You are on page 1of 20

A má-fé da

justiça

A lei não é a pacificação, pois, sob a lei, a guerra


continua a fazer estragos no interior de todos os
mecanismos de poder, mesmo os mais regulares.
(Michel Foucault)
• A desigualdade social se desdobra nas
diferenças de classe, gênero, cor e idade, e é,
para alguns cientistas sociais, o principal
problema a ser pesquisado na sociedade
brasileira.
Jessé Souza defende que

“ A ralé é a grande questão esquecida. O Brasil não


tem 500 problemas, mas um grande problema,
que é essa desigualdade abissal do qual decorre
mais de mil problemas.”

Além disso, apesar da importância social que tem, ele


acredita que a desigualdade não é nem percebida
enquanto tal. Nós a naturalizamos, pois as ideias
estão dentro da cabeça para justificar nosso
comportamento.
A má fé da justiça
• É como se a sociedade tivesse um funcionamento
autônomo, num plano paralelo e abaixo do Estado e,
quando ocorresse o conflito, o Estado fosse chamado
a olhar para baixo, interferir e dar a solução. (pág.
329)

• Neste texto, nos concentramos na tentativa de


compreensão do Direito Penal porque acreditamos
ser esse o subcampo jurídico no qual os problemas
estruturais do país influenciam de modo mais
radical a aplicação da norma das dimensões
material e processual. (pág. 330)
• DIREITO PENAL
– Além de proteger os bens jurídicos vitais para a
sociedade, garante os direitos da pessoa humana
frente ao poder punitivo do Estado.
(fonte: wIKIPEDIA)
• A desigualdade social influencia a aplicação do
Direito Penal tanto na interação entre os aplicadores
do Direito e os réus da ralé quanto (...) daquilo que
diz respeito à própria forma que as instituições
assumiriam durante a nossa história. (pág. 330)

• Essa magistratura “linha dura” tende a se perpetuar


como a carismática, no sentido de ser aquela que
articula os anseios do seu público: dos que são por
ela “defendidos” e por quem é preciso que se faça
justiça. (pág. 333)
– ...tem que ser humanitário [com relação aos
presos] nesse auê de direitos humanos! Que os
presos tão lá na cadeia em condições
subumanas... E as vítimas deles? Eu vejo muitos
direitos humanos de bandido, não sei o quê, não
vejo ninguém falando das vítimas. (pág. 333)
• Muitas teorias sociológicas sobre a Justiça penal se
baseiam na dicotomia Estado/Sociedade. O ponto de
partida para esse tipo de análise é a afirmação de que a
sociedade brasileira “herdou” a estrutura social
colonial. (pág. 334)

• A justiça brasileira [para Roberto Kant de Lima] seria


caracterizada por práticas cotidianas viciadas pela
corrupção culturalmente construída (...). A solução
viria pela nossa libertação “dos prismas do
colonialismo econômico e cultural, interno e externo”.
(pág. 334)
• O grande prejuízo de uma teoria que reproduz o
senso comum é que os conceitos, que deveriam ser
fruto de um esforço racional para tornar perceptíveis
coisas que não são perceptíveis ao olhar cotidiano,
não possuem nenhuma sustentação rigorosa. (pág.
335)
• O magistrado é sensível ao fato de as condições
materiais de existência determinarem o destino dos
réus que a ele são apresentados todos os dias. Porém,
não pode orientar sua prática de aplicador da lei
com esse pressuposto. (pág. 339)

• A consideração da infância dos réus, se levada a


cabo sistematicamente, colocaria a instituição em
xeque, já que quase todos que são réus têm a
mesma história de desorganização familiar,
infância marcada por algum tipo de violência e
fracasso escolar. (pág. 340)
• A má-fé institucional esquematiza os ritos e a
infraestrutura do sistema criminal de modo a não
haver saída para o magistrado. Mesmo quando ele
sensível aos dramas a que está inevitavelmente
submetida grande parte dos réus que ele julga, na
maioria das vezes, não há saída alternativa ao
encarceramento quando se trata de um réu da ralé.
(pág. 340)
• Mais de 34% dos presos no Brasil foram
condenados pelo crime do roubo. Como há grave
ameaça ou violência, esse tipo de delito não pode ter
pena privativa de liberdade substituída pela
restritiva de direito. Esse fato já diminui
consideravelmente a conversão da pena de prisão em
uma pena alternativa. Além disso, a reincidência
em virtude da prática do mesmo crime impede a
aplicação da pena alternativa, e é prerrogativa do
juiz decidir pela substituição caso haja reincidência
na prática de outros crimes. (pág. 341)
• Geralmente o fato de haver maior freqüência de um
comportamento delinqüente entre pessoas de condição de
classe precária é usado em discursos pouco rigorosos e
muitas vezes preconceituosos. (Pág 343)

