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VIDAS
VIDAS LIXADAS
LIXADAS Instituto Universitário de Lisboa
interseccionalidades
e marcadores sociais
nas experiências de
travestis e
transexuais com o
crime e o castigo
Foto: Cristal Lopes, ativista
“Dona de rua” é uma alusão à expressão
“dona de casa”, cujo uso está
tradicionalmente relacionado àquelas
mulheres que exercem o trabalho
doméstico não pago, que são “do lar”. A
rua é, assim, o inverso da casa, e é o
espaço ocupado por mais de 90% das
travestis e mulheres transexuais
brasileiras (Antra, 2013).
Considerações “Vida lixada” é outra expressão, desta vez
preliminares sobre o objeto portuguesa, que se costuma ouvir a
respeito daquelas pessoas que possuem
uma vida complicada, uma “vida
de estudo Severina”, daquelas que são teimadas em
viver; não vem portanto da noção de
Ou por que essa tese tem esse título polidez (lixar, polir), mas da noção de
danificado (estragado, danado, que tem
mau feitio). Interessante também que a
palavra se aproxima de outra, “lixo”, e
aqui cabe uma relação importante:
travestis frequentemente vivem uma vida
abjeta, precária, de menor importância e
que poderia ser considerada lixo porque
as pessoas frequentemente não se
importam sobre o que será feito delas.
precariedade
marginalidade
Antecedentes
Trabalho como voluntário em serviço de
atendimento social e jurídico junto à
travestis vítimas de violência ou que
buscavam a retificação do registro civil.
México
Itália França
Honduras
Brasil
Austrália
Argentina
As prisões encarceram travestis e transexuais em Tratam as pessoas trans frequentemente pelo nome
presídios masculinos enquanto regra, levando em que consta no registro civil e em 50% dos casos
consideração o sexo administrativo permitem o uso de vestimentas femininas
Transferem mulheres trans para presídios femininos só
Encarceram também levando em consideração a através de processo judicial e se a pessoa tiver
genitália da pessoa através de um discurso de realizado a cirurgia de transgenitalização
proteção (travestis e mulheres trans
engravidariam/estuprariam mulheres cis presas e Há casos excepcionais de mulheres trans levadas a
homens trans poderiam ser vítimas de violências presídios femininos atentando somente para o
reconhecimento político da identidade de género
sexual de homens cis) (Argentina)
Na ausência de regras ou de alas específicas, há o Respeita-se o nome social e identidade de género de
hábito de instalar as pessoas em prisão preventiva, maneira integral, ao menos no plano formal (Austrália
em prisão domiciliar ou em cumprimento de pena e Canadá)
na "ala de segurança" ou na enfermaria A terapia hormonal é oferecida àquelas que já
utilizavam antes do aprisionamento (Austrália)
Há casos de alas ou pavilhões específicos em
presídios masculinos para travestis, mulheres Não há, em geral, terapia hormonal (Todos os outros
transexuais e homens gays, e em dois casos, para países pesquisados com exceção da Austrália)
“maridos de travestis” A violência (sobretudo sexual) é uma narrativa geral em
todos os países pesquisados
O encarceramento de travestis tem relação íntima
com o tráfico de drogas Geralmente têm restrição ao trabalho e estudo
Esse discurso, entretanto, não se sustenta, uma vez
O caso brasileiro que nas alas dos crimes sexuais as travestis
continuam sofrendo um sem número de abusos:
têm seus cabelos cortados, são obrigadas a usarem
O Brasil tem por tradição prender travestis em alas roupas masculinas, sofrem estupro e são coagidas a
direcionadas aos homens que cometem crimes servirem de “mulas” para o tráfico de drogas (quer
sexuais. A história mostra que a relação entre dizer, carregam as drogas dentro do corpo).
travestis e a polícia sempre foi permeada por
conflito e discriminação, de modo que as travestis Belo Horizonte destinou as primeiras alas
eram (e ainda são) potencialmente selecionáveis específicas para travestis e gays em casas
pelo sistema policial e de segurança pública. prisionais masculinas (2009), seguida de Mato
Grosso (2011) e Rio Grande do Sul (2012). Depois
O fato de as travestis serem presas em alas de veio Paraíba (2013) e Recife (2014) e conforme
“duques” ou “mãos peludas” tem a ver com um resolução de 1 abr. 2014, essa parece ser uma
discurso de proteger essas pessoas (uma vez que tendência para a maioria dos presídios masculinos
em outras alas elas não seriam aceitas e, se brasileiros. Não há nada em relação aos homens
fossem, seriam objeto de violência). trans, que permanecem sendo presos em presídios
masculinos; há casos excepcionais de mulheres
transexuais presas em presídios femininos.
