma coisa nesta história estava mal contada, mas ele
já desconfiava do que era, porém esperava ouvir a história da própria boca do
próprio Francisco, para confirmar sua desconfiança, pois o jovem livreiro estava
atolado naquela história até o pescoço, disso ele tinha certeza.
- Será que o velho Samuel está envolvido nisso? – perguntou Aline após
ouvir o relato.
- Aposto meu traseiro nisso. – Disse Carlos.
- Olhe lá hein, é um belo traseiro para ser desperdiçado.
- Poupe-me de suas perversões por favor. – Disse ele.

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- Tudo bem senhor delegado. Tudo bem. - Falou ela sorridente.

23.
Quando chegaram no Palácio foram recebidos por uma assistente do
delegado Antônio, pois este havia saído em companhia da primeira dama. “Porra até
uma assistente dessas o cara tem. Enquanto eu, tenho que contar com meia dúzia
de inspetores gordos e reclamões.” Pensou Carlos consigo enquanto passeava os
olhos pelo corpo bem delineado da assistente, a moça pegou um envelope em uma
gaveta e entregou a Carlos retirando-se um seguida.
- Pare de olhar para as pernas da guria Carlos – Falou Aline dando-lhe um
beliscão.
- Hein? Ai! Não precisa beliscar – Disse Carlos esfregando o braço.
- Vamos, pegue logo esse mandato antes que aquele pirralho pense
bobagem e se mande da cidade.
- Ta bom estraga prazeres. Saiba, que o que é belo é para ser admirado.
– disse ele. Os dois voltaram ao sebo e Francisco ainda Continuava lá, só que
agora fortemente guarnecido por um defensor da lei. “Advogadozinho de porta de
cadeia. Não perde por esperar.” Pensou Carlos consigo.
- Vejo que meus amigo retornaram, e espero que agora com um mandato.
– disse o homem levantando-se da cadeira onde estava sentado.
- Aqui está nobre colega. - Disse Carlos enquanto fazia reverência lhe
entregando o documento.
- Nossa! E assinado pelo próprio presidente do judiciário. – Disse o
Homem quando leu o documento. – Pelo visto, o que o nosso amiguinho aqui tem
para dizer é de extrema importância. – completou ele.
- Isso mesmo doutor, e se não se importa gostaríamos que nos
Acompanha-se até a delegacia com seu cliente, por favor. – Falou Carlos.
- É Francisco. Não temos escolha filho. Temos de ir. – Disse o Homem.
- Por favor delegado atenda o pedido de uma mãe aflita. Eu tenho certeza
que meu filhinho não tem nada a esconder, tome o depoimento dele aqui mesmo.
– Falou a velha com os olhos em lágrimas.

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- Tudo bem senhora. Em consideração ao tumulto que causei aqui hoje,
vou interrogá-lo aqui mesmo. – Disse Carlos tentando ser gentil. – Está pronto
Francisco? – completou ele.
- Sim senhor. - respondeu o rapaz cabisbaixo.
- Eu também. – disse o advogado.
- Isso não será preciso doutor, tenho certeza de que o delegado e sua
parceira não vão me causar nenhum mal. - Disse Francisco para o homem.
- Mas Francisco é preciso. - Disse o homem descontente.
- Tudo bem doutor. Está tudo bem. Os senhores por favor me
acompanhem até o andar de cima, podemos conversar no escritório de meu pai.
- Eu lhe acompanharei até a porta doutor. – Disse Carlos para o homem
que recusou a companhia saindo da loja aborrecido por Ter perdido a oportunidade
de faturar alguns vinténs. Foram os três para o tal escritório que mais parecia um
depósito de tanta coisa que tinha empilhada pelo cantos. Logo que entraram, Carlos
hesitou um pouco em prosseguir quando viu, bem no meio do pouco espaço que
havia disponível no chão, um desenho estranho, na realidade não era tão estranho,
pois depois de uma segunda olhada constatou que era igual ao que estava
desenhado no chão do apartamento de Claudia, desta vez ele dispensou alguns
instantes para olhar detalhadamente a figura que constituía-se da mesma estrela de
seis pontas, “A estrela de Davi” pensou Carlos; ela estava desenhada dentro de
dois círculos, tendo em sua extremidade superior a letra Alfa, e na extremidade
inferior a letra Ômega, no interior dos seis triângulos que constituíam suas pontas
havia grafado as seguintes letras, contando a partir da ponta inferior no sentido anti-
horário: A D O N A I; entre o circulo interno e o externo havia grafado a contar da
ponta superior, no sentido horário: DEUS NOSTER DEUS SALVOS FACIENDI ET
DOMINI DOMINI EXITUS MORTIS. O jovem que entrara no escritório e fora direto à
janela, ficou olhando para a rua, já estava anoitecendo, fechou as cortinas e como
se tivesse lido os pensamentos de Carlos, ainda de costas falou:
- Não precisa temer delegado. É para nossa própria proteção.
- Olhe aqui garoto. Esta história está ficando complicada demais, por isso
eu acho melhor tu ir cuspindo tudo o que sabe por que eu já estou começando a me
estressar. – falou Carlos com impaciência.

82
- Calma Carlos. Não deixe o garoto nervoso. – Ralhou Aline.
- Tudo bem dona, eu entendo a aflição de vocês. Mas vamos lá estou a
inteira disposição, não tenho outra escolha agora que o outro livro sumiu vou
precisar de toda a ajuda que puder ter. – falou o rapaz.
- Vamos começar então por esta história de livros mágicos, e não tente me
enrolar como seu amigo o fez hoje de manhã pois não engoli aquela história. – Disse
Carlos. Aline olhou para ele como se dissesse que queria que ele abaixasse o tom
de voz pois estava deixando o rapaz tenso.
- Tudo bem, mas em parte o que o velho Samuel contou é verdade, tirando
algumas coisas. - disse o rapaz enquanto tirava alguns livros de cima de duas
cadeiras e as alcançava para Carlos e Aline que sentaram-se. O jovem sentou-se
em cima da escrivaninha.
- Quais coisas precisamente? – perguntou Carlos. Agora mais calmamente.
- Bem quanto ao material de que o livro é feito não ser importante, é
mentira, o livro que o velho Samuel tem e o livro que lhe roubaram são únicos.
Foram feitos a muitos e muitos anos, e são os únicos que possuem o conheciemnto
original e tem a capacidade de abrirem os portais para o terceiro livro, o do
conhecimento. – respondeu o rapaz.
- Eu já desconfiava disso, pois sabendo-se da existência de outras cópias,
quem quer que seja que estivesse atrás desses livro já os teria conseguido em outra
fonte. – falou Carlos quase que consigo mesmo.
- Isso mesmo delegado. – Disse Francisco trazendo-o de volta para a
conversa.
- Mas me diga, qual é a real importância destes malditos livros? –
Perguntou Carlos.
- Bem a história é a seguinte: Existe uma ordem secreta chamada de Os
Cavaleiros do Conhecimento, que é responsável pela segurança do livro que o
senhor possuía, e que fora resgatado dos mouros durante as cruzadas; diz a lenda
que a cada cinco mil anos, o Criador da a oportunidade a quem possuir os outros
dois de Ter todo o conhecimento que possuíam os que escreveram magnifica obra,
basta para isso que seja realizado um ritual conforme a tradição, a partir desse ritual
é que se abrem os portais . – Respondeu Francisco.

83
- Mas me diz ai Francisco, se Deus, o Criador e tal, sabe que não faremos
um bom uso do conhecimento, porque ele não pega o tal livro de volta. Ele é o
chefão, pode muito bem não dar se quiser, e ainda por cima pode tirar os outros que
ainda estão aqui. – Falou Carlos demonstrando uma certa descrença na história do
rapaz
- Não pode! Diz a lenda também, que os homens sábios daquela
civilização, fizeram um último pedido a Deus: que ele prometesse dar uma chance a
nova humanidade que surgiria de terem o conhecimento também. Deus então em
sua infinita bondade selou esse compromisso com os sábios, porém ficou acertado
que se a nova humanidade não quisesse o conhecimento deveria destruir os livros.
– Justificou Francisco. – Viu como a infinita sabedoria divina já previa nossa falta de
capacidade e elevação espiritual para assimilar todo o conhecimento. Deus então
não estaria quebrando sua promessa, pois não destruiria os livros, nós sim. E
faremos isso, pois segundo os Cavaleiros do Conhecimento o tempo em que o
terceiro livro haverá de ser colocado na terra novamente está próximo. – Completou
o rapaz.
- Olha aqui guri, sinceramente é muito emocionante essa história toda,
porém duas pessoas foram mortas por causa desse livro, ou melhor, três pessoas, e
temos que descobrir quem as matou, portanto temos que achar quem o pegou o
livro para chegarmos ao culpado, e tenho certeza que ele vai Ter carne e ossos
suficientes para ser colocado atrás das grades, e não pense que o senhor não está
na minha lista de suspeitos também. – Terminando de falar isso Carlos levantou-se
repentinamente e começou a sentir um mal estar, olhou para o jovem Francisco e
perguntou: Será que eu poderia usar o banheiro. – disse Carlos demonstrando um
certo desconforto.
- Claro descendo as escadas a direita. – Falou o rapaz.
- Tome conta de nosso feiticeiro ai Aline.
- Pode deixar. – Falou Aline sorrindo. Enquanto descia as escadas Carlos
encontrou com a mãe do rapaz trazia uma bandeja com alguns sanduíches e o que
parecia ser chá, pelo cheiro de erva doce, “um lanchinho doutor.” Disse a velha
sorridente. Nesse momento Carlos lembrou-se que estava a mais de doze horas
sem pôr nada no estômago. Mas não estava sentindo fome, a única coisa que lhe

84
incomodava era a barba que já estava comichando, Carlos apenas acenou com a
cabeça e entrou no banheiro, enquanto a velha senhora subiu para o escritório.
- Um lanchinho filho. A mãe já fechou a loja, pode ficar tranqüilo. Coma
minha filha, e aconselho o seu amigo comer também, ele está com uma cara
péssima. – Disse a velha senhora enquanto largava a bandeja em cima de uma
pilha de livros.
- Aquilo é osso duro senhora, pode deixar. – falou Aline sorrindo.
- Bom vou sair para deixá-los à vontade. – Falou a velha enquanto
acariciava o rosto do jovem Francisco. Quando estava descendo as escadas
encontrou Carlos novamente. “Coma alguma coisa delegado, saco vazio não para
em pé”, disse ela com um tom inocente.
- Bem, podemos voltar a nossa conversa? – Falou Carlos enquanto
sentava-se novamente.
- Como quiser doutor. – respondeu o rapaz enquanto servia uma xícara de
chá.
- Primeiro lugar meu jovem, não sou muito crente nessas histórias
sobrenaturais, mas também não sou tolo a ponto de negar completamente a
existência de coisas que fogem a nossa explicação. Mas me diga qual é a desse
símbolo ai no chão? Ele está nos protegendo do quê? - perguntou Carlos
Apontando para o desenho no chão.
- Isso é um pântáculo mágico delegado. Ele serve para manter afastados os
mensageiros do Clã. – respondeu Francisco.
- E o que seria esse tal de Clã? – perguntou Carlos enquanto recusava um
a xícara de chá que Aline havia lhe servido.
- O Clã é uma sociedade secreta que formou-se na idade média de grupos
divergentes dos Cavaleiros do Conhecimento, e tem o intuito de reunir os três livros
novamente e obter todo o conhecimento, são todos feiticeiros poderosos, que com a
inquisição fugiram aqui para o continente Americano. Dizem que são chefiados pelo
próprio demônio. – respondeu Francisco demonstrando certa preocupação.
- E esses são os maus, devo acreditar. – falou Carlos demonstrando
novamente um ar de descrença. – Conhece alguém chamado frei Martinho?
– perguntou ele.

85
- Claro. Ele é o líder dos Cavaleiros do Conhecimento. – respondeu
Francisco.
- O que sabe a respeito dele?
- Bem ele é que trouxe o livro da vida do Egito, achou que com a chegada
da hora da destruição era mais seguro trazê-lo para um lugar neutro, mas estava
totalmente errado, pois o livro acabou caindo em mãos erradas.
- O livro foi roubado pelo pessoal do tal Clã que estava por aqui, suponho.
- Exatamente, delegado, mas frei Martinho disse que uma pessoa estava
tratando de recuperá-lo. Sua amiga, tenente Claudia, ela iria se infiltrar no Clã, que
aceita adeptos dispostos a entregar sua alma ao cão, e assim que tivesse
oportunidade trataria de roubar o livro de volta, conseguiu, mas infelizmente acabou
morta. – respondeu o rapaz.
- Bem o resto da história já sabemos, prevendo o que lhe aconteceria
Claudia entregou o livro para Lulu que entregaria para... Você? – Perguntou Carlos.
- Não, para uma outra pessoa. – respondeu Francisco.
- Obrigado Francisco. Mas está ficando tarde e não queremos incomodar.
– Falou Aline olhando para Carlos como quem diz que aquela conversa deveria
parar por ali.
- Tudo bem, apenas quero que saibam que Samuel ira atrás do Clã para
tentar recuperar o outro livro, ele acha que pode barganhar com os demônios uma
parceria, e na hora certa, irá destruir os livros, mas acredito que não vá ter sucesso,
pois o Clã deve estar mais atento agora.
Os dois saíram do sebo e seguiram à pé em direção do apartamento de Carlos,
estava ali um delegado, com quinze anos de serviço na policia, sem entender droga
nenhuma do que estava acontecendo, Aline do seu lado calada, com certeza não
estava a fim de falar nada, e ele achava que nem queria ouvir nada mesmo. A
garoa tinha começado novamente. Quando chegaram no apartamento, o pessoal da
perícia, que Carlos tinha pedido para passar por lá para ver se achavam alguma
coisa, tinham deixado o apartamento cheio de faixas de advertência, só de
sacanagem. Na porta um bilhete: ”Carlos, sua mãe esteve aqui, acho melhor tu ligar
para casa de teus pais. Ela ficou meio preocupada, para não dizer histérica, trate de
comprar um celular” “Merda era tudo o que eu queria.” Pensou Carlos consigo

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mesmo, pois era bem capaz de sua mamãe Ter um treco pois ele sabia muito bem
que o pessoal da perícia devia ter inventado umas boas histórias sobre o que tinha
acontecido, e a essa altura ela já devia Ter ligado para todos os necrotérios da
cidade, porém ele não estava a fim de ligar para ela, sua cabeça estava tão confusa
que nem tinha notado que Aline estava a juntar as coisas espalhadas pelo chão,
então parou por uns instantes para olha-lha em sua empreitada: sempre tão
organizada, tinha pavor de ver as coisas espalhadas e fora do lugar.
Ela notou que ele estava a olhando, parou e sentou-se no sofá. Respirou fundo
como que vai começar dar uma palestra, e começou a chorar.
- Ei. Calma guria. O que foi?
- Estou com medo Carlos. Eu não queria Ter me envolvido nesta história,
mas quando Claudia me procurou desesperada não pude lhe dizer não, fui eu quem
pediu para que o Assis ajudasse-a, ela disse que se acontecesse alguma coisa com
ela, era para min procurar o tal Lulu que ele me entregaria um livro, e que não era
para min entregar para ninguém, apenas para um padre, que para provar que era a
pessoa certa , me daria uma foto em que aprecemos nós duas juntas na formatura
da academia. – desabafou Aline.
- Ei que história é essa, porque você não me contou toda a verdade logo.
– disse Carlos levantando-se.
- Eu queria descobrir quem tinha matado minha amiga, e por qual motivo.
Mas não sabia nada desta história de magia e coisa e tal, eu juro. – falou ela
tentando conter as lágrimas. Carlos ficou alguns instantes andando de um lado para
outro da sala tentando colocar em ordem seus pensamentos, tentando descobrir
aonde que ele realmente entrou naquela história, e se é que ele estava por dentro
de alguma coisa, pois o relato de Aline o tirou totalmente da sua órbita.
- Tudo bem. – falou ele tentando ser calmo. – Depois a gente vê com é
que fica isso. Meu Deus, você sabia de tudo! – Disse ele sentando-se no sofá.
- Desculpe, não sabia que essa história ia chegar a esse pé, eu juro.
- Tudo bem, eu já disse, vamos nos acalmar e tentar colocar as idéias em
ordem, acho que agora devemos descansar um pouco.
- Posso dormir aqui esta noite? Eu estou com muito medo de ficar sozinha.
- Claro. Vou arrumar o quarto para você, depois vou ligar para mama que

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a essa altura deve estar ligando para toda a chefia de policia atrás de min. - Falou
Carlos enquanto servia um copo de Vodka.
- Não e preocupe. Eu sei o Caminho pode ligar para ela. - falou Aline
levantando-se e indo em direção do quarto de Carlos.
- No armário tem alguma roupa suas daquele tempo. Não queimei-as como
pediu. - Gritou para ela no quarto.
- Fiquei sabendo que dormiu abraçado com elas durante um mês depois
que eu fui embora. - gritou ela de volta, sua voz ainda estava engasgada por causa
do choro.
- Pelo jeito mama não sabe guardar segredo não é. – falou Carlos consigo
mesmo sem notar que Aline retornara à sala.
- Porque não deu certo Carlos? – Perguntou ela surpreendendo-o.
- Quer a minha versão ou a sua? – perguntou ele cinicamente.
- Agora não importa mais. Eu acho.
- Vamos esperar acabar essa história para conversarmos sobre isso
novamente. – disse Carlos sorrindo pela primeira vez em dias.
- Vou cobrar.
- E como vai acabar a conversa?
- Depende de você.
- Ou de nós.
- Já tenho minha opinião formada. – Disse Aline dando-lhe as costas.
- Digno de uma advogada: opinião formada. – Falou Carlos com um ar um
tanto cínico.
- Melhor que passar meus dias na companhia de um gato velho e seco.
- Que por sinal foi seqüestrado. – completou Carlos olhando para a tigela
do velho Lester virada em um canto da sala.
- Sinto muito, e desculpe por Ter brigado com você hoje a tarde. - falou
Aline tentando consola-lo.
- Não encrenca, já esqueci. Agora descansa que amanhã nós iremos atrás
desse tal frei. – Respondeu Carlos.
- Carlos, se você pretende dormir na mesma cama que eu, por favor, faça a

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barba. – Disse ela passando a mão no rosto de Carlos ele não respondeu nada,
apenas deu sorriso de canto de boca e foi para o telefone. “Vejam só, estamos
vivendo sobre o mesmo teto a apenas cinco minutos e ela já começou a implicar
comigo.” Pensou ele. Quem atendera o telefone fora seu pai. Ele disse que havia
dado um calmante para sua mãe e que ela dormira. Os rapazes disseram a ela que
Carlos tinha sofrido um assalto mas que estava bem, mas mesmo assim ela passou
a tarde inteira agitada esperando noticias. Carlos pediu para que seu pai dissesse a
ela que estava tudo bem e que ele iria viajar no dia seguinte que não se
preocupassem. O velho Giulliano entendia, e estava sempre preparado para
receber noticias ruins sobre o filho varão. Mas estava calmo. Estava consciente do
risco da profissão que ele escolhera para ganhar a vida.

