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Um delicado equilíbrio na relação de ajuda

Uma reflexão de Philip Yancey

Ministrar a pessoas necessitadas por vezes exige um certo desprendimento, um calo apropriado, que amorteça
o ajudador da dor daquele que precisa ser ajudado. O autor Frederick Buechner descreve como aprendeu essa lição em
seu livro Telling Secretes (Contando Segredos):
"Amar o próximo como a si mesmo é parte do grande mandamento. A outra forma de dizê-lo é ame a si mesmo
como o seu próximo. Ame a si, não de forma egoísta, auto-gratificante, mas ame-se como você amaria seu amigo no
sentido de cuidar de si, alimentar-se, procurar entender, confortar e fortalecer a si mesmo. O pastores, de maneira
específica, e pessoas nas profissões de ajuda, em geral, são famosos por negligenciar a si mesmos, tendo como resultado
que se tornam tão incapazes ou aleijados quanto as pessoas que tentam ajudar. Assim não são muito úteis para ninguém.
Se sua filha estiver lutando pela vida em meio a forte correnteza, você não a salvará pulando na água, pois certamente
ambos se afogarão. Você mantém os pés na beira seca do rio – procura manter sua paz interior , o melhor e mais forte
do que você é – e do terreno sólido você estende uma mão para salvar. ‘Cuide de si mesmo’ significa não se intrometer
nas vidas das pessoas porque no final elas terão de viver suas próprias vidas , mas significa também prestar atenção à
sua própria vida, à sua saúde e integridade, por amor de si mesmo e, no final, por amor daqueles a quem você ama.
Cuide de si para que você possa cuidar deles. Um coração sangrando não pode ajudar a ninguém se sangrar até a
morte".
Então Buechner, que em sua autobiografia relatava uma experiência vivida com a própria filha, acrescenta:"
Como é fácil escrever essas palavras e como foi impossível vivê-las".
A salvação de Buechner estava em que sua filha procurou tratamento para a anorexia que ameaçava sua vida,
umas três mil milhas longe de casa. Ele não estava presente para "protegê-la" ou manipular os eventos em seu benefício.
As pessoas que lá estavam – os médicos, enfermeiros, assistentes sociais ou até mesmo um juiz que a internou no
hospital contra sua vontade – tinham uma espécie de calo que Buechner, o pai, não podia ter. "Aqueles homens e
mulheres não estavam abatidos sofridos, trêmulos como eu. Eram realistas, firmes, conscienciosos e, dessa maneira,
embora nunca tivessem pensado nisso nesses termos, eles a amaram num sentido que eu creio ser mais próximo ao que
Jesus descreveu como sendo amor do que o que estivera tentando praticar".
A síndrome de auto-sacrifício não saudável por amor aos outros; de carregar maior parcela da dor de outros, do
que a própria pessoa sofrida, por vezes chama-se de "complexo de messias". Ironicamente, o verdadeiro Messias parece
ter sido surpreendentemente livre de tal complexo. Ele pegou um barco para fugir das multidões, insistia em ter
privacidade e tempo a sós com Deus, aceitou um presente que era "desperdício" dispendioso de perfume que Judas
lembrou "poderia ter sido vendido e o resultado empregado para aliviar a miséria humana".
Jesus curou a todos que pediam, mas nem todos com quem Ele se encontrava. Ele tinha a surpreendente e rara
capacidade de deixar que as pessoas escolhessem sua própria dor. Ele expôs Judas mas não tentou evitar que ele fizesse
seu mau intento; denunciou os fariseus sem tentar coagi-los a aceitar Seu ponto de vista; respondeu a pergunta de um
homem rico sem meias-palavras, deixando-o ir embora. Marcos acrescenta de modo marcante esse comentário sobre o
moço rico que rejeitou o conselho de Jesus: "Jesus, olhando para ele, o amou" (Marcos 10.21).
Em suma, Jesus demonstrou um incrível respeito pela liberdade humana. Não tinha compulsão a converter o
mundo todo durante Sua vida sobre a Terra nem curar pessoas que não estavam prontas a ser curadas. Nós que estamos
no ministério precisamos da espécie de "complexo de Messias" demonstrada por Jesus.
Enquanto morava entre missionários no Peru, Henri Nouwen concluiu que os dois motivos mais perigosos que
possam existir entre os que ministram são a culpa e o desejo de salvar. "O problema com a culpa," observou, "é que não
se retira a culpa pelas obras... A culpa tem raízes mais profundas do que possam ser alcançadas por meio de atos de
serviço cristão. Por outro lado, o desejo de salvar as pessoas do pecado, da pobreza ou da exploração pode ser tão
nocivo, porque quanto mais se tenta salvar alguém, mais a pessoa se confronta com suas próprias limitações. Muitos
homens e mulheres esforçados têm visto piorar sua situação durante sua carreira missionária; se dependessem somente
do sucesso de seu trabalho, perderiam rapidamente qualquer senso de valor próprio".
Nouwen conclui: "Quando chegamos a reconhecer que nossa culpa foi retirada e que só Deus salva, então
somos livres para servir, então podemos viver vidas verdadeiramente humildes". Deus trabalha melhor através dos que
possuem espírito de humildade e gratidão.
A hipersensibilidade para com a dor pode ser um dom, sim, mas como muitos outros dons, se for permitido que
nos domine e controle, pode ser destrutivo. Eu me preocupo quando vejo ajudadores que parecem mais feridos do que
as pessoas a quem estão ajudando. Nas palavras do poeta John Donne: "As cruzes de outros homens não são a minha
cruz".

Do livro: Igreja: porque me importar? Edit. Sepal 2001, págs. 96 a 99

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