You are on page 1of 18

TEATRO

DE
JOHNNY KAGYN

§
Assassinatos com Colher
Peça em Dez Canções Mais Epílogo.

§
Personagens

DAKOTA;
GABRIEL;
SARAH;
MENDIGO/FILÓSOFO/DRAMATURGO.

Cenário
Um apartamento qualquer em uma cidade qualquer.
Primeira Canção – Remoto Controle

(Gabriel está sentado no sofá apertando seguidamente um controle remoto imaginário,


ao lado do sofá, sentada no chão, está Sarah lendo um livro. Dakota adentra a sala,
parece ter acabado de acordar).

DAKOTA
O que você está fazendo Gabriel?

GABRIEL
Zapeando.

DAKOTA
Mas não temos TV Gabriel.

GABRIEL
Eu gosto de imaginar.

DAKOTA
E o que está passando?

GABRIEL
Não sei... Em todo canal há uma seqüência de imagens confusas... É como se fosse o
grande espelho de uma mente obsessiva projetando imagens fora da TV. É como se a
TV fosse a realidade e a realidade fosse apenas um transtorno obsessivo compulsivo.

SARAH
Estranho... Eu estou tendo a mesma impressão com este livro. É como se cada página
dele arrancasse algo de mim... É como se eu estivesse sendo decifrada, subjugada...

DAKOTA
Deixa eu ver... Sarah você tá de sacanagem comigo.

SARAH
Mas por quê?

DAKOTA
Todas as páginas estão em branco,

SARAH
Ora... Eu também gosto de imaginar.

DAKOTA
Eu acordei num hospício hoje?

GABRIEL
Dependendo da perspectiva, você ainda pode estar sonhando.
Segunda Canção – Respire Fundo Baby

(Toca o telefone, Dakota atende).

DAKOTA
Alô?

(Após breve silêncio Dakota desliga).

SARAH
Quem era?

(Silêncio).

GABRIEL
Quem era Dakota?

SARAH
Está nos deixando preocupados. Quem era ao telefone?

DAKOTA
Só nos restam 12 horas.

SARAH
12 horas para quê?

DAKOTA
Só 12 horas. Temos alguma arma aqui Gabriel?

GABRIEL
Arma?

DAKOTA
Revólver, facas...

GABRIEL
Nem garfos nós temos. Dakota, pra que precisaríamos de armas?

SARAH
O que falaram ao telefone? Por que este ar grave?

DAKOTA
Eu preciso sair agora.

GABRIEL
Você está de pijama...! O que é tão grave para te deixar neste mistério?

DAKOTA
Não importa se estou de pijama... Muita coisa não importa mais. Eu volto logo.

SARAH
Você não sai daqui enquanto não explicar do quê você está falando.

(Dakota segura Sarah pela cabeça e lhe dá um tapa, em seguida a arremessa ao


chão).

DAKOTA
Guarde suas energias para tarefas mais produtivas nas próximas 12 horas.
Terceira Canção – Prólogo Atrasado

DAKOTA
Meu nome é Gabriel. Sou o típico delinqüente popular. Adoro matar animais de
estimação, pichar muros brancos e comer pseudovirgens. Depois que terminei a
faculdade decidi continuar aqui, pois não suportei a idéia de viver longe da Sarah e da
Dakota. Ultimamente um estranho pensamento tem me assombrado: Por quanto
tempo um ser humano sangra até ficar completamente vazio?

SARAH
Meu nome é Dakota. Moro com esses dois desde os tempos da faculdade, e depois que
a faculdade terminou decidimos continuar juntos, pois era mais cômodo. Sou
apaixonada pelo Gabriel, porém sou orgulhosa demais para aceitá-lo depois do que ele
fez. Minha amizade com a Sarah tem ficado meio confusa depois que transamos. Eu
gosto dela, mas não sei até onde podemos ir. Ultimamente um estranho pensamento
tem me assombrado: Devo amar a quem me faz gozar com mais intensidade ou devo
amar a quem me inspira o sonho além da carne?

GABRIEL
Meu nome é Sarah. Sou de uma tradicional família judia. Fui conhecida na faculdade
como a “vadia judia”. Dos três sou a menos interessante, e de certa forma sou
extremamente viciada no Gabriel e na Dakota. Ultimamente um estranho pensamento
tem me assombrado: Se a vida é esperança por que poesia?