24.
Carlos deitou-se no sofá e acabou dormindo, pela manhã, acordou assustado
com os gritos de desespero de Aline, eram por volta da seis horas. Ele sacou sua
arma que nem tirara da cintura quando adormeceu, e correu em direção do quarto. A
porta estava aberta e Carlos congelou a alma antes de entrar, a visão do que se
passava ali era horrenda, ele chegou a ficar meio desorientado por alguns instantes
procurando apoio no marco da porta. As paredes do quarto estavam todas sujas de
sangue. Na hora, o que veio a sua cabeça era que Aline tinha sido ferida, mas não,
não era sangue dela. Aline estava encolhida na cama embaixo dos lençóis, e aos
seus pés a cabeça decepada do velho gato Lester, um rastro de sangue levava até
o resto do corpo do bicho mais aos pés da cama. Na parede a direita da cama
estava escrito com sangue: “Não se envolvam mais. Os próximos poderão ser
vocês.” Carlos sentiu um calafrio percorrendo seu corpo, em todo seu tempo de
serviço ele nunca tinha visto coisa parecida. Aline pulou em seus braços aos prantos
pedindo que a tirasse dali, Carlos levou-a para sala e pediu que ela ligasse para o
delegado Antônio, para ele mandar uma equipe de peritos. Carlos percorreu o
apartamento em busca de alguma pista, mas não encontrara nada, era coisa de
profissional. Verificou a porta, mas não encontrou nenhum sinal de arrombamento,

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ela estava trancada como ele havia deixado quando chegara, seja quem fora qu
tivesse estado ali, tinha entrado por outro lugar, e saído por outro lugar também.
“Mas por onde? Pulou a janela? Do décimo andar?” pensou Carlos tentando achar
uma explicação lógica para aquilo, mas bem lá no seu íntimo ele Já estava
começando a aceitar aquela história de demônios que Francisco havia lhes contado.
- Antônio vai mandar o pessoal. – Disse Aline ainda confusa enquanto
vestia suas calças.
- Tudo bem, acho que vou tomar um banho, está tudo bem contigo?. –
Perguntou Carlos.
- Esta sim. Vou até o quartel da policia do exército, preciso fazer meu
relatório. – Respondeu ela.
- Creio que não precisa mencionar isso. – Falou ele.
- Não se preocupe. – Respondeu Aline.
- Seria bom que não mencionasse todo o resto também, ou o exército vai
Ter que reformar uma jovem capitão por insanidade mental. – Falou Carlos tentando
animá-la.
- Tem razão. – Respondeu Ela sorrindo.
- Vamos até Santa Cecília hoje para resolvermos esta História com tal frei
Martinho.
- Ótimo. Já não aguento mais. – respondeu Aline.
- Está bom para você se partirmos a dez horas?
- Tudo bem. É só o tempo de entregar o relatório e arrumar algumas coisas.
- As dez horas então?
- As dez. – confirmou. Ela acabara de vestir-se e saiu.
Carlos foi até o quarto e começou a arrumar algumas coisas em uma mochila
para a viagem, pois apesar de Santa Cecília não ficar muito longe era previsível que
eles tivessem que passar uma noite lá. Estava fechando a mochila quando bateram
à porta, Carlos espiou pelo olho mágico e pode reconhecer a fisionomia do jovem
Francisco em companhia de um senhor: o velho do casarão, seu avô.
- Bom dia delegado. Desculpe incomodá-lo tão cedo, mas aconteceu uma
coisa. - Disse Francisco assim que Carlos abriu a porta.
- Tudo bem guri. Entrem e me contem a história. – Falou Carlos enquanto

90
verificava se não havia mais ninguém no corredor do prédio.
- Bom, esse é meu vô, Isau. – Carlos acenou com a cabeça para o velho
senhor que retribuiu o cumprimento. – O que nos traz aqui, é que agora a pouco
recebemos um telefonema da policia de Santa Cecília, encontraram papai morto
dentro de seu carro, abandonado um pouco antes do vilarejo dos mosteiros. – Falou
Francisco como se aquele acontecido não tivesse abalado um só sentimento seu.
- Droga! Sinto muito guri. - Falou Carlos. – Por favor sentem-se. – Disse
ele tirando algumas coisas do sofá, os dois visitantes sentaram-se e ficaram
observando a bagunça em volta do apartamento.
- Obrigado, - disse Francisco – logo que recebemos a noticia fomos até a
livraria do velho Samuel e a sua esposa nos disse que ele não retornara desde
ontem a noite, mas que tinha deixado uma carta para mim, e que dizia que eu
deveria pegar o livro dele e levar para o frei Martinho caso não retornasse.
- E o que seu pai estava fazendo em Santa Cecília? – Perguntou Carlos.
- Ele tinha ido contatar o frei Martinho para comunicar que o livro tinha sido
perdido, mas com certeza o pessoal do Clã o pegou antes que ele pudesse
encontrar o frei, caso contrário o frei estaria com ele no carro. - Falou Francisco.
- Talvez estivesse, e talvez esteja jogando para o outro lado. – Disse Carlos
enquanto acendia um cigarro.
- Não. O frei Martinho é a pessoa de mais puro coração que já pisou na
face da terra. – Retrucou Francisco.
- A sede pelo poder corrompe os homens guri. – disse Carlos.
- Não é o caso do Frei. – falou Francisco confiante.
- Bem se você diz. Mas diga ai, no que eu posso ajudar?
- Mamãe vai ficar esperando o corpo de papai, por isso preciso que alguém
me leve até santa Cecília, pois meu avô vai ficar aqui com ela. – Falou o rapaz.
- Vem cá, tua mãe também sabe desta história? – perguntou Carlos.
- Claro delegado, ela foi instruída desde pequena que sua prole seria a
salvação do mundo. - Disse Francisco.
- Ei. Que história de prole da salvação é esta? - Perguntou Carlos
mostrando surpresa.
- O que meu neto diz é verdade doutor. Minha família recebeu esta missão

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ainda lá no oriente antes de migrar para o Brasil; a cada geração, um dos varões da
família é instruído para realizar o ritual de destruição dos livros. - Pronunciou-se o
velho pela primeira vez.
- Quer dizer que não é só chegar e botar fogo? - perguntou Carlos
sorrindo
- Claro que não, e durante anos eu mesmo me encarreguei de passar para
o meu neto todo o conhecimento, e agora que já estou velho e cansado gostaria que
o senhor tomasse conta do jovem para min, pois posso sentir uma energia positiva
ao seu redor, e isso me conforta. - Falou o velho sorrindo.
- Espere ai vovô, existem certos impedimentos. Eu estou no meio de uma
investigação de homicídio, não posso ficar de babá de um guri mesmo que ele tenha
envolvimento quase que direto no caso. – Falou Carlos.
- Acredite filho, esse jovem não vai decepcioná-lo. – Disse o velho.
- Tudo bem seu Isau, mas o máximo que eu posso fazer é dar uma carona
para o garoto até o mosteiro, pois eu e minha colega temos que Ter uma
conversinha com esse tal frei, – falou Carlos para o velho – portanto, se quiser pode
arrumar seus trapos que estamos partindo às dez. – completou ele desta vez
referindo-se a Francisco.
- Estarei pronto delegado. – Disse Francisco.
- Ótimo, agora se me dão licença preciso terminar de arrumar minha coisas,
e Francisco, novamente sinto muito pelo seu pai. – Disse Carlos.
- Obrigado delegado. Estarei aqui às dez. – disse o rapaz.
- Não precisa, eu te pego na sua casa. - Disse Carlos enquanto os dois
dirigiam-se para a porta. – Espere um pouco, quero lhes mostrar uma coisa, venham
aqui. – disse Carlos indo até seu quarto, sendo seguido pelos dois.
- Minha nossa. Mas isso é coisa do Clã. – Disse Francisco admirado.
- Olha guri a única coisa que não entendo, é como que um vivente entrou
aqui sem arrombar a porta, e fez toda essa merda sem acordar ninguém? -
Perguntou Carlos.
- Eles são feiticeiros a serviço do Demônio meu filho. – falou o velho.
- Qual é seu Isau, o senhor não está um pouco velho demais para
acreditar nestas histórias! – Falou Carlos com uma certa ironia.

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- É verdade delegado. O Clã invoca os mensageiros do inferno para
fazerem ameaças, eles não podem fazer nada contra nós materialmente, mas para
quem tem uma mente fraca pode acabar louco com as manifestações e alucinações
que eles provocam. - Disse Francisco.
- Olha guri, esse ai era meu gato, e não me parece uma alucinação a
cabeça dele aqui em cima da minha cama e seu sangue esparramado ali na
parede. – Falou Carlos impaciente.
- Acredite delegado é apenas uma alucinação, tente limpar sua mente de
todo o problema que estamos passando, tente se imaginar em um campo verde
protegido pela presença de Deus e tudo desaparecerá. – Disse o velho enquanto
pegava a cabeça do gato de cima da cama que repentinamente transformava-se em
um relógio despertador para espanto de Carlos que pegou o relógio na mão,
incrédulo pelo que tinha presenciado. – Mantenha a mente limpa e confiante que
tudo dará certo meu filho. – Acrescentou o velho sorrindo.
- Claro vovô, vou seguir seu conselho, mas depois de tomar um banho,
agora vão embora que não podemos nos atrasar, essa nossa conversa já se
prolongou por demais. – Disse Carlos tentando livrar-se do embaraço em que tinha
se metido, pois a poucos instantes tinha feito chacota com a crendice do velho e
este agora provava-lhe que estava certo o tempo todo.
- Vamos indo vovô. Mas não esqueça do que ele disse delegado, “um
campo verde”. – Falou Francisco sorrindo.
- Tá guri, tá. Agora vai, senão o único campo verde que vou ver vai ser o
jardim do manicômio se tu não parar com esse papo. - Disse Carlos enquanto
fechava a porta.
Carlos sentou-se no sofá e encheu o copo com um pouco de Vodka que tomou de
um gole só; olhou ao redor de seu apartamento bagunçado e começou a pensar em
quão complicada pode ser a existência humana, ele que se considerava um cara
que já tinha visto as coisas mais extraordinárias do mundo estava se deparando com
fatos totalmente novos e muito mais extraordinários do que qualquer coisa que ele já
havia pensado existir; perdeu-se nesses pensamentos por quase duas horas
enquanto baixava gradativamente o nível da bebida na garrafa, até que em um

93
momento ele deu-se conta que já eram quase nove horas da manhã, resolveu tomar
seu banho, pois uma ducha de água quente podia faze-lo clarear as idéias.
Saiu do banheiro e enquanto abria a gaveta do guarda-roupas para pegar uma
toalha para secar-se, assustou-se quando enxergou a imagem da parede no
espelho: estava tudo limpo, não havia mais a inscrição com o sangue, ele então
virou-se de frente para a parede novamente a inscrição estava lá. Mas quando
voltava a olhar pelo espelho não tinha nada. “Que merda é essa afinal.” Pensou ele,
resolveu fazer o que Francisco havia lhe dito: Ficou de pé para a parede, fechou os
olhos e começou a pensar num lugar calmo, campo não, pois ele odiava mato,
pensou numa praia cheia de loiras peitudas, quando de repente ouviu uma
exclamação vindo da porta do quarto, era Aline que acabara de chegar:
- O que é isso Carlos? O que você esta fazendo pelado de frente para essa
parede? – perguntou Ela tentando conter o riso.
- Droga. Quer me matar do coração. Não sabe bater antes de entrar?
– Disse ele bravo.
- Desculpe, não sabia que pegaria você assim. O que está fazendo,
tentando se comunicar telepaticamente com a alma do gato? - Perguntou ela com
uma certa ironia.
- Engraçadinha. Me joga esta toalha ai do chão, e já aproveita e da uma
olhado no espelho. - disse Carlos.
- Claro. – Disse Aline enquanto juntava uma toalha e olhava no espelho.
– Minha nossa! – Exclamou ela.
- Você viu? Então o que acha? - Perguntou Carlos.
- Acho que é um lindo bumbum, mas se você der uma malhadinha de vez
em quando vai ficar melhor. - Disse ela jogando-lhe a toalha.
- Para com isso droga. Olha para parede. - Falou Carlos já perdendo a
paciência.
- Santo Deus! – exclamou Aline novamente.
- Viu só. - Disse Carlos.
- Mas que merda é essa? – Perguntou ela.
- Depois eu te conto com mais detalhes, ou melhor, nosso companheiro de
viagem vai te contar com mais detalhes.

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- Quem? – perguntou Aline.
- Você já vai ver. Deixe eu me vestir e nós já saímos. Pegou roupa quente?
– Falou Carlos.
- Claro, está tudo lá em baixo, não quis trazer pois a mala é muito grande. –
respondeu ela.
- Ótimo, agora sai! – Falou Carlos enquanto pegava uma roupa.

25.
Carlos terminou de se vestir e eles saíram. No caminho ele explicava para
Aline o que estava tentando fazer na hora que ela chegou no apartamento, e claro,
teve que agüentar o sorrizinho irônico dela um bom tempo, porém quando falou
sobre a morte do pai de Francisco, o semblante da jovem moça mudou para um ar
de tristeza e de medo em ter o mesmo fim. Francisco juntou-se a eles no sebo e eles
pegaram a auto estrada em direção a Santa Cecília, localizada nos confins da na
serra gaúcha. A cada quilometro que passava aumentava a expectativa de Carlos
em conseguir alguma informação válida sobre tudo o que estava acontecendo, e
talvez encontrar a solução para acabar com aquela história de uma vez. Viajaram
por umas duas horas e pararam para o almoço num posto de gasolina, Carlos
abasteceu o carro e eles seguiram viagem por uma estrada secundária muito
esburacada que subia em direção da serra. Francisco não desgrudava de um
embrulho que trazia junto ao peito, o livro do velho Samuel. Aline se ocupava em
contar as vacas pelo caminho. Carlos observava a linda paisagem formada por
diversos parreirais, de repente um estrondo como o de um tiro de espingarda
quebrou o silêncio e colocou-os em alerta, quando Carlos, sentindo a direção do
carro puxar para o lado, teve uma certa dificuldade em controlar o veículo que
começou a andar de um lado para outro da estrada até que Carlos finalmente
conseguiu pará-lo no acostamento.
- O que aconteceu? – perguntou Aline pálida, encolhida em seu banco.
- Nada, foi só um pneu que furou eu acho. – respondeu Carlos tentando
manter a calma.
- Tem estepe? – perguntou Aline.

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- Claro né, tá achando que isto é carro de mulher? – respondeu ele
Ironicamente, ele saiu do veículo e realmente constatou que um dos pneus
dianteiros havia estourado, ele dirigiu-se para o porta malas do carro e ao abri-lo,
teve que engolir as palavras que havia dito para Aline ao deparar-se com o porta
malas completamente vazio, tudo havia sumido, as malas de Aline e Francisco, sua
mochila, ferramentas, e é claro, o estepe. Aline, que havia saído do carro para
acompanhá-lo começou a rir, e logo o riso se transformou em choro. Francisco se
sentou encostado em uma das rodas, e, abraçado ao seu embrulho, começou a
entonar uma espécie de oração numa língua diferente. Carlos tentou não
demonstrar sua preocupação com o acontecido, pois só iria piorar as coisas. Ele
tentou lembrar-se se tinha notado alguém rondando o carro enquanto estavam
almoçando, pois ele não desgrudara os olhos do veículo por nem um instante, era
praticamente impossível que alguém tivesse pegado as coisas, porém naquele
momento ele se conformou que naquela história nada mais era impossível, face ao
que ele já havia presenciado até o momento, ele sentou-se no barranco costeiro da
estrada, acendeu um cigarro e começou a pensar em uma saída para aquela
situação. Calculou que pelo tempo que eles percorreram do posto de gasolina até
aquele ponto, ele deveriam estar a apenas uma ou duas horas de caminhada até o
mosteiro e decidiu que deveriam seguir andando, pois alcançariam o mesmo antes
do anoitecer, já que não possuíam peso nenhum para carregar mesmo. Ele
levantou-se e foi até seus companheiros. No começo foi difícil convencer Aline e
Francisco para seguirem em frente, pois eles achavam melhor ficar esperando por
ajuda, mas como já estava tarde e logo anoiteceria, acharam melhor concordar com
Carlos, pois o telefone celular de Aline estava sem sinal por causa dos morros que
cercavam o local.
- Então o senhor não tem carro de mulher, não é? – Resmungou Aline a
certa altura do trajeto, quebrando o silêncio que reinava entre eles.
- Está certo, me desculpe o comentário infeliz, mas você viu que não sumiu
apenas o estepe, todas as nossas coisas também. - respondeu Carlos.
- Todas as suas coisas querido, eu ainda tenho algumas aqui dentro desta
mochila que o senhor fazia questão de que eu não carregasse dentro do carro
comigo, se eu tivesse dado ouvidos não as teria também. - falou Aline sorrindo.

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- Claro senhora sabe tudo, me venceu, agora é melhor pararmos de
discussão para economizarmos energia, pois temos muita estrada pela frente.
- Certo vamos dar uma trégua. - Respondeu Aline.
- E ai Francisco, tá mais calmo? - Perguntou Carlos para o jovem rapaz
que até agora mantinha-se quieto.
- Como é que eu poderia delegado, estamos caminhando no meio do nada
e logo começara a anoitecer. - falou ele inconformado.
- Calma querido, o nosso corajoso delegado Carlos ai vai nos proteger, isso
se não deixou sua arma dentro da mala também. - Falou Aline.
- Eu gostaria de Ter deixado sua língua lá. – retrucou Carlos bravo.
- Olha o exemplo que esta dando para o menino. – Disse Aline sorrindo.
- Escutem aqui os dois, já estamos caminhando a mais ou menos duas
horas, é bem provável que logo já possamos avistar o maldito mosteiro, portanto
parem de choramingar pois já estão me enchendo. – Falou Carlos bravo.
Caminharam por mais ou menos uma hora e meia e caiu a noite, junto veio um
vento frio que gemia por cima dos morros, e a cada passo que davam, a única coisa
que enxergavam a sua frente era mais estrada, que por sinal começava a sumir
também devorada pela escuridão da noite. Seguiam caminhando em silêncio até
que a voz de Francisco, que vinha caminhando alguns passos atrás dos dois,
quebrou o silêncio:
- Vejam, um carro, e vem nessa direção! – falou ele ofegante.
- Ótimo, talvez nos de carona, façam sinal para parar. – disse Carlos
enquanto abanava os braços para o veículo que se aproximava. O carro, uma
caminhonete ford V8, parou no costado da estrada e Carlos foi até ela:
- Pois não tchê? Estão perdidos? – Falou o motorista, um senhor de
aproximadamente cinquenta anos, ao seu lado estava uma senhora de mais ou
menos a mesma idade.
- Estamos tentando chegar ao vilarejo dos mosteiros, nosso carro quebrou
lá atrás, será que poderiam dar-nos uma carona? – Falou Carlos para o senhor.
- O vilarejo? Mas credo vivente tu ia Ter que andar a noite inteira mais meio
dia para chegar lá. – falou o senhor. – Encontramos um carro abanonado a cinco
quilômetros atrás, então provavelmente era o seu. – Disse o velho sorrindo.

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- Cinco quilômetros! Mas estamos andando desde às quatro da tarde, e já
são quase oito. - Falou Carlos indignado.
- É que as estradas da serra enganam as pernas moço. – Disse a senhora
que estava no banco do carona. – E não avisaram que é perigoso andar de noite
por ai? – Perguntou ela.
- Não nos disseram nada, que perigo poderia haver? – Perguntou Carlos.
- Coisas muito estranhas moço, caso de assombração. – Falou a senhora
assustada.
- Fique quieta mulher! – Falou o homem dirigindo-se bravo para a senhora.
– Não estranhe não tchê, ela se impressiona demais com as histórias que as
beatas contam na missa. – Disse o homem dirigindo-se novamente para Carlos. –
Mas é verdade que estes lados estão meio perigosos ultimamente, ontem mesmo
encontraram o corpo sem vida de um senhor, por estas bandas. – completou o
Homem.
- Bem, será que poderiam então nos dar uma carona até o vilarejo mais
próximo para que a gente arrume uma lugar para passar a noite? – perguntou
Carlos.
- Mas claro tchê, subam ai, se quiserem podem pernoitar em nossa casa,
amanhã voltaremos com um trator para rebocar seu carro, em Santa Cecília tem um
mecânico, a gente leva lá e depois vocês seguem viagem. – respondeu o homem
sorridente.
- Ora não queremos incomodar, se o senhor nos levar até o vilarejo mais
próximo já está bom. – disse Carlos.
- Ora, o vilarejo mais próximo é Santa Cecília, e eu não estou com vontade
de dirigir até lá, subam ai, eu e minha velha não recebemos muitas visitas e vocês
serão bem vindo em nossa casa. – Disse o homem.
- Se é assim nós aceitamos. – Respondeu Carlos.
- Então subam ai atrás , se quiserem podem se cobrir com a lona
para não pegarem pó, não se preocupem com os porcos, eles não atacam.
– Completou o senhor sorrindo. Apesar da carona Ter chegado em boa hora
Carlos não estava nem um pouquinho satisfeito com aquele dia, primeiro a tripas de
seu gato esparramadas pelo quarto, um almoço terrível num boteco de beira de

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estrada, quatro horas de caminhada para percorrer cinco quilômetros, e agora
porcos, eles estava sentado no meio de porcos.
Aline e Francisco logo fizeram amizade com os bichos, Carlos percebeu a
felicidade que ela estava sentindo em dar milho para os porcos e isso o confortou
um pouco pois ele achava o sorriso dela lindo, a coisa mais linda que ele já tivera na
vida e que perdera por causa de bobagens. Ele encolheu-se num canto da
carroceria e acabou adormecendo, acordou quando chegaram na pequena fazenda
de seus salvadores.
- Chegamos crianças, - Falou a senhora sorrindo – não temos luz elétrica
nem televisão, mas tenho certeza que ficarão confortáveis. – Completou ela
sorridente
- Muito obrigado dona...
- Carmelita, e meu marido, Antenor. – respondeu ela para Aline.
- Sou Aline, este é meu colega Carlos e nosso amigo Francisco.
Viemos de Porto Alegre. – respondeu Aline apertando a mão da senhora.
- Estão a passeio? – Perguntou ela.
- Na verdade não. Sou delegado de policia, e minha amiga é capitão do
exército, estamos investigando alguns assassinatos que ocorreram lá em Porto
Alegre, e que acabou nos trazendo até aqui. - respondeu Carlos friamente.
- Não me digam que é o pobre homem que encontraram ontem? - Disse a
senhora espantada.
- De certo modo tem alguma relação sim, aliás esse homem era pai do
jovem Francisco aqui. - falou Carlos apontando para Francisco.
- Ora meu filho, sinto muito pela sua perda, mas vamos entrar, que já está
esfriando. – Disse A senhora tentando consolá-lo. Eles entraram para dentro da
casa, enquanto o senhor Antenor retirara-se para o galpão para alimentar alguns
bichos de sua criação, dona Carmelita tratou de preparar o jantar deixando os três
na sala da casa, ficando Carlos encarregado de acender a lareira. Eles comeram
cordeiro assado no forno a lenha e depois sentaram-se na frente da lareira para
tomar, em canecos de alumínio, um delicioso vinho que seu Antenor disse Ter sido
feito por ele mesmo. Carlos já estava sentindo-se um pouco melhor em vista do
resto dia, o leve teor alcoólico a bebida já estava lhe causando um bem estar. Aline

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fez amizade com a velha senhora rapidamente, e pareciam duas grandes amigas
que não se viam a muito tempo e estavam cheias de assunto para conversar,
Francisco tentava fazer o cachorro do casal tomar um pouco de vinho, mas o bicho
estava mais interessado no pedaço de cuca que o rapaz tinha na outra mão, e não
pensou duas vezes em dar um bote certeiro quando Francisco se distraiu; o episódio
chamou a atenção de todos que já imaginavam este fim. Dona Carmelita deu outro
pedaço de cuca para o inconsolável Francisco que resolveu deixar o cachorro de
lado e se juntar Carlos e se Antenor.
- Olha guri, mais uma vez quero lhe prestar meus sentimentos em relação a
seu pai. – Falou Antenor.
- Obrigado seu Antenor. Mas diga ai, que história é essa de assombração
que sua esposa tinha dito antes? – Perguntou Francisco, tentando parecer
totalmente leigo ao assunto.
- Não te assusta guri, minha velha é que fica impressionada com que o
povo diz. – falou o homem tentando desconversar.
- E o que o povo tem dito ultimamente? Perguntou Carlos mostrando-se
mais interessado no assunto que o jovem Francisco.
- Bem já que estão interessados sirvam-se de mais vinho que eu vou
acender a lareira que está se apagando. Disse o homem entregando o pequeno
garrafão a Carlos que serviu seu caneco e o de Francisco acabando com a bebida
que havia no garrafão. Seu Antenor terminara de reacender a lareira e fora até a
cozinha de onde trouxe outro garrafão de vinho, um pouco maior que o último, que
colocou ao seu lado numa banqueta de madeira, Francisco se encolhera num canto
do sofá demonstrando um certo cansaço.
- Muito bem gurizada, - Começou o velho num tom bem enérgico. – Espero
que depois de ouvirem o que eu tenho para contar, não saiam por ai dizendo que
sou louco. – Completou ele.
- Não se preocupe seu Antenor, algumas horas atrás, eu também
achei estar enlouquecendo. – Disse Carlos.
- Bom mas vamos começar pelo começo. – falou o senhor sorrindo.
- Pelo fim e que não dá né Antenor. – Exclamou a senhora sorrindo.
- Não me atazane mulher!