Considerações finais
As travestis são sujeitos históricos que experimentam a subalternidade e os processos de
subalternização. Ao mesmo tempo que obtiveram, nos últimos anos, maior representatividade e
“poder da palavra”, continuam precisando ser consideradas “gente”, já que poucas ainda podem falar
sobre si mesmas (Marcelly, em entrevista).
O processo de não ser “gente” diz muito sobre ter uma vida precária, aquela que não recebe comoção
nacional ao ser perdida; ao mesmo tempo que é compartilhada também entre aqueles que facilmente
podem ser criminalizados e punidos, já que pouco importa se são ou não inocentes, pois é suficiente
que parecem culpados.
No caso das travestis, ter uma vida precária e uma vida passível de criminalização se relaciona com
os marcadores sociais experimentados por essa população, já que a identidade travesti é, em si
mesma, interseccional – entrelaça condições subalternizadas de raça, gênero, classe social e corpo.
Mas a subalternidade, vale lembrar, não é um processo essencial/natural e tampouco diz respeito
somente à perda; é assim que é “feito crer” no social, mas as classes e grupos subalternos são
justamente aqueles que possuem o poder do ato histórico, que possuem a “substância da história”
(Guerra, 1995). Desse modo, ao mesmo tempo que perdem, debocham; se são atacadas, também
reivindicam; e lutam fazendo a festa.
A subalternidade, do ponto de vista da análise criminológica, carrega em si também a sujeição
criminal. As histórias que trouxemos no decorrer dessa tese revelam “a diferença central no Brasil em
que os poderosos demoram a ser presos, e os mais fracos, demoram a ser soltos” (Fernando Gabeira
em “GloboNews”, 2013).
A prisão e a morte aparecem, para o conjunto da sociedade, através da noção de que a “lei está
sendo cumprida” e as “pessoas de bem” estão sendo mantidas seguras, fazendo com que se produza
uma falsa noção de proteção, clamada por representantes políticos autoritários que se fortalecem
justamente com a insegurança, já que o medo da violência provoca o apoio e a obediência ao
autoritarismo e à coerção, em um cenário de crise de legitimidade das instituições democráticas –
como revelou estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017).
Nesse cenário as travestis são socialmente criminalizadas, passando por processos articulados de
criminalização que ajudam a validar aquele preconceito que diz que as travestis são mesmo
“essencialmente” criminosas e devem ser punidas – como vimos com os exemplos advindos do
jornalismo policial que parece ter na travesti a personagem ideal para um quadro que mistura humor,
escárnio e humilhação quando repete a tradição em que o repórter entrevista a travesti sendo
algemada ou já detida, interrogando-a sobre temas do seu foro íntimo (Klein, 2016). Ao passar pelos
muros do cárcere, a primeira experiência dessa população é, para já, com a estrutura prisional, que
reflete, no seu interior, a base de gênero da sociedade: um regime de gênero que se caracteriza pelo
androcentrismo.
Na prisão, uma das formas das travestis terem o “poder da palavra” e resistirem ganha contornos
também particulares e às vezes perversos, considerando que precisam sobreviver e, por isso, jogam
com o que têm como parte de uma gestão de risco (Passos, 2015). Se ganham espaço de
representação, podem produzir novas normatividades ou reproduzir as já existentes; se são
impedidas de receber a visita íntima, constituem relacionamentos conjugais com os homens também
presos, negociando suas identidades e a desses próprios homens (Baptista Silva, 2017); se não
homogeneizadas através da noção de que são “bichas” (Zamboni, 2016) ou “monas” (Boldrin, 2017),
estabelecem, de comum acordo, outros nomes não-oficiais para si e para os outros, nomeiam os
espaços destinados à elas, nomeiam a cadeia, as relações sociais: jamais serão “o preso” (Ferreira,
2015b) como quer crer a polícia, mas podem sê-lo se isso for politicamente estratégico.