VOZ EM OFF
Eu sou o mendigo mudo. Na verdade antes de ser um mendigo mudo eu era um
eloqüente filósofo. Mas então um dia me desiludi com as idéias e decidi dar vazão a
meu lado primitivo em detrimento de meu lado racional. Foi então que passei a me
masturbar em público, cagar em qualquer canto e a não pronunciar mais nenhuma
palavra. Ultimamente um estranho pensamento tem me assombrado: O hábito de
limpar o ânus após defecar surgiu antes ou depois da palavra?

MENDIGO
Eu sou o dramaturgo que está escrevendo esta peça. Sinceramente minha única
intenção aqui é te confundir. Sou o típico escritor fracassado tentando expressar
sentimentos confusos através de uma metáfora universal, mas sei que no fim isto aqui
será apenas diversão vazia para alguns e perda de tempo para outros. Como vocês já
devem ter percebido aqui ninguém é quem diz ser, então não levem muito a sério o
que vem a partir de agora. A crueldade está nos olhos de quem vê e a realidade na
mente de quem a cria. Eu adoro estas frases de efeito. Ultimamente um estranho
pensamento têm me assombrado: Quantas pseudo-atrizes eu consigo comer se
escrever uma peça de sucesso?

Quarta Canção – Não Desligue a TV!

GABRIEL
Acabou o sol e não temos luz.

SARAH
O telefone está mudo, mas ainda temos voz.

GABRIEL
Ela saiu já faz tempo...

SARAH
Desligue a TV. Não é lúcido esbanjar...
GABRIEL
De que nos alimentaremos sem luz?

SARAH
De quê nos alimentamos até agora?

GABRIEL
Está ouvindo?

SARAH
O que?

GABRIEL
A TV.

SARAH
Desligue a TV Gabriel! Não é lúcido esbanjar.

GABRIEL
Sim, eu sei. Mas escute:

SARAH
O quê eu deveria escutar?

GABRIEL
Está dizendo que o grande filósofo foi encontrado morto no rio. Seu corpo virou
alimento de insetos... Sua cabeça estava aberta e seu cérebro foi devorado por um
cachorro.

(Sarah toma o controle remoto das mãos de Gabriel e desliga a TV).

GABRIEL
Calma! É só entretenimento.

(Dakota adentra a casa e trás consigo o Mendigo).

SARAH
O quê é isso?

DAKOTA
Uma pessoa.

GABRIEL
Quem?

DAKOTA
Não sei.

GABRIEL
Ele fede.

DAKOTA
Nós também.

GABRIEL
Ele fede à merda!

DAKOTA
Lave-o na pia da cozinha.
GABRIEL
E por que eu faria isso?

DAKOTA
Porque é você quem se incomoda.

GABRIEL
Você não está falando sério.

DAKOTA
Eu não apostaria alto nisso.

GABRIEL
Está certo... Mande que ele venha comigo.

DAKOTA
Só estenda a mão e ele irá.

(Gabriel e o Mendigo saem).

Quinta Canção – Comunicação Alternativa

SARAH
O que está acontecendo Dakota?

DAKOTA
Temos luz?

SARAH
Não.
DAKOTA
E o telefone?

SARAH
Está mudo. Mas você não respondeu à minha pergunta.

DAKOTA
Alguém descobriu Sarah.

SARAH
Descobriu o quê?

DAKOTA
Aquilo que não se deve descobrir.

SARAH
Sobre nós?

DAKOTA
Não seja tão racional. Tudo pode acabar quando não houver mais a luz do sol.

SARAH
Então nos resta pouco tempo.

DAKOTA
Sim.
SARAH
E este mendigo...?

DAKOTA
É uma possibilidade... Foi o único que eu encontrei. Mas é mudo.

SARAH
Sem palavras?

DAKOTA
Não. Apenas sem pronúncia.

SARAH
O que você está planejando?

DAKOTA
Não há planos é só instinto... O que você leu naquele livro hoje de manhã?

SARAH
Eu li que...

DAKOTA
Espere! Não diga nada...

(Dakota se aproxima de Sarah).

DAKOTA
Apenas lembre e traga aos lábios, mas não emita nenhum som.

(Dakota beija Sarah. Silêncio).

DAKOTA
Isso foi planejado há muito tempo.

SARAH
Eu ainda não consigo entender.

DAKOTA
Sarah, já que não temos nem facas nem garfos, pegue todas as colheres e traga para
a sala.

SARAH
Para quê colheres?