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- Desculpe, seu mau humorado. – Retrucou a senhora sorridente.
- Bem, para começo de conversa posso lhes dizer que sou um homem
que foi criado no campo, lidando com bicho, fazendo alambrado, carpindo no meio
do parreiral, acredito em Deus, porém nunca fui muito apegado em coisas
espirituais, sou meio são Tomé, geralmente só acredito no que posso ver e pegar.
- Eu é que sei, - disse dona Carmelita - Para levar esse velho na missa é
um sacrifício.
- Eu bem que iria se o padre dividisse o vinho comigo. Sabem, na hora da
comunhão ele oferece o pão e o vinho, mas quando é para repartir, ele me vêem
com aquele negócinho seco e sem gosto que não me desce pela garganta. – Todos
riem.
- Mas e sobre as assombrações? – Pergunta Francisco impaciente.
- Não atrapalha o senhor, seu mal educado! – Ralhou Carlos.
- Tudo bem doutor delegado. Esses jovens são impacientes mesmo. –
Disse seu Antenor sorrindo.
- Desculpe seu Antenor. Não foi minha intenção ofender. – Disse Francisco
com um ar de arrependimento.
- Olha pessoal, eu não quero ser chata, mas será que não estamos
incomodando o senhor Antenor e a senhora Carmelita demais? – Falou Aline.
- Não se preocupe guria, - disse dona Carmelita sorridente - nós não temos
muitas visitas, e quando aparece alguém, nos dá muito prazer ficar conversando.
Uma vez por mês nosso filho vem aqui com a família, e ficamos conversando até o
dia raiar. Meu velho ai tem muito causo para entreter a gente. – Completou ela.
- Isso mesmo. – Disse seu Antenor, enquanto enchia mais um caneco de
vinho.- Mais um pouco? - falou ele sorridente oferecendo o garrafão para Carlos e
Francisco.
- Por favor. – Disse Carlos lhe estendendo seu caneco.
- Vejo que o delegado é um bom apreciador de vinhos. – Disse o velho.
- Meu pai veio da Itália. – Respondeu Carlos – Pode-se dizer que eu
nasci praticamente dentro de um barril de vinho. – Completou ele sorrindo.
- Pois eu aprendi o ofício com meu sogro, pai de Carmelita, foi uma

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condição para que pudesse-mos nos casar, ele dizia que o homem para tirar sua
filha de casa tinha que saber fazer um bom tinto, e durante o tempo que ficamos
noivos ele me ensinou o ofício, então alguns meses antes do nosso casamento eu
colhi as melhores uvas e fiz o vinho mais saboroso que já existiu, e com isso
consegui casar com a mulher mais doce que já existiu também. – Disse seu Antenor
erguendo seu caneco de vinho em direção de dona Carmelita. – E aposto que o
próprio Baco desceria até a terra para provar aquela maravilha. – Completou ele.
- Que lindo! – Falou Aline com um sorriso que lhe figurava de canto a outro
do rosto.
- Melhor ainda foi a declaração de amor dele filha. – Falou dona Carmelita,
como se retrocedesse uns trinta anos sua vida. – Ele disse que nosso amor seria
como aquele vinho, quanto mais velho ficasse, melhor seria. – Terminou.
- Bem gente, acho que seu Antenor gostaria de contar-nos uma história de
terror. – Falou Francisco desta vez com um tom mais educado.
- Claro. – Concordou seu Antenor.
- Bem eu adoraria ouvir mais a respeito dos dois. – Disse Aline sorridente.
- Tudo bem minha filha, mas acho que nosso amiguinho ai gosta de história
mais emocionantes. – falou seu Antenor. – Bem, tudo começou a menos de um ano.
Começaram a aparecer algumas ovelhas mortas no campo, parecia coisa de zorro
manso, menos pelo fato de que a maioria dos animais não era levado, apenas
tiravam suas vísceras, e deixavam o resto para os urubus. – Completou Ele
- E encontraram alguma pista do que poderia ser? – Perguntou Carlos.
- Não. Até que alguns meses atrás; um peão ai da fazenda vizinha disse
Ter visto o próprio demônio matando um pobre cabrito, e claro, tratou de espalhar
para o vilarejo inteiro, mas sabe como é, ninguém acreditou, até que um dia
apareceu a cabeça desse peão exposta no chafariz da praça central de Santa
Cecília. Parecia coisa macabra, seus olhos haviam sido arrancados. O delegado da
cidade logo aconselhou que os moradores não saíssem a rua tarde da noite até que
o crime tivesse se solucionado. E isso já fazem seis meses. – Falou seu Antenor.
- E não tiveram nenhuma pista? – Perguntou Aline.
- Não moça. Nada até agora. – respondeu seu Antenor inconformado.
- Estranho que não se ouviu nada em Porto Alegre. – Exclamou Aline.

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- Cidade do interior é assim mesmo moça, eles preferem resolver seus
assuntos entre eles mesmos. – Respondeu dona Carmelita.
- E fora isso, aconteceu mais alguma coisa estranha? – Perguntou Aline.
- Depois disso filha, Santa Cecília virou do avesso, cada dia um vê uma
coisa diferente para assuntar no mercado. – Respondeu dona carmelita.
- Claro que a maioria é de peão de fazenda que toma uns tragos, e depois
fica falando bobagem nos botecos. – Complementou seu Antenor.
- E o que vocês acham dessa história toda? – Perguntou Francisco,
encolhido no seu canto.
- Bom como eu já disse, sou um peão de campo, tenho fé em Deus, mas
continuo muito pé atrás sobre essas coisas de sobrenatural, pelo menos até um
tempo atrás...
- Aconteceu algo com o senhor? – Perguntou Aline, não deixando seu
Antenor terminar a frase.
- Com ele só não, - Respondeu dona Carmelita - com nós.
- E digam ai o que é que aconteceu? – Falou Francisco, dando um pulo de
seu canto para ouvir melhor.
- Bem uma vez por semana minha velha e eu vamos até a Cidade para
fazermos compras dos materiais que não se encontram em Santa Cecília. Como
fizemos hoje quando acabamos encontramos vocês. Um dia desses acabamos nos
atrasando um pouco, e viemos para casa mais tarde. Quando chegamos pude notar
certa agitação da bicharada aqui da fazenda. Descemos da camioneta e enquanto
Carmelita guardava as compras, peguei minha garrucha de dois canos e fui ver o
que estava acontecendo no galpão onde dormem os animais, e chegando lá tive a
visão mais aterrorizante que já presenciei na minha vida toda, e até hoje eu me
pergunto se aquilo aconteceu realmente; era um vivente pouco mais de metro e
meio, tinha um par de chifres e asas que pareciam de morcego, além do fedor de
enxofre, próprios do cão, o bicho feio estava com as presas grudadas no pescoço de
um bode véio que foi presente de um compadre meu. Quando o bicho notou minha
presença, fez feições de me atacar, não pensei duas vezes em descarregar os dois
canos da garrucha no infeliz que cambaleou e caiu para trás, enquanto eu carregava
a danada novamente o coisa ruim levantou-se e alçou vôo contra mim derrubando-

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me no chão. Nesse meio tempo Carmelita e alguns peões, que estavam trabalhando
para mim na ocasião, ouvindo o disparo da arma trataram de vir a meu socorro, e
ainda puderam ver o bicho que sobrevoava sobre meu corpo amedrontando-me,
mas foi só sentir a presença dos outros que se desintegrou no ar numa nuvem
negra. – Disse seu Antenor tomando um grande gole de vinho. – Decidimos que era
melhor que o acontecido ficasse só entre nós, mas sabe como é peão de estância,
toma uns tragos e logo fala pelas ventas, até que uma semana depois do ocorrido
veio um dos padres do mosteiro se oferecendo para benzer a propriedade, Carmelita
aceitou, pois é católica fervorosa, não pude dizer não pois o semblante de minha
velha andava aterrorizado desde então, e depois que o frei esteve aqui as coisas
voltaram ao normal. – concluiu ele.
- E o frei ao qual o senhor se refere por acaso não seria um certo frei
Martinho? – Perguntou Carlos.
- Esse mesmo, conhecem? – Respondeu seu Antenor.
- Ainda não, mas estamos a ponto de conhecê-lo, é para isso que viemos
aqui. – Respondeu Carlos.
- Eu sei que não é de nossa conta, mas o que está acontecendo
realmente? – Perguntou seu Antenor. Carlos resolveu contar-lhes toda a história
desde o começo: as mortes dos oficias, do Lulu, e até de seu gato, depois inteirou
que o que acontecera com o gato era na verdade uma espécie de ilusão causada
pelo ditos demônios. Seu Antenor parecia estar mais aliviado em saber que aquele
tipo de coisa não havia acontecido só com ele. No meio da conversa, Francisco
resolveu contar sua história também, o porquê dele estar ali. Contou que sua família
havia recebido a missão de destruir os três livros quando ainda vivia no oriente, e
que essa tarefa era entregue a uma família a cada dois séculos, e que a dele tivera
a honra de ser a que daria fim no serviço pois o tempo já estava chegando. Carlos
notou que o garrafão que seu Antenor trouxera, já estava quase no fim, e começou a
sentir sua cabeça pesar, mas ficou com receio de fazer desfeita e continuou a
aceitar cada servida que ele oferecia, e apesar de saber que sua cabeça lhe mataria
no dia seguinte não sentia vontade de parar, pois aquela bebida parecia lavar-lhe a
alma de todas as preocupações. No sofá ao lado ele podia observar o lindo sorriso
de Aline toda a vez que servia mais um caneco. Não levou mais dez minutos de

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conversa e o garrafão esvaziou, seu Antenor perguntou se gostariam de beber mais
um pouco; Aline fez sinal de que estava satisfeita, dona Carmelita disse o mesmo,
Francisco, estava sentado no chão abraçado ao cachorro da casa disse que se
fosse do mesmo vinho podia beber até o sol raiar; Carlos até tentou dizer que não
queria mais, mas seu cérebro não deixou, afinal ele queria beber sim, queria beber
para esquecer daquela coisa toda, esquecer porque estava ali; seu Antenor, que
havia se retirado para a cozinha, voltou a sala trazendo mais um garrafão de vinho,
fazendo com que os pensamentos de Carlos se voltassem para a bebida novamente
“Esse tem doze anos.” garantiu seu Antenor. Francisco abriu um largo sorriso de
satisfação na cara; Carlos imaginara que o menino, todo esse tempo sendo instruído
para salvar o mundo, talvez nem tivera tempo de desfrutar das boas coisas que a
infância teve a oferecer. Aline tentou evitar que Francisco bebesse mais, mais não
adiantou, pois tanto seu Antenor como dona Carmelita insistiam que seu vinho tinha
propriedades medicinais, e que apesar de uma leve tontura, não causavam mal
algum .
- Bem moçoilos, já contamos nossa história, Francisco contou a dele, agora
só falta vocês, estamos afoitos para ouvir. – Falou dona Carmelita sorrindo.
- Bem não sei se nossa história é tão interessante como a de vocês, mas se
quiserem, podemos contar. Não é Carlos? – Falou Aline.
- Como quiser Aline, como quiser. – Disse Ele. Aline contou a história deles
toda, desde o primeiro dia em que se viram na faculdade, até o último dia em que
eles decidiram separar-se depois de uma discussão calorosa, sem entrar em muitos
detalhes, pois a historia dois com certeza ainda não tinha acabado completamente.
Carlos consultou o relógio e eram três horas da manhã, então ele sentiu uma
forte tontura e pediu que seu Antenor o guiasse até o banheiro, ao retornar a sala
sua visão escureceu e ele caiu no chão, ainda pode escutar vagamente voz de seu
Antenor confortando Aline de que aquilo era normal, que ninguém resistia tanto
assim ao seu vinho; em seguia apagou completamente.

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26.
Quando Carlos começava a separar o que era sonho da realidade, uma
réstia de sol que invadia a janela refletia no rosto de Aline que parecia um anjo lhe
acordando.
- Bom dia pinguço. Espero que tenha dormido bem. – Disse ela sorridente.
- Apesar da ressaca. – Falou Carlos espreguiçando-se.
- Também, bebeu que nem um condenado, seu Antenor e dona Carmelita
saíram logo cedo, disseram que iam buscar nosso carro, eu disse que ia lhe acordar
para você ajudá-los, mas eles não deixaram, são uns amores não? – Falou Aline
enquanto abria as cortinas do quarto.
- Que horas são Aline? – Perguntou Carlos.
- Acho que umas oito, dormimos pouco, mas mesmo assim eu me
sinto ótima. – Respondeu ela espreguiçando-se.
- Aonde você dormiu? – Perguntou Carlos esfregando os olhos.
- Aqui com você. Mas não se preocupe, eu não abusei do menino ai. –
Respondeu Aline sorrindo. Carlos levantou-se e foi até o banheiro. Passou uma
água no rosto, que mais parecia um cacto, achou um aparelho de barbear antigo
sobre a pia e resolveu utiliza-lo; Aline disse que iria lhe preparar um café com
bastante açúcar para curar sua ressaca. Depois da toalete Carlos foi até a varanda
da casa de onde pode observar Francisco que corria no terreiro de um lado para
outro brincando com o cachorro, em seguida ouviu uma buzina e pode ver que era
de um trator que logo começou a aparecer na entrada da fazenda. Eram seu
Antenor e dona Carmelita trazendo seu carro rebocado.
- Vejo que nosso delegado já está bem desperto. – Disse seu Antenor
Sorridente após descer do veículo.
- Nada como um pouco de ar puro da serra para revigorar a gente. –
respondeu Carlos para o homem.
- Ai está seu possante. – Falou seu Antenor.
- E então, deu muito trabalho? Perguntou ele enquanto alisava a lataria do
carro com um certo remorso de Ter feito o veículo rodar por aquela estrada
esburacada.
- Até que não. Mas eu tenho uma má notícia para lhe dar. - Falou seu

106
Antenor.
- Manda...
- Bem pelo que eu pude olhar, quebrou o pivô. – Disse ele.
- Quebrou o que? – Perguntou Carlos.
- O pivô. É uma peça ai das rodas. Deve ter quebrado com o solavanco na
estrada na hora que furou o pneu. – Concluiu ele.
- Tinha uma buraqueira mesmo. Quase perdi o controle. – Confirmou
Carlos.
- Bom, mas é melhor nós levarmos para o mecânico dar um diagnóstico
mais preciso, mas eu acho que se for realmente o pivô, eu não acredito que ele vá
ter a peça para reposição, pois não se vê um carrão desses por aqui todo o dia, ele
vai Ter que ir buscar em Porto Alegre. – falou seu Antenor.
- Droga. Precisávamos chegar naquele mosteiro o quanto antes. - Disse
Carlos inconformado.
- Olha, eu posso levar o seu carro até o mecânico, pois já teria de ir lá
mesmo para buscar uma peça para um de meus tratores, mas infelizmente não
posso acompanhá-los até o mosteiro, pois tenho que cuidar do parreiral, chegou
uma peonada nova , eu tenho que cuidar de cima, porém posso emprestar alguns
cavalos se quiserem, o caminho é fácil não tem perda, e lá tem uma pensão de um
amigo meu aonde pode pernoitar e guardar os bichos.
Quando voltarem com certeza seu carro estará pronto. – falou seu Antenor.
- Eu agradeço muito sua colaboração seu Antenor, e vou aceitar seu favor,
mas eu imploro: me dê um cavalo manso, pois eu não me dou muito bem com
animais.
- Vou ver o que posso conseguir. - Falou seu Antenor sorrindo como um
garoto peralta que estava a ponto de fazer uma traquinagem. Carlos não gostou
muito do jeito que ele disse “Vou ver o que posso conseguir”, mas não tinha muita
escolha naquela hora. Ele foi contar o acontecido para seus curiosos companheiros
que estavam na varanda da casa. Aline reclamou dizendo que era melhor que eles
esperassem que o carro ficasse pronto, mas o real motivo de sua atitude
manifestou-se em sua cara de nojo quando seu Antenor trouxera os cavalos logo
depois do almoço. Francisco se fez de indiferente, apenas comentou qualquer coisa

107
sobre sua coluna. Dona Carmelita lhes dera umas malas de garupa para
acomodarem suas coisas no lombo dos cavalos, as de Aline na verdade, pois a
única coisa que Francisco e Carlos levavam eram dois ponchos que seu Antenor
lhes emprestara para que não passassem frio.
- Então está tudo certo tchê, chegando na pensão do vilarejo, é só dizer
para o dono da pensão que são meus amigos, e ele os tratará como se fossem da
família. – Falou seu Antenor.
- É meu sobrinho. – Gritou dona Carmelita da porta.
- Isso mesmo, é parente da minha mulher, e não vai deixar que nada os
falte agora montem e me sigam até Santa Cecília, de lá vocês seguem para o
vilarejo dos padres. – Falou seu Antenor subindo no trator saindo com o carro de
Carlos de reboque. Aline teve alguma dificuldade para montar em seu cavalo e
ficava reclamando a cada tentativa falha; Carlos teve que lhe observar a ela que era
impossível andar à cavalo sem encostar no cavalo, então pegou ela no colo e jogou-
a em cima do bicho, literalmente.
- Está parecendo um daqueles filmes do Indiana Jones. – Falou Francisco
sorrindo.
- Para nossa amiga ali está parecendo a hora do pesadelo. – Respondeu
Carlos apontando para Aline que estava toda torta tentando se manter em cima do
cavalo. Levaram mais ou menos uma hora até Santa Cecília. Conversaram com o
mecânico, e receberam a triste noticia de que o carro só ficaria pronto em no mínimo
quatro dias, pois além de Ter quebrado o tal eixo pivô, também tinha danificado uma
outra peça em um tal local que Carlos nem fez questão de saber ao certo de que se
tratava, pois tudo parecia grego para ele, tinha feito questão de comprar um carro
caro que desse pouco, ou quase nenhum, transtorno em relação a sua mecânica,
pois ele não sentia-se nem um pouco confortável com esses assuntos. Seu Antenor
lhes indicara o caminho para o mosteiro, e disse que não tinham como se perder,
era só seguir as placas, pois até pouco antes dos acontecimentos, o local era um
ponto turístico obrigatório para quem vinha para a serra gaúcha, porém após os
aparecimentos, os padres começaram a ficar menos hospitaleiros. Antes de partirem
seu Antenor foi até o trator de onde trouxe uma espingarda calibre doze mais uma
caixa de munição.