• Não é simplesmente a falta de dinheiro para se alimentar


ou se vestir um fator causador da criminalidade. (Pág
344)

• A correta abordagem “sócio-lógica nos mostra, portanto,


que não é a renda, mas o habitus um fator ciminógeno.
(Pág 344)

• As disposições constitutivas do habitus precário


guardam afinidade com o tipo de comportamento que a
vida delinqüente exige. (Pág 344)
• A necessidade é transformada em virtude, e a
esperança é de sucesso no presente e no futuro é
ajustada às probabilidades objetivas desse sucesso.
(Pág 344)

• O deliquente da ralé que consegue algum poder ou


que está em busca dele vive o delírio de ter uma vida
aventureira, porém essa vida não é uma aventura.
(Pág 345)

• A “aventura” para o criminoso da ralé, se encerra na


totalidade de sua existência e por isso deixa de ser
aventura para ser uma vida marcada pela falta de
opção e pela precariedade. (Pág 345)
• A dedicação ao crime é o que resta a muitos que
sofreram violências recorrentes durante a vida e que
por esse ou por outros motivos, que devem ser
investigados em cada caso, não tiveram uma
socialização capaz de efetivas ar incorporação de
disciplina para um trabalho “honesto”, mesmo que
desqualificado , e para afastamento de atividades
disruptivas. (Pág 345)
• Em uma breve incursão histórica pode-se perceber
com toda clareza o modo como os dilemas e
contradições do Estado brasileiro refletem
contradições seculares da nossa sociedade. (pág.
347-348)

• Sabemos o quanto o Brasil é um país desigual. O


objetivo presente é ultrapassar essa simples
constatação óbvia, e mostrar como essa
desigualdade condiciona radicalmente a ação do
Estado. (pág. 348)
• A reconstrução histórica de alguns traços gerais na
constituição do estado de direito brasileiro serve para
entender como a formação do Estado moderno no Brasil é
parte integrante de um processo de mudança global de toda
a vida social e do surgimento de um novo modo de ser gente.
(pág. 348)

• Essa mudança tem seu marco fundamental na


quebra do estatuto colonial e importação de um
padrão civilizatório baseado na expansão da ordem
competitiva e na “generalização”, minimamente
necessária, do trabalho assalariado. (pág. 348)
• Durante a implementação desse sistema no país,
surgiu o problema em relação à família dos ex
escravos, a camada marginalizada, que não foi
considerada no processo de integração para que
fossem proporcionadas condições para o
desenvolvimento das aptidões exigidas para o
produtor socialmente útil.
Essa lacuna no processo de integração marca as
desigualdades no Brasil até os dias de hoje. (pág.
348)
• O que determina essa divisão é a diferença de
habitus (um conjunto de características humanas
socialmente adquiridas que define, em traços
gerais, certo modo de conduzir a vida)
Indivíduos socializados num contexto de habitus
primário incorporam as formas de pensar e agir
necessárias para alcançar qualificação profissional
Por outro lado, aqueles socializados num contexto
de habitus precário não tiveram os pré- requisitos
mínimos para tornarem-se aptos ao exercício de
funções sociais valorizadas.
A igualdade de habitus cria uma noção
compartilhada de dignidade e uma rede especifica
de solidariedade a classe. (pág. 348-349)
• Um olhar crítico na história mostra que nem
mesmo num momento histórico posterior, no
chamado “estado de bem-estar social”,
implementado a partir da Era Vargas, houve
projetos políticos elaborados com a intenção de
mudar a situação da classe de ralé. (pág. 349)

• A má-fé institucional age de modo a legitimar o


esquecimento da ralé enquanto classe e a punição
de seus membros como indivíduos. O Estado de
uma sociedade tão desigual quanto a nossa é um
Estado que opera forçado pela necessidade de
defender, sob formas mais ou menos veladas, a
parcela amiga da parcela inimiga da sociedade.
(pág. 350)

You might also like