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Rosa Lobato Faria

Autobiografia
Quando eu era pequena havia um mistério
chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido
falar de coisas aberrantes como educação
sexual, política ou pedofilia. Vivíamos num
mundo mágico de princesas imaginárias,
príncipes encantados e animais que
falavam. A pior pessoa que conhecíamos
era a bruxa da Branca de Neve. Fazíamos
hospitais para as formigas onde as camas
eram folhinhas de oliveira e não comíamos
à mesa com os adultos. Isto poupava nos
a conversas enfadonhas e
incompreensíveis, a milhas do nosso
mundo tão outro e deixava-nos livres para
projectos essenciais, como ir ver oscilar os
agriões nos regatos e fazer colares e
brincos de cerejas. Baptizávamos as
árvores, passeávamos de burro,
fabricávamos grinaldas de flores do
campo. Fazíamos quadras ao desafio,
inventávamos palavras e entoávamos
melodias nunca aprendidas.
Na Infância as escolas ainda não tinham
fechado. Não batíamos na professora,
levávamos-lhe flores. E depois ainda
havia infância para perceber o aroma do
suco das maçãs trincadas com dentes
novos, um rasto de hortelã nos aventais,
a angustia de esperar o nascer do sol
sem ter a certeza que viria, a beleza das
cantigas límpidas das camponesas, o
fulgor das papoilas. E havia a praia, o
mar e as bolas de Berlim !!
Aos 4 anos aprendi a ler; aos 6 fazia
versos, aos 9 ensinaram-me inglês
e pude alargar o âmbito das minhas
leituras infantis. Aos 13 fui,
interna ,para o Colégio. Ali havia
muitas raparigas que cheiravam a
pão, escreviam cartas às
escondidas, e sonhavam com os
filmes que viam nas férias.
Chamava-se a isto Adolescên-
cia , as formas cresciam-nos como
as necessidades de espírito,
música, leitura, poesia, para mim
sobretudo literatura, história
universal, história de arte,
descobrimentos e o Camões a
contar aquilo tudo, e as professoras
a dizerem, aplica-te, menina,que
vais ser escritora
Eram aulas gloriosas, em que
a espuma do mar entrava
pela janela, a música da
poesia medieval ressoava
nas paredes cheias de sol

Mas também tínhamos a


célebre aula de Economia
Doméstica de onde saíamos
com a sensação de que a
mulher era uma coisa frágil,
sem vontade própria, sempre
a obedecer ao marido, fraca
de espírito que não de corpo,
pois tendo passado o dia a
esfregar o chão com palha de
aço, mal ouvia a chave na
porta havia de apresentar-se
ao macho milagrosamente
fresca…
Aos 17 anos entrei para a Faculdade
sem fazer a mínima ideia do que isso
fosse. Aos 19 casei-me, ainda
completamente em branco (e não me
refiro só à cor do vestido). Só 6 anos,
três filhos e centenas de livros mais
tarde é que resolvi arrumar os meus
valores como quem arruma um guarda-
vestidos. Isto não, isto não se usa , isto
não gosto, isto sim, isto seguramente,
isto talvez. Os preconceitos foram os
primeiros a desandar
A revolução que NÓS fizemos nos
últimos 50 anos. E eu fiz tudo, quando
ainda não era suposto. Quando descobri
que ser livre era acreditar em mim
própria, nos meus poucos, mas bons
valores pessoais
Depois foram as circunstâncias da
vida. A alegria de mais um filho,
erros, acertos, disparates
generosidades ,ingenuidades, tudo
muito bom para aprender alguma
coisa. Tudo muito bom. Aprender é a
palavra chave e dou por mal
empregue o dia em que não aprendo
nada. Ainda espero ter tempo para
aprender muita coisa, agora que
decidi que a Bíblia é a metáfora da
vida humana e posso glosar essa
descoberta até, praticamente, ao
infinito.
Pois é. Eu achava, pobre de mim que era
poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar
apontamentos para o que havia de fazer mais
tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com
as palavras Também escrevia crónicas e
contos, recados à mulher-a-dias. E de
repente, aos 63 anos renasci. Cresceu-me
uma alma de romancista e vai de escrever 10
romances em 12 anos mais um livro de
contos (Os linhos da Avó) e sete ou oito livros
infantis
Isto da idade tem a sua graça.
Por fora, realmente ,nota-se
muito. Mas eu pouco olho para o
espelho e esqueço-me dessa
história da imagem. Quando
estou em processo criativo sinto-
me bonita. É como se tivesse
luzinhas na cabeça. Há 45 anos,
com aquela soberba muito
feminina, costumava dizer que o
meu espelho eram os olhos dos
homens. Agora são os olhos dos
meus leitores, sem distinção de
sexo, raça, idade ou religião. É
um progresso enorme.
Perto dos 30 anos comecei a
dizer poesia na televisão e pelos
40 e tais pus-me a fazer umas
maluqueiras em novelas,
séries,etc.
Já escrevi 1500 cantigas e é uma
das coisas mais divertidas que me
aconteceu. Ouvir a música e
perceber o que é que lá vem escrito,
porque a melodia, como o vento, tem
uma alma e é preciso descobrir o
que ela esconde. Depois é uma
lotaria. Ou me cantam
maravilhosamente bem ou
tristemente mal. Mas há que arriscar
e, no fundo, é só uma cantiga.
Irrelevante.
Se isto fosse uma autobiografia teria
muitas outras coisas para contar.
Mas não conto. Primeiro porque não
quero. Segundo porque só me dão
este espaço que, para 75 anos de
vida, convenhamos não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo
romance.

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