DAKOTA
Para nos defender da incerteza. Vá logo, pois já está escurecendo.
Sexta Canção – Sobre a Invasão Interplanetária na Casa do Meu Vizinho de 6
Anos

(Gabriel retorna puxando o mendigo pelos cabelos).

GABRIEL
Que porra de piada é essa Dakota?

DAKOTA
Vá logo pegar as colheres Sarah!

(Sarah vai até a cozinha).

DAKOTA
O que você está fazendo Gabriel? Solte-o!

GABRIEL
Antes me explique que porra de brincadeira é essa.
DAKOTA
Eu não sei do que você está falando.

GABRIEL
Olhe bem para o rosto dele.

DAKOTA
Meu deus! Ele não tem rosto.

GABRIEL
Eu afundei a cabeça dele na pia, e quando fui olhar...

DAKOTA
Eu não sabia...

GABRIEL
Uma pessoa sem rosto sempre é um perigo...

DAKOTA
...Ele era só um mendigo vagando pela rua.

GABRIEL
E você trás ele pra cá? O que você tem na cabeça?

DAKOTA
Eu não olhei direito... Ele estava com aquele capuz... E eu não me aproximei muito,
pois ele estava muito sujo. Aliás parabéns, fez um ótimo trabalho, ele está limpinho.

GABRIEL
Não tem graça Dakota.

DAKOTA
Olhe pra ele Gabriel. Ele não aparenta ter nenhum traço de consciência sobre o que se
passa ao redor dele. É um animal. Está certo, é estranho... Afinal é uma pessoa sem
rosto... Mas é inofensivo.

(Sarah retorna a sala).

GABRIEL
Eu não gosto nada disso.
SARAH
De quê você não gosta Gabriel?

GABRIEL
Veja como ele é bonito.

(Sarah deixa as colheres que estão em sua mão caírem no chão).

SARAH
O que é isso?

DAKOTA
Por que este pavor Sarah?

GABRIEL
Vai dizer que você não conhece a historia completa?

DAKOTA
Eu vou adorar conhecer.

GABRIEL
Conta pra ela Sarah.

SARAH
Na faculdade... Meu deus! Acabamos de ver na TV... Gabriel?

GABRIEL
Sim... Ele acabou de ser encontrado morto. Mas conte direitinho a história, a Dakota
precisa entender.

DAKOTA
O que eu preciso entender?

SARAH
Na faculdade eu ganhei um livro do professor de filosofia.

DAKOTA
Qual professor?

SARAH
O grande filósofo. Ele... Gostava muito de mim.

GABRIEL
E quem não gostava da “vadia judia”?

SARAH
O livro era todo escrito a lápis. A estória do livro era sobre um homem que não tinha
rosto, pois haviam apagado o livro da sua vida.

DAKOTA
E o que isso tem a ver com esse livro?

GABRIEL
Ela apagou o livro. Mesmo sendo advertida pelo filósofo de que jamais deveria fazer
isso.

SARAH
Por que o trouxe aqui Dakota?
DAKOTA
Eu não sabia desta história maluca. Mas agora não há volta... Vejam tudo está ficando
escuro.

(Tudo fica em completa escuridão).

Sétima Canção – Os Talheres e os Bons Modos

(Ainda em completa escuridão).

MENDIGO
Não temam a completa escuridão! Ao seu lado há alguém mais culpado que você. Na
escuridão só acontece o que você não pode ver. Troca de cenário, de figurino, de
personalidade... Na escuridão tudo pode acontecer, pois o que acontece na escuridão
tem a proporção da sua imaginação. Mas como eu sou o dramaturgo, e tenho que
imaginar o que acontece daqui em diante, lá vai:

(Sarah solta um grito de terror. A luz volta. Sarah está com uma colher enfiada em sua
barrida. Muito abatida ela vai ao chão).

GABRIEL
Droga! Não!

DAKOTA
Sarah! Como aconteceu isso?

SARAH
Está louca Dakota? Eu sou o Gabriel... Alguém me golpeou.

DAKOTA
Mas... Você é a Sarah.

GABRIEL
Dakota, eu estou aqui. Está tudo bem? Por que está nos confundindo?

DAKOTA
Droga! Você conseguiu ver quem te golpeou Sar... Gabriel?

SARAH
Não dava para ver nada na escuridão. Mas, o único candidato...

DAKOTA
(ao mendigo) Foi você quem fez isso?! Foi você quem fez isso!?

GABRIEL
Temos que levá-lo ao hospital.