108
- Eu sei que já tem sua arma filho, mas acredite talvez tu venha a precisar.
– Falou o homem.
- Já que o senhor faz questão. – Disse Carlos que esboçou um imenso
sorriso diante de uma arma com um grande poder de fogo.
- Faço sim, e eu quero que tu me prometa uma coisa, cuida bem dessa
guria e desse guri ai, os dois gostam muito de ti. - Falou seu Antenor apontando
para Aline e Francisco que tentavam fazer os cavalos pararem quietos.
- Pode deixar seu Antenor, eu os trarei sãos e salvos. - Respondeu Carlos.
- Te cuida também filho. Agora da cá um abraço no teu novo amigo. – Disse
o homem. Seu Antenor se despedira como se depositasse em Carlos toda a
confiança e que ele resolveria todo aquele casão, trazendo novamente a tranquiliade
para o lugar. Os três cavalgaram a tarde inteira sem muita pressa. A paisagem era
linda, vinhedos cobriam o pé dos morros, e quanto mais subiam a serra mais
agradável era o cheiro dos parreirais. Já estava caindo a noite quando avistaram a
torre alta do mosteiro a uns cinco quilômetros à frente, dava para ver também uma
pequena vila em torno da antiga construção; um pouco antes na beira de um
espesso mato de floresta nativa, via-se uma vila um pouco maior com mais casas e
ruas pavimentadas, o mato fechado servia como uma espécie de fronteira entre o
mosteiro e este vilarejo, era como uma barreira temporal entre o velho e o novo
mundo.
- Já estou com o traseiro todo dolorido de ficar em cima deste bicho.
Reclamou Aline pela centésima vez.
- Se quiser pode continuar a pé. Ninguém vai te impedir. – Retrucou Carlos.
- Só não vou porque sei que vocês não agüentariam ficar sem minha
presença. - Falou Aline Sorrindo.
- Vai sonhando. Acho que prefiro até a presença dos fantasmas. – Replicou
Carlos.
- Será que daria para os dois pararem de se matar só por um minuto
estamos quase chegando. – Gritou Francisco um pouco a frente.
- Seu amigo mau humorado. – Disse Aline.
Mais uns dez minutos de cavalgada e eles chegaram no vilarejo maior, e que
para o espanto de Carlos estava bem movimentado, ao contrário do que dissera seu

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Antenor falando sobre a ausência de turistas. De um lado da rua, calçada com
paralelepípedos, havia um pequeno hotel, e mais adiante algumas lojas e ferragens,
do outro lado, a rua era repleta de bares e todos estavam com um bom movimento
àquela hora, apesar do frio e da noite que já estava chegando. A pensão que lhes
fora indicada ficava no fim da rua conforme seu Antenor havia dito. Parecia que
ninguém notava sua presença enquanto passavam batendo os cascos dos cavalos.
Apearam em frente a pensão e um rapaz logo veio pegar os cavalos, “ - Água e
alfafa?” perguntou ele sorridente, Carlos acenou positivamente com a cabeça e
sorriu diante da cena que parecia a de um velho filme de farwest, porém em pleno
século vinte e um, na era da Internet e comunicações instantâneas; pegaram seus
poucos pertences e entraram na pensão.
- Boa noite senhores, sejam bem vindos a pensão Craftt, sou Ernesto às
suas ordens, mas devo-lhes adiantar que estamos lotados. - respondeu um senhor
franzino que Carlos identificou como sendo o sobrinho de dona Carmelita pois a
semelhança era muito grande.
- Boa noite senhor, somos amigos de seu Antenor e dona Carmelita. E eles
disseram que acharíamos acomodações aqui. – Disse Carlos.
- Ora mas são amigos de meus tios são meus amigo também, vou
providenciar acomodações para vocês junto da minha família. – Falou o homem
sorridente.
- Nós não queremos incomodar. – Disse Aline.
- Mas não é incômodo algum. Vou mandar um empregado subir com as
coisas de vocês. - Falou o homem acenando para um jovem rapaz que tirava o pó
de alguns móveis antigos, o jovem dirigiu-se até eles e o homem pediu para que ele
levasse as malas para o andar superior e que esperasse que uma de suas filhas lhe
dissesse onde colocá-las.
- Muito obrigado. – Respondeu Aline.
- Me diga uma coisa seu Ernesto, meu amigo Antenor tinha me dito que os
turistas haviam desaparecidos, mas pelo que eu vejo o vilarejo está bem
movimentado, não? – falou Carlos.
- É verdade, o senhor sabe que no começo até que o povo se assustou um

110
pouco com esses causos de assombração, ainda mais com a história do peão
achado morto em Santa Cecília, mas depois começou a vir uma gurizada para ver
se conseguiam ver os tais demônios comedores de ovelhas e decepadores de
cabeça; mais tarde começaram a vir os ufólogos dizendo que tinha ai um tal de
chupa cabras, e enfim, a vila se tornou atração de novo. Antes quem vinha apenas
pelo sossego da serra, agora vem em busca de aventura no meio da noite
procurando demônios. – falou o homem sorridente.
- E já encontraram algum? – Perguntou Francisco.
- A uma semana mais ou menos, um grupo de jovens disse Ter visto o tal
demônio chupando o sangue de uma ovelha no campo, mas disseram que quando
foram tirar uma foto, a máquina se transformou em um sapo, dá para acreditar? Mas
me digam o que traz os amigos até aqui? – perguntou seu Ernesto.
- Meu nome é Carlos, sou delegado de policia de Porto Alegre, aquela
moça é minha colega Aline, ela é capitão do exército, estamos investigando três
homicídios ocorridos lá em Porto Alegre, e viemos até aqui para falarmos com o frei
Martinho, achamos que ele pode saber alguma coisa, pois ele era amigo de uma
das vítimas. - Falou Carlos.
- E o jovem seu assistente? – Perguntou seu Ernesto apontando para
Francisco que estava sentado em um dos sofás da recepção abraçado em seu livro.
- Francisco é um amigo, está nos ajudando no caso. – Respondeu Carlos
- Olha, eu acredito que falar com os padres vai ser meio difícil, pois eles
estão pouco amistosos desde que esta história começou. – Falou Seu Ernesto, ele
acenou para uma jovem moça, falou alguma coisa com ela e voltou-se novamente
para Carlos. – Bem, minha filha vai mostrar-lhes os aposentos, estarei aqui na
recepção se precisarem. – A moça sorriu e Chamou por Aline, as duas subiram
pelas escadas para a parte superior da pensão. – A janta é servida às oito, às dez,
eu mais alguns hóspedes nos reunimos na frente da pensão para tomarmos vinho e
contar causo, e também para ver os grupos de aventureiros que se entranham na
noite em busca das assombrações. - Completou seu Ernesto após a saída da moça.
- Tudo bem, Francisco e eu vamos tomar um banho e descansar um pouco.
nos vemos no jantar. - respondeu Carlos. Subindo as escadas encontrou com a
moça que retornara, esta avisou os dois que os acomodara no sótão, pois era único

111
lugar vago da casa pois Aline ficara no quarto de uma outra filha do dono, que
estava na faculdade.
Carlos tomou seu banho e ficou vasculhando as coisas que haviam
amontoadas no sótão da pensão até encontrar um binóculo que ele pegou e foi para
a janela. Podia ver dali, a uma boa distância, o mosteiro em todo sua totalidade, que
apesar da escuridão deixava ver-se através da inúmeras janelas iluminadas por uma
fraca luz, o mosteiro lembrava uma construção medieval, com seu pequeno vilarejo,
que constituía-se de umas dez casas no máximo; de repente Carlos pode notar que
um dos pesados portões frontais do mosteiro se abriu, e saiu de dentro deste uma
procissão de homens, com as cabeças cobertas pelo capuz de seus hábios, nas
mãos carregavam tochas; eles seguiam um líder que ia mais a frente com uma
enorme cruz, e outros que vinham logo atrás desse com incensários; fizeram a volta
em todo o mosteiro, o que durou uns dez minutos, e voltaram a entrar para dentro do
mosteiro pela mesma porta de onde saíram. Carlos estava tão entretido com a cena
que nem notara que Aline tinha entrado:
- Nossa, que belo quarto vocês tem, estou até com inveja. – disse ela rindo.
- Vai tirando sarro, aonde está Francisco, faz uma meia hora que não o
vejo? – perguntou Carlos.
- Esta lá em baixo jantando, vamos lá também. - Disse ela.
- Certo, só vou pentear os cabelos. - Falou Carlos.
- Deixa assim, faz lembrar dos nossos tempos da faculdade, aquele Carlos
rebelde, ativista de esquerda. - Disse Aline sorrindo. Carlos penteou-se e os dois
desceram para a sala de jantar.
Uma mesa enorme acomodava todos os hóspedes, mais ou menos uns
quinze. Durante o jantar o assunto era o mesmo: As famosas aparições dos
demônios. Carlos notou que Francisco não estava se sentindo a vontade diante
aquele falatório, pediu licença e levantou-se, sendo seguido por seus dois
companheiros.

- Você não acha estranho que com toda essa gente aqui para ver as tais
aparições já não teria saído em algum jornal o fato todo? – Perguntou Aline.
- Os grandes jornais geralmente não dão muito atenção para esse tipo de

112
noticia. E os pequenos, que noticiam esse tipo de coisa, não tem muita credibilidade
perante o público normal – Respondeu Carlos.
- Tem algum plano em mente? Senhor pessoa normal. - Perguntou Aline.
- Amanhã cedo vamos falar com esse tal frei, e ver se descobrimos algum
fato novo. - respondeu ele sem dar muita atenção a ironia da moça.
- Bom eu vou dormir um pouco, a cavalgada me deixou toda renga. – Disse
Aline sorrindo.
- Eu também. Boa noite. – falou Carlos. Ele subiu para o quarto improvisado
no sótão da pensão, ele entrou no sótão e foi carregar a espingarda que seu Antenor
lhe dera. Francisco olhava-lhe com um ar assustado. – Talvez nem tenhamos que
usar – disse Carlos notando o ar apreensivo do rapaz. – Mas sempre é bom
estarmos prevenidos. – Concluiu ele. Guardou a arma embaixo da cama e me
deitou-se.
Passada umas duas horas Carlos ainda não conseguira pegar no sono, talvez
por causa dos roncos de seu companheiro quem mais parecia um vulcão dando
sinais de que estava prestes a entrar em erupção, porém o que lhe tirava o sono não
era exatamente isso, em sua mente analítica ele estava tentando encontrar uma
explicação lógica para tudo aquilo que estava acontecendo, mas era impossível, ele
estava diante de uma coisa que fugia completamente de seu controle e de sua
lógica, lembrara porém que em seus primeiros anos estudando psicologia aprendeu
que algumas coisas precisavam fugir à regra da lógica para acontecerem. Perdido
em seus pensamentos notou passos no corredor logo abaixo deles, pensou ser
algum hóspede indo fazer uma boquinha na cozinha, mas mudou rapidamente de
idéia quando o som dos passos subiam a escada que dava acesso para o sótão
aonde eles estavam, ele virou-se em direção da porta onde pode ver claramente
pela fresta iluminada da parte inferior desta, a sombra dos dois pés de seu
misterioso visitante noturno; Carlos encostou-se mais na parede às suas costas,
pegou seu revolver que estava embaixo do travesseiro, e engatilhou-o tentando
fazer o menor barulho possível. A maçaneta da porta começou a girar
vagarosamente; Carlos não se moveu, apenas cerrou um pouco os olhos fingindo
estar dormindo enquanto o misterioso visitante abria a porta com toda a cautela, e
adentrou no quarto com a mesma parcimônia que usara para abrir a porta, fechou-a

113
calmamente e deu uma olhada ao redor do sótão. Carlos não conseguia identificar a
fisionomia do sujeito devido a penumbra em que se encontrava todo o aposento,
porém conseguiu notar claramente que o visitante esperava encontrar com seu
amigo Francisco, pois dirigiu-se, sem pestanejar, até a cama deste, que dormia
profundamente abraçado em seu livro. Carlos permaneceu imóvel para ver o que o
sujeito pretendia. Ele mexeu em algumas coisas que haviam aos pés da cama de
Francisco, nesse momento Carlos começou a sentir um forte cheiro de carniça e
temeu que o misterioso visitante fosse um dos tão falados demônios que até agora
ele não acreditava que existiam realmente, e nesse mesmo instante o sujeito sacou
um punhal prateado e dirigiu-se até a cabeceira de Francisco que ainda se deliciava-
se nos braços de Morfeu. Carlos levantou-se rapidamente com sua arma em punho:
- A faca no chão e as mão na cabeça agora! – Gritou ele energicamente,
quando finalmente pode dar uma boa encarada no sujeito que agora tinha sua face
banhada pela luz do luar que saíra de trás das nuvens e invadia o sótão pela
abertura da pequena janela do lugar; Carlos perdeu a noção da realidade por alguns
instantes e suas pernas perderam a firmeza quando deparou-se com tão
aterrorizante visão, ele não estava diante de um simples ladrão ou coisa parecida,
ele estava diante da própria encarnação do mal, o próprio demônio em pessoa; o
monstro fitou-lhe bem nos olhos, falou algumas palavras que Carlos não entendeu,
mas com certeza era algum aviso para que Carlos se afastasse, o demônio voltou-
se novamente para Francisco, que nesse momento já se acordara com o barulho e
tratara de encolher-se contra a cabeceira da cama, sempre abraçado em seu livro.
Carlos gritou novamente para que ele largasse a faca, e uma maléfica sensação
começou a tomar conta de seu corpo, Carlos começou a ficar desesperado, pois ele
queria atirar contra o demônio, mas de alguma maneira suas mãos pareciam estar
congeladas, não obedeciam a vontade de seu cérebro, e sem saber o que fazer,
ainda meio confuso com aquilo tudo, Carlos fez a única coisa que qualquer pessoa
em sã consciência não faria: resolveu enfrentar a criatura num combate corpo – a –
corpo. Saltou em suas costas com intenção de derrubá-lo, porém o demônio nem se
mexeu, apenas olhou para trás em direção de Carlos, que havia caído no chão por
causa do impacto causado contra o corpo volumoso da criatura, e soltou um urro
que fez acordar até mesmo quem repousava a quilômetros de distância dali;

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enfurecido por Ter sido atrapalhado em sua empreitada ele avançou contra Carlos,
pegou-o pelo pescoço com apenas uma das mãos e atirou-o contra a parede como
se ele pesasse apenas algumas gramas; Carlos pode sentir dolorosamente algumas
costelas se quebrando, e quase que desfalecera devido a intensa dor causada pelo
choque contra a parede, o demônio veio em sua direção com sua faca erguida e
pegou-lhe pelo pescoço novamente; já se preparava para separar sua cabeça do
corpo com um golpe fatal do punhal quando Aline entrou no quarto e descarregou
sua nove milímetros nas costas do bicho, a criatura deteve-se por um instante e
então voltou seu olhar aterrorizante em direção de Aline que ficou petrificada e
totalmente sem ação, ele então largou Carlos novamente e, liberando um tenebroso
urro, voltou-se para Aline que nesse instante perdera o controle sobre seu corpo e
caíra desmaiada no chão; enquanto o demônio caminhava em direção dela Carlos
conseguiu arrastar-se em direção de sua cama onde pegou a sua espingarda e com
o pouco de forças que ainda tinha lhe restado, conseguiu disparar contra o demônio
que se preparava para atacar, com seu punhal, o corpo imóvel de Aline que
continuava caída no chão; o demônio perdeu um pouco o equilíbrio com o tiro que
Carlos lhe acertou nas costas, porém isso não foi suficiente para abate-lo. Devido ao
barulho causado pelos disparos e pelos urros do demônio, as pessoas que estavam
hospedadas na pensão, correram para cima para verem o que estava acontecendo;
quando as primeiras entraram na porta, recuaram imediatamente diante a criatura,
trombando com as que vinham atrás e desconheciam o que o que estava havendo;
Carlos atirou mais quatro vezes contra o demônio até que um dos cartuchos da
arma trancou-a, o demônio um tanto cambaleante devido a série de disparos,
ergueu um par de asas que se projetaram de suas costas e lançou-se pela janela,
deixando para trás um rastro de vidros quebrados e um cheiro horrível de enxofre
misturado com carniça.
Fez-se um breve silêncio depois disso tudo. Todos estavam tentando entender o que
havia acontecido; o dono da pensão entrara no quarto espantado, empunhando uma
velha espingarda de dois canos. Aline já se recuperara do susto e veio ao encontro
de Carlos; indagou se ele sentia-se bem e ele pediu que ela fosse ver como estava o
jovem Francisco enquanto tentava se recompor do susto que acabara de tomar, e
também precisava de um pouco de tempo para analisar se aquilo acontecera de

115
verdade ou se tratava apenas de um pesadelo causado pela fadiga que vinha
experimentando nos últimos dias, mas logo foi trazido a realidade novamente pela
face sorridente de seu Ernesto que, a par do ocorrido, era a encarnação real da
pessoa mais feliz da face da terra, “Agora vou ter que arrumar mais espaço para
todo o pessoal que vai querer vir aqui.” Pensou ele contabilizando todos os lucros
que iria Ter por ser o dono do único estabelecimento do local que havia sido
realmente atacado por uma daquelas maléficas criaturas que até então apenas
povoavam a imaginação da maioria das pessoas do local; ele ajudou Carlos a
levantar-se e perguntou se ele poderia Contar-lhe com detalhes sobre o que tinha
ocorrido ali, Carlos apenas sorriu e apagou, caindo aos pés do homem novamente.

27.

Eram umas dez horas da manhã quando Carlos acordou-se com cheiro
horrível de uma substância pastosa que Aline passava em suas costas, que com
certeza consistia de uma espécie de anestésico, pois ele já não sentia mais dor; na
verdade ele não sentia boa parte de seu corpo.
- Vejo que nosso Indiana Jones já esta acordando, sente-se melhor?
– Perguntou Aline.
- Depende o que tu entende por melhor.
- E aquele seu amigo, nem ficou para tomar um chá, sujeito mal educado.
– disse ela brincando, porém figurava no rosto um semblante de preocupação e
medo.
- Na verdade ele veio aqui para flertar com você, mas eu disse que ele não
agüentaria suas birras.
- E você agüenta? – perguntou Aline.
- Desde que tu continue atirando no sujeito certo. – Disse ele sorrindo.
- Bem, você tem dois sujeitos mal humorados na sua frente, vai atirar em
qual? No que for o alvo mais fácil é claro. Digamos que você deu sorte – Respondeu
ela.
- Aonde está Francisco?

116
- Foi com seu Ernesto ao tal mosteiro pois uma senhora que está
hospedada aqui pediu que trouxessem um padre para exorcizar a pensão, então
Francisco aproveitou para ver se encontra o Frei Martinho.
- E você está bem?
- Fora o susto, eu estou tranqüila, fazer o quê né? O que eu não estou
agüentando são os curiosos querendo saber do acontecido, você virou uma espécie
de pop star para o povo daqui.
- Devo estar todo quebrado por dentro. – Falou Carlos alongando os
braços.
- Já dei uma olhada, só quebrou uma costela, nada que não melhore com
um pouco de repouso.
- Não sei se tenho tempo para muito repouso – Disse Carlos vestindo as
calças.
- Não se preocupe, vaso ruim não quebra.
- Pelo menos não estou sentindo mais dor, o que tinha no cataplasma?
- Não era cataplasma, era um ungüento que aprendi fazer no quartel.
- Tenho até medo de saber o que tinha nele. – Disse Carlos enquanto
vestia a camisa e dava uma cheirada nas axilas.
- Nada de mais, algumas ervas, azeite e cocô de cavalo. – Respondeu
Aline calmamente
- Você esfregou bosta de cavalo em min, que propriedades medicinais tem
bosta de cavalo? – Perguntou Carlos enquanto esfregava o corpo com a camisa
que iria vestir.
- Nenhuma que eu saiba, mas nós aprendemos no treinamento militar a
utilizar todos os recursos que temos à mão na hora da necessidade, e eu precisava
de um ingrediente que deixasse o ungüento mais pastoso. – Respondeu ela com a
mesma calma.
- E não podia ter usado margarina ou coisa parecida, tinha que
ser bosta de cavalo?
- Na hora eu nem pensei, eu estava ali no campo colhendo algumas ervas,
tinha um cavalinho por perto, estava a mão mesmo, eu só precisei pegar.
Que horas Francisco e o homem saíram?