A experiência das travestis brasileiras com a subalternidade, para esta tese, é o conteúdo dos seus
modos e condições de vida e aparece na forma de marcadores sociais das diferenças. Isto é,
conseguimos pensar sobre a experiência subalterna, no nível da análise social, quando conectamos
diferentes categorias de diferenciação e como elas produzem condições históricas particularizadas
que caracterizam a subalternidade, de modo que essas categorias produzem, também, níveis maiores
ou menores de vulnerabilidade e precariedade. Por isso, defende-se a tese de que esses marcadores
sociais explicitam e especializam o processo de subalternização de determinadas classes e grupos,
expresso não apenas pela dimensão da violência, da humilhação, da perda de direitos e de toda sorte
de privações, como também pela dimensão da desobediência, do deboche, da luta e da resistência.
A subalternidade, na sua dimensão da perda, da obediência em relação ao mando, da humilhação
frente aos interesses da classe dominante (que na aparência é interesse de quem é dominado),
sempre produziu também a incriminação de quem é socialmente produzido como subalterno,
fenômeno que se aprofunda em cenários nacionais policialescos – máximos em prender e punir
pessoas, mas mínimos em termos de proteção social. Por outro lado, a subalternidade também
possui uma dimensão de ganho, de desobediência e de resistência ante as manifestações de
violência que nada mais são do que refrações da própria questão social. Nesse momento, os
subalternos insurgem reivindicando espaço para as suas demandas sociais, mas isso não acontece
somente quando esses grupos tornam seus interesses hegemônicos; ao contrário, os ganhos e as
perdas desses grupos convivem e participam das contradições constitutivas do processo civilizatório
na sua história, expressando, ao mesmo tempo, a face da luta diante do sofrimento e a face da festa
diante das vitórias. As travestis compõem um grupo subalterno por excelência, isto é, analisar suas
histórias e condições de vida se estabelece como uma mirada privilegiada para entender os
processos sociais que subalternizam os sujeitos, especialmente tendo em consideração as dimensões
que fundam a travestilidade enquanto identidade: o discurso, a política, a geografia, a história, a
geração, o social e o econômico. Nesse sentido, também, é importante entender que o conteúdo
dessa subalternização, sua essência, só pode ser compreendido se tivermos em consideração uma
perspectiva que interseccione diferentes marcadores sociais, já que a identidade travesti é, em si
mesma, uma categoria interseccional. É através de marcadores de gênero, raça, classe e corpo que
as classes e grupos subalternos vem sendo interditos e coibidos – processos esses que se
particularizam em relação às travestis criminalizadas e presas.
Referências
Ferreira, Guilherme Gomes (2016). A produção de
Antra, Associação Nacional de Travestis e conhecimento sobre travestilidades na América
Transexuais (2013). Dados de prostituição trans. In: Latina e o serviço social: da invisibilidade do tema
Revista Carta Capital. O preconceito contra ao seu uso pedagógico na profissão. In: Seffner,
transexuais no mercado de trabalho. Disponível em: Fernando; Caetano, Marcio Rodrigo Vale. (Orgs.).
<https://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo- Discurso, discursos e contra-discursos latino-
pra-que/o-preconceito-contra-transexuais-no- americanos sobre a diversidade sexual e de gênero.
mercado-de-trabalho-2970.html>. Acesso em: 31 1 ed. Rio Grande - Rio Grande do Sul: ABEH, p.
mai. 2017. 1205-1219.
Benjamin, Walter (1985). Magia e técnica, arte e Misse, Michel (2010). Crime, sujeito e sujeição
política: ensaios sobre literatura e história da criminal: aspectos de uma contribuição analítica
cultura. São Paulo: Editora Brasiliense. (Coleção sobre a categoria “bandido”. Lua Nova: Revista de
Obras Escolhidas, vol. 1). Cultura e Política, São Paulo, n. 79, p. 15-38.