DAKOTA
Não há mais hospital! O mundo acabou lá fora até que nasça um novo dia.

GABRIEL
Mas o Gabriel vai morrer se o deixarmos assim.

DAKOTA
Vá lá dentro e busque alguma coisa para estancar o ferimento.
GABRIEL
Mas não temos nada por aqui.

DAKOTA
Sarah, qualquer coisa! Pegue uma camiseta velha ou sei lá o quê... Vá depressa!

(Gabriel sai).

SARAH
Mate-o Dakota. Mate-o!

DAKOTA
Não temos certeza se foi ele.

SARAH
Como não? Ele é o único entre nós que faria uma coisa dessas.

DAKOTA
Olha Gabriel, hoje as coisas vão ficar completamente confusas. Nada é tão simples
como se vê.

SARAH
Se eu pudesse me levantar, eu mesmo mataria o desgraçado.

DAKOTA
Calma, assim que nascer um novo dia tudo será resolvido.

SARAH
Maldita a hora em que li a estória do homem sem rosto!

DAKOTA
Acalme-se Gabriel... E o que tinha demais nesta história?

SARAH
Dizia que o homem sem rosto seria um dia levado ao encontro de sua história, e que
neste dia todos os que apagaram sua vida se perderiam...

(Gabriel volta com uma camiseta nas mãos).

GABRIEL
Eu só encontrei essa camiseta.

DAKOTA
Tudo bem Sarah, serve. Gabriel, agora eu vou tirar a colher da sua barriga. Eu vou
tirar de uma só vez, para depois amarrar essa camiseta no local do ferimento e
estancar o sangue. Tudo bem?

SARAH
Faça logo o que deve fazer.

(Dakota arranca a colher ensangüentada da barriga de Sarah rapidamente e em


seguida amarra a camiseta no local do ferimento. Gabriel ajuda Dakota a colocar Sarah
no sofá).

GABRIEL
E agora? O que faremos com o mendigo?
DAKOTA
Não podemos colocá-lo lá fora, pois lá fora já não existe.

GABRIEL
Podemos matá-lo.

DAKOTA
Não Sarah. Pode não ter sido ele.

GABRIEL
E quem foi então Dakota? Eu? Você?

DAKOTA
As coisas não são tão lógicas assim. Eu já disse: isso foi planejado há muito tempo. Só
nos resta esperar por um novo amanhecer. Tudo isso pode estar acontecendo apenas
para nos confundir.

GABRIEL
E enquanto isso o Gabriel morre ali no sofá!

DAKOTA
Ele não vai morrer. Nós já fizemos tudo o que devíamos fazer.

(A luz começa a piscar).

GABRIEL
A luz está piscando... Pode apagar de novo.

DAKOTA
Vai apagar de novo.

GABRIEL
E você diz isso com essa tranqüilidade?

DAKOTA
Não há nada que possamos fazer para evitar.

GABRIEL
Há sim.

DAKOTA
O que vai fazer Sarah?

GABRIEL
Vou até o quarto e já volto. (sai).

DAKOTA
No que está pensando? Droga! Você tem que entender que hoje é um dia diferente.
Não há peças a encaixar e nem muito que se fazer. É só esperar o amanhecer. É
simples... Pegue a sua colher e se proteja... E é só.

(Gabriel volta com uma corda).

GABRIEL
Você ficou tão resignada de repente. Há sim o que se fazer e eu vou fazer para não ser
a próxima. Vou amarrar esse mendigo e assim ficaremos seguras até o amanhecer.

(Gabriel amarra o mendigo de forma que este fique impossibilitado de usar as mãos).
GABRIEL
Pronto. Agora que venha a escuridão.

(A luz pisca algumas vezes até tudo ficar novamente em completa escuridão).

Oitava Canção – Não Mudem de Canal Amiguinhos! Já Estamos de Volta!

(Ainda completa escuridão).

MENDIGO
Hora propicia para os comerciais. Mas em teatro não existem comerciais! Tá! Tá! Eu
sei que existe essa coisa de primeiro e segundo ato. Mas ninguém usa mais isso. O
risco de que todo mundo vá embora quando termina o primeiro ato é muito grande. E
além do mais, quem faria propaganda no intervalo de uma peça teatral? Mas foi
divertida essa ultima canção heim... Um poucochinho confusa no início, mas divertida
mesmo assim. Agora vou deixar as coisas mais simples... Começa assim:

GABRIEL
Ai! Filho da puta eu vou te pegar!