117
- Já fazem quase duas horas. – respondeu Aline.
- Mas o mosteiro parece estar tão perto daqui. – Disse Carlos olhando pela
Janela do sótão.
- Eles foram de carro, aproveitariam para fazerem algumas compras para a
pensão. – respondeu Aline.
- Tem um caminho que vai pelo meio do mato. – disse Carlos apontando
para o começo do mato fechado que separava aquele vilarejo do mosteiro e de sua
pequena vila.
- Eu também notei, mas ninguém mais tem coragem de passar pelo meio
desse mato. - Falou Aline vindo até a pequena janela também.
- Por causa dos demônios presumo. – murmurou Carlos.
- Exatamente, seu Ernesto disse que monges proibiram os habitantes a
utilizarem aquele caminho. – Respondeu Aline.
- Então tem que dar a volta contornando o mato para chegar até o mosteiro.
- Sim. No que você está pensando?
- Veja só, o mosteiro é cercado por esse mato que avança quase até
a entrada do mesmo. Se você tivesse alguma coisa para esconder de alguém não ia
querer que alguém chegasse de surpresa, ia tratar de forçar todos chegarem pela
estrada só assim poderiam saber com antecedência quem se aproxima, pois quem
vai até o mosteiro pelo mato, só é visto quando já esta às portas do mesmo. –
Concluiu Carlos.
- Você está querendo dizer que os padres estão tentando esconder alguma
coisa?
- Elementar meu caro Watson, lembra-se do que nos disse seu Ernesto
ontem quando chegamos? Que os padres estavam meio estranhos ultimamente e
não queriam mais receber visitas.
- É, pode ser que você tenha razão mesmo. – Falou Aline.
- Só pode ser isso. Está a fim de dar uma voltinha no bosque? – Perguntou
Carlos enquanto conferia a munição de seu revolver.
- Seu amigo de ontem a noite vai estar lá?
- Quem sabe. – Respondeu Carlos sorrindo. Aline foi até seu quarto, pegou

118
sua arma, botou um casaco e os dois saíram. Enquanto desciam a rua podiam notar
o olhar curioso de todos por quem passavam, a história do que acontecera na noite
anterior havia se espalhado rápido. Continuaram a descer a rua calmamente em
direção a mata, um vento frio e gelado começou a soprar em sua direção fazendo-os
cerrar os olhos para não encherem-se de lágrimas, Aline agarrara-se no braço de
Carlos e se encolhera tanto que parecia um carrapato grudada nele. Aproximando-
se quase da entrada do mato cruzaram por uma das últimas habitações antes de
terminar a rua, e que por sinal havia se transformado em uma pensão improvisada,
conforme uma pequena placa feita as pressas devido as marcas de tinta escorridas
das letras, pelo visto todos providos de uma residência grande tinham optado por
servir os visitantes em troca de um bom pagamento. Um velho homem que estava
sentado em frente a varanda rodeado por alguns jovens chamou por Carlos e Aline:
- Se eu fosse o jovem casal, iria passear em outro local.
- E por quê? – Perguntou Carlos.
- É mais seguro. – Respondeu o homem.
- Tem onça nesse mato? – perguntou Carlos ironicamente.
- Pior meu filho, muito pior. – Respondeu o homem enquanto colocava um
pouco de fumo em um cachimbo que tirara de um dos bolsos.
- Calma seu Manoel, o moço ai é o da pensão do seu Ernesto que
enfrentou o diabo no braço, - falou um rapaz de aproximadamente vinte anos que
estava sentado ao lado do velho, – se tem alguém que pode entrar ai sem medo, eu
tenho certeza de que é ele.
- Eu já sou a favor de não mexer com quem está quieto. – Retrucou o
velho.
- Ei moço, será que eu posso acompanhar vocês na caminhada?
– Perguntou o jovem rapaz saltando do seu lugar.
- Claro guri, pois se o senhor ai estiver certo, vamos precisar de ajuda.
- Não brinque filho, vocês irão precisar de ajuda sim, de muita por sinal.
– Retrucou o velho enquanto tirava algumas baforadas do cachimbo recém aceso.
- Só um momento que eu vou lá dentro pegar minhas coisas. Esperem por
min. – Disse o jovem rapaz entrando na casa correndo
- Ora quem diria, nosso velho e durão delegado Carlos sendo gentil com as

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pessoas, inclusive aceitando a companhia delas. – Disse Aline ironicamente.
- Qual é Aline, eu sempre fui um cara simpático, o problema é que ninguém
nota. – Respondeu Carlos Sorrindo.
- Certo, e você convidou o rapaz só pelo prazer da companhia?
- Mas claro, eu adoro jovens me fazendo perguntas idiotas de todos os
tipos, eu tenho essa necessidade de compartilhar meus conhecimentos com meus
semelhantes. – Respondeu Carlos.
- E papai Noel existe. – Retrucou Aline.
- O papai Noel eu não sei, mas bicho papão agora eu sei que existe, pois o
danado me fez uma visita ontem a noite, lembra?
- E se nós toparmos com ele de novo?
- Não acredito que eles ataquem em plena luz do dia, você nunca leu
histórias de terror?
- Isso não é uma história Carlos, é real.
- Eu sei, mas eu tenho um bom plano agora, quando o bicho vier nos atacar
colocamos esse guri ai que virá conosco na frente do monstro enquanto nós
corremos e ...
- Sabe que eu acho que ontem não era um demônio só que havia no
quarto, eram dois, só que apenas um fugiu, o outro está aqui do meu lado falando
abobrinha. – Falou Aline antes que Carlos terminasse de explanar suas técnicas de
defesas malucas.
- Ah, mas desse demônio você gosta. – Disse Carlos puxando Aline para
junto de si, deixando-a a distância de apenas um sussurro.
- É, quem sabe. – Respondeu ela aproximando-se um pouco mais dele com
seu lábios rosados e com seu agradável cheiro que lembrava a mistura de uma
infinidade de fragrâncias estonteantes que iam do suave sabor de pêssego ao
apaixonante frescor do jasmim, porém no meio do caminho que conduziriam Carlos
ao paraíso através dos lábios carnudos de Aline, os dois foram interrompidos pela
voz de uma figura antesca que lembrava uma mistura de Indiana Jones e Robin
Wood, com arco, flecha e todo o resto, não faltou nem o chicote, era o mais novo
amigo dos dois, que estava pronto para conquistar a impenetrável floresta. Carlos
olhou para o rapaz com uma certa apreensão, para onde havia ido aquele jovem

120
rapaz de aparência normal que havia entrado dentro da casa? Aquele que estava ali
na frente dos dois parecia Ter saído de uma estória de aventuras de Allan
Quartemain.
- É Carlos, parece que você arrumou um concorrente a altura para o posto
de Indiana Jones tupiniquim, mas esse já tem o chicote. – Falou Aline tentando
conter o riso.
- Oi pessoal desculpe a demora, é que eu não encontrava minhas balas de
prata. – Respondeu o Jovem enquanto ajustava a alça da bolsa de couro que trazia
consigo.
- Balas de prata, vamos caçar lobisomens? – Perguntou Carlos.
- Devemos estar prevenidos não é? Bem mas deixe me apresentar, meu
nome é Marcos, sou presidente da Irmandade dos Guardiões do Portal do
Conhecimento Sagrado. – Disse o Jovem estendendo a mão para Aline e em
seguida para Carlos.
- Que nome mais comprido – comentou Carlos – o que sociedade é essa,
nunca ouvi falar.
- Nem poderia, meu primo e eu fundamos a poucos meses, além disso é
secreta. – Respondeu ele.
- Ah sei.
- Bem mas será que vocês poderiam me por a par de todos os fatos, sabem
como é, um presidente com uma certa experiência em acontecimentos inexplicáveis
impõem mais respeito, por isso podem me contar tudo, não se preocupem posso
agüentar. – Disse Marcos enquanto eles caminhavam em direção do mato.
- Bom Marcos, meu nome é Aline, e meu colega aqui se chama Carlos, e
terá imenso prazer em lhe botar a par de todos os fatos pois ele mesmo tinha
acabado de me dizer que adora fazer novos amigos que gostem de escutar suas
histórias, não é querido? – Disse Aline beliscando Carlos.
- Claro, - falou ele olhando bravo para ela - mas por favor vamos andando
mais rápido que eu ainda quero voltar para o almoço.
Enquanto caminhavam pelo caminho no meio da mata, Carlos contava toda a
história para seu novo amigo, pois não tinha outro jeito mesmo. Aline se deliciava

121
com a situação. Marcos anotava todos os detalhes cuidadosamente em uma
pequena caderneta.
- Diz ai seu Carlos, o que o senhor pretende fazer quando encontrar o
Livro que pegaram do senhor?
- Vou esperar que venha pegá-lo de novo, ai vou prender o desgraçado. E
por favor, pare de me chamar de senhor – Falou Carlos já demonstrando uma certa
impaciência.
- Sim senhor. Mas e ai, só isso?
- Sim. Simples e prático, embora não tão simples quanto pareça.
- Mas e quanto ao ciclo, alguém precisa impedir que ele se feche. – Disse
Marcos.
- Bem, já temos um outro maluco para cuidar desse assunto. – Respondeu
Carlos. – Seja lá o que for esse tal de círculo.
- E quem seria essa pessoa? – Perguntou Marcos.
- Francisco, um outro amigo nosso – Respondeu Aline – talvez você possa
conhecê-lo mais tarde, mas diz para mim que monte de coisas são estas ai? – Disse
Aline Apontando para a bolsa que Marcos trazia consigo, além do arco e do chicote.
- Apetrechos de exploração, e alguns para minha segurança, aliás esqueci
de dizer, sou estudante de Arqueologia, aqui eu carrego meu diário, maquina
fotográfica, e é claro essa arma, quem me deu foi meu avô, ele disse que ela o livrou
de maus bocados. – Respondeu ele mostrando a bela arma prateada para Carlos.
- É um belo trinta e oito. – Disse Carlos como se não estivesse dando tanta
importância para a arma.
- Na verdade é calibre quarenta e quatro, mas nem parece né.
- Mas e seu avô o que ele fazia? – Perguntou Aline.
- Ele era arqueólogo também, desapareceu em uma expedição no Irã.
- Eu sinto muito. – Disse Aline.
- Mas assim que eu me formar, vou montar minha própria expedição para
encontrá-lo. – Disse Marcos confiante.
- E a sua irmandade, para que serve? – Perguntou Aline.
- Bem assim que soubemos da história dos livros por intermédio de um

122
senhor, que por sinal participou de algumas expedições de meu avô, decidimos
montar um grupo para estudarmos melhor o assunto, achar indícios de uma
civilização tão avançada assim seria extraordinário. – Disse o jovem.
- Ah seria mesmo, que nem os malucos que estão até hoje procurando pela
tal Atlândida. – Disse Carlos.
- Mas essa história é diferente, eu sei que é verdade. – Retrucou Marcos.
- E me diga Marcos. Como é que você ficou sabendo das coisas que estão
ocorrendo aqui? – Perguntou Aline.
- Foi coincidência, vim fazer uma pesquisa sobre a imigração Italiana para a
cadeira de antropologia, e acabei sabendo dos fatos. Quando eu cheguei aqui não
tinha todo esse agito, esse povo começou a chegar faz uma semana.
- Então pode ser que seja por isso que o pessoal da Santa Cecília disse
que o movimento dos turistas diminuiu, eles estão vindo direto para cá. – Comentou
Aline.
- Exatamente, tem uma estrada com acesso direto da rodovia até aqui,
você tem que andar mais uns cinco quilômetros para frente mas pelo menos
economiza uma hora e meia, claro que fica sem ver a bela paisagem da outra
estrada que vai para Santa Cecília. – Disse o Jovem.
- E não estraga o carro na buraqueira. – Disse Aline olhando para Carlos.
- Veja delegado o mosteiro, o que faremos? – perguntou Marcos apontando
para a imponente construção que começava a aparecer.
- Vamos observar. – Falou Carlos. Caminharam mais um pouco até
chegarem a pequena vila que existia ali; era composta de apenas uma rua com as
casas distribuídas dos dois lados, bem no meio do caminho indo em direção do
mosteiro, a rua se alargava dando espaço a uma espécie de pequena praça que
constituía-se de dois bancos e uma cruz de pedra bem no centro.
Os três caminharam até a praça e sentaram-se num banco de frente para o
mosteiro, permaneceram ali em silêncio. Carlos observara que do alto da construção
uma pessoa andava de um lado ao outro como se vigia-se algo. Olhando ao redor, a
vila parecia estar deserta pois as casas estavam todas fechadas, mas Carlos tinha a
nítida impressão de que eles estavam sendo vigiados desde a hora em que
chegaram, por detrás daquelas janelas fechadas podia-se notar, de uma forma que

123
ele não entendia, os sussurros de curiosidade de uma série de pessoas. De repente,
começaram a tocar os sinos da pequena igreja que ficava um pouco antes da
entrada do mosteiro, Carlos olhou no relógio, era meio dia, algumas pessoas
começaram a aparecer vindas de um parreiral que costeava o mato, logo as portas
do mosteiro foram abertas, e começaram a sair de lá algumas crianças. Ao sair a
última criança, um senhor de meia idade, vestindo roupas características dos
monges apareceu na porta do mosteiro, deu uma boa olhada em volta até que
avistou os três sentados na praça, ficou alguns instantes olhando para eles, e Carlos
por sua vez ficou encarando o monge também, notou que o sujeito parecia ser o
mesmo que avistara pouco antes fazendo guarda em cima do mosteiro, deu uma
olhada novamente para cima para ver se ainda tinha alguém lá, e quando voltou os
olhos para seu observador esse já havia sumido e as portas do mosteiro tinha sido
fechadas.
- Bem acho que podemos ir embora. – Disse Carlos levantando-se.
- Mas é só isso delegado? – Perguntou Marcos confuso.
- Como assim só isso, eu queria atravessar o mato e atravessei.
– Respondeu Carlos.
- Quer dizer que não vai Ter nenhuma ação, não vamos matar demônios
nem nada? – Disse Marcos descontente.
- Você pode matar os pernilongos que com certeza vão te atacar na volta.
– Respondeu Carlos sorrindo.
- E depois esses funcionários públicos ainda reclamam que são mal
remunerados. – disse Marcos descontente
- Meça suas palavras guri. – Ralhou Carlos.
- Ei Carlos acho que ele tem razão, já que estamos aqui não custa nada dar
uma olhada no mosteiro, podemos encontrar o Frei Martinho, e talvez Francisco e
seu Ernesto ainda estejam por ai. – Falou Aline.
- Escutem o que eu digo, vamos embora que esse não é um bom momento
para fazer visitas. – Falou Carlos.
- Certo, voltamos então. – Disse Aline concordando meio contra a vontade.
– Gostaria de almoçar conosco Marcos? – Perguntou ela ao jovem.
- Mas claro, quem pode recusar um convite de uma senhorita tão graciosa.

124
– Respondeu ele tirando seu chapéu e fazendo reverência.
- Ora pare com isso seu galanteador. – Disse Aline. – Viu como um dama
deve ser tratada senhor delegado. – Completou ela olhando para Carlos.
- Mas claro, vou tomar nota. – Disse Ele.

28.
A volta para a pensão parece Ter sido mais rápida, e se Carlos tivesse
cronometrado o tempo que levaram para chegar até o mosteiro iria constatar que
realmente o caminho de volta tinha sido percorrido em menos tempo, talvez devido
ao fato de que só precisaram descer desta vez, já que o dito mosteiro encontrava-se
no alto de uma elevação. Um pouco antes da saída do mato, Carlos notou que havia
uma segunda trilha perto da que eles haviam seguido anteriormente, porém, devido
a vegetação que já estava tomando conta do caminho, essa parecia que não era
utilizada por um bom tempo. Carlos pegou um pequeno pedaço de plástico branco
recolhido do chão e amarrou em um graveto logo no começo desta trilha. Aline e
Marcos não perguntaram o motivo do gesto de Carlos.
- Posso voltar com vocês aqui depois? – Perguntou Marcos adivinhando a
intenção de Carlos em retornar àquele local.
- Desde que não tenha medo de escuro. – Respondeu Carlos.
- Não contem comigo, eu não estou a fim de virar comida de mosquito.
– Disse Aline.
- Calma querida, nosso amigo Robin Wood aqui te protege. – Disse Carlos
sorrindo.
- Mas bem capaz que eu vou sair pelo meio do mato com um monte
demônios atacando as pessoas. – Disse Aline cabisbaixa.
- Pelo que eu saiba eles estão atacando as ovelhas minha querida, e não
as pessoas, não precisa ficar com medo. – Disse Carlos enquanto eles seguiam em
direção a sua vila novamente.
- A é? E o senhor quer dizer que aquilo que quase te partiu no meio a noite
passada não estava te atacando? Por certo era um novo jeito de fazer carinhos. –
Retrucou Aline.

125
- Eu já tive algumas namoradas assim. – Disse Marcos.
- Na verdade, fui eu que ataquei o bicho primeiro, da parte dele, não havia
interesse nenhuma em mim, ele queria era o livro de Francisco.
- E o senhor tem alguma explicação para o fato? – Perguntou Marcos, já
puxando seu livro de anotações.
- Na verdade eu tenho minhas teorias, eu acho que eles são tipo aqueles
caras que os traficantes contratam para fazerem um serviço sujo; eles estão
interessado apenas em cumprir sua missão nada mais.
- Sei não, mas acho melhor ficar na pensão mesmo. – Disse Aline.
- Você é quem sabe, e tu Marcos, ainda está a fim de voltar aqui hoje a
noite
e ver aonde vai dar aquela trilha que eu marquei? – Perguntou Carlos.
- E porque não, pelo menos vai ser melhor que ficar ouvindo as histórias
repetidas do velho lá da minha pensão. – Respondeu Marcos sorrindo.
- Hoje a noite então, com ou sem Aline. – Disse Carlos enquanto eles
adentravam na pensão em que Carlos e Aline estava hospedados, Francisco e seu
Ernesto já haviam retornado e os aguardavam para o almoço. Durante a refeição
Francisco disse que eles não haviam conseguido falar com o Frei Martinho pois o
mesmo estava recluso. Marcos entendeu-se muito bem com Francisco, também
pudera, seus interesses eram os mesmos: possessões demoníacas, casos
inexplicáveis, etc. Logo após o almoço Marcos disse que iria tirar um cochilo para
estar totalmente disposto à noite; eles trataram de se encontrarem às nove horas da
noite na frente da pensão de seu Ernesto. Após a saída de Marcos, seu Ernesto
convidou Carlos para sentar-se na varanda da casa para tomarem um licor enquanto
Carlos satisfazia a curiosidade de alguns hóspedes sobre o acontecido na
madrugada anterior. Em um dado momento, Carlos pensou enxergar uma pessoa
conhecida do outro lado da rua, pediu licença aos presentes e saiu da hospedaria
correndo em direção do sujeito que, quando notou-o, saiu correndo também,
desaparecendo em seguida no meio de algumas casas. Do lado da rua aonde
Carlos se encontrava, havia uma pequena loja de antigüidades, ele resolveu entrar
para dar uma olhada, talvez encontrasse alguma coisa legal e que servisse de
presente para sua mãe. Quando entrou, a porta tocou um sino denunciando sua

126
presença, um senhor baixinho e com um par de óculos de lentes grossas , veio ao
seu encontro do fundo da loja, ao chegar até ele escancarou um grande sorriso.
- Boa tarde meu jovem, fique a vontade para olhar, temos de tudo ai,
principalmente talismãs para proteger-te das trevas. – Falou o simpático senhor.
- O senhor tem algum ai que afasta demônios? – Perguntou Carlos
Num tom de brincadeira.
- Mas claro! Temos aqui um muito especial. – Disse o homem enquanto
abria uma gaveta de onde tirou um pesado medalhão redondo suspenso por uma
brilhante corrente prateada; no centro do medalhão, em alto relevo, havia a figura de
um losango, e dentro deste algumas letras que Carlos identificou como sendo
árabes. – É aramáico, – disse o velho como se tivesse lido os pensamentos de
Carlos – é o nome místico de Jesus, é um poderoso pantáculo para afastar as más
vibrações e os espíritos da noite. – Completou o homem sorrindo.
- E funciona? – Perguntou Carlos pegando o objeto nas mãos.
- É só você acreditar meu filho, vai levar? – Perguntou o Homem sorrindo.
- Não, acho que é proteção demais para min. Na verdade eu estava apenas
procurando uma lembrança para minha mãe, mas com licença meus amigos estão
me esperando. – Disse Carlos entregando o medalhão de volta para o homem; ele já
abrira a porta quando o senhor chamou por ele.
- Espere ai! – Falou o velho segurando seu braço – leve assim mesmo, eu
lhe dou de presente. – Disse o velho homem sorrindo.
- Desculpe senhor eu não posso aceitar. – Falou Carlos relutante.
- Eu faço questão, e vou tomar como ofensa se não aceitar.
- Bem sendo assim eu aceito. – Respondeu Carlos, o velho colocou o
medalhão no pescoço de Carlos e disse algumas palavras fazendo o sinal da cruz
sobre o pantáculo, Carlos agradeceu novamente e saiu fazendo soar o sino da porta
mais uma vez, deu uma última olhada para trás e pode ver que o homem ainda
olhava-o pela janela da loja sorrindo. O homem fechou as cortinas da única janela
que havia na frente da loja, colocou a mão por dentro de sua camisa e tirou para fora
uma corrente que trazia pendurada uma estrela de Davi, beijou a estrela e sorriu.

127
- Vá com Deus delegado. Confie nele e tudo isso vai acabar bem, pois afinal
como você mesmo disse, um dia as nuvens vão embora, e então poderemos ver as
estrelas novamente.
Carlos retornou para a pensão onde Aline e Francisco já o aguardavam na
varanda..
- E ai delegado, dando um passeio? – perguntou Francisco sorrindo.
- Só dando uma olhada por ai, e então que novidades tem para gente?
- Bom não consegui falar com o Frei Martinho, pois um padre lá disse que
ele estava recluso como eu já tinha dito, mas o sujeito disse que avisaria o Frei da
nossa presença aqui.
- Como foi a recepção? Amistosa?
- Tu sabe que não, parecia que o padre estava se sentindo mal com minha
presença ali.
- É, seu Ernesto já havia nos precavido sobre a repentina hostilidade dos
padres. – Falou Carlos enquanto acendia um cigarro.
- Falei com algumas pessoas na vila do mosteiro, e eles me disseram
que o clima estava tenso por causa de uma recente mudança na diretoria do
mosteiro, por causa dos últimos acontecimentos...
- O aparecimento dos Tais demônios presumo. – Disse Carlos
interrompendo Francisco.
- Isso mesmo, disseram que o próprio bispo esteve aqui e deixou um
Indicado dele na direção enquanto é investigado os atuais acontecimentos, e parece
que isso criou uma espécie de guerra interna entre os padres.
- Então está explicado o por quê da história não Ter saído das fronteiras da
cidade, a igreja sempre dando um jeito de abafar tudo. – Disse Carlos.
- Só que eles não contavam com o aparecimento dos turistas. – Disse
Francisco.
- Francisco, você não gostaria de participar de uma cavalgada na
companhia e de nosso novo amigo Marcos hoje à noite?
- O que está tramando?
- Quem sabe uma visita surpresa ao nosso amigo frei, ele não quer nos ver
então vamos ver ele.

128
- Mas delegado, o padre falou que ele estava recluso, sabe o que significa?
- Sei, sei, se retirou para fazer suas orações e blá, blá, blá.
- Isso quer dizer que não pode, e não quer ser interrompido.
- Ou talvez não querem que ele fale com ninguém.
- Será possível que estejam forçando o frei a ficar recluso para que não
possa dar cabo em sua missão, seria capaz o braço do Clã ter alcançado até
mesmo o mais sagrado dos refúgios?
- Só tem um meio de descobrir. – Disse Carlos apontando para o mosteiro
com a cabeça. – E tem de ser hoje à noite.
- Olha Francisco, você não precisa se envolver nessas loucuras do Carlos,
pode ficar aqui na pensão comigo se quiser. – Disse Aline.
- E acordar de noite com outro daqueles demônios fungando no meu
cangote? Nem pensar. Pode contar comigo delegado. – Disse o jovem.
- Bem meninos, espero que tenham um bom passeio, e tomara que seus
corpos não fiquem muito mutilados depois de serem pegos, eu detestaria Ter que
reconhecer seus cadáveres no IML, me dá um mau humor danado. – Disse Aline
levantando-se e indo para dentro da pensão.
- Muito obrigado pelo apoio moral Aline, Francisco e eu estamos
comovidos. – Gritou Carlos para ela. – E o livro Francisco?
- Está guardado em um lugar seguro não se preocupe.
- Então tá, vamos dar uma volta por ai? – Perguntou Carlos.
- Vamos nessa. – Respondeu Francisco sorridente.

29.
Carlos e Francisco saíram a explorar as ruelas do vilarejo, era um lugar bem
bonito, com suas construções em estilo europeu quase que completamente tomadas
por limo, parecia que tudo ali havia parado no tempo. O vilarejo ficava em cima de
uma elevação, e sua volta, na parte mais baixa, era cercada por parreirais, Carlos e
Francisco foram até uma das encostas para admirar as verdejantes vinhas quando
sua concentração foi quebrada pelos gritos histéricos de uma jovem :
- Socorro! Socorro! – Gritava a moça subindo a encosta a quatro pés na

129
direção dos dois.
- Calma menina, diga o que ouve! – Disse Carlos segurando-a.
- Me ajuda moço por favor! eles estão me seguindo! – Disse a moça
soluçando de medo, sua pele estava fria e ela suava por todos os poros do corpo.
- Quem está te seguindo? – Perguntou Francisco olhando em direção do
parreiral para ver se avistava alguém ou alguma coisa, nisso algumas pessoas que
moravam perto, alertadas pelos gritos de socorro, vieram para ver o que tinha
ocorrido e rapidamente fechou-se um círculo em volta de Carlos, Francisco e a
jovem aflita.
- Pode trazer ela aqui para minha casa moço. – falou uma senhora do
grupo que se formara.
- Ótima idéia. – Disse Carlos. – Venha moça, vamos até a casa dessa
Senhora, daí você nos conta o que aconteceu.
- Ele não virá atrás de min, virá? – Perguntou ela olhando em direção de
onde viera.
- Não se preocupe pois estaremos aqui para defendê-la, agora vamos.
Alguém aqui conhece os pais dela? – Perguntou Carlos para a pequena população,
um rapaz disse que conhecia-os e saiu para chamá-los. A moça contou-lhes que
saíra para colher algumas uvas como sempre fazia depois do almoço, porém,
enquanto colhia as uvas, ouviu uma voz lhe chamando por entre o parreiral, primeiro
pensou tratar-se de alguém conhecido pois era comum encontrar com algum amigo
na mesma atividade de colher uvas àquela hora, e mais, quem poderia saber seu
nome senão um conhecido? Ela disse que foi caminhando em direção a voz, e de
repente avistou alguém que parecia ser um dos monges do mosteiro pelas suas
vestes; tendo amizade com alguns dos padres, ela se aproximou sem receio para
ver de quem se tratava. “Padre?” perguntou ela, “foi o senhor que me chamou?”
nisso o monge virou-se para a menina e revelou sua terrível identidade: era um
padre sim, porém com a metade do rosto, transformada, era uma mistura de homem
e demônio dissera a moça começando a chorar, Carlos pediu que fosse
providenciado um copo com água e açúcar, e após tomar a bebida a moça
continuou sua narrativa: O padre a quem se referira, era conhecido por ter-lhe
catequizado, Carlos perguntou se ele tentou atacá-la, a moça disse que

130
primeiramente ele parecia querer atacar, porém a sua face que ainda continuava
com traços humanos parecia pedir ajuda, mas como ela estava muito assustada,
resolvera não ficar para saber qual a real intenção da criatura, pois sempre escutara
nas histórias que sua avó contava, que os demônios se faziam-se passar por
pessoas necessitadas, apenas para agarrarem suas vítimas, além do mais ela disse
ter notado uma certa movimentação no meio do parreiral como se fosse mais
alguém se aproximando.
Em seguida chegou um rapaz de mais ou menos vinte anos, alto e forte, que
se identificou como irmão da moça, ele falou com ela e logo em seguida juntou-se
com mais alguns homens que ali estavam:
- Temos que tomar alguma atitude! – Falou o recém chegado com uma voz
firme.
- Isso mesmo! – Concordaram os outros.
- Já sabemos agora que os malditos padres estão envolvidos nisso. – Disse
o rapaz.
- Mas o que poderemos fazer? Eles foram mandados pelo próprio bispo, e o
frei Martinho que era nosso elo com a igreja anda sumido. – Disse Um dos
presentes.
- Eu digo que devemos reunir uma comitiva e ir até lá e fazer com
que esses malditos deixem-nos ver o frei, mesmo que para isso seja preciso
derrubar as portas daquele mosteiro a machadadas. – Falou o irmão da moça.
- Eu digo que esperemos anoitecer, reunimos os homens do vilarejo e nos
armemos de tochas para melhor intimidação. – Falou um velho.
- Acho melhor esperarmos até amanhã à noite, pois é no domingo à noite
que a maioria os monges está reclusa, não negarão em nos atender se ameaçarmos
fazer tumulto, eles fazem de tudo para não atrapalhar a sua sagrada meditação. –
Completou o irmão da moça.
- Isso mesmo. – Concordaram todos murmurando.
- Então até amanhã então, nos reuniremos na entrada do mato e
seguiremos por ali mesmo. – Disse o jovem.
- Mas João, acho que não é muito seguro irem pelo mato, tem certeza de

131
que não é melhor você seguirem pela estrada?– perguntou a dona da casa
assustada.
- Claro que não! Para que aumentar a caminhada? Vamos pelo mato, pois
ao contrário de vocês, eu não acredito nessa história que os monges inventaram de
que o mato está amaldiçoado, e se estiver, estaremos preparados para isso, pois eu
digo que deveremos nos armar de nossa fé para que nada nos aconteça. – Disse o
Jovem. Após saírem quase todos da casa, o rapaz voltou-se para Carlos –
Desculpe, nem agradeci pelo que fez a minha irmã, muito obrigado. – Disse o jovem
apertando a mão de Carlos.
- Não precisa agradecer, qualquer um teria feito o mesmo. – Disse Carlos.
- Certo, mas eu gostaria de pedir-lhe um favor, não diga a ninguém o que
ouviu aqui. – Pediu o jovem.
- Tudo bem, comigo seu segredo está seguro. – Respondeu Carlos
sorrindo. A dona da casa acompanhou-os até a porta, e os dois saíram. Carlos e
Francisco caminharam mais um pouco em silêncio, cada qual pensando na situação
em que acabaram de se envolver. Sentaram-se em um dos bancos de uma pequena
praça que encontraram no caminho, e ficaram um bom tempo apenas observando o
movimento das poucas pessoas que circulavam por ali, até que Francisco quebrou o
silêncio.
- O que achou do caso delegado?
- Sei lá Francisco, sabe que agora nada mais me apavora. – Disse Carlos
enquanto acendia um cigarro.
- Sorte a sua, pois eu estou cada vez mais apavorado com essa história
toda. – Disse o rapaz enquanto juntava a carteira de cigarros vazia que Carlos havia
jogado no chão.
- Não é o senhor o caçador de fantasmas?
- Tá, mas estou com medo e daí?
- Tudo bem guri, não te preocupa que logo essa situação estará resolvida.
- Assim espero.
- Bem é melhor nós voltarmos para a pensão, pois logo escurecerá e nós
temos que dar aquele passeio não é mesmo? – Disse Carlos olhando o relógio. –
Ou será que já desistiu? – Completou ele.

132
- Claro que não, precisamos falar urgentemente com frei Martinho.
- Bem então vamos. – Disse Carlos levantando-se. Quando chegaram na
pensão, todo mundo já havia ficado sabendo do ocorrido naquela tarde.
- Então quer dizer que é só eu virar as costas e vocês já se metem em
confusão de novo. – disse Aline vindo de encontro aos dois

- Acho que é por causa de nosso charme não é mesmo delegado? – Disse
Francisco sorrindo.
- Escute o menino Aline, ele sabe o que diz. – Falou Carlos passando as
mãos nos cabelos.
- Mas que maravilha, é muita sorte para um homem só, acreditam que eu já
tenho reservas até para o final da temporada? – Falou seu Ernesto em alto e bom
tom enquanto vinha recepcionar os recém-chegados – E tudo isso graça a vocês
que parecem atrair esses tais demônios.
- É melhor o senhor ficar quieto seu Ernesto, senão é capaz dessa gente
pensar que nós somos a causa desse mal e acabam colocando a gente na fogueira.
- Está bem delegado, vou tentar me conter. – Disse o homem sorrindo. –
Mas em agradecimento, eu reservarei os melhores quartos para vocês, para que,
depois que tudo voltar ao normal, vocês possam desfrutar de nossa hospitalidade.
- Mas claro, depois que essa história terminar é do que irei precisar de
umas longas férias, mas bem longe daqui. Não tome isso como ofensa seu Ernesto,
– Respondeu Carlos sorrindo – bem pessoal se não se importam Francisco e eu
vamos tratar dos cavalos, pois pretendemos dar um passeio mais tarde.
- Você ainda não desistiu dessa idéia? – Perguntou Aline.
- Claro que não, e agora mais do que nunca precisamos ir até aquele
Mosteiro. Venha, enquanto cuidamos dos cavalos eu lhe conto com detalhes o que
aconteceu, inclusive o que o povo do vilarejo está tramando fazer. – Disse Carlos
levando Aline pelo braço. Enquanto arrumavam os cavalos Carlos contou-lhe do
plano do povo de invadir o mosteiro à força para ver o tal frei Martinho.
- E eles sabem da história dos livros? – Perguntou ela.
- Acredito que não Aline.
- Bem eu ficarei aqui e esperarei você voltarem. – Disse ela.

133
Estavam terminando de selar os cavalos quando seu Ernesto comunicou que
a mesa estava servida. Carlos e Francisco comeram pouco e apressadamente, em
seguida voltaram para o estábulo a fim de terminarem de arrumar seus cavalos; um
pouco antes do horário marcado chegou Marcos.
- E então Marcos, preparado para os demônios? – perguntou Carlos
sorrindo.
- Que venha todo o inferno delegado. – Disse ele apalpando o reluzente
quarenta e quatro prateado que trazia em um coldre junto à cintura.
- Bem Francisco e eu já estamos prontos. – Disse Carlos.
- Vamos embora então, quero um cavalo mansinho, pois equitação não é
meu forte. – Disse Marcos.
- Bem então vá se fortificando, porque esses bichos são umas feras.
– Disse Carlos apontando para os cansados cavalos que pareciam não estar nem
um pouco dispostos a saírem das cocheiras naquela noite fria de inverno.
- Ei Marcos, será que você não teria ai uma arma sobrando para me
emprestar? – Perguntou Francisco.
- Claro meu amigo Francisco, tome ai essa pistola, o dono lá da
minha pensão me emprestou. – Disse ele enquanto atirava para Francisco uma
velha pistola de dois canos que tirara da mochila, em seguida alcançou-lhe também
alguns projéteis de munição calibre vinte e dois para que Francisco usasse na arma.
- E o que eu vou fazer com isso, matar mosquitos?
- Tenho um canivete, se você desejar.
- Bem, melhor essa coisa do que nada, pelo menos não é de carregar pelo
cano. – Disse Francisco sorrindo.
- Bem senhores cavaleiros, vamos indo. – disse Carlos montando em seu
cavalo e seguindo em direção a estrada.
- Tchau meninos, se cuidem. – Gritou Aline da varanda da pensão
enquanto os três passavam pela frente da mesma como austeros exploradores que
saem em busca das mais fantásticas aventuras.

134
30.
O bater de cascos dos cavalos chamava a atenção das pessoas que
estavam sentadas nos bares a beira da rua. Alguns, imaginado tratar-se de mais um
bando de aventureiros a procura dos tais demônios ou extraterrestres, desejavam-
lhes boa sorte. Ao entrarem na floresta, Marcos pegou sua arma e colocou-a na
cintura em posição ostensiva, achando que não era uma má idéia Carlos fez o
mesmo com a sua e sumiram os três dentro do mato, e após alguns minutos de
cavalgada, já completamente imersos na escuridão da mata, Marcos se pronunciou
ao avistar algo a frente:
- Hei delegado, ali esta a marca que o senhor deixou. – Disse ele
apontando para o pequeno pedaço de plástico que balançava à brisa noturna. Um
denso nevoeiro começava a formar-se.
- Positivo Marcos, também já estou enxergando a trilha, vamos lá.
- Apesar de meus olhos já terem se acostumado com a escuridão não seria
melhor nós acendermos as lanternas? – Perguntou Francisco apreensivo.
- Calma Francisco, é melhor andarmos na sombra da noite mesmo. – Disse
Marcos enquanto fazia algumas anotações em seu diário.
- Então tá né. O que você está escrevendo ai? – Perguntou Francisco.
- Estou escrevendo tudo o que a gente está fazendo, caso venhamos a ser
capturados, mortos e devorados, os outros poderão seguir nossos passos, depois
que encontrarem meu diário junto às nossas ossadas, é claro.
- Que bom que você é prevenido. – Disse Francisco um tanto descontente
ao ouvir pronunciadas as palavras “mortos e devorados”.
- Desculpe atrapalhar a conversa dos dois confrades, mas acredito que
tenhamos de tomar uma decisão, vejam a frente, o caminho divide-se em dois, para
que lado seguiremos senhores? – Perguntou Carlos.
- Deixe-me ver, andemos mais um pouco até aquela clareira para eu poder
olhar para o céu, assim poderei dizer aonde estamos. – Disse Marcos enquanto
dirigiam-se para a pequena clareira que ficava um pouco antes do local onde a trilha
dividia-se em duas. – Agora sim. – Disse ele enquanto olhava para o céu. –
vejamos, pelos meus cálculos o mosteiro está a nossa direita, logo deveríamos

135
pegar o caminho da direita, porém acredito que sairemos bem em frente ao
mosteiro, e não queremos isso, então eu digo que devíamos ir pela esquerda.
- Bem, como eu acho que ninguém mais aqui sabe se guiar pelas estrelas
eu concordo. E você Francisco? O que acha? – Perguntou Carlos.
- Por mim, desde que qualquer uma dessas trilhas nos leve para fora
desse mato, qualquer um dos dois está bom para mim . – Disse o rapaz encolhendo
os ombros.
- Então vamos meus amigos. – Disse Carlos. Os três continuaram pelo
caminho indicado por Marcos e logo estavam em um dos lados do mosteiros como
previsto pelo rapaz, apearam dos cavalos e percorreram pelo costado da parede até
encontrarem uma abertura encoberta por alguns arbustos. removeram a vegetação
e estavam diante de uma pequena porta por onde mal passava um homem em pé.
- Vamos entrar? – Perguntou Francisco segurando sua pistola com as duas
mãos apontada em direção de Carlos.
- Se o senhor não me matar antes, eu pretendo. – Disse Carlos afastando a
arma do rapaz para outra direção. – Marcos, ajude-me aqui. – Disse ele enquanto
empurrava a pesada porta de madeira. Conseguiram mover a pequena porta e
entraram no mosteiro. Seguiram por um estreito corredor, que só dava para se
passar de lado, e chegaram até uma pequena sala com mais cinco passagens: uma
a sua frente, outras duas a direita e outras duas a esquerda.
- E então por onde? – Perguntou Carlos.
- Não faço a mínima idéia. – Disse Marcos.
- Como não sabemos aonde ir, qualquer caminho serve. – Murmurou
Francisco.
- Bem profundo. De onde tirou isso? Dos seus livros de magia?
- Não, Alice no país das maravilhas. – Respondeu Francisco sem se
importar com o tom irônico de Carlos.
- Se pelo menos tivéssemos um mapa ou a planta do mosteiro – Falou
Marcos enquanto examinava as portas da sala.
- Espere ai meu garoto, talvez nós tenhamos. – Carlos enfiou a mão
em sua jaqueta e tirou o mapa que havia encontrado no apartamento de Claudia.
- Aonde conseguiu isso? – Perguntou Francisco.

136
- Ora Francisco, eu também tenho meu truques, bem vamos ver o que diz
aqui. – Falou Carlos enquanto iluminava o mapa com a lanterna.
- É latim, está escrito em latim, era só o que me faltava. – Disse Marcos
desanimado.
- Ué Marcos, eu pensei que os arqueólogos soubessem várias línguas.
– Disse Francisco.
- Alguns até sabem Francisco, porém a grande maioria deixa essa parte
para os antropólogos, e eu sou mais um dessa grande maioria. – respondeu o jovem
inconsolável.
- Bem infelizmente eu também não manjo nada de latim, o que faremos
delegado? – Perguntou Francisco.
- Bom se as duas moças pararem de chorar, data vênia, eu gostaria de
dizer que o ilustre doutor aqui está com seu latim na ponta da língua, então se me
derem licença. – Carlos começou a ler o mapa com uma certa dificuldade pois o
vocabulário de que ainda lembrava-se dos tempos da faculdade não era dos
maiores, mas depois de algum tempo consegui traduzir algumas palavras. –
Vejamos, aqui diz: alinhe a ponta da estrela e siga o rumo da sabedoria, bem aqui
tem uma estrela desenhada, mas alinhar com o quê? – Falou ele enquanto olhava
para o pentagrama que havia no mapa.
- Veja, na ponta da estrela, faltam letras no meio dessa palavra, era assim
que os cavaleiros templários codificavam suas mensagens, eles dividiam em duas
partes, cada uma com um pouco da mensagem, só temos que achar o resto desta
aqui e encaixar as letras nos lugares vagos para encontrarmos o caminho. – Disse
Marcos.
- Certo mas encaixar aonde? – perguntou Carlos.
- Vamos procurar pelas paredes, perto das portas. – Disse Marcos.
- Certo cada um pega uma parede. – Disse Carlos.
- Aqui delegado, achei outra estrela desenhada, e com algumas letras
também. – Disse Francisco apontando para uma das portas.
- Certo Francisco vamos ver se encaixa. – Disse Carlos enquanto colocava
a estrela do mapa sobreposta à da parede.
- E então formou alguma palavra. – Perguntou Marcos.