MENDIGO
E termina assim:

GABRIEL
Filho da puta!

(A luz volta).

SARAH
(gritando) Não! Como pode?

DAKOTA
Quem é você? Sarah ou Gabriel?

SARAH
Como assim quem sou eu? Eu sou Sarah. Não tem mais graça a brincadeira Dakota,
ele está morrendo. Temos que leva-lo ao hospital.

(Dakota vai até Gabriel no sofá e verifica seu pulso).

DAKOTA
Ele já está morto.

SARAH
(ao mendigo) Seu maldito!
DAKOTA
Não foi ele. Veja, ele continua amarrado como você o deixou.

SARAH
Mas se não foi ele... Quem foi?

DAKOTA
Você.

SARAH
Não seja ridícula.
DAKOTA
Lembra quando eu acordei e perguntei para o Gabriel o que ele estava fazendo?

SARAH
Sim lembro. Ele disse que estava vendo TV.

DAKOTA
E eu perguntei o que ele estava assistindo. E ele respondeu:

GABRIEL
Não sei... Em todo canal há uma seqüência de imagens confusas... É como se fosse o
grande espelho de uma mente obsessiva projetando imagens fora da TV. É como se a
TV fosse a realidade e a realidade fosse apenas um transtorno obsessivo compulsivo.

DAKOTA
E então você disse que tinha a mesma sensação com o livro que estava lendo. Só que
o livro estava em branco. Era o livro que você havia apagado, não é mesmo?

(Enquanto as duas estão conversando o mendigo livra-se da corda. Ele pega uma
colher no chão e caminha cuidadosamente na direção de Sarah).

SARAH
E qual é a sua teoria?

DAKOTA
Há uma grande mente por trás de tudo isso. E ela está manipulando você... Lembra
você disse que o livro a estava subjugando e decifrando?

SARAH
Dakota, não fui eu quem fez isso. Eu fiquei o tempo todo ali naquele canto encolhida...

(O mendigo já está próximo de Sarah quando Dakota o percebe).

DAKOTA
Sarah, cuidado!

(O mendigo empurra Sarah derrubando-a no chão. Logo em seguida ele a golpe-a


várias vezes com a colher).

MENDIGO
Ria agora! Ria! Ria! Ria filha da puta!

(Dakota corre em direção aos dois e empurra o mendigo, afastando-o de Sarah).

DAKOTA
Sarah! Sarah!

SARAH
Eu disse que não tinha sido eu. Eu disse...

(Sarah morre).

DAKOTA
Sarah? Sarah?

MENDIGO
Não seja estúpida! Ela morreu.

(Escuridão).
Nona Canção – Depois da Refeição a Digestão

(Ainda a escuridão. Longo silêncio).

MENDIGO
Por que estamos em silêncio?

DAKOTA
Logo vai amanhecer e tudo estará terminado.

MENDIGO
Eu não entendo essa sua esperança em um novo dia.

DAKOTA
Não há mais nada que eu possa fazer.

MENDIGO
Não sente vontade de se vingar?

DAKOTA
Eu terei minha vingança.

MENDIGO
Você parece muito paciente.

DAKOTA
Ao contrário... Estou ansiosa.

(A luz começa a piscar).

MENDIGO
Agora já posso morrer. Tive minha vingança e não pretendo voltar a viver no mundo
das idéias. Não sou mais uma personagem sem história...
DAKOTA
Por que matou Gabriel?

MENDIGO
Não fui eu. Foi você. Onde você estava quando se perdia na escuridão?

DAKOTA
Está tentando me confundir.

MENDIGO
Eu sou uma personagem de um livro filosófico. Confundir é minha especialidade. Mas
sinto desapontá-la, mais confuso do que já é isso aqui não fica.

(A luz se restabelece. Dakota corre em direção ao mendigo, joga-se sobre ele e


desfere vários golpes de colher no mesmo. Quando verifica que o mendigo já está
morto Dakota se afasta).

DAKOTA
Calma... Calma... Logo vai amanhecer e tudo estará terminado.

(Silêncio. O mendigo levanta-se).

MENDIGO
E quando ela esperava um novo amanhecer a insistente escuridão voltou e trouxe
consigo...
DAKOTA
Você está morto! Eu acabei de te matar!

MENDIGO
Não seja tão lógica Dakota.

DAKOTA
Quem é você?

MENDIGO
Aqui? Aqui eu sou deus. Também me chamam de escritor, autor, teatrólogo... Bem,
mas já que estamos ficando íntimos, você pode me chamar de dramaturgo.