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- Sim deixe-me ver, abyssus abyssum invocat, tem alguma coisa a ver com
buraco, acho melhor a gente não ir por essa ai não, vamos ver perto das outras
portas. – Disse Carlos enquanto dirigia-se para uma outra porta.
- Aqui delegado, outra estrela. – Disse Francisco.
- Tá, vejamos: meditação...sexo grátis...
- O quê? – Perguntaram os dois rapazes em coro.
- Brincadeirinha! – Disse Carlos sorrindo, enquanto alinhava o mapa
novamente fazendo surgir a palavra ad patres. – Bem, por essa eu não vou com
certeza. – Disse ele.
- Aqui amigos outra. – Disse Francisco.
- Só resta essas duas, espero que seja essa, meu olho já está doendo. –
Disse Carlos.
- Ei! Eu já sei o que estamos procurando: a biblioteca, o caminho da
sabedoria, o frei queria que ela seguisse o caminho da biblioteca para encontrar-se
com ele. – disse Francisco.
- Mas nós iremos encontra-lo em outro lugar. – Disse Marcos.
- Pode ser verdade, mas como vamos saber onde está o frei? – Perguntou
Carlos.
- Recluso meditando. – Disse Francisco.
- Bem então devemos procurar por essa indicação, restam duas portas
vamos lá. – Disse Carlos enquanto alinhava o mapa novamente. – Tem que ser
alguma coisa como paz de espírito sei lá.
- Sofrimento e purificação. – Falou Francisco – os monges se recolhem às
celas para purificar a alma através de auto flagelo.
- Ad augusta per angusta. – Disse Carlos.
- O que isso quer dizer? – perguntou Marcos.
- Que esta é a nossa porta meu amigo, porém vamos seguir as cegas pois
esse mapa serve apenas para a tal porta da sabedoria ali, não será nem um pouco
útil por esse outro caminho. – Disse Carlos.
- Bom se não tem remédio. – Disse Marcos encolhendo os ombros.
Seguiram pela passagem estreita que deu em uma escadaria de madeira. Subiram
a escada até uma grande porta trancada.

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- E agora delegado? O que faremos? – Perguntou Francisco.
- Pode deixar que de arrombamentos eu entendo. – Disse Carlos sorrindo.
- É bom saber que podemos confiar em nossas autoridades, não é
Francisco? – Brincou Marcos.
- Olha o respeito seu moleque, vem aqui que eu vou te mostrar uma coisa.
– Disse Carlos ameaçando Marcos com a coronha de seu revólver.
- Será que dá para os dois pararem só um pouco, está vindo alguém.
Disse Francisco ao notar o clarão que se formara do outro lado da porta, eles
voltaram alguns degraus e ficaram observando um par de vultos que parou diante da
porta:
- O que faremos agora irmão Eufrasino, o pessoal da vila que já estava
desconfiado, agora vai querer tirar satisfações? – Disse a voz preocupada de um
homem do outro lado da porta.
- Eu sei o que fazer irmão, porém agora devemos Ter calma. Já mandei
uma mensagem para o Bispo, com certeza ela irá tomar as providências cabíveis.
Mas agora me diga, aonde esta a besta? – Disse o outro.
- Trancada em sua sela, já está tudo pronto para começarmos o ritual. –
Disse o primeiro monge.
- Ótimo, então vamos, não podemos perder tempo. Já providenciei para
que o outro livro seja recuperado ainda esta noite, e desta vez sem falhas. – Disse o
tal Eufrasino, confiante.
- Nosso amigo já chegou? – Perguntou o primeiro monge.
- Chegou esta manhã, e a esta hora já deve estar pondo as mãos naquele
livro. – Disse Eufrasino.
Carlos esperou que os dois homens se afastassem a ponto de não poderem
mais ouvir seus passos descendo as escadas apressadamente de volta ao local por
onde eles tinham entrado.
- Devemos voltar para a pensão imediatamente, pois Aline pode estar
correndo perigo. – Falou Carlos afoito. Marcos concordou e seguiu com ele deixando
Francisco sentado olhando por baixo da fresta da porta.
- Esperem ai! – Gritou Francisco – Talvez eles sejam amigos, e querem
proteger os livros também.

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- Pode até ser, só que eu quero estar lá na hora que eles chegarem.
Respondeu Carlos.
- Estou com o delegado. Não podemos deixar Aline sozinha. – Disse
Marcos.
- Façam o que quiserem, mas eu vou ficar e tentar achar o frei Martinho.
- Tudo bem Francisco, façamos o seguinte: Marcos e eu iremos até a vila
nos certificar que está tudo bem com Aline e depois retornaremos ao mosteiro, você
fica e tenta achar esse tal frei, mas é por sua conta e risco, se lhe acontecer algo na
nossa ausência é problema seu. – Disse Carlos.
- Não se preocupe delegado, eu sei me cuidar.
- Tome aqui Francisco, fica com minha quarenta e quatro, já me livrou de
muitas, e com certeza vai livra-lo também. – Falou Marcos sorrindo.
- Obrigado amigo, se algo me acontecer saiba que foi um prazer
conhecê-lo. – Disse Francisco enquanto abraçava Marcos.
- Para min também colega, e considere-se um membro benemérito da
Irmandade dos Guardiões do Portal do Conhecimento Sagrado. – Disse Marcos.
- Bem, eu gostaria de ir. – Disse Carlos impacientemente.
- Pois não Milord, seu fiel escudeiro já está a postos para servi-lo. – Disse
Marcos.
- Ótimo, então vamos. Cuide-se Francisco, em breve estaremos de volta.
Carlos ficou sentiu uma certa apreensão em deixar Francisco sozinho
naquele mosteiro, porém tudo que ele conseguia pensar naquele momento era em
certificar-se que Aline estava bem. Voltaram pelo caminho tão rápido que acabaram
perdendo-se no meio da mata, porém depois de alguns minutos reencontraram o
caminho novamente, ajudados por uma forte claridade que vinha do vilarejo.
- O que será aquilo delegado? – Perguntou Marcos já quase na saída do
mato.
- Sei lá garoto mas já vamos descobrir. – Subindo a rua puderam notar uma
grande movimentação em frente a pensão de seu Ernesto, tratava-se de um grupo
de homens armados com foices, pedaços de paus e tochas, Carlos olhou mais
adiante e avistou mais uma grande quantidade de pessoas, também portando algum

140
tipo de arma e tochas, enquanto elas chegavam no local, Carlos começou a temer
pelo pior. Quanto chegaram na pensão, seu Ernesto veio ao encontro deles aflito.
- Delegado! Delegado! – Gritou o homem quase sem fôlego
- Calma seu Ernesto o que foi? – perguntou Carlos descendo do cavalo.
- Eles voltaram doutor, estiveram aqui e levaram tua guria com eles.
Disse o homem respirando ofegante enquanto eles entravam na pensão. - Primeiro
chegou um sujeito dizendo conhecer a moça, e de fato a conhecia mesmo, pois ela
mesma o convidou para entrar, conversaram um pouco ali na sala e logo em
seguida começaram a discutir, o sujeito se levantou bravo e se transformou em um
demônio, logo apareceram outros, veja quebraram tudo. – Completou ele juntando
alguns abajures quebrados no chão.
- E para onde eles foram homem? Me diga. – Falou Carlos sacudindo o
apavorado senhor.
- Foram em direção ao mosteiro delegado, em direção ao mosteiro. – Disse
seu Ernesto. Nesse instante, Marcos, que havia subido até o sótão desce
apavorado:
- Levaram o livro delegado! Francisco havia me dito aonde escondeu, não
esta lá. – Falou o rapaz ofegante.
- Merda! Precisamos ir atrás deles. – Disse Carlos enquanto subia correndo
até o sótão aonde pegou a espingarda que seu Antenor havia lhe dado, encheu os
bolsos com a munição da arma e desceu outra vez. Já na saída da pensão foi
barrado por um rapaz:
- Olá moço. Não sei se lembra de min, sou o irmão da guria que o senhor
salvou. – Disse o jovem.
- Sim, eu me lembro. – Falou Carlos afastando o jovem.
- Ficamos sabendo que levaram sua amiga, pois saiba que eu já reuni ai o
povaréu e estamos indo lá no mosteiro resgatar ela, nem que para isso tenhamos
que botar aquilo abaixo. – Falou o rapaz.
- Eu agradeço a intenção, mas acho melhor vocês não se envolverem nisso
rapaz. – Disse Carlos enquanto montava seu cavalo.
- Olha moço, o senhor querendo ou não nós já estamos envolvidos nessa

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história, essa gente veio para cá e mexeu com o nosso povo, e nós não deixaremos
isso continuar. – Falou o rapaz.
- Bem eu não posso impedi-los, porém eu peço que aguardem apenas um
pouco, meu amigo aqui e eu descobrimos uma outra entrada para o mosteiro, nos
dêem uns vinte minutos e então avancem contra o mosteiro pela porta da frente. –
Disse Carlos.
- Tudo bem, vinte minutos e seguiremos atrás de vocês. – Concordou o
Rapaz. Marcos disse que precisava ir até sua pensão para pegar alguns acessórios
e Carlos ficou aguardando-a na frente desta até que surgiu o jovem Marcos com seu
arco e uma sacola às costas com uma porção de flechas para o mesmo, algumas
estacas de madeira, uma réstia de alho no pescoço, e uma porção de amuletos
também.
- Você acha realmente necessário levarmos tudo isso? – Perguntou Carlos.
- Mas claro meu incrédulo amigo, tome coloque este talismã. – Respondeu
Marcos alcançando-lhe um medalhão dourado.
- Obrigado, mas eu já tenho o meu. – Disse Carlos mostrando-lhe o
pantáculo que havia ganhado do velho da loja de antiguidades.
- Minha nossa, é o Pantáculo de Jesus, aonde conseguiu? – Perguntou
Marcos.
- Um velho me deu, de uma loja quase na frente da nossa pensão.
- Que loja delegado? Em frente a tua pensão não tem nada, é um terreno
baldio. – Disse Marcos confuso.
- Olha garoto, eu estou dizendo que na frente da pensão tem uma pequena
loja, e foi lá que eu ganhei esse treco e pronto, depois que tudo isso acabar eu te
levo lá, talvez tu ganhe alguma coisa também, agora vamos. – Disse Carlos.
- Certo estou pronto.
Os dois entraram no mato a galope, durante parte do percurso eles escutaram o urro
de uma criatura, Carlos olhou para traz e pode notar que a densa névoa branca
formava uma espécie de serpente semi-transparente que contorcia-se por entre as
árvores, esta então tornou-se um pouco mais densa e, tomando a forma de um
imenso e comprido dragão, começou a investir contra eles e tentando abocanhá-los
enquanto preenchia o vazio da mata com urros ensurdecedores. Carlos cutucou seu

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cavalo que já corria além de seu limite, pois já começava a babar de exaustão. Ao
chegarem no local aonde a trilha se partia em duas, eles notaram que não estavam
mais sendo seguidos pela ser fantasmagórico, eles então pararam por um instantes,
seus cavalos estavam inquietos como se não desejassem permanecer parados ali,
murchavam as orelha e bufavam o tempo todo enquanto raspavam o chão com as
patas esquerdas. Marcos pegou seu arco e molhou uma de suas flechas com um
líquido de um frasco. O silêncio que agora se formara fazia com que Carlos
engolisse em seco a cada brisa que tocava-lhe o rosto. Marcos desceu de seu
cavalo e ficou olhando na direção de onde eles tinham vindo, com seu arco armado
ele caminhou alguns passos para frente quando de repente um urro aterrorizante fez
com que ele se voltasse para Carlos que debatia-se aprisionado pela boca do
dragão de névoa que havia surpreendido-o por trás, surgindo completamente do
nada. A besta lançava-o contra as copas das árvores, voltava a pegá-lo e
arremessava-o novamente; Marcos Gritou algumas palavras e o imenso dragão
demoníaco voltou-se para ele soltando Carlos quase desfalecido no chão. Marcos
manteve seu arco apontado para a besta e ficaram os dois observando-se por
alguns instantes, então o dragão armou-se para dar um bote enquanto Marcos
disparou uma flecha contra ele; a flecha atingiu a névoa como se fosse algo sólido, a
besta contorceu-se por uns instantes e logo depois desfez-se num urro de
desespero, e a flecha que Marcos atirara viera a cair bem a frente de Carlos que
levantava-se com um certa dificuldade.
- Quer me acertar também? – Disse ele enquanto cuspia um pouco de
sangue.
- Eu tentei, mas o monstro te largou antes. – Respondeu Marcos. –
Consegue Andar? – perguntou ele.
- Claro, acha que eu sou feito de açúcar? – Disse Carlos enquanto montava
seu cavalo com uma certa dificuldade. Ao Chegarem na entrada do mosteiro aonde
haviam estado antes notaram que o cavalo de Francisco não estava mais lá, Carlos
torceu para que o rapaz tivesse voltado para a pensão e tivesse ficado por lá, até
que Marcos encontrou os arreios do cavalo de Francisco jogados em um canto
manchado com um pouco de sangue.
- Olhe delegado a porta está trancada desta vez, o que será que

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aconteceu?
- Vamos Ter de entrar e descobrir. – Disse Carlos enquanto arrombava a
pequena porta com um chute. Os dois entraram e começaram a caminhar pelo
estreito corredor que daria na sala com as cinco portas.
- Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge...
- Quieto Marcos, quer que nos ouçam? – disse Carlos bravo. Marcos
ignorou-o e continuou com sua oração – Não me escutou? – Ralhou Carlos mais
uma vez
- É a oração de são Jorge delegado, é para nos proteger.
- Tudo bem, mas reze mais baixo por favor. – Disse Carlos, que mesmo um
pouco irritado com aquela ladainha resolveu deixar que ele continuasse, pois notara
que o garoto também estava ficando assustado com tudo aquilo. Quando chegaram
até a porta onde haviam estado antes, esta estava semi-aberta deixando uma fraca
luz iluminar os primeiros degraus da escada. Entraram pela porta que dava bem no
meio de um corredor, enquanto Marcos saiu pela direita, Carlos seguiu para o lado
oposto. O local estava quase que completamente tomado pela escuridão, e apesar
de Carlos notar a presença de luz elétrica, devido a algumas tomadas ao longo da
parede, a única iluminação vinha de algumas poucas tochas acesas nas paredes do
corredor que não davam conta de fornecer uma iluminação adequada para o
ambiente. O fim do corredor, dava para outra escada, que levava para o pavimento
inferior. Carlos pensou um pouco consigo: geralmente nos filmes de terror todas as
artimanhas eram feitas no calabouço das construções, isso quer dizer que ele
deveria descer. Na hora ele achou a idéia meio idiota, como poderia ele um homem
considerado um dos cérebros mais capazes de toda a força policial estar apelando
para soluções vindas de filmes de terror de terceira categoria, mas como seu pai
gostava de dizer que para baixo todo o santo ajuda, desceu as escadas até chegar
em uma grande sala cheia e mesas e bancos, o refeitório, imaginou ele, e numa das
paredes dessa sala, mais uma passagem com uma escada que também descia, ao
chegar perto da passagem Carlos começou a escutar uma espécie de cântico
uníssono, notou também uma certa luminosidade vinda da parte de baixo, achou
então que deveria seguir por ali, porém quando ia cruzar os umbrais da passagem,
alguém golpeou-o fortemente na cabeça e ele perdeu completamente os sentidos.

144
31.
Quando Carlos recobrou a consciência, a primeira coisa que viu foi o rosto
magro e pálido de Francisco lhe fitando. A cabeça ainda doía um pouco, levou a
mão atrás da nuca para ver se não havia sangramento, realmente havia um pouco e
sangue, mas nada preocupante, levando em consideração que alguns minutos atrás
um enorme dragão de névoa tinha usado seu corpo para arrancar os galhos de
algumas árvores.
- O que aconteceu com você Francisco? E que lugar é este? – Perguntou
Ele levantando-se da cama onde estava.
- Calma delegado, eu estou bem, mas infelizmente estamos presos, e de
acordo com o frei Martinho ali, é quase impossível de sair se a gente não tiver a
chave. – Disse Francisco apontando para um velho monge que estava ajoelhado e
rezando em um dos cantos do quarto, de costas para eles.
- Então o senhor é o tal frei, o poderoso líder dos cavaleiros de sei lá o
quê ? – Perguntou Carlos para o monge.
- Isso mesmo delegado, e eu sinto muito que a gente se conheça em
circunstâncias tão ruins. – respondeu o monge sem virar-se para Carlos.
- Sentir muito não ajuda em nada agora. – Disse Carlos enquanto forçava a
porta.
- O livro ainda está com o senhor Delegado? – perguntou o frei
levantando-se.
- Infelizmente não, alguns amigos meus estiveram na pensão buscando por
ele, eles também aproveitaram para destruir o local e pegar outra coisa muito
importante para mim, e agora eu estou possesso. – falou Carlos enquanto
chutava a porta.
- Eles voltaram delegado? – perguntou Francisco assustado.
- Sim Francisco. Mas agora me ajude a forçar porta.
- Desculpe eu dizer isso, delegado, mas eu conheço muito bem esse
mosteiro, e posso lhe dizer que o único meio de abrir essa porta é pelo lado de fora.
– Disse o frei Martinho.

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- E o Marcos delegado, onde está? – Perguntou Francisco.
- A essa altura já deve Ter sido pego também. – Disse Carlos quando foi
surpreendido pelos olhos assustados de Marcos na pequena abertura que tinha na
porta.
- Ei rapazes vocês estão bem? – perguntou ele.
- Graças a você ficaremos guri! Dá um jeito de abrir essa porta para
podermos sair. – Falou Carlos.
- Tudo bem, mas cheguem para trás que eu vou Ter que atirar no cadeado.
– Disse ele. Os outros se afastaram da porta e ele estourou o cadeado libertando
seu amigos.
- Que bom te ver amigo. – Disse Francisco.
- É bom ver vocês também, mas eu acho que é melhor nó corrermos, senão
vai ser tarde demais para salvar Aline. – Disse Marcos enquanto retornavam em
direção do refeitório aonde Carlos havia sido capturado.
- Você sabe aonde ela está? – Perguntou Carlos.
- Está num calabouço. – Respondeu Marcos.
- O que fizeram com ela?
- O problema não é o que fizeram delegado, e sim o que farão.
- Creio que o jovem esteja com a razão delegado. – Disse o frei Martinho.
- Que história é esta frei? – perguntou Carlos.
- Bem, os meus colegas descobriram uma outra forma de obter o poder do
conhecimento e usá-lo para o mau: de posse dos dois livros que existem, devem
oferecer um sacrifício de sangue para o príncipe da trevas seguindo um outro ritual
que a muito havia sido pedido.
- Então é por isso que eles tentaram pegar aquela jovem à tarde.
- Bem na verdade sim, mas graças ao meu bom senhor que atendendo às
minhas preces, conseguiu despertar na criatura que havia sido enviada, um resto de
bondade que havia em seu coração, e ele não consegui pegar a jovem.
- E me diz uma coisa seu frei: os padres não deveriam ser os bonzinhos?
– perguntou Carlos ironicamente.
- Claro meu filho, mas você sabe tanto quanto eu que a alma humana está

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propensa tanto para o bem quanto para o mal, e infelizmente esses meus irmãos
escolheram o caminho errado. – justificou-se o frei.
- Tá bom, mas vamos deixar de lero-lero e vamos acabar com a farra dessa
cambada. – Disse Carlos.
- Ainda não, a esta altura eles já devem Ter começado os rituais, e nesse
momento são intocáveis pela mãos mortais. – Disse o frei.
- Mas e os Cavaleiros do Conhecimento frei, eles podem detê-los. – falou
Francisco.
- Infelizmente Francisco, meus irmãos foram todos transferidos daqui por
ordem do Bispo. Restou apenas eu, mas velho e cansado não sei o que poderei
fazer contra as forças do mau. – Falou o frei.
- Quer dizer que o chefe da Clã finalmente deu suas caras. – falou
Francisco.
- Não filho, o pobre Bispo está apenas iludido como todos o outros irmãos
com a promessa de poder. – Disse o frei.
- Olha gente, eu não quero ser chato, mas Aline ainda está em perigo e
precisamos fazer alguma coisa e rápido, então se algum dos paranormais ai tiver
alguma solução diga logo, senão eu mesmo darei um jeito de encontrar esses
demônios, e mortal ou imortal, eu vou lidar com eles do meu jeito: à bala. – Disse
Carlos enquanto pegava suas armas que estavam em cima de uma das mesas do
refeitório, pois quem quer que havia lhe surpreendido, estava convicto que ele não
voltaria ali.
- Bem existe uma maneira frei: o senhor pode nos consagrar Cavaleiros do
Conhecimento, não é mesmo? – Disse Francisco.
- Eu posso fazê-lo, mas todo Cavaleiro o Conhecimento, tem que ser um
homem de coração puro e livre de preconceitos, senão o mal o seduzirá e o
destruirá através de seus próprios sentimentos. Um Cavaleiro o Conhecimento deve
jurar fidelidade a Deus e a São Jorge, sempre fazer o bem e...
- O seu frei, não querendo ser chato novamente, mas será que dá para
pular as instruções de uso e ir logo para os finalmentes? Pois no momento a gente
é tudo que o senhor tem, de coração puro ou não – Disse Carlos enquanto
engatilhava sua espingarda.