DAKOTA
Eu não consigo entender...

MENDIGO
Eu adoro trabalhar com o não-entendimento, com a falta de explicação. Esta é a
síntese da condição humana por excelência.

DAKOTA
Mas e o telefonema que eu recebi hoje?

MENDIGO
Qual? Esse aqui?

GRAVAÇÃO
Informamos que devido a problemas na rede de postes da sua região os serviços de
telefonia e eletricidade poderão sofrer instabilidades nas próximas 12 horas.

MENDIGO
Tá bom, eu sei que esta é a piada mais sem graça de toda a peça...

DAKOTA
Isso é um absurdo!

MENDIGO
Não seja tão limitada... Escutar o que nunca foi dito... Esperar alguém que jamais
chegará... Crer em alguém que nunca existiu... Isto não é o absurdo. E o absurdo,
simplesmente não existe. Não será absurdo se os mortos se levantarem.

(Gabriel e Sarah se levantam).

MENDIGO
E cantarem sua canção preferida.

(Gabriel e Sarah cantam).

MENDIGO
E depois, simplesmente voltarem para a morte.

(Gabriel e Sarah caem mortos).

MENDIGO
O absurdo não existe Dakota. Principalmente aqui, onde um dramaturgo fala pela boca
de um mendigo, que é a personagem de um filósofo que foi encontrado morto sem o
cérebro, que virou o alimento de cães.
DAKOTA
E qual é sua próxima invenção? Qual é a próxima piada metafísica?

MENDIGO
Isto é o que é mais irônico. Não sou quem inventa isso aqui.

DAKOTA
Quem então?

(Escuridão).

Décima Canção – Para uma Erudição Metafísica

MENDIGO
Aqui nada é em vão ou por acaso. Lembre-se: Dependendo da perspectiva, tudo não
passa de sonho.

DAKOTA
Desgraçado! Tire-me da escuridão!

MENDIGO
Por que essa entonação?

DAKOTA
Por que não me deu opções?

MENDIGO
Não existem opções.

DAKOTA
Então para quê tudo isso?

MENDIGO
Você é a única responsável por achar respostas.

DAKOTA
Há salvação?

MENDIGO
Esta não é a pergunta correta Dakota. Não é a pergunta correta!

DAKOTA
E qual é a maldita pergunta correta?

MENDIGO
Houve vida?

DAKOTA
Claro que sim! Eu sou tudo que lembro e tudo que faço e tudo que enxergam em mim!

MENDIGO
Quantas vezes você já se olhou no espelho?

DAKOTA
Muitas vezes.
MENDIGO
Esta é a resposta para a sua pergunta.

DAKOTA
Eu não entendo...

MENDIGO
Mas logo entenderá.
DAKOTA
Onde você está indo?

MENDIGO
Para lugar nenhum. Porém não posso mais ficar aqui.

DAKOTA
Então é só isso?

MENDIGO
Não. Logo virá a luz que iluminará as colheres que trarão a verdade. E então quando
descoberta a verdade, descoberto será o fim.

(O mendigo abandona a casa. A luz começa a reaparecer e logo se restabelece. Vêem-


se agora todos os corpos espalhados pela sala, inclusive o do Mendigo).

DAKOTA
Colheres... As colheres.

(Dakota recolhe todas as colheres espalhadas e as limpa até que adquiram brilho
reflexivo. Ela se observa durante longo tempo nas colheres).

DAKOTA
Era tão simples... Agora eu entendo. (aos corpos) Vocês só existem porque acredito...
E sabendo disso... Eu não acredito mais.

(Os corpos são jogados à escuridão).

DAKOTA
Tudo é apenas ilusão. E agora que sei, eu não acredito mais.

(Completa escuridão. Luz apenas em Dakota).

DAKOTA
Eu sou apenas uma imagem na qual acreditava... E sabendo a verdade, eu já não
posso ser...

(Apaga-se a luz em Dakota).

O Desprezível Epílogo

MENDIGO/FILÓSOFO/DRAMATURGO?
Tecnicamente a peça já acabou. Isso aqui é apenas um desprezível epílogo onde o
dramaturgo clama por um pouco mais de atenção. Atenção! Atenção! Prestem
atenção: O mundo é apenas o grande espelho de uma mente obsessiva, Deus. E
dependendo da perspectiva tudo não passa de realidade.

Fim.

You might also like