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- Tudo bem, sigam-me até a capela que eu os consagrarei. – Disse o frei
Martinho seguindo por um outro corredor com seus amigos logo atrás. Chegando na
capela do mosteiro, o frei Martinho foi até o altar e pegou uma grande bíblia e um
pouco de água de uma jarra que ele consagrou e em seguida começou a jogar em
cima dos três proferindo uma reza em latim, Carlos podia não ser muito entendido
de rituais de consagração, mas pode notar nitidamente que o frei não estava
seguindo o tal ritual a risca, pois engasgava-se com algumas palavras, e as vezes
ele tinha a impressão de que o Frei apenas resmungava; Francisco e Marcos,
ajoelhados, estavam totalmente compenetrados, Carlos por sua vez apenas
continha-se em não atrapalhar a coisa, pois como sua mãe sempre dizia: um pouco
de reza não faz mal para ninguém. Terminada a consagração, eles correram para o
local que Marcos dissera Ter visto Aline, o frei não os acompanhou, disse que tinha
algumas coisas para pegar e que os seguiria logo depois. Os três chegaram até o
salão onde era realizado o ritual; era uma espécie de anfiteatro, com uma parte
superior, onde eles se encontravam, e a parte inferior que era acessível por duas
escadarias de pedra. O teto era sustentado por imensas colunas de pedra, e dois
grandes candelabros suspensos por cordas iluminavam precariamente o local. De
onde estavam, podiam ver toda a movimentação na parte de baixo: bem no centro
da sala havia uma espécie de altar de pedra, aonde um homem violentava uma
mulher amarrada à mesa com correntes. Por um momento Carlos temeu ser Aline
aquela moça, mas ficou, de certo modo, aliviado ao vê-la em pé em um dos cantos
da sala como se estivesse em uma espécie de transe. Ela estava coberta por uma
grande capa preta, e ao seu redor alguns homens estava rezando ajoelhados. Em
uma grande cadeira, assistindo a tudo, estava sentada em pose majestosa uma
criatura grotesca, mais feia do que o demônio que tinha atacado Carlos, e na sua
concepção aquele deveria ser o próprio diabo que viera certificar-se de que seus
súditos estavam dando cabo corretamente às suas ordens. Carlos, contando meio
por cima, achou que havia mais ou menos umas cem pessoas ali, e eles tinham que
pegar Aline sem que fossem vistos, o que parecia um tanto impossível.
- E então delegado, o que vai ser? – Perguntou Marcos.
- Ainda não sei, mas olha, eu acho que aquele chifrudo sentado lá no trono

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é o líder, vamos achar uma maneira de pegarmos ele e fazer de refém. – Disse
Carlos apontando para o demônio que estava sentado na grande cadeira.
- Dá uma olhada melhor delegado, daqui aquela coisa parece Ter uns três
metros de altura, imagina mais de perto. – Falou Marcos.
- Vamos fazer o seguinte vamos descer sorrateiramente até lá, um vai ficar
aqui em cima dando cobertura, se caso os outros dois forem surpreendidos manda
bala em todo mundo lá em baixo. – Disse Carlos, os outros dois concordaram. –
Bem um de nós que vai descer vai ser eu, e o outro? – Perguntou Ele.
- Não que eu esteja com medo delegado, mas acho que entre Francisco e
eu, sou melhor qualificado para dar cobertura, já que tenho mais experiência com
armas. – Disse Marcos.
- Também concordo. – Disse Carlos entregando sua espingarda para
Marcos. – Depende de você Francisco. – Completou ele.
- Estamos todos nadando na merda, porque eu iria Ter medo de me molhar
justo agora. – Disse Francisco confiante.
- Então vamos nessa. – Disse Carlos, nesse instante chegou frei Martinho
com outra espingarda e uma besta.
- Desculpem a demora amigos, mas achei que seria melhor ir pedir ajuda
para o pessoal da vila, mas pelo que vejo eles já estão por vir pois avistei um grande
clarão de lanternas e tochas se dirigindo para cá. Deixei as portas abertas,
e tomei a liberdade de trazer alguns brinquedinhos também, pois afinal só fé as
vezes é pouco. – Disse ele.
- Bem frei, então acho melhor você ajudar Marcos na nossa cobertura.
– Disse Carlos sorrindo.
- Já tem algum plano delegado? – Perguntou o frei.
- Bem não posso dizer que seja realmente um plano, apenas comece a
atirar quando a gritaria lá em baixo começar. – Disse Carlos enquanto descia as
escadas seguido por Francisco.
A mulher que havia sido violentada em cima do altar fora retirada por alguns
homens e em seu lugar fora colocada Aline que também tivera suas mãos
acorrentadas. Carlos perdera um pouco a visão enquanto descia a escadarias e não
pode ver um monge que se dirigia até ela com um enorme punhal. De repente

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entraram na sala mais algumas pessoas cobertas com um capuz negro, eles fizeram
um círculo em torno da mesa de pedra onde estava Aline e começaram a dançar e
cantar ao redor. Carlos se posicionou atrás de uma das colunas de onde podia
avistar seus outros dois amigos e fez sinal para que eles esperassem, de repente o
cântico parou e um sujeito trouxe os dois livros, o de Francisco e o de Claudia, eles
foram colocados um em cada lado de Aline que neste instante começou a gritar
como se tivesse acordado do transe. Começou então uma espécie de murmúrio
sincronizado que tomava conta de todo o salão enquanto o sujeito com o punhal
veio até Aline, ele tapou sua boca com uma das mão enquanto levantava a outra
para golpeá-la com o punhal, Carlos saiu de trás da coluna e descarregou sua arma
no sujeito que foi jogado longe com o impacto dos projéteis.
Fez-se um breve silêncio até que todos ali entendessem o que havia
acontecido, então uma multidão de homens enfurecidos acuaram Carlos em um dos
cantos da sala enquanto ele tentava livrar-se a chutes dos que avançavam contra
ele, Marcos e o Frei Martinho atiravam nos outros que tentavam chegar até Aline,
Carlos já estava sentindo suas forças chegarem no fim quando de repente ouviu um
barulho ensurdecedor de gritos ecoando pelos corredores do mosteiro: eram os
moradores da vila que tinham chegado. O grande demônio, que até aquela hora
observava tudo sem intrometer-se, gritou algumas palavra de ordem e os homens
que ali estavam reunirem-se todos ao seu redor em sua proteção, deixando Carlos
de lado, o demônio, esse, disse mais algumas palavras e aqueles sujeitos que
haviam entrado com as cabeças cobertas pelo capuz revelaram sua verdadeira
identidade: eram todos iguais ao demônio que atacara Carlos na pensão. O povo da
vila invadiu o salão liderados por Marcos e frei Martinho, e começaram a lutar contra
os homens que restaram na sala. Enquanto eles lutavam, um dos demônios pegou
os dois livros e Aline; escoltado por seus demônios guardiões, o grande demônio
saiu por um dos corredores laterais levando Aline junto com sua corja. Carlos
carregou sua arma novamente e pediu para que Marcos localizasse Francisco que
ele não vira mais desde a hora que atirou contra o sujeito que iria sacrificar Aline, ele
então seguiu pelo corredor escuro atrás dos demônios, notando estar sendo seguido
o demônio líder ordenou que um dos demônios guardiões impedisse Carlos, este
então voou para cima de Carlos gritando feito um cão raivoso, e Carlos sentiu que

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daquela vez não ia só ganhar uns tapas, o bicho estava a fim de arrancar-lhes as
tripas. O demônio guardião pegou Carlos pelo pescoço e lançou-o contra uma
parede, Carlos bateu com a cabeça tão forte que começou a sentir-se meio zonzo,
quase perdeu os sentidos, tudo a sua frente parecia uma grande mancha borrada, o
demônio guardião sacou uma adaga e em perder tempo acertou-o do lado esquerdo
do peito, perfurando-lhe o corpo. Tomado por uma dor intensa Carlos caiu e saiu
rastejando pelo chão tentando se levantar enquanto o demônio guardião lhe chutava
o estômago, e quando ele se preparava para dar o golpe de misericórdia com a
adaga, Carlos pode ver a criatura sendo acertada por uma flecha que atravessou-lhe
o peito fazendo-o explodir em uma centena de pedaços gosmentos e fétidos que
espalharam-se em todas as direções, Carlos pode então notar seus dois
companheiros Francisco e Marcos vindo ao seu encontro.
- Delegado! Você está vivo?
- Acho que não, mas aceito mas segunda opinião. – Disse Carlos
levantando-se com uma certa dificuldade enquanto pressionava o ferimento que o
demônio havia lhe causado.
- Consegue andar? Temos que ser rápidos, pois eles vão tentar terminar
o ritual. – Disse Marcos.
- Tudo bem, o corte não foi muito profundo. Mas me digam ai, o que é que
tem nessas flechas, explosivos? – Perguntou Carlos tentando mostrar-se alegre.
- Somos Cavaleiros do Conhecimento, esqueceu? Temos o poder e
abençoar nossas armas para que elas abatam as forças o mal. – Respondeu
Francisco.
- Vamos atrás dos demônios então. – Nem bem Carlos terminou de falar e
eles foram atacados por outros dois demônios guardiões, Marcos e Francisco deram
conta de um, fazendo-o explodir em pedaços também, enquanto Carlos apanhava
muito do outro, pois estava bastante debilitado para defender-se, mas foi socorrido
logo em seguida por seus companheiros que, com suas flechas abençoadas,
também transformaram esse demônio em um monte de gosma fétida.
- Já está devendo duas hein delegado. – Disse Marcos sorrindo.
- Põem na conta. – Disse Carlos enquanto pegava sua arma novamente.

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Eles seguiram pelos corredores até encontrarem com o demônio líder e mais quatro
demônios guardiões, que avançaram contra eles ferozmente; eles foram pegos de
surpresa, e os dois jovens sequer tiveram chance de armar suas flechas; eles eram
espancados e defendiam-se como podiam, Carlos lutava contra outros dois
demônios guardiões com um pedaço de ferro que havia juntado do chão. O Demônio
líder mantinha Aline presa por uma acorrente e ficava só observando, Carlos
conseguiu pegar o arco que Marcos havia deixado cair e acertou dois demônios
guardiões que explodiram impregnando a sala com sua gosma fétida, os demônios
que atacavam Marcos e Francisco começaram a sobrevoar a sala sendo seguidos
pelo seu líder que soltou, pela boca, uma bola de fogo que começou a tomar conta
do telhado. Aline começou a debater-se fazendo com que o demônio a soltasse no
chão, junto com ela caíram os dois livros, Francisco foi até Aline e a pegou,
enquanto Marcos pegava os livros, um dos demônios guardiões lançou-se contra ele
com uma lança, Carlos então jogou-se em sua frente e a lança atingiu o pantáculo
em seu peito liberando uma intensa luz azulada seguida de uma explosão que fez
com que os dois demônios guardiões que restaram se desintegrassem no ar. O teto
do mosteiro desabou tomado pelas chamas, as paredes começaram a tremer como
se todo o local estivesse sido afetado por um terremoto, uma parte do chão ruiu
abrindo uma imensa cratera por onde saiam mais chamas vindas da parte inferior do
mosteiro, o grande Demônio líder, tento sido atingido pelos destroços que
despencaram do teto, fora jogado ao chão mas levantara-se novamente, ele então
começou a andar em direção de Carlos, por entre as chamas e dos pedaços do
telhado que haviam caído na sala, Carlos podia notar que o face do demônio, vez
que outra, começava a transformar-se na face de alguém conhecido, era o velho
livreiro Samuel, esse porém assumiu sua face demoníaca novamente e pegou
Carlos pelo pescoço arremessando contra uma das paredes, Marcos soltou os livros
e investiu contra o demônio com um pedaço de madeira em chamas, porém esse
nem sentiu o golpe que lhe fora aplicado e com um movimento do braço arremessou
Marcos aos pés de Francisco que tentava fazer com que Aline saísse da sala, mas
essa forçava em soltar-se dele para ir até Carlos que tentava levantar-se do chão
enquanto o demônio caminhava em sua direção com uma lança em uma das mãos,
ele preparava-se para desferir um golpe contra Carlos quando de repente foi

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Surpreendido por Aline que jogou-se contra ele fazendo-o perder o equilíbrio e
recuar um pouco, ela foi até Carlos e ajudou-o a levantar-se, frei Martinho chegou na
sala em chamas e começou a proferir uma reza que abriu uma espécie de portal no
buraco que havia sido feito com o desmoronamento do telhado, uma ventania em
forma de redemoinho começou a varrer a sala e a puxar o grande demônio para
dentro do portal, porém o demônio ainda consegui agarrar-se em uma das pernas de
Aline que saia com Carlos para fora da sala, fazendo com que a moça tombasse e
fosse arrastada consigo, mas Carlos conseguiu segurar em sua mão, o demônio,
com suas garras cravadas na carne da moça, puxava para dentro do portal
enquanto Carlos com as últimas forças que lhe restavam tentava segurar Aline.
- Não posso manter o portal aberto por muito tempo! – Gritou o frei
Martinho.
- Segure-se firme! – Gritou Carlos Para Aline.
- Não vou soltar! – Gritava Aline enquanto o demônio cravava as garras
cada vez mais fundo em sua perna, que começava a rasgar-se fazendo verter uma
imensa quantidade de sangue, quase levando Aline a perder os sentidos, porém
essa lutava com todas as forças para manter-se agarrada à mão de Carlos.
- Se o portal fechar e ele escapar, estaremos todos perdidos! – Gritou Frei
Martinho enquanto era puxado por Francisco para fora da sala.
- Segure firme Aline, não vou desistir de você! – Gritou Carlos. Aline viu que
o demônio estava bem agarrado em sua perna, e nesse momento notou que só
tinha um jeito de acabar com ele e salvar Carlos e os outros, seus pesadelos faziam
sentido agora, ela tinha que decidir ou perderia a pessoa que mais amou na vida, e
que nunca deixara de amar por certo, ela olhou para Carlos que percebeu no olhar
triste da moça a sua derradeira intenção. – Aline Não! – Gritou ele enquanto ela
soltava sua mão deixando-se ser sugada pelo portal que fechou-se logo em seguida
liberando uma quantidade imensa de luz azulada, o resto do telhado em chamas
começara a ruir por completo quando Marcos levantou-se, recuperado do golpe que
havia sofrido, desviando-se dos destroços em chamas ele foi até Carlos:
- Precisamos ir delegado, o mosteiro está todo em chamas e logo não
alcançaremos mais a saída.
- Precisamos resgatar Aline! – Gritou Carlos.

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- Não podemos fazer mais nada delegado, ela foi de encontro ao seu
destino! Vamos sobreviver para irmos de encontro ao nosso! – Gritou o jovem
enquanto arrastava Carlos para fora do mosteiro.
A multidão que havia investido contra o mosteiro já se encontrava toda do lado
de Fora observando o prédio ser consumido pelas chamas, Frei Martinho e
Francisco vieram ao encontro dos dois:
- Onde está Aline? – perguntou Francisco.
- Sacrificou-se por nós. – respondeu Marcos enquanto largava Carlos
quase desfalecido no chão.
- E os livros vocês os pegaram? – Perguntou frei Martinho.
- Não se preocupe frei, a essa altura eles já devem estar sendo consumidos
pela chamas. – Disse Marcos.
- Não posso permitir que isso aconteça! – Gritou o frei correndo em direção
do mosteiro, Marcos tentou impedi-lo mas não conseguiu o frei entrou novamente no
mosteiro em chamas e sumiu no meio da densa fumaça negra que saía pelas
janelas e pelas grandes portas de madeira que ardiam em fogo também, alguns
instantes depois uma forte explosão fez vir abaixo todo o telhado do mosteiro
sepultando com cinzas os que ali tinha ficado.

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Epílogo

Na quente e nublada noite de verão, Souza caminha em direção da viatura


onde seu outro colega permanecia de campana enquanto ele havia saído para
comprar café; eles estavam investigando o suposto assassino de um vereador da
cidade.
- E então delegado, alguma movimentação? – pergunta Sousa para o
delegado Carlos.
- Até agora nada Souza, apenas um padre com uma garrafa debaixo do
braço. – Respondeu Carlos.
- Acho que logo vai cair um toró, pois está relampeando muito..
- Vamos dar uma circulada na quadra. – Falou Carlos enquanto dava
partida no carro.
Enquanto dobravam a esquina ao lado da igreja, Carlos pensou Ter visto sair
duas pessoas conhecidas, ele parou o carro e deu marcha ré, enquanto os dois
entravam em uma pequena ruela, Carlos parou o carro e desceu.
- Viu alguma coisa delegado? – Perguntou Souza. Porém Carlos não
respondeu nada, apenas deixou o outro falando ao rádio da viatura e correu até a
ruela por onde tinham indo as duas pessoas, um homem de estatura baixa,
relativamente gordo, e uma moça; ele gritou para que eles parassem, mas ao
contrario os dois saíram correndo em meio aos relâmpagos que iluminavam os céus
de Porto Alegre. Carlos começou a correr em direção dos dois que entraram em um
beco, porém quando ele chegou até o beco constatou que este era sem saída e não
havia ali nem um sinal das duas pessoas, nem mesmo uma porta por onde
pudessem Ter entrado. O estrondo de um trovão fez estremecer as latas de lixo do
beco e uma forte chuva começou a cair. Carlos caminhou até a parede no fim do
beco e notou que no chão havia um pequeno objeto que reluzia a cada relâmpago,
ele aproximou-se e juntou o objeto que tratava-se de uma pequena estrela das que
são usadas por oficias do exército em suas divisas, Carlos apertou a estrela na mão
e olhou para o céu que despejava toda sua fúria sobre o delegado:
- Eu não vou desistir dela entenderam? – Gritou ele com as duas mãos
estendidas para cima. – Vou até o inferno se for preciso para encontrá-la!

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As luzes azuis e vermelhas dos giro-flashes das viaturas chamadas por Souza
tomaram conta do beco enquanto as lanternas dos policias iluminavam o corpo
imóvel de Carlos, ajoelhado no chão diante da intransponível parede à sua frente.
Um elegante carro preto chega junto das viaturas da policia, desce um sujeito
e apresenta suas credenciais para um dos policias que tenta barrar sua passagem; o
policial deixa o homem seguir; o homem guarda suas credenciais, enquanto
caminha em direção de Carlos, que agora está de pé diante a parede, o homem tira
um pequeno cartão do bolso, aproxima-se pelas costas de Carlos e fala-lhe ao
ouvido, enquanto coloca o cartão no bolso do casaco do delegado:
- Você vai procurar respostas, talvez nós tenhamos algumas. O homem dá
um tapinha nas costas de Carlos e sai. O delegado continua imóvel olhando para a
parede enquanto a chuva fria escorre por seu corpo. Ele leva a mão no bolso e retira
o cartão que o homem tinha colocado instantes antes, tratava-se de um pequeno
cartão de visitas branco com os dizeres: A AGÊNCIA, em caixa alta e letras pretas,
abaixo disto, escrito à caneta: Praça da Alfândega, em frente ao banco dos
escritores, domingo às dez horas. Carlos olhou em direção das viaturas para ver se
encontrava o tal sujeito que havia lhe dado o cartão mas esse já não estava mais ali,
colocou o cartão no bolso e olhou mais uma vez para a pequena estrela que havia
encontrado no chão. Assim começaria sua busca, envolta de mistérios que
constituíam os obstáculos que ele deveria ultrapassar para obter as respostas para
as inúmeras questões que ainda iria fazer.

***

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